Grão Vizir

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Patrícia Franconere

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anconere São Paulo 2011


Patrícia Franconere

Título Original: Grão Vizir – “Um ser perdido no mundo em busca de respostas” Copyright© 2011 por Patrícia Franconere ISBN

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Grão Vizir

Sinopse Ferdinando Fraccadore Vetorazzi nasceu em Crotone, um pequeno vilarejo nas montanhas situado na região da Calábria no sul da Itália. Foi criado sob a doutrina católica, teve uma

infância difícil ao lado do pai Giuseppe que o educou com austeridade e da mãe Francesca, mulher beata, submissa e superlativa que passou parte de sua vida correndo atrás do

marido, este sempre envolvido com mulheres do povoado. Entre elas, Amparo mulher bela e fogosa que não pensava duas vezes em afrontá-la. Ferdinando ainda criança descobriu o desejo carnal ao ver os seios nus de Amparo durante uma briga entre ela e sua mãe. Tímido, morria de

vergonha dos escândalos que a mãe produzia cada vez que se encontrava com a rival. A imagem de parte do corpo nu de Amparo ficou entranhada em sua memória. Ele descobriu o prazer

solitário dentro do banheiro de sua casa, mas para sua infelicidade foi flagrado pela mãe que decepcionada o acusava de pecador. Arisco ao contato físico e demonstrações de afeto, Ferdinando encontrou num violino velho um alívio momentâneo para sua culpa e seus questionamentos.

Abandonado por seu pai, que viajara para o Brasil com a desculpa esfarrapada de ir apenas à procura de trabalho, Ferdinando ainda jovem passou a ser arrimo de família já que sua mãe

abatida com o abandono passava o resto de seus dias largados sobre a cama. Aos vinte anos, Ferdinando se envolveu com Amparo. Por uma noite ela foi mais que uma amiga. Mas uma tragédia abateu-se em sua casa. Sua mãe falecera de uma maneira brutal enquanto ele se

deliciava nos braços da rival. Ferdinando se culpara pela morte da mãe e colocara em xeque a

existência de Deus. Sozinho e sem perspectiva de vida, Ferdinando decidiu viajar para o Brasil a procura do pai e de respostas que tanto o afligia.

A rigidez a inflexibilidade e as imposições constantes de regras impunham limites em suas ações e seus pensamentos. Ele passou a acreditar que o lhe era imposto era o certo. O excesso de

rigidez e a devoção fervorosa ao catolicismo fizeram com que ele criasse um padrão mental de comportamento implacável, provocando assim um sentimento de autopunição que só trazia

sofrimento aos outros e a si próprio. Porém ele não era um homem mau. Apenas não sabia lidar com pessoas, muito menos com a vida. Ele era capaz de amar intensamente e odiar na mesma proporção. Inteligente, corajoso e de espírito empreendedor tornou-se um empresário de

sucesso internacional, mas a culpa, a saudade da mãe, a falta de amor do pai e o ciúme doentio que nutria pela esposa não permitiam que ele encontrasse felicidade em lugar algum. Até que um fato inusitado lhe trouxesse de novo a razão.

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Patrícia Franconere

Prefácio Jardim Marajoara (São Paulo, Brasil) 22 de setembro de 2001. Era início de primavera. Uma chuva torrencial meio fora de hora caia incansável trazendo o que restava do frio do inverno consigo. Num pequeno salão de aproximadamente vinte metros quadrados e portas de vidro que, tremulavam com o bater do vento forte, eu e outras pessoas nos amontoávamos ao lado da aniversariante que completaria 15 anos de idade. Seu rosto era pálido como uma boneca de cera e suas feições permaneciam estáticas iluminadas pelas fortes luzes que vinha do teto. Seus cabelos da cor do mel acomodavam-se sobre os ombros como cascatas. Próximos a mim estavam o Padre Cosmo e minha querida Poliana. Exatamente às oito horas da noite as luzes se apagaram e as velas do bolo foram acesas. Eu Ferdinando Fraccadori Vetorazzi e minha mulher Bete nos colocamos ao lado de nossa filha Dominice.Com meu velho violino Stradivarius em mãos comecei a entoar os primeiros acordes de parabéns a você.As pessoas presentes começaram a cantar: Parabéns pra você, Nesta data querida, Muitas felicidades, Muitos anos de vida! Para Dominice nada! Tudo! E como é que é? É! É pique.. É pique... É pique...É pique...É pique... É hora... É hora... É hora...Ratimbum! DOMINICE... DOMINICE... DOMINICE... Não houve alegria naquela canção. Apenas dor e lágrimas. Não houve presentes. Apenas flores.

Quem já teve a oportunidade de ver o mapa da Itália sabe que o país se parece com um bota. Sendo assim informo que minha história começa em uma região chamada Calábria que está situada no dedo da bota, ou seja, na ponta dela.

1 Eu nasci em março de 1956 numa pequena casa de pedra no ponto mais alto de uma colina verdejante. O lugar era tão alto que às vezes eu tinha a impressão de poder tocar o céu com as pontas dos dedos. Descendo a colina havia muitas casas como a minha encravada na montanha em vielas tão estreitas que mal dava para passar um carro. O pequeno vilarejo era de uma beleza natural indescritível. Sua costa era banhada pelo Mar Jônico que desaguava no Mar Mediterrâneo. Esta era a vista que eu tinha da minha casa. O Mediterrâneo todo para abraçar. Muitas vezes desde a minha mais tenra idade lembro-me de ficar sentado na frente da minha casa olhando para aquela imensidão

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Grão Vizir azul de água. Muitas vezes passava horas admirando o lugar e pensando na vida. Eu imaginava se Deus estava atrás da linha do horizonte ou no céu enxergando nós, pobre mortal, como minúsculas formigas. O clima de Crotone era quente e seco mais até que outros lugares da Itália. Por isso eu estava quase sempre enfiado dentro de calças curtas de tons pastéis agarrada aos suspensórios e boina para não rachar a cabeça com a elevada temperatura do sol. Província de Crotone (Calábria, Itália)1966. Eu estava com dez anos de idade.

-- Ferdinando! Cadê você seu impiastro! — perguntou minha mãe como sempre aos berros. — Aqui fora mãe! saco de flanela.

— respondi enquanto guardava minhas bolinhas de gude dentro de um

— Vá chamar seu pai! — ela gritou de dentro da casa. — Não sei onde o pai está mãe! olhar para dentro.

— respondi tentando me debruçar na janela do quarto para

— Ele deve estar com os pescadores no bar do Pepe enchendo a cara de vinho! — To indo! — Diz pra ele que se não chegar logo ficará sem almoço! — Ta bom mãe! — respondi enquanto me afastava da casa correndo. — Vê se não desce correndo para não se arrebentar nas pedras! — ela me disse agora debruçada no parapeito da janela. — Ta bom! Ta bom... — Caminhei lentamente. —Vai logo se não eu te mato? — gritou minha mãe. “Ela quer que eu ande devagar ou que eu corra?” Pensei. Ela era assim. Nunca se decidia. E como qualquer bom italiano que se preze está sempre querendo matar alguém. Eu desci a montanha em desabalada carreira em busca do meu pai. Essa não era a primeira vez que minha mãe me incumbia dessa tarefa. Naqueles dois últimos dois anos era o que eu mais fazia. Meu pai era marceneiro e trabalhava em uma fábrica de móveis. Depois de provocar uma briga com um dos funcionários foi demitido. Aliás,meu pai adorava se meter Em encrencas e essa foi apenas mais uma delas. Meu pai já não era muito de pegar no batente com a demissão ele acabou se encostando na minha mãe que lavava e passava para fora para poder pagar as contas de casa.Ele por sua vez passava a maior parte do tempo conversando com os pescadores da região quando não, no bar do Pepe.Minha mãe odiava quando isso acontecia porque lá morava a dona Amparo irmã caçula do seu Pepe.Minha mãe jurava de pés juntos que meu pai tinha um caso com ela,afinal era o que Crotone inteiro comentava.Eu ainda não a conhecia pessoalmente,mas diziam ser uma mulher muito bela e foi o que constatei. Assim que desci a colina me deparei com a pequena mercearia de portas verdes do seu Pepe. — Seu Pepe o senhor viu meu pai? — perguntei ao homem barrigudo de olhar amistoso que estava atrás do balcão. Ele sorriu amarelo, e sem titubear caminhou até uma porta atrás do balcão que dava acesso direto a casa a casa dele e chamou por meu pai. — Giuseppe, seu filho está aqui procurando por você. Meu pai saiu de lá com a cara mais desconfiada do mundo. Estava com a barba por fazer, com os suspensórios caídos, braguilha da calça aberta (na minha santa ingenuidade eu achava que ele tinha acabado de urinar) e seu velho chapéu cinza de feltro estilo borsalino em suas mãos. — Caspeta! Mas o que foi dessa vez?

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Patrícia Franconere — A mãe ta chamando o senhor pra almoçar. _ Ma vá cagare! Nem deu o horário? Ainda são dez e meia! Tua mãe quer que eu vá comer com as galinhas?! Nesse instante, uma mulher bonita de seios fartos e cabelos acobreados apareceu ao lado do meu pai. — O que aconteceu Giuseppe? — perguntou a mulher demonstrando certa intimidade ao tocar o braço do meu pai. — Larâdxa! Mas que ta fazendo aqui no bar? Não falei para me esperar lá dentro? miséria!

Porca

Depois do esporro que meu pai deu a mulher sem graça voltou a entrar. — Quem é aquela mulher? É a dona Amparo? — É o Amparo sim. E o que ela tava fazendo lá dentro com o senhor? — perguntei inocentemente (naquele tempo as crianças ainda eram bocós). — Não é da sua conta! cabeça.

— ele respondeu enquanto tentava encaixar o chapéu surrado na

— Mas pai... — eu disse reticente. — A mãe já falou que não quer ver o senhor conversando com essa donna aí! Meu pai enfurecido tascou um bofetão bem na minha cara. — Cazzo! Quantas vezes vou ter que dizer para não se intrometer na minha vida! Envergonhado, baixei a cabeça e sai sem dizer uma palavra. Essa não era a primeira vez que meu pai me humilhava na frente dos outros. — Coitado do menino! Não precisava ser tão enérgico com ele. — disparou o grande amigo do meu pai. — Este moleque não passa de um bocó! — Ele vai contar pra Francesca! — concluiu Pepe enquanto enchia um copo de vinho. — Se ele contar acabo com a raça desse vagabundo. Pepe, apesar de ser o melhor amigo do meu pai não concordava com suas atitudes. Ele era um homem correto e honesto e íntegro.Tinha o fardo de carregar sua única irmã nas costas.Amparo uma balzaquiana viúva que vivia as suas custas e lhe rendia muitas dores de cabeça.Mulher fogosa não se limitava em se envolver com homens solteiros,mas principalmente os casados e meu pai foi apenas mais um deles.Minha mãe que o diga...E eu também... Meia hora mais tarde, dentro da cozinha escura da casa de pedra, a gritaria na minha casa rolava solta. — Quantas vezes vou ter de falar que não quero mais saber de você andando com aquele biscate? — Mas que biscate? Ta ficando louca? — retrucou meu pai sentado à ponta da mesa gesticulando sem parar. — Louco ta ficando você! Eu arranco seus culhões se eu descobrir que você se deitou novamente com aquela vagabunda! — Ma que? Para de falar tanta bobagem!

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Grão Vizir — Eu me mato de tanto trabalhar nessa casa,lavando,passando e fazendo comida para encher essa sua pança enquanto você me trai com aquela maledita. — Você não passa de uma porca gorda! Você deveria de boca fechada e me servir à comida! — gritou meu pai subindo cada vez mais alto na escala da estupidez. Minha mãe por outro lado colocou o avental manchado de molho de tomate e começou a colocar as panelas sobre a mesa com brutalidade. Afinal isso era o máximo de agressividade que lhe era permitido. — Ferdinando! Vem que o almoço ta servido! — gritou minha mãe enquanto acomodava seu traseiro avantajado numa cadeira torta do lado direito do meu pai que, por sua vez, mordiscava uma torrada de pão velho, coberto com antepasto de berinjela. Confesso que tive medo de entrar na cozinha,mas sabia que não poderia escapulir de uma punição,sendo assim entrei.Quando me aproximei da mesa o velho me deu um potente tapa nas costas de criar vergão. — Cazzo! — praguejei. — Dá próxima vez que abrir essa tua boca grande você vai para o milho entendeu? — Eu entendi. — Quantos anos têm aquela vagabunda? — perguntou minha mãe. —Eu sei lá quantos anos ela tem? — respondeu meu pai furioso. —Deve ter uns vinte quatro vinte cinco. _concluiu minha mãe. —Você não tem vergonha? Um homem com quase quarenta anos se deitar com uma mulher dessa idade? E que tipo de mulher se deita com um homem com as pelancas caindo feito você? Meu pai não respondeu. Mesmo aborrecido com a discussão sentei-me do lado esquerdo do meu pai e fiquei quieto. Só abri minha boca quando minha mãe abriu a tampa da panela. — Sopa de cabeça de peixe de novo? — Não reclame! — disse meu pai em tom severo acompanhado de uma sonora tapa na minha cabeça. Servi-me à contra gosto do caldo. — Faça a oração antes de comer! — mandou meu pai. (Diga-se de passagem, nesse quesito “mandar” ele era imbatível). De qualquer maneira, baixei a cabeça e de mãos cruzadas comecei a orar. — Senhor... Obrigada por nossa refeição. Obrigada pelo peixe que comemos hoje que é o mesmo que comemos ontem... Antes de ontem... Antes de ontem de ontem e antes de ontem de ontem de ontem e do mês passado. Só me lembro de ter terminado a oração quando senti um soco do meu pai afundar no meu crânio. Após me golpear sem indício nenhum de remorso meu pai levantou-se abruptamente fazendo sua cadeira ir de encontro ao chão. Ele abriu a porta do pequeno armário acima da pia e pegou um saco plástico. Após jogar o conteúdo no chão (que eu já sabia exatamente qual era) me puxou pelo braço e atirou-me com violência sobre o milho seco. — Agora é meio dia. Você vai ficar aí ajoelhado até as três e não quero ouvir um pio seu. Entendeu? Eu não respondi da primeira vez. Estava furioso demais para dar atenção aquele homem ensandecido, — Entendeu? — insistiu. — Eu entendi pai. — respondi enquanto encarava meu carrasco de frente.

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Patrícia Franconere — Madona da Achiropita! Vamos parar com isso? Esse menino não pode ficar no milho por tanto tempo! _ Ele vai ficar aí até quando eu quiser! — Não vai não! — disse minha mãe num breve momento de valentia. — Ferdinando pode sair do castigo. Eu to mandando! — explodiu minha mãe. Meu pai como de costume a esbofeteou. Ela se pôs a chorar. — Vou sair. Não agüento ficar dentro dessa casa por muito tempo. Você me irrita! — Vai para onde? Atrás da puta jovem? Meu pai não respondeu. Simplesmente saiu e bateu a porta.Apesar da minha mãe odiar a Amparo eu não conseguia entender muito bem o porque.Na minha cabeça meu pai era apenas amigo dela assim como eu era amigo das meninas da escola e da igreja. Minha mãe aproximou-se de mim. — Saia do milho meu filho. _Não mãe. Se o pai voltar vai bater na senhora se eu não estiver aqui ajoelhado. — Eu queria ter mantimentos o suficiente para fazer uma refeição descente. Mas estamos enfrentando tempos difíceis. Aquilo me cortou o coração. — Mãe, não precisa se explicar. Eu sei que a culpa não é sua. Minha mãe não era exatamente uma mãe carinhosa. Ela não era dada a abraços nem beijos,no entanto eu nunca duvidei do amor que ela nutria por mim.Isso eu sentia em pequenos gestos como por exemplo quando ela se levantava bem cedo nos dias frios para passar minha roupa de escola para que eu não as colocasse frias no corpo quente,quando cuidava de mim quando eu estava doente ou quando ela deixava de comer para sobrar pra mim.Já meu pai... Por várias vezes eu o ouvi atirar na cara da minha mãe a sua incapacidade para procriar. Dizia que queria ter uma família numerosa, mas casou-se com uma mulher seca e defeituosa. Que tinha a barriga boa para encher de comida e inútil para segurar uma criança. Nos meus pensamentos mais íntimos eu me perguntava por que meu pai queria uma família numerosa se ele não conseguia sustentar ou oferecer amor nem mesmo a uma família pequena. —Vai Ferdinando..Levanta daí. Eu me levantei devagar. Os milhos já estavam me machucando. Foi um alivio sair do calvário. Mas o alivio durou bem pouco. Meu pai devia estar espreitando atrás da porta. No momento em que me pus de pé ele entrou e me colocou de volta ao castigo. Não antes de dar uns safanões na minha mãe. Fiquei ali durante horas olhando para a mesa de fórmica verde e suas cadeiras de napa colorida. Apesar de tudo eu gostava do meu pai. Eu tentava entender o porquê, mas amor não se explica. No entanto quando ele batia na minha mãe eu desejava do fundo do meu coração que ele morresse. Minha mãe não merecia ser mal tratada por ele. Mas sempre que eu pensava isso logo em seguida fazia o sinal da cruz e pedia perdão a Deus. Como eu era mau e indigno, pensava. Francesca, esse era o nome da minha mãe. Ela nasceu em Paola também na região da Calábria. A cidade é banhada pelo Mar Tirreno que também deságua no Mar Mediterrâneo. Paola é conhecida por ser o destino turístico religioso mais importante da Calábria. Minha mãe era católica fervorosa e devota de Nossa Senhora da Achiropita. E seu maior sonho era poder conhecer a Catedral em Rossano.Ainda criança ela perdeu seus pais e sua única irmã tragicamente em julho de 1943 num bombardeio aéreo lançado pelas forças aliadas anglo-americanas que devastaram boa parte do centro 8


Grão Vizir histórico de Paola.Órfã minha mãe foi morar com uma tia velha em Crotone.Tempos depois conheceu e casou-se com meu pai.Ele também era só.Nunca soubemos direito a sua história,ele contava que seus pais morreram cedo e que seus cinco irmãos três homens e duas mulheres se distanciaram dele e estavam espalhados por todo canto da península Itálica.Mas ele nunca contou o por que do distanciamento,mas conhecendo ele como eu o conhecia não era difícil imaginar. Eu cresci vendo minha mãe apanhar. Tudo era motivo de briga em casa. As vezes eu me achava um covarde por não enfrentar meu pai.Mas o que eu poderia fazer? Eu era apenas um menino fraco e franzino, enquanto ele era quase um gigante com um metro e noventa de altura. Mas mesmo assim envergonho-me das vezes que fiquei tremendo na cama enquanto ele a espancava. Minha mãe era uma bela mulher quando jovem. Sei por que vi muitas fotos delas no álbum de família. Ela era magra de quadris largos e cintura fina.Tinha cabelos castanhos claros bem tratados e usava penteados estilo Brigitte Bardot.Ela tinha um brilho de esperança no olhar.Depois de alguns anos engordou,usava os cabelos grisalhos sempre presos com um coque no topo da cabeça e com o opaco da tristeza pesando em seu olhar.

2 Era domingo quase oito horas da manhã. Os sinos da Igreja de Santo Afonso de Ligório começaram a soar. Era um aviso de que a missa estava prestes a começar. Eu estava chegando acompanhado de minha mãe. Todos os domingos íamos juntos a missa. Depois ela voltava só enquanto eu ia para meu curso gratuito de violino em uma das muitas salas da igreja. Quem ministrava o curso era o Padre Batistine que a muito não celebrava uma missa. Devido a um problema de gota não conseguia permanecer por muito tempo de pé. Eu e minha mãe estávamos atrasados por esse motivo entrei quase correndo na igreja sem me importar com os fieis que já lotavam os assentos. Antes de ir até a sacristia me dirigi até o genuflexório do altar e fiz minhas orações na expectativa de terminar a tempo de iniciar os preparos para missa. Após o sinal da cruz percebi que alguém me observava atrás da cortina da sacristia. Marcello, outro coroinha e colega do curso de violino, fez sinal com as mãos para que eu me apressasse. Levantei,limpei meus joelhos e fui rapidamente ao seu encontro enquanto minha mãe se acomodava no primeiro banco da igreja juntando-se a outras beatas. — Mas onde você estava? O padre Enzo já perguntou por você várias vezes. — perguntou-me após um bocejo costumeiro. — Minha mãe se atrasou lavando roupa. — Mas em pleno domingo? Ela não podia lavar roupa outra hora? — Ela precisa ajudar meu pai a pagar as contas. — respondi enquanto vestia minha sobrepeliz branca sobre a tradicional batina vermelha. Mas ao mesmo tempo me perguntei quem o Marcello pensava que era para dizer o que minha mãe podia ou não fazer. — Ele ainda ta sem trabalhar é? — Está sim. Emprego hoje em dia ta muito difícil. — principalmente para que gosta de viver encostado, pensei com meus botões. Depois me dei conta que estava na igreja, olhei automaticamente para a imagem de Jesus Cristo crucificado no altar fiz o sinal da cruz e pedi em silencio perdão por mais esse pecado. — Meu pai disse que ouviu um comentário do bar do Pepe que seu pai vai para o Brasil é verdade? — perguntou o moleque gordo ávido por uma resposta. — O quê? — perguntei atônito.

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Patrícia Franconere —Meu pai disse que o Pepe tem um irmão que trabalha num navio e um amigo que mora no Brasil e que está ganhando muito dinheiro por lá. — E daí? — perguntei curioso. — E daí que parece que seu pai vai tentar a vida por lá. —Isso só pode ser invenção do Pepe. Meu pai não tem dinheiro nem para levar minha mãe até Paola que dirá ir para o Brasil. — Só estou passando pra frente o que eu ouvi. — defendeu-se Marcello na tentativa de não parecer fofoqueiro o que era fato. — Pelo que entendi o irmão do Pepe vai colocar seu pai dentro do navio como clandestino e esconde-lo até chegar a águas Brasileiras. Chegando lá ele vai procurar por esse amigo do Pepe que é quem vai recebê-lo no porto. Naquele momento, mas só naquele momento entendi que o Marcello não era gordo apenas por comer demais, mas certamente por acumular notícias demais naquele emaranhado de banhas. Eu não tinha grandes amigos quando criança apenas colegas. Eu era um garoto solitário. Preferia muitas vezes a companhia das minhas bolas de gude ou de um livro à companhia de outras pessoas. A missa começou seguindo seu ritual: 1 -Entrada 2_Ato Penitencial 3_Glória 4_Rito da Palavra 5_Credo ou profissão de fé (era a parte que eu mais gostava da missa, pois nós rezávamos o credo em latim). “...CREDO in unum Deum, Patrem. Omnipotentem, factorem coeli et terræ, Visibilium omnium et invisibilium. Et in unum Dominum Jesum “Christum, Filium Dei...” 6_Oração comunitária 7_Ofertório 8_Oração eucarística 9_A consagração 10_Oração dos Fiéis 11_Pai Nosso 12_Saudação da Paz 13_Piedade 14_Comunhão 15_Despedida 16_Encerramento Devo confessar que naquele dia não me concentrei exatamente na missa. Outro assunto invadiu a minha mente e ficou martelando por horas a fio. Meu pai no Brasil? Será que minha mãe sabia disso? Será que eu e ela iríamos também? Eu tinha ouvido falar muito no Brasil. Desde o final do século passado os italianos estavam imigrando par o Brasil em busca de uma oportunidade melhor. Depois da segunda guerra muitos dos italianos pobres migraram para o Brasil. Diziam que era a terra das oportunidades. Só consegui me desligar deste assunto quando entrei na sala de aula e peguei meu violino Stradivarius.

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Grão Vizir Stradivarius? Sim.Um Stradivarius legítimo eu possuia.Você deve estar se perguntando como um menino pobre conseguiu um violino artesanal que apenas poucos milheunáreus possuem.Esse instrumento tão raro pertence ao chamado período dourado de Stradivarius que vai de 1700 a 1720.São os Stradivárius mais cobiçados pelos coleceunadores de instrumentos musicais.Pois eu vou contar como consegui.Quando eu tinha apenas oito anos eu caminhava pela praia em busca de conchas. Ví a distancia um casal de jovens discutindo em voz alta.Acho que eram namorados ou coisa assim.A mulher chorava muito e puxava o homem pela camisa.Percebi que ele falava muitos palavrões.Não se pareciam com ninguém do povoado,pois seus trajes eram finos e apesar da discussão tinham um certo ar de refinamento.Tive medo de me aproximar.Mas fiquei escondido atrás de um rochedo vendo o desenrolar da cena.Num determinado momento a moça que por sinal era muito bonita pegou uma caixa e tirou de dentro o violino.Imaginei na hora que ela fosse tocar mas para minha surpresa ela golpeou a cabeça do homem jogou o violino no chão e saiu correndo.O homem curvou-se para frente desorientado com uma das mãos sobre a cabeça.Algumas pessoas que passavam pelo local foram auxiliar o rapaz.Nesse momento eu também me aproximei.Percebi que ele estava com um ferimento na cabeça.Sangrava um pouco mas não parecia ser nada grave.Um homem que estava de carro saiu com ele para um hospital.As pessoas foram se dispersando.E eu continuei atrás do rochedo e o Stradivarius danificado sobre a areia quente da praiaMinha primeira reação foi pegar o violino.Verifiquei se não havia ninguém por perto.Saí correndo.Peguei o violino rapidamente e o depositei na caixa sem me dar conta do valor incalculável do instrumento.Em poucos minutos estava eu na porta da minha casa analisando o dano do violino.Ele estava com uma rachadura de ponta a ponta provavelmente provocado pela colisão entre madeira e crâneu.Levei o instrumento para dentro de casa contei aos meus pais o que havia acontecido e pedi que meu pai concertasse. — Porca miséria! Só me traz trabalho e dor de cabeça este impiastro! — resmungou meu pai.Depois de uma saraivada de palavrões ele deixou o violino em perfeito estado.(apesar da aversão ao trabalho meu pai era caprichoso e os poucos móveis que tínhamos em nosa casa eram de carvalho construidos por ele) Minha sorte era que meu pai não entendia nada de violino na época assim como eu,caso contrário teria vendido imediatamente se soubesse o seu valor.Meu curso de violino durou pouco tempo.Com a evasão dos alunos a igreja resolveu extinguir o curso.Foi uma pena,eu já conseguia tirar algumas notas de grandes nomes como Bach,Strauss,Villa Lobos,Mozart.Eu adorava música clássica.Me relaxava e me fazia refletir. — Isso é coisa de bicha — dizia me pai. Lamentavelmente meu pai era um homem grosseiro,egoísta,insensível preguiçoso e covarde.Sim,pois só um covarde bate em mulher,só um covarde vive as custas delas e só um covarde chama um filho de bicha.Acho que sua intenção era a de pulverizar a minha dignidade.As vezes eu me questeunva se meu pai gostava de mim.Eu sentia falta de um aprofundamento maeur da nossa relação de pai e filho.Mas cada vez que eu tentava me aproximar ele me enxotava de perto sumariamente.Cada vez que eu abria a minha boca que eu queria conversar,jogar conversa fora até mesmo para fazer um agrado ele me afastava com retórica. “— É melhor ficar de boca fechada e parecer um idiota,do que abri-la e retirar totoalmente a dúvida.”_Essa era a frase que eu mais ouvi na minha vida.E era a frase que meu pai mais gostava de dizer.E acho que foi por causa dessa frase que me tornei um homem econômico nas palavras.

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Patrícia Franconere Creio em Deus-Pai, todo poderoso, criador do céu e da terra e em Jesus cristo seu único filho, Nosso Senhor que foi concebido pelo poder do Espírito Santo nasceu da Virgem Maria Padeceu sob Poncio Pílatos Foi crucificado, morto e sepultado desceu a mansão dos mortos ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus está sentado à direita de Deus Pai todo poderoso de onde há de vir a julgar os vivos e os mortos Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica na comunhão dos Santos Na remissão dos pecados na ressurreição da carne na vida eterna Amém. Eu estava de joelhos ao lado da minha cama fazendo minha oração antes de dormir. Havia passado duas semanas do dia em que Marcello me confidenciou a respeito da suposta viagem do meu pai ao Brasil. Eu preferi não contar nada a minha mãe afinal eu não sabia se era verdade ou fruto da imaginação fértil do Marcello.Mas naquela noite,quando me deitei na cama ouvi gritos de minha mãe que vinha da cozinha. — Seu maldito! Como ousa me falar uma coisa dessas com esta cara deslavada? Não me dei ao trabalho de escutar a discussão atrás da porta visto que meus pais gritavam para o Vaticano ouvir. — Mas como você vai para o Brasil? Sozinho ainda por cima! Com que dinheiro? Meu pai engoliu a seco e tentou se explicar sem muito êxito. — Aqui eu não tenho trabalho porca miséria! família entendeu?

Eu quero dar uma vida melhor para minha

Se algum estranho entrasse naquela cozinha naquele exato instante e ouvisse o discurso improvisado de meu pai poderia até pensar que ele estava sendo sincero. — Quem não te conhece que te compre seu vagabundo! (parece que minha mãe ouviu meus pensamentos). Meu pai começou a elevar mais a voz. Eu o conhecia o suficiente para saber que faltava muito pouco para começar as agressões. Minhas pernas começaram a tremer e eu comecei a suar frio. Não demorou para que eu ouvisse o som da pancadaria.Me enchi de coragem e fui até a cozinha.Assim que entrei só tive tempo de ver o clássico arremesso de chinelo do meu pai na rota da minha testa.Foi certeiro.O galo se fez na hora.Como sempre meu pai saiu batendo a porta.E eu com a testa ardendo tentei consolar a massa de material humano que se esparramava no chão e que habitualmente eu chamava de mãe. — O maldito do seu pai disse que vai para o Brasil para trabalhar e acha que eu acredito. O maldito quer mesmo se livrar da gente. — Não fala assim mãe. Quem sabe não é verdade? 12


Grão Vizir Ela invocou a santa. _Madona da Achiropita! Suplico-lhe que interceda a meu favor e não permita que meu marido se vá para terras estrangeiras! Pela primeira vez na minha vida minha mãe me envolveu nos seus braços. Confesso que não me senti muito confortável, afinal de contas aquele tipo de demonstração de afeto não fazia parte do nosso cotidiano. Fiquei arisco e me desvencilhei dos seus braços com certo alivio e uma pitada de repugnância. Meu Deus, que pecado pensei. Mas não pude evitar. Era um sentimento intrínseco. Fiz o sinal da cruz sem que ela percebesse. Senti-me mal naquela noite. Poderia ter contado a minha mãe a respeito da viagem, mas não o fiz. Acho que errei por omissão.Talvez se eu a tivesse alertado essa briga toda teria sido evitada.Mas como na maioria das vezes eu nunca sei o que é certo e o que é errado.Omitir ou fazer intriga.É difícil. Os dias foram se arrastando. Minha mãe inconsolável e inconformada mal olhava para o meu pai. Quando por algum momento seus olhares se cruzavam pareciam sair faíscas.Ele por sua vez não se preocupava sequer em disfarçar que estava ansioso.Estava estampado em sua cara a felicidade de ir para o Brasil.Apesar de dizer que sua ida ao Brasil era meramente em busca de trabalho e novas oportunidades, quem o conhecia bem como eu e minha mãe sabíamos que no fundo a ida dele ao Brasil não passava de turismo. Já era tarde da noite. Eu estava em meu quarto deitado, mas o sono não vinha. Da cama vi minha mãe entrar no quarto dela. As portas dos nossos quartos davam uma de frente com a outra por isso pude ver tudo o que acontecia. Meu pai organizava pela “centelhonésima” vez a mala de viagem. — Onde foi que você conseguiu essa mala? — perguntou minha mãe na tentativa de iniciar uma conversa civilizada. — O Pepe me emprestou. Minha mãe ficou de pé olhando para a mala velha de material acartonado e ferragens oxidadas. Ela parecia querer se atirar dentro dela sem que meu pai visse para ser mais uma clandestina. Ele o clandestino do navio e ela a clandestina da mala. Vá,vá,vá, vá. Fala logo o que você quer! perguntou meu pai impaciente. — Eu quero saber para onde você vai. — perguntou minha mãe com voz chorosa. _Porca miséria! Já não disse que vou para o Brasil? — Mas o Brasil pelo que eu vi no mapa do Ferdinando é muito grande. Quero saber em que cidade você vai ficar! — E quem foi que mandou você olhar no mapa? Quantas vezes vou ter que dizer para você cuidar da tua vida e não se meter na minha? (minha mãe se corroia por dentro cada vez que ele dizia para cada um cuidar da sua vida). — Eu não posso fazer isso porque sua vida faz parte da minha! Você é meu marido e me deve respeito e satisfação. Você não pode decidir sozinho que vai morar em outro país. Somos casados! — Sou eu quem paga as contas aqui dessa casa por isso eu decido o que se deve fazer. — Faz muito tempo que você não paga as contas. Você não quer e não gosta de trabalhar.Que balela é essa agora? Está bancando o homem responsável só para poder se aventurar num país estranho. Se quer tanto trabalhar arrume um emprego por aqui mesmo. Não abandone sua mulher e filho. Não temos com que contar.

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Patrícia Franconere Assim que eu arranjar um maldito emprego mando dinheiro para vocês. Se é com isso que está preocupada. Depois que eu conseguir guardar uma boa quantia mando as passagens de navio para vocês dois. — Mas eu quero ir agora com você! — Agora é impossível. — Impossível por quê? Se você pode entrar no navio como clandestino eu e o Ferdinando também podemos. Ficaremos quietos escondidos dentro de uma caixa de madeira se for preciso,mas queremos ir com você...Por favor! — Não! Já disse que não! Vou para São Paulo se é isso que tanto quer saber. O Navio vai aportar no Porto de Santos de lá vou para São Paulo, para o Bairro do Bexiga onde mora o amigo do Pepe. Ele mora em uma pensão e provavelmente vou me instalar por lá. — Eu não acredito que você virá nos buscar. — revelou minha mãe desanimada. — Cazzo! O que eu preciso fazer para você acreditar em mim? As pernas de minha mãe cambalearam e ela sentou-se na cama. É difícil de admitir, mas minha mãe estava sofrendo por ter que se separar de meu pai. Quem pode explicar o amor? Apesar dos maus tratos ela ainda o amava. Eu as vezes ficava sentado num canto qualquer da casa de pedra olhando para minha mãe.Sua tristeza emoldurava seu rosto.Daí então eu me perguntava: Porque ela ainda gosta do meu pai? O que leva uma mulher apanhar do marido e continuar a gostar dele? Que mistérios do coração são esses que não conseguimos desvendar? — Já faz tanto tempo que você não me procura... Sinto falto do seu cheiro..Do seu corpo no meu... — Eu não tenho tempo para isso agora! Preciso terminar de arrumar essa mala! — Mas que tanto você tem para arrumar? Você só tem meia dúzia de ceroulas velhas! tanto tem para arrumar?

O que

Acho que minha mãe queria que ele se preocupasse com ela. Mas ele se mantinha impassível. Meu pai por algum motivo que desconheço ocultava a data da partida. Isso irritava ainda mais a minha mãe. Se sentindo sem chão ela tornou-se uma pessoa mais irritadiça que o de costume. Qualquer zumbido de mosca a tirava do sério por esse motivo passei a ficar mais tempo tocando meu violino.Minha mãe vez ou outra entrava sorrateira no meu quarto de paredes verdes e ficava encostada no batente da porta vendo eu tocar.Por várias vezes percebi as lágrimas correndo de seus olhos,mas eu fingia que não via e continuava a tocar.Minha mãe sentia orgulho de ter um filho músico.As vezes acontecia de irmos a alguma festa e sempre que possível ela pedia que eu tocasse para as pessoas presentes.Apesar de gostar muito de tocar meu violino me sentia constrangido,mas não tinha coragem de negar nada a minha mãe. — O dia que eu tiver muito dinheiro pago um curso de violino, o melhor que tiver para você. _dizia minha mãe com a esperança de dias melhores.— Quem sabe não te mando para Roma para estudar num conservatório! Cada vez que ela dizia isto eu me enchia de esperanças, mas a realidade foi muito diferente muito mais dura que eu podia imaginar.

4 Eu e minha mãe estávamos fazendo compras no centro de Crotone. Para aumentar a economia doméstica e principalmente para esquecer e aliviar a dor que provocava a ida de meu pai ao Brasil 14


Grão Vizir ela passou a fazer conservas de berinjela para vender e a freguesia para nosso espanto aumentava a cada dia.Minha mãe como a maioria das mães italianas tinha o dom para a culinária que era a receita do sucesso.Por esse motivo o dinheiro entrava um pouco mais na nossa casa.Deixamos de comer peixe todos os dias.Vez ou outra minha mãe me surpreendia com um polpetone suculento ou irresistíveis bracholas.Acho que no fundo ela queria segurar meu pai pelo estômago mas se essa era realmente sua intenção não provocou alteração alguma.Ele continuava se planejando para viagem e ainda por cima confiscava uma boa soma em dinheiro que ela guardava dentro de uma lata de biscoitos sobre o armário de carvalho da cozinha. Estávamos andando pela rua do comércio onde se espalhavam pequenas quitandas e mercadinhos. As frutas frescas eram postam em bancadas nas portas das quitandas e o mercadinhos estavam lotados de pessoas.Eu tocava mentalmente a Nona Sinfonia de Beethoven quando senti que minha mãe puxava meu braço. — Olha só quem está ali! Olhei mas não consegui identificar ninguém entre a multidão de pessoas que passavam pela rua. — Que vagabunda! Olha só como se veste a biscate! — Quem mãe? Perguntei enquanto olhava para os lados. _Aquela vagabunda da Amparo. — minha mãe tremia feito vara verde. Não sei se olhar que ela lançava a Amparo era de ódio ou de inveja.A mulher era realmente linda e naquele dia ensolarado estava simplesmente divina dentro de um vestido vermelho tomara que caia colado ao corpo com uma fenda generosa atrás .Seus seios quase pulavam par fora do decote e um lenço branco protegia sua cabeça do sol.Tudo isso se equilibrava sobre uma sandália vermelha de salto Luiz XV.Enquanto minha mãe como sempre se vestia com vestidos puídos do tempo sempre em tons fechados e sandália rasteira com as unhas por fazer. — Onde essa vaca pensa que vai desse jeito? Para um matadouro? Minha mãe levantou o tom da voz e os transeuntes começavam a olhar para ela. — Mãe, fala mais baixo! — pedi. — Falar mais baixo por quê? É uma biscate mesmo? Nesse momento Amparo viu minha mãe e começou a rebolar para provocá-la. Entrou em seguida numa farmácia de balcões e armários de madeira escurecidos.Sem perder tempo minha mãe me puxou e antes que eu pudesse respirar já estávamos dentro da farmácia. — Isso daqui virou um bordel! Qualquer puta entra e sai. O farmacêutico que estava no balcão quase engoliu a Amparo com os olhos e sequer deu atenção a minha mãe. — Precisa de algo minha senhora? — perguntou o solícito farmacêutico a bela Amparo. — O que essa aí precisa está no meio das suas pernas! — informou minha mãe. Não entendi muito bem o que ela queria dizer, mas senti que não era nada bom. — Como ousa se referia a mim desta maneira? — perguntou a Amparo visivelmente irritada. — E como acha que eu deveria me referia a uma vagabunda que anda por aí se deitando com homens casados? — Por favor, minhas senhoras... Isto aqui é uma farmácia! Tenham compostura! — pediu o farmacêutico educadamente. _Deveriam proibir mulheres como essa aí de andar pelas ruas misturadas com gente de bem! — disse minha mãe enquanto apontava para Amparo. Para minha infelicidade as pessoas que

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Patrícia Franconere passavam pela rua perceberam a tensão e foram se amontoando na calçada para ver do que se tratava. Um a um foi entrando.Homens,mulheres,crianças... — Mulheres como essa aí o quê? Bela você quer dizer? — perguntou Amparo com sarcasmo. — Não, puta eu quis dizer! — respondeu minha mãe sem papas na língua._Diga-me uma coisa farmacêutico; a Mercedes sabe que esse tipo de mulher anda freqüentando a sua farmácia? O homem deu de ombros sem saber o que responder. — Escuta aqui minha senhora, se a senhora não é capaz de segurar o seu homem dentro de casa isso é problema seu não meu. Não tenho culpa se os homens se sentem atraídos por mim. — Com essas tetas para fora qualquer homem se sente atraído. Você não passa de uma prostituta — Isso é inveja sua ciscranna velha! Teu marido não agüenta mais esse teu cheiro de cebola e esse teu corpo roliço de batata holandesa! —Sua bagaça! —É a tua mãe! Eu começava a me sentir como se estivesse no epicentro de um terremoto. Os abalos sísmicos se aproximavam e eu não tinha para onde correr já que minha mãe me segurava com força pelo pulso. Não saberia dizer qual das duas tinha a língua mais afiada ou lançava mais impropérios. A única coisa que eu sabia era que estava com medo e vergonha do que estava prestes a acontecer. Dentro da minha cabeça eu continuava a ouvir a nona sinfonia de Beethoven. — Mulher que só corre atrás do cazzo de homem casado é puta! PUTA! — Você vai ver quem é a puta sua vaca gorda! Dona Amparo atirou-se violentamente para cima de minha mãe que por sua vez soltou rapidamente meu pulso para se atracar ferozmente com a Amparo. — Pare com isso mãe, por favor! — eu gritava encostado no balcão. A luta durou poucos rounds. As duas mulheres maduras rolaram no chão. Cabelos foram puxados, tapas foram trocados e vestidos foram rasgados. Ninguém apartava a briga. Estavam todos apreciando a briga das duas mulheres iradas. A briga só foi interrompida quando num último gesto de fúria minha mãe puxou violentamente o vestido da dona Amparo. Seus seios fartos e rijos saltaram para fora e assim ficaram esplendorosos por algum tempo até o farmacêutico quase sem fôlego oferecer-se para ajudá-la a tampá-los com a ajuda de uma toalha. Nunca me esquecerei daquele dia, mas não por causa da vergonha que minha mãe me fez passar, mas por ser a primeira vez que vi um par de seios nus bem na minha frente e a primeira vez que senti desejos por uma mulher. Minha santa mãe que me perdoe esteja ela onde estiver, mas naquele dia descobri porque meu pai gostava tanto da presença daquela mulher; com certeza por causa do desejo incontrolável que ela despertava nos homens de tocar e ser tocado por uma mulher.E eu quis naquele momento ser tocado por ela e poder tocar em seus seios firmes de auréolas rosadas. — Sua megera! Graças a Deus vou me embora deste lugarejo! — disse dona amparo em quanto se recompunha. Se Deus quiser para nunca mais voltar! — urrou dona para os quatro cantos do mundo ouvir. E minha mãe ouviu muito bem. — O que? O que você está dizendo sua cobra? — Isso mesmo que você está ouvindo. Vou embora deste lugar e não volto nunca mais. Vou viajar para bem longe... Principalmente longe de você sua múmia acabada!

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Grão Vizir A farmácia continuava cheia Apenas as mulheres acompanhadas de seus maridos tinham saído da farmácia puxando seus cônjuges abobados pela visão dos belos seios pelo braço. O resto continuava ali para ver o desenrolar da trama. — Você vai viajar para onde sua meretriz? — Isso não é da sua conta! — Você não está pensando em viajar com meu marido está? — Isso é problema meu! Meu Deus! Isso nunca irá acabar? — pensei. — Eu não acredito! Eu não acredito que você vai para o Brasil com meu marido! Dona Amparo não respondeu. Deixou que minha mãe se mortificasse na dúvida. Agradeceu o farmacêutico com ar de bobo com um beijo sensual no rosto. Em seguida aproximou-se de mim para meu desespero. — Belo menino você tem aqui. — disse dona Amparo enquanto encarava minha mãe. Lentamente ela abaixou-se até que seus olhos encontraram os meus.Tem olhos verdes lindos sabia? — pergunto-me enquanto fazia cafuné na minha cabeça. Tenho certeza que quando crescer se tornará um belo homem! — e foi embora. Eu estava em chamas, mas sem entender muito bem o porquê. Minha mãe continuou a soltar impropérios. — Nunca mais se aproxime do meu filho sua puta! Enquanto dona Amparo se afastava pela rua, s fofoqueiras de plantão logo começaram com o falatório. Em Crotone quase todos se conheciam.Uns falavam da vida do outro como se a vida alheia fosse de domínio público.Minha mãe se pôs a chorar. — É isso aí. Não de mole para essa vagabunda! cabeça.

— disse uma senhora com um lenço verde na

— Essa biscate vai roubar meu marido! — gritava minha mãe inconsolável. — Giuseppe vai fugir com essa vaca e me abandonar com meu filho! Oh, Madona da Achiropita, atenda minhas preces e não permita que essa vagabunda se vá com meu marido para o Brasil! Dona Mercedes a proprietária da farmácia acabara de entrar ofereceu um copo de água para minha mãe. Logo em seguida ofereceu-se para nos levar de caminhonete até nossa casa já que minha mãe não tinha mais condições físicas nem psíquicas para caminhar.

5 Eu estava a horas trancado dentro do banheiro. Estava descobrindo meu corpo e as sensações que ele produzia enquanto meu pai brigava com minha mãe na cozinha. — Porca miséria! Vocês duas estavam brigando como dois moleques de estrada! — E você queria que eu fizesse o que? Que aceitasse como um cordeiro manso que você vá com ela para o Brasil? — Mas quem é que vai com quem para o Brasil? Eu vou sozinho caspeta! É mentira! Por isso você não quer que eu vá com o Ferdinando. Você vai fugir com aquela desavergonhada! — Eu não vou fugir com ninguém! Isso é coisa da sua cabeça doente. — Então me prove que não vai fugir com ela. — E como você quer que eu prove isso?

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Patrícia Franconere — Não vá mais para o Brasil. — Você esta ficando louca se pensa que eu vou deixar de viajar por sua causa! — Eu não quero que você vá! — Você não tem que querer nada! Você não manda em mim. Eu vou e está acabado. E não quero mais saber dessa conversa aqui. — Mas... Não tem, mas nem meio, mas. Você deveria ao invés de ficar aqui me aporrinhando deveria ver o que seu filho está fazendo trancado no banheiro. Já faz horas que ele está lá dentro. Eu estava tão entretido com minha nova descoberta que não percebi quando minha mãe entrou. Ela me pegou de calças arriadas enquanto eu me gratificava sexualmente pensando nos seios da dona Amparo. — Não! Mais um sem vergonha dentro de casa eu não agüento! Minha mãe me puxou com violência e me levou até o seu quarto arrastado. Vi quando ela apanhou o cinto de couro do meu pai de fivela dourada e senti o fogo lancinante que queimava minhas nádegas. Ela bateu...Bateu...Bateu...Acho que minha mãe descontou toda sua raiva e frustração contida a anos em mim.Me senti um pecador.Após a surra fui para meu quarto.Ainda aos prantos ajoelhei-me ao lado da cama e pedi perdão a Deus pelo pecado que acabara de cometer.Senti prazer que não era permitido sentir.Desejei uma mulher que não era permitido desejar.Magoei minha santa mãe.Eu não queria ser como meu pai,mas naquela hora era o que eu estava sendo. — Perdoe meu Deus porque pequei. Deus certamente não iria perdoar um ser de pensamentos vazios de conteúdo racional. Mesmo assim continuei a rezar e a pedir perdão. — Perdoe meu Deus porque pequei. Naquela noite não consegui pregar os olhos. Meu pai entrou sorrateiro no meu quarto. Fingi que dormia. — Este sim é meu menino! Não é uma bicha como eu pensava! Ele saiu logo em seguida. Meu pai nunca se referiu a mim daquela maneira. Eu esperava mais uma surra no entanto ele pareceu estar satisfeito comigo.Eu não entendia o que estava acontecendo.Eu não entendia as pessoas eu não entendia a vida. Nos dias que se seguiram, sai de casa apenas para ir à escola. Não encarava minha mãe. Fazia minhas refeições de cabeça baixa.O resto do dia eu passava trancado dentro do quarto tocando meu violino ou ouvindo músicas clássicas no meu gramofone velho.Numa tarde minha mãe entrou dentro do quarto com cara de poucos amigos. — O que você fez é pecado. Nunca mais faça isso nem aqui nem em lugar nenhum; caso contrario irão aparecer espinhas na sua cara e se isso acontecer saberei o que fez. E juro...Juro por tudo que é mais sagrado nessa vida que te tranco num seminário entendeu? — Entendi mãe. Ela saiu. No gramofone tocava as quatro estações de Vivaldi. Eu acompanhei com meu violino.Era a única coisa que eu podia fazer naqueles dias de vergonha. Durante duas semanas minha mãe me obrigou a dormir com a porta do quarto aberta e fazer minhas necessidades fisiológicas e tomar meu banho com a porta do banheiro também aberta. Nas noites frias isso me irritava pois tomávamos banho de bacia com água esquentada numa chaleira sobre o fogo do fogão a lenha da cozinha.Com o tempo frio a água esfriava rapidamente com o ar

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Grão Vizir gelado que entrava pela porta,no entanto eu não era nem bobo de reclamar.Eu tinha que dar graças a Deus por ainda poder tomar banho.Eu sempre gostei de andar limpo mesmo quando menino.Ao contrario da molecada que passava o dia se esfregando no chão e permanecia com a mesma roupa durante dias.Eu não gostava de sujeira,roupa rasgada nem cheiro de suor.Minha mãe me ensinou a ser asseado,já meu pai...Só tomava banho nos finais de semana.Durante o inverno uma vez por mês era seu limite.Não entendo como minha mãe conseguia dormir com ele.

6 Quinze dias se passaram. O grande dia finalmente havia chegado. Estávamos no porto de Crotone debaixo de um sol ardente. Havia vários navios atracados e um vai e vem de pessoas que não acabava nunca. Era um mar de gente embarcando e desembarcando dos navios.Meu pai não cabia em si de tanta ansiedade,minha mãe por outro lado havia engordado mais uns quilos e estava dominada por uma tristeza tão intensa que mal conseguia se pôr de pé. — Preciso embarcar. Já está na hora. — disse meu pai. Ele havia adquirido um terno de segunda mão na alfaiataria do seu Gregório especialmente para ocasião. O terno era cinza axadrezado de Oxford fazia parte do seu vestiário seu inseparável chapéu de feltro (nunca entendi porque meu pai se preocupou com o visual já que estaria a viajem toda escondido). — Por favor, Giuseppe, não vá! — implorou minha mãe me trazendo de volta a realidade. — Mas já vai começar com o drama? Já falei que vou e pronto entendeu? — respondeu meu pai com rispidez. E não adianta. Meu pai nunca conseguiu captar o sentido íntimo de uma mensagem. Minha mãe queria dizer: Não vá porque eu te amo! Mas ele não entendia, acho que nunca entendeu. Ele simplesmente deu um beijo sem vontade na testa de minha mãe e a mim só restou um insignificante aperto de mãos. — Cuida de sua mãe. — disse meu pai. Senti naquele momento uma enorme vontade de chorar, mas engoli o choro. Senti necessidade de dizer que apesar de tudo eu o amava e sentiria a sua falta, no entanto me calei. De que adiantava expressar meus sentimentos a uma porta? Tudo ficou preso na garganta. Minha mãe esperava mais. Acho que no seu íntimo ela queria que meu pai a abrasasse e a beijasse com paixão, mas isso nunca aconteceu. Afinal de contas não da para espremer simpatia de uma pedra. Meu pai se afastou com sua mala velha e emprestada em uma das mãos. De longe parecia um gangster da organização de Al Capone. De certo modo,naquele momento eu o tinha como um verdadeiro gangster afinal ele estava sendo cruel como um. Minha mãe se pôs a chorar convulsivamente. Limpava suas lágrimas num pequeno lenço branco que costumava carregar consigo. A expectativa é sempre maior que o fato. Pensei. Afinal minha mãe passou noites e noites sem dormir pensando no dia da despedida e tudo acabou depressa e sem poesia... — O que aquela vaca está fazendo aqui? Essa pergunta me trouxe novamente ao mundo real. — Que vaca mãe? — perguntei. — Amparo! — ela me respondeu. Vi então que o objeto de ódio de minha mãe e objeto de desejo meu e de meu pai se aproximava ao lado do seu Pepe. — Como vai Francesca? — perguntou seu Pepe ao dirigir-se a minha mãe. Enquanto eu olhava timidamente para as curvas perfeitas da dona Amparo. — O que você está fazendo aqui com essa aí?

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Patrícia Franconere — Vim me despedir do Giuseppe. — E essa sua irmã veio fazer o que aqui? — Eu vou viajar também. — respondeu Amparo para o desespero da minha mãe. — Não provoca Amparo! — pediu seu Pepe a irmã. Ele era de fato um bom homem. — Não provoca por quê? Eu vou viajar mesmo! — NÂO! VOCÊ NÂO PODE! VOCÊ NÂO VAI SUA PUTA! — gritou minha mãe a beira da histeria. Todos que estavam no cais do porto naquele momento desde o mais humilde estivador até o viajante mais ilustre se voltaram para minha mãe. — Você não vai viajar com meu marido! Não vai! — continuou minha mãe. — E quem é que vai me impedir? desafiadora.

Você?

— respondeu dona Amparo como sempre

Minha mãe tentou esbofeteá-la, mas seu braço parou subitamente no ar. Foi impedida pelas mãos fortes do seu Pepe. — Francesca, você está cometendo um engano! — informou Pepe. Amparo aproveitou a confusão e saiu sem que minha mãe percebesse. Soou o apito do navio. Vários passageiros estavam no convés acenando para quem estava em terra firme.Uma despedida clássica entre amigos e familiares que ficavam.Minha mãe lançou olhar de varredura por todo o convés.Procurou desesperadamente pela figura de meu pai,mas não o encontrou.Certamente tinha ido se esconder nos subterrâneos do navio.Logo a imensa embarcação foi se afastando lentamente e com ele todas as esperanças de minha mãe.Ela não pronunciou mais nenhuma palavra e também não chorou.Ela teve a certeza naquele momento que meu pai havia embarcado com a Amparo rumo ao Brasil.Para ela aquele era o fim de seu casamento e confesso que compartilhei por algum tempo a mesma opinião.Tristes e decepcionados eu e minha mãe voltamos para casa.Ela não abriu a boca durante o trajeto de volta.Seu Pepe até que tentou conversar com ela,mas minha mãe parecia não ouvir.Acho que tinha medo do que ele tinha a dizer.Agora era apenas eu e ela.Nesse dia acho que me tornei o homem da casa. Duas semanas se passaram. Minha mãe passava a maior parte do tempo deitada em sua cama com o olhar distante.Sei que pensava em meu pai a maior parte do tempo.Eu fazia o possível para não incomoda-la.Ela passou a queimar a comida constantemente.Estava com o pensamento longe das panelas.Por esse motivo passei a me aventurar pelo fogão a lenha.Ela acabou se acostumando e a tarefa de cozinhar passou a ser minha.Numa tarde que caia chuva torrencial alguém bateu a porta. — Ferdinando vá ver quem é. — pediu minha mãe do quarto. — seja lá quem for não quero falar com ninguém. Eu abri a porta. Era seu Pepe encharcado de água. — Como vai Ferdinando? Sua mãe está? — perguntou seu Pepe enquanto tentava secar o rosto com as mãos. — Está sim. Mas ela não quer falar com ninguém. — Per piacere Ferdinando,deixe-me entrar.Serei breve. — Tudo bem, pode entrar. — Bom menino! — disse o bom homem ao entrar. — Ela ta no quarto seu Pepe. Espere que irei chamá-la. — Não precisa. Sei o caminho. Se você for avisar é bem capaz dela não me atender. Permiti que ele fosse ao encontro de minha mãe. Pior as coisas não poderiam ficar. Da cozinha ouvi minha mãe gritar para mim:

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Grão Vizir — Não falei que não queria receber ninguém seu impiastro? Seu Pepe não se demorou. — O senhor quer tomar um suco de uva? — perguntei. — ta chovendo, mas faz bastante calor. É bom um suco de vez em quando para refrescar. — Obrigado Ferdinando, mas estou com um pouco de pressa. Preciso voltar para o bar. Até breve.! — Até breve se Pepe. Fui correndo para o quarto. Minha mãe tentava se equilibrar sentada sobre a cama. — O que ele queria mãe? — Ele veio até aqui para tentar me convencer que seu pai não viajou com a Amparo. Ele me disse que ela viajou para Roma para visitar os parentes do falecido marido.Disse que era problemas com herança. — E a senhora acreditou? — É claro que não. Seu pai não presta. Ele nos abandonou por causa daquela vagabunda. Ó Madona da Achiropita! Por que me abandonaste assim? Justo eu que sou tão devota! Por que me castigas desta maneira? Tenha piedade de mim e do meu filho. Traga de volta meu marido e dê aquela pecadora o castigo que ela merece! Ajoelhei-me ao lado da cama e comecei a rezar. — Creio em Deus pai todo poderoso Criador do céu e da Terra... Por dias a fio pequenos embates internos se apossavam de minha mente. Meu pai tinha ou não fugido com a Amparo.Só Deus poderia saber.Em nossa casa um caos de proporções bíblicas havia se instalado.Minha mãe continuava na cama e eu tinha que tomar conta de tudo.Ia para a escola de manhã e a tarde fazia todos os afazeres domésticos já que minha mãe não tinha mais condições físicas nem psicológicas para isso.Meu pai havia partido a cerca de dois meses e as coisas em casa estavam indo de mal a pior.Deprimida minha mãe não cozinhava mais para fora,o dinheiro estava acabando.Voltamos a tomar caldo de peixe quase todos os dias.Um dia resolvi fazer um cardápio diferente para o almoço usando o que tinha na geladeira e fiz um sensacional bolo de cebolas.Minha mãe arrastou-se até a cozinha e sentou-se a mesa.Ao provar minha iguaria ela chorou. — Que belo menino eu tenho em casa! — ela disse enquanto acariciava meu rosto. Eu meio sem jeito tentava me desvencilhar de seu toque. — Você não se parece com teu pai. Você não se parece com os Vetorazzi e sim com os Fraccadori da minha família. Ninguém dos Vetorazzi tem estes olhos verdes escuros como esmeralda, tão pouco essa pele branca. São todos uns bando de encardidos do sol. Eu ri. — Você vai crescer e se tornar um belo homem. Um homem de cabelos negros e olhos verdes. Já estou vendo as mulheres suspirando por você. Ela provou mais um pedaço do bolo e foi novamente se deitar. Apos lavar a louça fui para frente da casa e me sentei nas pedras diante do Mediterrâneo. Como sempre eu estava com o olhar distante.As pessoas achavam que nesses momentos eu entrava em órbita ou ficava mundo da lua,mas a verdade é que eu estava sempre pensando...Em busca de uma resposta,um significado para vida.

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Patrícia Franconere Eu estava subindo a colina em direção a minha casa quando alguém me chamou. — Ferdinando! Olhei para trás. Vi Bruno o carteiro. — Tem carta para sua mãe! — ele gritou. — O que? — perguntei. — Carta para sua mãe! É do Brasil! Desci a ladeira correndo na direção do carteiro. Se a carta era do Brasil som podia ser do meu pai.— pensei animado. — Cadê a carta? — perguntei ansioso. — Está aqui. — respondeu o carteiro enquanto entregava a carta.Olhei imediatamente para o remetente.Giuseppe Vetorazzi. — É do meu papa! — gritei contente. — muito obrigado! — agradeci. Subi a ladeira correndo o mais que pude. Perdi o fôlego ao entrar em casa. Minha mãe estava sentada à mesa da cozinha. — Mas o que foi moleque? — Carta mãe, carta! — respondi ofegante. Minha mãe corou na hora. Seu sorriso que há muito tempo eu não via abriu-se como uma rosa. — Do teu pai? — perguntou. — Sim mãe. — respondi satisfeito. — Madona da Achiropita, a senhora ouviu minhas preces!Obrigada. — agradeceu minha mãe. Entreguei a carta em suas mãos trêmulas. Ela olhou o envelope depois o apertou contra o peito. Era como se abraçasse meu pai.Ficou assim por alguns instantes,só depois entregou a carta para mim.Ela era analfabeta. —Vamos abra. Abra e leia para mim. Puxei uma cadeira e sentei-me ao seu lado. Ela ficou prestando atenção enquanto eu rasgava a lateral do envelope. — Rápido! — exigiu minha mãe com a mesma urgência de um beduíno com sede diante de uma miragem. — Calma mãe! Assim que abri percebi que havia um outro envelope menor. Ao abrir encontrei notas desconhecidas. Troquei olhares com minha mãe.Em seguida li o conteúdo da carta em voz alta.

São Paulo, 18 de agosto de 1966. Francesca e Ferdinando, Cheguei bem no Brasil. A cidade de São Paulo é muito grande e tem muito prédio. Quando cheguei aqui fiquei instalado por seis 22


Grão Vizir

dias na Hospedaria do Imigrante no bairro da Mooca. Lá tinha comida,bebida e médico gratuito. Agora vivo numa pensão no bairro do Bexiga perto do centro da cidade. Divido um pequeno quarto com Pedro irmão do Pepe e mais um amigo. Aqui tem muito italiano. Trabalho numa marcenaria que fica aqui perto. Não ganho muito, mas deu para juntar alguns cruzeiros(esse é o dinheiro aqui)precisa trocar no banco por Liras. Aqui tem muita garoa e faz frio de vez em quando. Os brasileiros são muito amigos. Aprendi a fazer caipirinha e comer feijoada. Ferdinand, o agora você é o chefe da casa. Cuide de tua mãe e fique com Deus. Giuseppe Vetorazzi. Ao terminar a carta percebi que minha mãe chorava. —Teu padre não nos abandonou como eu pensava! dinheiro que está no envelope.

— concluiu entre soluços. Dê-me o

Entreguei o montante. Ela contou as poucas notas coloridas depois às guardou dentro do sutiã de bojo. Como a Fênix ela parecia ter ressurgido das próprias cinzas. — Você viu? Teu pai está trabalhando! Quem diária! Só não entendo uma coisa. O Irmão do Pepe não trabalhava no navio? O que ele estava fazendo no Brasil? — Sei lá mãe. Talvez ele tenha decidido ganhar a vida por lá como fez o pai. — deduzi. Precisamos ir ao centro trocar os tais cruzeiros por liras. — Isso mesmo mãe. Entreguei a carta a ela. Ela olhou. — Teu pai sabe escrever não é meu filho? — Sim mãe. Ele também tem uma caligrafia muito bonita. Mais uma vez ela apertou a carta contra o peito. Assim ela foi para o quarto. De certo acenderia uma vela para a imagem de Nossa senhora da Achiropita que ela mantinha num pequeno altar ao lado da cama.

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Patrícia Franconere Passados alguns dias minha mãe voltou ao batente revigorada. A carta de meu pai a fez literalmente ressuscitar dos mortos. Em uma de nossas idas ao centro de Crotone minha mãe avistou Amparo com seu irmão Pepe do outro lado da rua fazendo compras numa loja perfume. Nunca a vi tão feliz ao ver aquela mulher. — Veja só Ferdinando! Brasil!

Teu padre falou a verdade!

Aquela puta não foi com ele para o

Eu sorri. Fiquei contente ao ver a felicidade estampada no rosto da minha mãe. Há muitos anos eu não a via assim. Mas mesmo tendo em vista sua felicidade aparente, temi pelo que pudesse acontecer caso ela esbarrasse com a dona Amparo no meio da rua. Tentei persuadi-la a mudar de direção, mas ela levantou a cabeça, empinou o nariz e altiva atravessou a rua me puxando pelo braço. — Não mãe, per favor! — supliquei. Pressenti o que minha mãe estava prestes a fazer. — Não se preocupe Ferdinando. — disse minha mãe de uma maneira acolhedora. Entre tantas lojas que ela tinha para escolher adivinha só qual ela escolheu para entrar? Conhecendo-a da maneira que eu conhecia só me restava rezar baixinho: — Creio em Deus pai... Assim que entramos avistamos dona Amparo que estava de costas. Inalava o cheiro de um perfume no frasco que a balconista segurava. A cada dia que passava a mulher parecia estar mais bela. Meus olhos detiveram-se em suas formas curvilíneas. Parei de rezar. Seu Pepe cumprimentou minha mãe. — Come está? — Bem obrigado. — Teve notícias do Giuseppe? — perguntou seu Pepe. — Sim. Ele nos enviou uma carta. — respondeu olhando de soslaio para Amparo.— Inclusive nos enviou uma soma em dinheiro. — acrescentou. — Que bom! Isso quer dizer que ele está trabalhando? — perguntou. — Sim. Ele também escreveu que em poucos meses nos enviaria duas passagens de navio para irmos em definitivo para o Brasil. Ele está morrendo de saudades. Olhei para minha mãe incrédulo com o que ela acabara de dizer. Ela estava mentindo. Isso era pecado. Ia contra os dez mandamentos da lei de Deus. Mas se tratando da minha vida quase tudo ao meu redor se resumia em pecados cometidos por mim e todos que estavam a minha volta. — Então vocês irão para o Brasil? — Sim. Não vemos à hora. A dona Amparo olhava com desdém para minha mãe. Mas dessa vez não houve provocações. Por outro lado eu esperava que a dona Amparo viesse falar comigo como de costume. Eu queria receber um carinho como ela costumava fazer (por algum motivo desconhecido até então esse era a única demonstração de carinho que eu gostava de receber) Eu não achava que ela fazia isso para provocar a minha mãe e sim porque eu fazia a diferença na vida dela. — Vamos embora Pepe? Já comprei o perfume que eu queria. — disse dona Amparo com sua voz rouca e tentadora. Meu coração começou a bater num ritmo acelerado. O sangue começou a fluir pelo meu corpo de maneira descompassada. Eu senti meu rosto enrubescer. Ela estava se aproximando de mim. Eu estava ofegante. Ela se aproximava. O carinho no meu rosto estava chegando. Isso é o que eu mais

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Grão Vizir queria. Seu Pepe despediu-se da minha mãe deu um tapinha na minha cabeça. A dona Amparo se quer me olhou para minha decepção. ”Eu sou um idiota... Um perfeito idiota” Pensei. Os dias que se seguiram foram de completa felicidade. Meu pai havia nos enviado mais algumas cartas com mais uma quantia de dinheiro. Mesmo assim minha mãe continuava fazendo conserva de berinjela para vender e assim aumentar a nossa renda.Ela estava certa de que não demoraria para meu pai nos enviar as passagens para o Brasil.Se bem que ele nunca mencionou isso em suas cartas.Pelo contrario.A cada carta que ele nos enviava se tornava mais e mais econômico nas palavras.Mesmo assim minha mãe ia juntando dinheiro.Perdi as contas de quantas vezes ela e a dona Amparo se cruzaram pelas ruas.Mas agora minha mãe se sentia forte.Meu pai podia não estar conosco naquele momento,mas também não estava com ela e isso fez aumentar a sua auto estima.Pela primeira vez na minha vida vi minha mãe cuidar de sua aparência desleixada.Ela fez regime(fechou a boca literalmente)e emagreceu sete quilos.Comprou vestidos novos e até pintou os cabelos para esconder os fios brancos.Tudo isso na esperança de reencontrar meu pai no Brasil.Ela queria mostrar que ainda tinha encantos para oferecer e realmente os tinha.Não foram poucas vezes que eu a encontrei alegre na cozinha com o radio ligado cantando: “Datemi un martello. Che cosa ne vuoi fare? Lo vogleu dare in testa A chi non mi va, sì sì sì, A quella smorfeusa Con gli occhi dipinti Che tutti quanti fan ballare Lasciandomi a guardare Che rabbia mi fa Che rabbia mi fa...” Algo inimaginável meses atrás. Sua alegria era visível e contagiante. Ela tinha mais que a esperança, ela tinha a certeza que sua vida mudaria na terra desconhecida. Que seria finalmente feliz. Mas a vida nem sempre é como a gente quer. Às vezes ela nos prega peças e por inúmeras vezes é cruel. Meu pai nunca viu a transformação da minha mãe.

8 Minha mãe havia adoecido. Seu mal era o coração. Mas não era uma doença cardíaca que ataca o coração sem avisar.Minha mãe estava com o mal do amor.Estava com a síndrome do coração partido.Há quase um ano meu pai não dava notícias.Ela entrou em desespero.Não sabia o que tinha acontecido com ele.Nas cartas que meu pai nos enviava não tinha o endereço da pensão em que ele morava e por algum motivo ele nunca colocou uma letra legível no remetente.Minha mãe pediu ao seu Pepe várias vezes para que ele entrasse em contato com seu irmão para que descobrisse o que estava acontecendo.Mas por infelicidade o irmão do seu Pepe havia falecido a dois meses com doença de chagas.Minha mãe entrou em depressão profunda.Meu pai não nos enviava mais dinheiro.Minha mãe não tinha condições físicas muito menos psicológicas de trabalhar.As contas estavam chegando e não havia dinheiro suficiente para pagar.Minha mãe voltou a engordar e os fios grisalhos voltaram a apontar em seus cabelos.Nessa época eu estava me desenvolvendo fisicamente.Parece que meu organismo sabia o que estava acontecendo.Minha estatura começou a se alterar.Virei o gigante da classe aos doze anos de idade.O que eu tinha de altura me faltava em peso.Os hormônios entraram num estado ebulição.Minha voz se alterou e pelos começaram a brotar do meu corpo.As malditas espinhas começaram a encobrir meu rosto.Nunca me esqueci da tarde em que minha mãe me disse: “O que você fez é pecado. Nunca mais faça isso nem aqui nem em lugar

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Patrícia Franconere nenhum; caso contrario irão aparecer espinhas no seu rosto e se isso acontecer saberei o que fez.E juro...Juro por tudo que é mais sagrado nessa vida que te tranco num seminário entendeu? ” Tornei-me uma vareta peluda ambulante, com o rosto coberto por pústulas vermelhas e morrendo de culpa e de vergonha por algo que não fiz. Tornei-me motivo de chacota na escola onde eu estudava e na igreja. Se eu já era introspectivo me tornei crônico. Nesse momento, mas só nesse momento me senti aliviado por minha mãe estar doente numa cama. Dessa maneira ela não reparava em mim (que Deus me perdoe). Os dias continuavam se arrastando e minha continuava no quarto deitada. Hora sobre os lençóis hora sob os lençóis. O mundo para ela tinha acabado. Vivíamos numa incerteza constante. Meu pai tanto poderia ter morrido como o irmão do seu Pepe como nos abandonado. Não sei por que, mas sempre imaginei que a segunda opção fosse à correta, sendo assim preferia que tivesse sido a primeira (que Deus me perdoe mais uma vez). Com a falta de dinheiro e a doença de minha mãe me vi obrigado a assumir o controle da casa. Eu tinha a nítida sensação que meu pai já previa o que estava prestes a acontecer quando escreveu a primeira carta:

“Ferdinando agora tu é o chefe da casa. Cuide de tu mãe e fique com Deu.” Meu primeiro trabalho foi como empresário aos treze anos de idade. Construí um caixote de madeira e fui engraxar sapatos no centro de Crotone. — O senhor quer lustrar os sapatos? O que eu ganhava era irrisório, afinal poucos homens engraxavam os sapatos naquele lugar, visto que a maioria dos moradores eram camponeses pobres. Tive que mudar de ramo apesar de me sentir útil quando deixava os sapatos brilhando. Minha segunda opção foi um emprego informal na quitanda do seu Adamo. Eu auxiliava na venda e ajudava a organizar as frutas,legumes e hortaliças nas bancas.Trabalhava de segunda a sábado.Ele me deixava folgar aos domingos para ir a missa.A quitanda era modesta e se resumia num pequeno salão com algumas gôndolas expositoras e bancas montadas na calçada.Nos fundos da loja havia um pequeno depósito e um banheiro.Modéstia a parte eu fui o responsável pela limpeza e organização do espaço.Antes era uma bagunça generalizada.Fiquei lá por três anos até acontecer o que eu menos esperava. Foi num sábado de calor infernal. A quitanda estava cheia de clientes (homens e mulheres). Eu me desdobrava para atendê-los enquanto seu Adamo no depósito selecionava as frutas para serem expostas. — Estas frutas estão frescas? — perguntou um senhor bem vestido ao entrar na loja. — Sim. São todas frescas. — respondi. Minha voz havia se alterado novamente. Troquei definitivamente a voz de menino pela voz homem. Minhas espinhas no rosto que se tornara anguloso haviam sumido como num passe de mágicas. Inacreditavelmente fiquei com a pele lisa e sem marcas. Apenas com tom azulado um indício de que minha barba era serrada. — Quero falar com o senhor Adamo ele está? — Sim. Ele esta no depósito. Quer que eu vá chamá-lo? — Não. Quero que você separe meia dúzia destas maçãs. — ele apontou para as mais vermelhas da banca. — E uma caixa daquelas uvas. — continuou desta vez apontando para as uvas verdes e carnudas que estavam expostas na banca da calçada.

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Grão Vizir — O senhor não quer mesmo que eu o vá chamar? — perguntei solicito. — Não é necessário! Eu sei o caminho. Vou até lá falar com ele. O homem caminhou até a porta que dava acesso ao depósito e se voltou para mim. — Sabe se ele está sozinho? — perguntou com um sorriso acolhedor. — Sim. — respondi. — É melhor assim. — respondeu o simpático homem. Ele entrou no depósito enquanto eu selecionava as maçãs e as colocava num saco de papel. Os fregueses continuavam no local. De repente foram ouvidos três tiros. Alguns fregueses se jogaram no chão. Outros saíram correndo, eu permaneci estático com o saco de maçãs nas mãos sem saber o que fazer. O simpático homem que havia entrado para falar com o seu Adamo saiu com arma em punho, assim que me viu colocou-a de volta ao coldre que estava preso a cintura escondido sob o paletó. — Quanto eu devo? — perguntou o homem. Eu não soube o que responder. Minhas pernas tremiam e eu me esforçava para continuar sobre elas. Se ele tivesse perguntando apenas com relação às frutas, poucas liras resolveriam o problema. Mas se tivesse acontecido o que eu imaginava quanto custaria uma vida para eu poder cobrar? Como eu não respondi o homem colocou algumas liras sobre o balcão, me agradeceu e saiu como se nada tivesse acontecido. Fiz grande esforço para não cair no chão. As mulheres puseram-se a chorar enquanto os homens entraram no depósito para ver o que tinha acontecido. Seu Adamo estava morto com três tiros no peito. Senti alivio por ter sido ele e não eu. — Me perdoe por esse pensamento impuro! — eu disse baixinho a mim mesmo enquanto fazia o sinal da cruz. A polícia não demorou a aparecer. O local foi interditado e todas as pessoas que estavam presentes na hora do crime foram interrogados. Foi descoberto ao longo das investigações que o senhor Adamo Ciampi, um homem simples e gentil fazia parte da Ndrangheta a máfia calabresa. Até então eu só tinha ouvido falar dela.Ndrangheta é considerada a máfia menos conhecida e a mais perigosa do planeta.É constituída exclusivamente por ndrine,(abreviação de Malandrine) ou famílias com laços de sangue,cada uma controlando o seu território.Dizem que devido aos laços de parentesco entre os seus membros, há menos "arrependidos" da Ndrangheta dispostos a confessar-se à polícia.Foi descoberto também que quem o matou o senhor Adamo fazia parte da Camorra que é a mais conhecida e antiga das máfias nascida em Nápolis no iníceu do séculoX1X.As atividades tanto da Camorra quanto da Ndranghet são incontáveis;da ageutagem a extorção e por aí vai sem contar com o monopóleu do jogo.. Frederico di Sarno. Esse era o nome do assassino descoberto pela polícia. Certamente uma briga entre facções criminosas para disputar o poder. Assim como acontece nos dias de hoje nos morros cariocas, talvez com um pouco mais de glamour. A vida continuou a seguir seu curso, como ela sempre faz. Ela nunca para que nós pobres mortais possamos lamber nossas feridas. Com a morte do senhor Adamo, perdi paralelamente meu emprego. Minha mãe continuava na mesma enfiada na cama.Vez ou outra se levantava para preparar algo para comer.Nossa casa que até então era limpa e organizada tornou-se o paraíso dos insetos do mediterrâneo.Eu me esforçava.Juro que me esforçava,mas não era possível dar conta de tudo sozinho.Numa tarde,caminhando pelo centro de Crotone em busca de emprego,encontrei a dona Amparo. — O que faz qui menino? — ela me perguntou com um sorriso. — Não sou mais um menino. — respondi aborrecido. Afinal porque ela me tratava por menino se eu já estava com mais de um metro e oitenta de altura e dava dois dela? 27


Patrícia Franconere — Desculpe. Realmente você cresceu. Já é um homem de verdade. — disse enquanto me media de cima abaixo com olhar malicioso. Eu quase derreti no meio da calçada. Tive vontade de enlaçá-la pela cintura e beijar aqueles lábios carnudos provocantes. Mas apesar dos desejos carnais ainda me mantinha casto. — Mas o que aqui sozinho? — repetiu. — Eu procuro trabalho. — respondi. — Tua mãe ainda está doente? — ela me perguntou. — Sim. — respondi enquanto olhava para meus próprios sapatos. Não queria olha-la nos olhos para que ela não descobrisse o que eu estava sentindo naquele momento. — Teu pai não deu mais notícias é isso? — É. —Aquele homem é pior de que eu pensava! — resmungou. Tu mãe não deveria ficar tão triste por causa daquele desnaturado. Ele não merece meu amor muito menos o amor de tu mãe! — Porque a senhora está dizendo isso dona Amparo? — Se você já é um homem não tem que me tratar por senhora. Trate-me apenas por Amparo, por favor! — Está bem. — Digo isto porque conheço teu pai. Tenho certeza que ele não morreu.Deve ter se encantado com alguma brasileira fogosa isso sim.Tua mãe deveria fazer como eu.Dar a volta por cima.Homem igual ao seu padre existe aos montes. — Só que você não era casada com ele! — meu Deus! O que eu disse! — pensei. Logo em seguida me desculpei. — Não se preocupe Ferdinando. Sei muito bem o que pensam de mim. Mas saiba que amei muito seu pai. E a gente não escolhe quem o cuore deve amar. Sei que fui errada ao me envolver com ele, mas não pude evitar. Senti pena daquela mulher. Por um momento tirei os olhos do meu sapato e olhei para os olhos dela. Vi quando se encheram de lágrimas. Ela certamente estava sendo sincera. Na visão das outras pessoas minha mãe era a dona de casa enganada e ela era a vagabunda. — Não deve estar sendo fácil para um menino como você ter que enfrenta isso sozinho não é? Fiquei aborrecido com o menino, mas respondi: — Não vejo problemas em trabalhar para sustentar minha mãe. Mas tenho medo que ela piore de uma hora para outra. Tenho medo que ela morra entendeu? — Claro. — Sempre fomos sozinhos. Eu minha mãe e meu pai. Nunca conheci nenhum parente. Primos, teus avós. Eu gostaria muito de ter tido irmãos, mas infelizmente isso não aconteceu. Às vezes, mas só às vezes entendo meu pai. Acho que essa vontade de ter uma família maior era medo de ficar sozinho. E agora estou sentindo esse medo. — Mas você não precisa se preocupar meu menino. Tu mãe ainda é bastante jovem. Um pouco desleixada talvez, mas ainda jovem. — ela tinha que dar uma alfinetada. — Ela terá muitos anos pela frente. Essa é apenas uma fase ruim que vocês estão enfrentando. Mas vai passar. — concluiu a bela mulher. — Mas mudando de assunto, o que está fazendo qui mesmo? — Estou procurando trabalho. — respondi após um suspiro profundo.

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Grão Vizir — Vi o que aconteceu com o seu Adamo. Então quer dizer que ele era da ndrine? — Tudo indica que sim. — respondi. — Apesar de tudo era um homem que tinha um grande coração. _acrescentei. — Sim. Ele ajudava muito as pessoas mais pobres aqui de Cretone. — ela informou. — Ele me ofereceu trabalho assim que soube que minha mãe estava doente. Ele era um bom patrão. Se ele pecou de certo já pagou por todos os pecados. Deus certamente vai livrar sua alma do purgatório. A Dona Amparo me olhava com intensidade. Voltei a olhar para meus sapatos. — Fiquei sabendo que o Gregório está precisando de um ajudante na alfaiataria. Você conhece o Gregório? — Claro que sim. Ele era amigo do meu pai. — Você entende alguma coisa de corte de ternos? — Nada. — respondi. — Hum... Acho que ele quer alguém com experiência. — ela concluiu. — Mas acho que se eu der uma forcinha ele aceita você. Ele é meio ranzinza, mas acho que consigo convencer o homem. No mesmo dia fomos até a alfaiataria do seu Gregório. A principio ele não queria me dar o emprego mas de tanto ela insistir, o cargo de aprendiz de alfaiate era meu.Naquele dia a dona Amparo passou a ser minha amiga.É claro que nunca contei esse detalhe a minha mãe.

9 Eu estava com vinte anos de idade. Tinha atingido um metro e oitenta e seis de altura adquiri peso e músculos definidos. Eu já não era mais visto como uma vareta desajeitada Meus cabelos continuaram castanhos escuros e minha pele continuava branca contrastando com meus olhos verdes. Meu rosto continuava anguloso. Eu não tinha o hábito dos moradores de ficar o tempo todo debaixo do sol escaldante. Quando eu não estava na alfaiataria trabalhando ficava trancado dentro do quarto tocando meu violino, lendo a bíblia, livros de história antiga, mitologia grega, biografias ou livros de filosofia até então minha mais recente descoberta. Já tinha terminado o que se seria o estudo médio. Continuava a trabalhar na alfaiataria do seu Gregório agora não mais como um simples aprendiz, mas um excelente alfaiate. Meus ternos eram perfeitos e há muito que o seu Gregório empurrava seus clientes para mim. Passei a confeccionar meus próprios ternos inclusive as roupas de baixo. Meus ternos eram copiados por outros alfaiates da região que apreciavam meu corte impecável e minha ousadia na escolha dos tecidos. — Você vai longe Ferdinando!Teu corte é perfeito. — dizia seu Gregório sempre que possível para me estimular. Sempre imaginei o que meu pai diria se soubesse qual profissão eu tinha abraçado. “Isso é coisa de bicha” diria ele. Eu podia passar horas cortando e costurando e não percebia o tempo passar. Minha mãe graças a Deus já estava com a saúde menos abalada e já tomava conta da casa. O que eu ganhava era o suficiente para eu sustentar a casa sendo assim ela não precisou mais trabalhar fora.Nunca mais puder ver um sorriso estampado em seu rosto.Mas para mim naquele momento o importante era saber que ela estava com saúde.Nunca mais falamos do meu pai.Ele tornou-se assunto proibido dentro de casa.Continuei a freqüentar a igreja aos domingos com minha mãe.Meus laços de amizade haviam se estreitado com a dona Amparo principalmente depois que seu irmão Pepe morreu de febre do mediterrâneo.Uma doença genética caracterizada por surtos de recorrentes de febre,acompanhadas de dores abdominais e torácicas.A bela mulher ficou arrasada.Lembro-me que

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Patrícia Franconere eu e minha mãe fomos ao enterro num cemitério que ficava numa aldeia próxima.Amparada por uma amiga velha a dona Amparo não saia do lado do caixão do irmão. — Meu querido irmão! — dizia aos prantos. Tive vontade de consolar. Queria poder abraçar aquela mulher destruída pela dor, mas como eu poderia fazer isso com minha mãe por perto? Tive que me contentar com um modesto aperto de mãos e dar os pêsames como se eu fosse um estranho. Minha mãe apesar de continuar não gostando dela também desejou os pêsames mais em consideração ao seu Pepe do que outra coisa.O homem era querido por todos na aldeia.Teve um enterro digno cheio de amigos presentes.Fiquei pensando se o meu pai teria o mesmo tratamento.Acho que não.Meu pai era um homem duro e de poucos amigos.Acho que o Pepe era o único que conseguia agüentar seu mau humor constante.Naquela tarde de chuva fina ajudei o padre Enzo com as orações.Todos os presentes deram as mãos em torno do caixão e assim rezamos o pai nosso enquanto o caixão baixava a sepultura. Pai nosso que estais no céu... Por diversas vezes percebi que minha mãe não tirava os olhos da dona Amparo. Temendo que algo de ruim acontecesse, sugeri que voltássemos para casa logo depois das orações. Afinal minha mãe nunca se esqueceu do caso que meu pai teve com ela e não era a morte do seu Pepe que a faria esquecer. Os dias foram se passando. A dona Amparo havia tirado o luto e a vida caminhava como sempre. A alfaiataria do seu Gregório ficava a duas quadras do bar do seu Pepe. Após sua morte passei a freqüentar o local constantemente, afinal a dona Amparo é que passou a tomar conta do lugar e não me custava nada fazer-lhe companhia. O local que antes era cheio de clientes agora tinha como clientela apenas meia dúzia de gatos pingados quase sempre bêbados e desocupados. Obviamente as mulheres dos antigos freqüentadores não permitiram que seus maridos continuassem a freqüentar o bar por causa da má reputação dela. Todas as tardes quando eu passava por lá depois do expediente, a dona Amparo se sentava à mesa comigo com duas canecas em uma das mãos e uma garrafa de vinho em outra. — Como vai o mais belo homem de Crotone? — ela me dizia com um largo sorriso sempre que se sentava à mesa comigo. E só para variar eu ainda ficava vermelho de vergonha. Eu continuava o mesmo beato e casto de sempre. — Eu vou bem dona Amparo. — Já te pedi milhões de vezes para me chamar apenas de Amparo entendeu? — Desculpe mais uma vez Amparo. É força do hábito. — Parece que faz questão de me lembrar que sou vinte anos mais velha que você. — disse como se estivesse zangada de verdade. — Mas não diga isso! Sabe que é uma mulher ainda muito bela! — respondi imediatamente para que ela não se ofendesse. Um homem que estava bebendo no balcão tropeçou e caiu. Levantei-me apressadamente para ajudá-lo a se levantar. Assim que ele se pôs de pé voltei a me sentar a mesa. — Você devia ter deixado aquele bêbado onde estava. — ela disse com uma ponta de raiva. — Não me custava nada ajuda-lo. — Estou cansada desses bêbados encostados dia e noite no meu balcão. Parece que só isso me restou nessa vida.

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Grão Vizir — Não diga isso Amparo. — Depois que o Pepe morreu parece que ninguém de verdade entra nesse bar. Só essas figuras decrépitas me restaram. Dei um suspiro e peguei em suas mãos. Eu não tinha o que dizer.O que ela falava era a mais pura verdade. — Estou pensando em vender o bar e me mudar daqui. — Não diz uma coisa dessas. O que vai ser de mim se você for embora? — perguntei desesperado. — Como o que vai ser de você? Você tem sua mãe que graças a Deus está melhor. Tem seu trabalho, a igreja, seu violino? Eu ri. — Estou cansada de viver nesse lugar, nessa aldeia onde todo mundo conhece todo mundo. Estou cansada dessas mulheres apontando o dedo para mim como se os maridos delas fossem uns santos. Não tenho culpa se sou uma mulher livre. Sou viúva, não tenho filhos. Que culpa tenho se me apaixono com facilidade? Quando me envolvo com um homem casado é por amor, afinal de contas nenhum deles tinha dinheiro a começar pelo teu pai. Quero ir para Roma.Lá sim poderei viver como quero. Quanto mais à dona Amparo falava mais eu tinha vontade de tê-la em meus braços. No entanto eu estava ciente que se o fizesse estaria pecando em dose tripla.Pela igreja,por meu pai e por minha santa mãe.Amparo continuou a falar por horas a fio..Nós não percebemos o tempo passar.Bebíamos e jogávamos conversa fora. — Você esqueceu a caixa com o seu violino aqui na noite passada. — Eu sei. Passei aqui hoje justamente para pega-lo de volta. — Você nunca tocou para mim! — ela observou. Eu sorri timidamente. — Toca para mim? — ela pediu com um olhar tão suplicante que não resisti. — Quando? — Perguntei. — Agora. — ela disse segura de si._aproveite que esses bêbados já foram embora.Eu fecho o bar e você toca para mim.Estou muito triste e quero ouvir o som do seu violino.Ouvi dizer que você toca muito bem...Quero tirar a prova. Alguma coisa dentro de mim dizia que aquilo não iria prestar, mas o vinho entranhado no meu cérebro falou mais alto. Em poucos minutos já tínhamos fechado as portas do bar. Fomos para a casa que ficava nos fundos. Ela se ajeitou numa poltrona de tecido axadrezado na pequena sala de paredes verdes. A única luz que iluminava a sala vinha de um abajur com a cúpula em pastilhas coloridas. Primeiro tirei meu paletó para ficar mais a vontade.Depois enquanto eu ajeitava o meu violino não pude deixar de reparar naqueles olhos grandes e brilhantes que refletiam vida me observando intensamente. — Vai demorar muito? — ela me perguntou com um sorriso. Afinei meu instrumento. — Mozart. Muito Allegro. — informei.Era com essa sinfonia que eu iria iniciar meu pequeno concerto. A bela mulher de quarenta anos assistia fascinada meu humilde concerto. A cada termino, ela aplaudia esfuziante. Ela usava uma saia colorida na altura dos joelhos com uma generosa fenda nas laterais. A cada movimento seu, suas pernas brancas e bem torneadas saltavam para fora como se

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Patrícia Franconere estivessem me convidando para o toque. Eu me sentia alegre e excitado. Sentimentos que não deveriam estar aflorando, não em uma pessoa como eu de valores morais sólidos, criado sob as leis da igreja católica e sob o domínio de uma mãe beata e superlativa. Mas eu continuava tocando. A cada aplauso eu ia perdendo meus parâmetros críticos, éticos e morais. Como eu queria possuir aquela mulher de boca sensual e cabelos sedosos. Num determinado momento, quando eu tocava a nona sinfonia de Beethoven ela se levantou e começou a dançar na minha frente. Seus gestos delicados e provocantes estavam me levando à beira da loucura. Naquele momento eu queria esquecer que era, ainda, aquele menino que rezava o credo todos os dias, fazia as orações antes das refeições e o sinal da cruz cada vez que tinha um mau pensamento. Naquele momento eu só queria satisfazer meus desejos carnais. Sentir o gosto do pecado. Há muito tempo que ela se oferecia para mim. Tinha que ser esta noite pensei. Que mal faria? Seria como uma despedida já que ela ia embora de Crotone. Minha santa mãe nunca saberia. Eu precisava me sentir um homem de verdade, mesmo que a igreja e minha mãe não concordassem. Eu certamente não seria mais chamado de bicha por meu pai. Ao fazer a menção de seu nome fui tomado por um sentimento estranho. Não o sentimento de culpa por estar prestes a possuir uma mulher que fora outrora dele, mas algo, mas algo indigno de um católico fervoroso. Senti sede de vingança. E isso me estimulava. Larguei meus devaneios quando dona Amparo começou a acariciar minhas costas, Ela percorria todo o meu dorso lentamente com seus dedos frágeis. Senti o sangue fluir. Ela apoiou-se na ponta dos pés e tocou o lóbulo da minha orelha com sua boca. Um provocante beijo e um sussurro. — Quero ser sua! ”Meu Deus é um sacrilégio que estou prestes a cometer”! Pensei. Porém não evitei. Num impulso de macho, joguei meu stradivarius no sofá e puxei aquela mulher fogosa para junto de meu corpo quente. Beijei-a com intensidade e urgência. Deitamos-nos no chão e nos despimos. Ela me ensinou como um homem pode amar uma mulher. Seria eu punido por esse pecado? Pensei. Não importava eu tinha que pagar para ver.

10 Acordei sobressaltado no chão duro da sala. Percebi que tudo ao meu redor se movia. Efeito do vinho pensei. Virei para o lado e fechei meus olhos novamente. Senti que o piso estremecia. Não dei importância. Abracei a dona Amparo que estava nua do meu lado com o lençol cobrindo apenas as partes íntimas. Ela dormia serenamente com seus cabelos ruivos espalhados sobre uma almofada de crochê branca. Fomos juntos despertados pelo som do abajur de pastilhas coloridas que caiu no chão. — O que está acontecendo? — Ela perguntou assustada. Tudo continuava a se mover e os objetos da casa começaram a cair violentamente no chão. — É um terremoto! — concluí. — precisamos sair daqui! Pusemos-nos de pé imediatamente. Coloquei minha calça enquanto ela se enrolava no lençol. — Vamos sair correndo antes que a casa caia de vez! — eu disse desesperado. Ouvimos gritos de socorro que vinha do lado de fora. Os sons abafados de vidros se estilhaçando e objetos pesados caindo era assustador. Peguei nas mãos delicadas da dona Amparo e fomos correndo em direção da porta de saída. Os cômodos iam desabando atrás de nós. Por um milagre conseguimos escapar com vida antes que a estrutura de alvenaria e concreto fosse de vez para o chão. Tentamos correr pelas ruas, mas nosso esforço foi em vão. Éramos sacudidos a todo instante pela fúria da natureza e lançados para o chão. Não conseguíamos nos manter de pé. Vimos quando casas inteiras caíram soterrando pessoas que não conseguiram sair a tempo. A poeira que levantou era tão intensa que mal conseguíamos enxergar. Os postes de luz caiam sobre os carros

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Grão Vizir estacionados. Vários deles causavam explosões aterradoras. Ficamos por um tempo deitados no chão com as mãos na cabeça na tentativa de protegê-las dos objetos que caiam a todo instante. O abalo durou apenas alguns segundos, mas que pareceram uma eternidade. Nunca vi tanta desgraça em minha vida. Pessoas mortas pelas ruas, outras tantas mutiladas. Gritos de dor em todos os lugares, filhos procurando pais, pais procurando filhos, um sofrimento incalculável. No meio de tanta desgraça ninguém percebeu que e dona Amparo estava só com um lençol branco cobrindo seu corpo e eu apenas de calça com o peito nu e descalço. Quando o tremor cessou as pessoas começaram a escavar os escombros em busca de sobreviventes.Por um breve momento,ao olhar para trás e ver que o bar e a casa do Pepe estava em ruínas que me dei conta de que havia perdido para sempre os meu bom e velho violino.Mas não tive muito tempo para lamentações. — Meu Deus o que é isto? — Perguntou dona Amparo em estado de choque. (Por incrível que pareça mesmo depois de uma noite de amor nunca consegui trata-la por você). — É o inferno na Terra. — respondi sorumbático. O corpo de bombeiros havia chegado dentro de vários carros. Sem pestanejar passei a auxiliarlos no resgate dos sobreviventes.A dona Amparo depois de vestir vestido puído que uma senhora ofereceu passou a ajudar orientando as pessoas desesperadas no meio da rua.Já era manhã quando seu Gregório me chamou.Eu estava sobre os escombros de uma escola primária,a mesma que estudei anos atrás. — Ferdinando! — ele gritou. Desci apressadamente, mas com cuidado para não provocar mais nenhum desabamento já que o entulho não estava firme. — Que bom que está aqui são e salvo! Fiquei preocupado com você rapaz. — disse aliviado enquanto me dava um forte abraço. — Como o senhor está? Não se machucou? — perguntei. — Não. Graças a Deu estou bem.Mas perdi a alfaiataria.— ele revelou com olhar triste. — Sinto muito. — eu disse. E sentia mesmo afinal lá também era meu ganha pão. — Mas e como está sua mãe? Ouvi falar que na colina o terremoto foi bem maior do que aqui no centro de Crotone. Entrei em pânico. — Minha mãe! — gritei desesperado. Eu tinha esquecido da minha querida e amada mãe. — Como pude? — Saí correndo no mesmo instante sem dar explicações. — Meu senhor que estais no céu, permita que minha mãe esteja bem per favor! Não permita que nada de mal tenha acontecido a ela! Per favor meu Deu me perdoe se pequei. Não permita que ela pague pelos meus pecados! Durante o todo o trajeto até minha casa deixei um rastro de destruição. De longe vi a aldeia onde eu morava em chamas. Mais uma vez vi as pessoas gritando desesperadas. Mortos eram postos sobre as calçadas. Não parei para ajudar apesar de muitos me pedirem por socorro. Eu já tinha sido irresponsável o suficiente. Naquele momento eu só pensava em encontrar minha mãe viva. — Deu santo, permita que minha mãe esteja sã e salva. — eu dizia a cada metro percorrido. Sentia um frio constante no estômago. A angústia havia tomado posse de minha alma. À medida que eu subia a ladeira não conseguia ver quase nada devido à escuridão parcial que a forte poeira acarretava. Quando cheguei ao topo vi o que eu mais temia. Minha casa estava totalmente

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Patrícia Franconere destruída. Desesperado, corri e subi nos escombros a procura de minha mãe. Os bombeiros já estavam em ação. — Minha mãe? Cadê minha mãe? — perguntei a todos que estavam por perto, mas ninguém me respondia. Parecia que todos estavam mudos. — Cadê minha mãe! Gritei cem mil vezes desesperado. Eram tantos mortos, tanto desespero e sofrimento que ninguém me ouviu gritar. Até porque eu era apenas mais um naquele mar de lágrimas. Passei a retirar as pedras pesadas na tentativa de encontrar minha mãe no meio dos destroços. — Mãe! A senhora está me ouvindo? — gritei várias vezes. De repente para meu infortúnio encontrei sua mão gelada em sobre os escombros. Essa era a única parte do seu corpo que não tinha sido soterrada. — NÃO! MIL VEZES NÃO! Eu gritei. Tentei tirar as pedras que estavam sobre minha mãe, mas era uma tarefa impossível para uma só pessoa. Outros moradores vieram me ajudar. Em meia hora eu tinha a minha santa mãe morta, fria e cheia de fraturas e hematomas bem ao meu lado. Ela estava deitada de bruços. Percebi que ela segurava algo contra o peito. Ao virá-la vi que o objeto era um porta retrato com minha foto ainda criança. Certamente ela tentava escapar do desmoronamento, desesperada deve ter apertado a foto contra o peito como se assim pudesse me salvar. Eu a abracei e chorei sobre seu cadáver. _A culpa foi minha! — gritei. — Matei minha mãe! — insisti. Se eu não tivesse passado a noite com a dona Amparo isso certamente não teria acontecido. Pensei. Eu poderia ter salvado sua vida. Ou quem sabe aquela era uma punição divina? Eu pequei naquela noite. Eu fiz pouco de tudo o que eu havia aprendido durante a minha vida toda Deus estava me punindo e pior que conviver sem minha mãe era conviver com essa culpa. Eu chorei, chorei muito. Implorei por um milagre, mas ele nunca aconteceu. Me mal dizia a todo instante. Eu havia me tornado uma ruína viva. — Deu! Porque fizeste isso comigo? Sempre fui seu servo mais obediente? Porque me punir dessa maneira por causa de um deslize? Eu sou humano! Eu também erro! Eu entreguei minha vida em vossas mãos, porque fizestes isso comigo? Se eu pequei porque descontar sua ira na minha santa mãe? Não achas que ela já sofreu demais nessa vida? Mostra-me o teu poder agora e devolva a vida da minha mãe! Eu dou a minha vida em troca da dela! Creio em ti senhor! Creio em Deus pai Todo poderoso Criador do céu e da terra... Terminei minha oração e nenhum milagre havia acontecido. Eu continuava ali sentado ao lado do corpo inerte da minha mãe. As pessoas continuavam a chorar. — Deus, eu não acredito mais em você! Nego a sua existência a partir de agora. Não sou mais católico. Nunca mais freqüentarei uma igreja e vou cometer todos os pecados que eu quiser! De que me adiantou viver para ti uma vida inteira se no meu primeiro deslize você me pune com essa atrocidade? Eu te renego! Se você existe mesmo, você é um monstro, um monstro! Eu te odeio! — desabafei num tom alto e raivoso como um cão. Naquele maldito dia fiz uma avaliação de tudo o que eu havia aprendido durante anos a respeito da vida. A Bíblia sagrada, no livro do Gênesis, narra à história da origem de tudo o que há ao nosso redor, inclusive a origem do homem. O primeiro versículo da bíblia diz “No principio Deus criou o céu e a terra”. Essa é a idéia central do criacionismo. Coloquei em xeque essa idéia. Com o peso da culpa sobre os ombros decidi enveredar por outros caminhos encontrando assim o evolucionismo. Diferentemente do criacionismo o

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Grão Vizir evolucionismo era fruto de um conjunto de pesquisas iniciadas pelo legado de Charles Darwin, que afirma que o homem é resultado de uma longa evolução iniciada a cerca de cinco milhões de anos atrás, desde os tempos Hominídeos até o Homo Sapiens, que correspondem as suas características atuais. Não acredito mais em Deus, apenas em Charles Darwin. Passei assim a viver a minha vida se acreditava nisso sinceramente eu não sei.

11 Minha mãe foi enterrada no cemitério público de Crotone dois dias depois num enterro coletivo. Houve mais de quatrocentos mortos na tragédia. Muitos deles levados para serem enterrados em outros cemitérios espalhados pela cidade. O sol reluzia com intensidade e apesar dos corpos estarem dentro dos caixões era impossível não sentir o cheiro de carne humana se decompondo. O padre Enzo acabara de chegar para fazer as orações. Eu estava no salão do velório ao lado do caixão da minha mãe. A dona Amparo de vestido preto segurava a minha mão e tentava me consolar o tempo todo. Do lado de fora o padre ajeitava sua batina. —Venha aqui Ferdinando. — chamou o padre. — Afastei-me do caixão e fui ver o que o padre queria comigo. A dona Amparo me acompanhou. — Preciso que você me ajude com as orações. — disse o padre enquanto colocava o crucifixo no pescoço. — Não posso. — respondi. —Como não pode? Sua mãe também está qui entre os mortos! — Não vou orar com o senhor padre. — respondi decidido. O padre Enzo me puxou carinhosamente pelo braço. — Filho, sei que está triste com a morte de tua mãe, mas lembre-se que ela agora está ao lado de Deus e Feliz! — Será padre? — perguntei de cabeça baixa. — Você não pode duvidar da palavra de Deus meu filho. Sei que esta triste cheio de aflições, mas Deus sabe o que faz. Olhe ao seu redor.Veja quantas pessoas estão chorando por um ente querido.Deus traçou o destino dessas pessoas.Não foi a toa que essa tragédia aconteceu.Deus sempre sabe o que faz. Tive que me conter para não mandar o padre para o inferno; mandar tudo para o inferno, mas me segurei. —Venha comigo meu filho, não permita que lúcifer tome conta do seu coração. Desde muito pequeno você me ajuda com as orações, não é justo que não ajude justamente no enterro da sua mãe querida. Eu me sentia desorientado. Mesmo assim permiti que as palavras de conforto do padre Enzo entrassem em meu coração. Era ultima vez que via o corpo de minha querida mãe, por ela eu ajudaria o padre Enzo com as orações. Mas seria a última vez. O cortejo fúnebre saiu da capela em direção aos túmulos. Eram doze corpos que seriam enterrados entre eles havia homens, mulheres e crianças. Caminhei segurando a alça do caixão da minha mãe acompanhado por alguns vizinhos. Nunca me senti tão só. Não tinha um único parente para chorar pelo corpo de minha mãe. Eu era o que restava de nossa família. Pensei enquanto

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Patrícia Franconere caminhava o que seria da minha vida daquele dia em diante. Eu estava só, sem trabalho, sem casa, sem roupas. Teria que começar uma nova vida. De onde eu tiraria forças? Onde estaria meu pai naquele momento? O que teria acontecido com ele? O cômico de toda essa tragédia era que minha mãe já estava morta há muito tempo, desde que meu pai foi embora. Seu espírito já não estava mais presente, apenas seu corpo cansado. Se minha mãe estava morta era culpa do meu pai. Pensei para aliviar minha culpa. Mas eu sabia que o único culpado por tudo era eu mesmo. O cortejo foi andando por dentro do cemitério em ruas estreitas de terra. Todos seriam sepultados em túmulos que ficavam no final do cemitério quase encostado aos muros. O cemitério era amedrontador com túmulos mal cuidados e o mato se espalhando por todos os cantos. A maioria não tinha lápides, apenas cruzes feitas com pedaços velhos de madeira. Poucas tinham o nome do defunto pintado com tinta preta. Não era ali que minha mãe merecia ser enterrada, mas não havia opções naquele momento. Chegamos ao local dos túmulos. Doze covas rasas estavam abertas uma ao lado da outra. Os coveiros, dois para ser mais preciso colocavam os caixões dentro das covas sem muito sacrifício. Fiquei me perguntando por que as covas tinham que ser tão rasas, visto que com o tempo os caixões incham, se desintegram e os ossos acabam aparecendo sobre a superfície da terra. Eu mesmo durante o trajeto tive que chutar vários ossos no meio do caminho. “Que final medonho”. Pensei. Os coveiros começaram a jogar a terra de volta as covas. Para eles não havia dor nem sofrimento.Eles realizavam seu trabalho com frieza.Não importava para eles naquele momento se estavam enterrando,brancos,negros,homens,mulheres o crianças.Eram pagos para isso.Assim que acabaram saíram sem olhar para ninguém.Um deles até acendeu um cigarro e saiu cantando. O Padre enzo se colocou diante do túmulo de minha mãe e eu me posicionei ao seu lado. Tentei não chorar no momento da oração, mas foi impossível conter as lágrimas. — Ó meu Deus! Ó Tu que perdoas os pecados! Tu que concedes dádivas e afastas aflições! Suplico-Te, verdadeiramente, que perdoes os pecados dos que abandonaram as vestes físicas e ascenderam ao mundo espiritual. Ó meu Senhor! Purifica-os das transgressões; a tristeza desvanecer-lhes e transforma sua escuridão em luz. Permita que entrem no jardim da felicidade, purifiquem-se com a água mais límpida e, no mais sublime monte, contemplem Teus esplendores... Naquele momento eu me encontrava morto espiritualmente. Como diz na igreja católica: Longe de Deus.

12 Dois meses haviam se passado. Eu estava morando provisoriamente na casa do seu Gregório que por sorte não havia caído com os abalos. Duas máquinas de costuras as únicas que ele tinha não foram danificadas, sendo assim ele improvisou uma alfaiataria na sala de sua casa. Mas os pedidos eram poucos. Ninguém tinha dinheiro para comprar roupas novas. Eu continuava ajudando com as costuras. A casa era pequena. Possuía apenas quatro cômodos. Seu Gregório dividia o quarto com a esposa e duas filhas pequenas de seis e sete anos e a sala onde elas dormiam passou a ser alfaiataria durante o dia e meu quarto à noite. Eu estava me tornando um incômodo para todo mundo e me sentia mal com isso. Eram seis horas da tarde, eu estava sentado no degrau que dava acesso a cozinha lendo a biografia de Charles Darwin quando a dona Amparo apareceu no portão. — Como está menino? Levantei e fui até o portão. — Bem, na medida do possível.

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Grão Vizir — O que você está lendo? — ele perguntou curioso. Mostrei-lhe a capa do livro. — Biografia de Charles Darwin. — respondi. — Hum! — ela fez arregalando os olhos e balançando a cabeça para cima e para baixo. — Você continua lendo essas bobeiras? — Não são bobeiras. É ciência. — defendi. Ela continuou parada com olhar enigmático. — Eu já te falei entre as diferenças do criacionismo e do evolucionismo? _perguntei eufórico. — Sim. ”Trocentas” vezes. — E você concorda com Darwin? — perguntei crente que ela estava gostando do rumo da nossa conversa. — Já tenho minha opinião formada. — E qual é? — perguntei ingenuamente. — Que a bíblia sagrada defende a tese do criacionismo, o tal Darwin defende a tese do evolucionismo e você a tese do “invencionismo”. — Mas não estou inventando nada caspeta! Charles Darwin realmente existiu! Deus é que é invenção dos homens! — Diga bastante isso. Quem sabe um dia você acredita. — disse dona Amparo, mas não com a arrogância de uma pessoa que adquiri cultura por meio de livros, mas com a sabedoria de quem já tinha vivido muito. — Mas... —Não tem, mas, nem meio, mas. Não vim aqui para debater Charles Darwin. Vim aqui para te ver. — revelou como sempre decidida. — Vamos dar uma volta pelo quarteirão? — ela me sugeriu com um meio sorriso no canto dos lábios. Aceitei de imediato. Só pedi um tempo para avisar seu Gregório que ia sair, pois estava quase no horário do jantar e eu não queria que me esperassem. Fomos caminhar assim que voltei. — Vou para Roma na semana que vem. _informou a dona Amparo. — Mas já? — perguntei com uma ponta de tristeza. — Não tenho mais nada para fazer aqui. Vou para a casa dos parentes do meu marido. Vou ficar hospedada por lá até comprar a minha casa. — Puxa! Comprar casa em Roma? Ta podendo! — Não enche. O Pepe me deixou algum dinheiro quando morreu. Como era solteiro ele não tinha muito no que gastar. Tenho também a pensão do meu ex-marido. Para uma casa modesta acho que o dinheiro dá. — Sorte sua. Para você não mudou muita coisa. Você já ia para lá de qualquer jeito. — conclui. — Vem comigo! — ela sugeriu. — Não. Você está ficando louca. — desabafei. — Por quê? Não há nada que prenda você aqui. — ela afirmou. — Nem lá. — respondi. — Não precisa ficar com medo menino! sorrindo. — Sei disso. Mas não quero ir para Roma. 37

Não estou propondo casamento. — ela disse


Patrícia Franconere — Lá você terá mais oportunidades de trabalho, aqui você não tem nada. Vai passar o resto da sua vida trabalhando na sala do deu Gregório. Nem onde morar você tem mais. Sua casa foi totalmente destruída. Só sobrou o terreno. E você não tem meios para reconstruí-la. Se for esperar pela ajuda do governo você está perdido. — Eu sei — Então? — ela perguntou. — Não quero. Tenho outros planos. — Quais posso saber? — Estou pensando em ir ao Brasil. — Fazer o quê? — Procurar meu pai. — Aquele porco velho nem deve se lembrar mais que você existe. — Mas mesmo assim. Ele é a única família que eu tenho hoje. Preciso encontrá-lo, saber por que ele nos abandonou. — Perda de tempo. — ela concluiu. — E como você pretende ir para o Brasil? — Clandestino no navio. — E você conhece alguém que trabalha em um navio para te colocar lá dentro? — Não. — Então meu caro, é melhor você ficar por aqui mesmo. Hoje em dia a vigilância nos portos e aeroportos não são mais brandas como no passado. Você corre o risco de ser preso. Não se esqueça que seu pai tinha quem o ajudasse. Você não tem. — Não. Eu preciso ir de qualquer maneira. Minha vida não faz mais sentido por aqui. Preciso ir ao encontro da resposta. — Você passou a vida inteira em busca de respostas. — Estamos nesse mundo por algum motivo. Nada é por acaso. Isso para mim ficou evidente. E eu preciso buscar essas respostas e sei que não encontrarei aqui na Itália. Meu pai fez tudo o que fez por algum motivo e eu queremos descobrir. Continuamos caminhando pelas ruas. A cidade estava em obras, sendo reconstruída. Paramos em frente à Igreja de Santo Afonso que estava parcialmente destruída. — Quando foi que você começou a fumar? — perguntou a bela ruiva ao notar que acendi mais um cigarro. — No dia em que minha mãe morreu. — respondi sorumbático. Diga-se de passagem, essa fisionomia passou a ser a marca registrada do meu semblante. — Você acha que está certo? — perguntou a dona Amparo com ares de preocupação. — Certo o quê? — perguntei como se não soubesse o que ela queria dizer. — Como com o quê? Você começou a fumar, beber, correr atrás de vagabundas, dorme tarde, se irrita com facilidade e ainda por cima não freqüenta mais a igreja. Fiquei pensando. Vagabunda? Vagabunda ou não eu gostava dela.

Justamente ela falava de vagabundas?

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Mas contive-me.


Grão Vizir — De que igreja você está falando se a única que tinha aqui por perto foi abaixo? — respondi irônico. Mais um traço de personalidade que eu havia acrescentado no meu caráter. — Não me venha com desculpas esfarrapadas porque o padre tem celebrado as missas ao ar livre! — Não quero mais saber de padres, bíblias muito menos de missas. Não acredito mais nessas idiotices. — Você é quem sabe. Já é um homem. “Sou sim”. Pensei. “Graças a você sou um homem de verdade”. Apesar do pensamento ácido me lembrei que havia me deitado com a Amparo uma única vez. Apesar do imenso prazer que sentimos um com o outro o resultado foi desastroso. Por isso nunca mais tocamos no assunto. — Você tem dinheiro para viajar? — Não. — O seu Gregório não esta te pagando? — Não no momento. Por enquanto é só casa e comida que ele pode me oferecer. As coisas estão difíceis para ele também. Eu não reclamo. Ele e sua família estão fazendo até mais do que eu merecia. — Pare de se lamentar. Você não teve culpa de nada. Eu também não. Ninguém pode mudar o destino traçado por Deus. — Não me fale mais em Deus! dessas deveria estar no inferno!

Ele não existe nem nunca existiu. Se existisse à uma hora

— Que blasfêmia! Tenho medo de deixá-lo aqui sozinho. Com o coração partido de jeito que está é bem capaz de cometer alguma loucura. — Não vou ficar sozinho. Vou atrás do meu pai já disse. Ele precisa saber o que aconteceu aqui. Se eu tive culpa da morte da minha mãe ele também teve sua participação. E eu vou cobrar isso dele.Não vou carregar sozinho essa cruz pelo resto da minha vida. — Você está se atormentando porque quer. Seu pai esteja onde estiver vai dar graças a Deus ao saber que sua mãe está morta. — Você não precisa me dizer isso. Eu o conheço muito bem. Sei que ele nunca se importou de verdade com a gente. — Se você já sabe disso então vem comigo para Roma! Deixe seu pai para lá! — Larâdxa! Já não disse que não? — Você está parecendo teu pai. Falou como ele. Estúpido como tal. — disse a dona Amparo com olhar de surpresa. — Tome cuidado, pois você fala tanto dele e é possível que fique igual. — Perdoe—me. Mas eu nunca vou ficar como ele. Isso é impossível. Caminhamos em selênico até a escola primária onde ela estava precariamente instalada. Era uma das poucas construções da rua que não tinha sido atingida. As crianças jogavam futebol. Um dos meninos ao chutar, lançou a bola sem querer a meu encontro. Fiz algumas embaixadas com dificuldade e devolvi com um chute. Com um sorriso um deles me perguntou: — Crotone?

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Patrícia Franconere — Milan. _respondi.Apesar de não apreciar muito o futebol,tinha simpatia por esse time.Já meu pai era torcedor fanático do Juventus.Crotone um time pequeno até então não passava da terceira divisão.A molecada voltou a jogar e eu voltei minha atenção a dona Amparo. — Preciso voltar para a casa do seu Gregório. Não quero me atrasar para o jantar. Só não a convido... — Tudo bem. _ela me interrompeu. _sei que a esposa do seu Gregório não gosta de mim. Nenhuma das mulheres de Crotone gosta. — concluiu. — Por isso tenho que ir embora. — Se as mulheres de Crotone não gostam de você os homens adoram! — Eu disse na tentativa de roubar um sorriso. E ganhei o mais lindo deles. A dona Amparo passou as mãos delicadamente no meu rosto. Meus cabelos negros por serem lisos e finos caiam a todos instante nos meus olhos. Ela os afastou. Claro que tudo isso na ponta dos pés já que eu era muito maior do que ela. — Já foi o meu tempo. Não penso mais em homens. Quero levar uma vida normal de agora em diante. Já me meti em muitas confusões. — Você continua linda. Lembro-me da primeira vez que eu a vi e a primeira vez que eu a desejei. — Já se passaram muitos anos. Eu não imaginei que você se tornaria um homem tão atraente.Você precisa botar a cabeça no lugar.Encontrar uma boa mulher e se casar. — Não tenho a menor intenção de me casar agora. Meus planos são outros. — Já sei. Você quer ir para o Brasil blá, blá, blá, blá... Já não agüento mais ouvir essa ladainha.De qualquer maneira, passe aqui amanhã a tarde que eu quero lhe dar uma coisa antes de ir embora para Roma. Perguntei o que era, mas ela não respondeu. Fui embora. Eu e meus pensamentos sombrios.

13 Como sempre, após a morte de minha mãe passei praticamente a noite toda acordado me revirando sobre a cama a todo instante. Várias passagens da minha vida rondavam minha memória. Nada era capaz de apagar a dor no meu peito e livrar minha alma da culpa.Em vários momentos me peguei rezando o Credo,mas logo que percebia parava imediatamente.Era nessas horas que eu saia para rua em busca de conforto.O bordel da Valentina ficava a duas quadras dali numa rua estreita e escura.Estava com parte da estrutura avariada.Mesmo assim as moçoilas atendiam seus clientes.Quando não dava para ficar dentro do imóvel,saíamos para saciar os instintos carnais em ruas vazias e escuras.Eu voltava sempre antes do sol raiar.Durante o dia permanecia debruçado sobre a máquina de costuras.Quando não tinha trabalho ficava desenhando novos modelos de ternos.Era comum as filhas do seu Gregório sentarem-se ao meu lado e começarem a desenhar também.Várias vezes elas puxavam conversa,mas por algum motivo que eu desconhecia eu nunca dava atenção.Eu até tinha vontade de brincar com elas,mas não conseguia.Eu era duro e contido.Naquele dia foi a mesma coisa.Lorena a mais velha puxou conversa comigo. _O que você está desenhando? — Um novo modelo de paletó. — respondi meio ríspido. — Me empresta um lápis de cor? — ela me pediu com o mais lindo dos sorrisos no rosto. — Só tenho giz de cera. — respondi de má vontade.

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Grão Vizir — Também serve. A pequena menina de cabelos claros puxou um banquinho e sentou-se ao meu lado. — Me dá um papel! Apesar de saber que se tratava de uma criança tive vontade de mandá-la embora, mas como a casa não era minha fiquei quieto. Arranquei uma folha do caderno de desenho e entreguei. A menina ficou um bom tempo desenhando não sei o que. Ao terminar ela me entregou o papel. — É um presente pra você!

Tive vontade de chorar. Saí abruptamente deixando a cadeira estofada cair no chão. A pequena menina sem entender nada voltou a desenhar. Perambulei pelas ruas sem destino até a noite. Sentiame um farrapo humano. Acabei parando na porta da escola primária. Pedi a um menino que chamasse a dona Amparo. Ela chegou há poucos minutos. — O que aconteceu com você? — ela perguntou assim que viu meu estado. — Nada. — desconversei. — Por que você não veio à tarde como eu pedi? — Não me lembrei. Ela me olhava com ternura, mas sei que ela não sabia o que fazer. — Espera aqui que vou buscar algo. Fiquei sentado na calçada. A noite estava quente e a todo o momento as mariposas que rodopiavam ao redor das luzes dos postes vinha dançar na minha frente. Tentei sem sucesso espantalas. Saí dali e fui até a esquina que ficava a poucos passos de distância. Ouvi barulho de saltos femininos baterem na calçada. Olhei para trás era a dona Amparo. Pela primeira vez na vida a vi sem

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Patrícia Franconere maquiagem alguma. Era ainda mais bonita e parecia mais jovem também. Ela se aproximou com as mãos para trás. Percebi que carregava algo, mas não dava para perceber o que era. — Sei que não está bem meu menino. — ela disse com voz doce. — Tenho algo para você que acho que vai mudar o seu humor. — Acho difícil. — conclui. — O que é? — perguntei sem entusiasmo. Ela virou-se de costas. Reconheci de imediato o tipo de caixa que ela carregava. — É um violino? — perguntei surpreso. Ela se virou novamente para mim e me entregou a caixa. — Sim. É um violino. Mas não qualquer violino. Fiquei segurando a caixa enquanto olhava para ela na tentativa de decifrar o enigma. — Vamos menino. Abra. — ela pediu visivelmente ansiosa. Fiz o que ela pediu. Não tenho como explicar o que eu senti quando a caixa foi aberta. Apenas olhei para ela. Tenho certeza que ela soube entender meu olhar de gratidão. — Como você conseguiu recuperar meu violino? — Perguntei com a voz embargada. — Encontraram sob os escombros da minha casa. Ele ficou um pouco arranhado, as cordas estavam quebradas, por isso não entreguei antes. Levei para consertar. Demorou um pouco, mas valeu a pena. Só não deu para recuperar a caixa. Ela ficou totalmente destruída. Uma viga de concreto caiu sobre ela. Essa é nova. Quer dizer... Para você ela é nova. Comprei em uma loja que vende instrumentos musicais de segunda mão. — Meu violino é um verdadeiro sobrevivente de guerra. Já foi atingido mortalmente várias vezes e nunca morre. — É também um gato. Tem sete vidas. Foi a primeira vez que ri depois da morte da minha mãe. — Espero que você se torne também um sobrevivente de guerra, e tenha sete vidas como um gato. Trocamos olhares cúmplices por alguns segundos. — Agora toque alguma coisa para eu ouvir. — ela me pediu com carinho. — Estou um tanto destreinado. — Deixa de fita. Você é capaz de tirar melodia até mesmo de uma vassoura. Eu ri novamente. Às vezes eu imaginava o que minha mãe faria se estivesse viva ao saber que eu tinha me tornado amigo íntimo da dona Amparo. Isso me deixava muito mal. A nossa amizade já tinha se tornado sólida mesmo antes dela morrer. Não que isso me livrava da culpa, mas eu tinha que viver (que sobreviver) também. Naqueles dias difíceis a dona Amparo era a pessoa mais próxima que eu tinha, a única que me compreendia. E eu já estava vivendo em pecado mesmo... Mais um menos um não faria tanta diferença em minha vida. — Já que irei para o Brasil, só Deus sabe quando — eu ri —Vou tocar um músico de lá: Bachianas Brasileiras número cinco. Heitor Villa Lobos. A dona Amparo sentou-se na calçada e aplaudiu antes mesmo que eu entoasse os primeiros acordes. No meio fio dei inicio a mais uma sinfonia particular. Percorri pelas obras mais conhecidas do músico Brasileiro como trenzinho caipira, as Bachianas três e quatro. Só depois me dei conta de

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Grão Vizir que havia uma multidão ao meu redor assistindo meu humilde concerto. Todos me aplaudiram entusiasmado quando terminei. — Você sabe tocar Ave Maria? _perguntou uma senhora mal trapilha segurando uma criança no colo. Hesitei na resposta. — Sei. Mas essa eu não toco mais minha senhora. — Por favor, Ferdinando, toque. — pediu a dona Amparo. Abaixei-me e sussurrei baixinho ao pé do ouvido da dona Amparo: — Não me peça isso. Música sacra eu não toco mais. — Essas pessoas estão precisando de um pouco de conforto. Também perderam tudo. Casa, família. Não custa nada. Toque por favor! Respirei fundo. — Ave Maria de, Johann Sebastian Bach. — informei. Logo nos primeiros acordes, percebi que a platéia ao meu redor se emocionava. Homens, mulheres e crianças. Vi em seus rostos que eles esperavam dias melhores. Ainda tinham fé, coisa que eu já tinha perdido há algum tempo. Meu concerto durou mais do que eu esperava. De certa forma soou para mim como um acalanto. Eu me sentia melhor e tenho certeza que pude proporcionar momentos agradáveis às pessoas que assistiam. — Preciso ir embora. — eu disse a dona Amparo depois que a platéia se dispersou. — Ainda tenho outra surpresa para você. — Outra? Qual a surpresa que você vai me dar dessa vez? — perguntei com malícia. Ela tirou de dentro do decote do vestido lilás que vestia um envelope branco e me entregou. — O que é isso? — perguntei. — Um presente. Ao abrir vi que dentro do envelope havia uma boa soma em dinheiro. — O que significa isso? — perguntei. — Significa sua ida ao Brasil. Aí têm dinheiro suficiente para você pagar uma passagem de avião e se manter por alguns dias no Brasil. — Eu não posso aceitar isso. — disse enquanto devolvia o envelope. — Você vai aceitar sim. É de cuore. — Não. Você não é rica. Precisa desse dinheiro tanto quanto eu. — Não precisa se preocupar. Ainda me sobrou o suficiente. Não quero ir embora de Crotone sabendo que você vai se aventurar pelo mundo sem dinheiro. A é verdade eu não queria aceitar. Era um homem recebendo dinheiro de uma mulher. Apesar de criticar parecia que eu estava tendo o mesmo comportamento do meu pai. Isso era inadmissível,porém a dona Amparo insistiu tanto que eu não tive como recusar. E bem lá nas profundezas do meu coração eu sabia que sem dinheiro não conseguiria embarcar para o Brasil.

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Patrícia Franconere — Tudo bem. Eu vou aceitar. Mas saiba que não quero dado esse dinheiro. Vou te pagar. Não sei quando, nem como, mas vou pagar não só o dinheiro, mas a oportunidade que você está me proporcionando. Você não tem idéia do que essa viagem representa para mim. — Então vá meu amigo, meu ragazzo crescido. Desejo-te toda sorte deste mundo. Que Deus o abençoe e abra todos os caminhos que você tem a trilhar. E que um dia, com seu coração menos pesado e menos sofrido encontre novamente nas palavras dele o conforto que você perdeu. Baixei a cabeça enquanto ela falava. — Só mais uma coisinha. Ela me entregou mais um envelope. Este meio amarelado. — Encontrei esse envelope por acaso nos pertences do Pepe. È uma carta do nosso irmão Pedro pouco antes dele falecer. A carta não fala nada do seu pai. Apenas de sua própria doença. — Mas o que me interessa isso? — perguntei, pois não entendi o porquê ela achou importante me entregar a carta. — No verso do envelope há o endereço do remetente. Achei que isso poderia ser útil na sua busca já que você disse que seu pai nunca colocava o endereço do remetente. Não se esqueça que eles moravam na mesma pensão. — Não acredito que você conseguiu isso para mim! — eu disse eufórico. — O Pedro sempre nos enviou cartas com o remetente. Ele não tinha nada a nos esconder. Só que nunca nos preocupamos em guardar as cartas, pois elas sempre vinham aos montes. Essa foi à única que sobrou. Normalmente o Pepe é quem colocava as cartas no correio. Eu quando escrevia entregava para que ele colocasse dentro do mesmo envelope assim evitava gastos excessivos com selos. — Meu pai nunca escreveu para o seu Pepe? — Só no começo. Depois ele parou. Mas o Pepe nunca me mostrou as cartas que seu pai enviava. E eu também não queria saber. Eu estava muito magoada com ele. Senti-me abandonada. Ele enganou a mim e a sua mãe. — Entendo. — não havia outra coisa para responder naquele momento. — Acredito que esse endereço possa ser uma luz no fim do túnel. Aquela noite foi à última vez que estive com dona Ampara em Crotone. Preferimos não nos despedir. Seria mais uma dor desnecessária.

14 O avião Boeing 747 da Alitália levantou vôo no dia treze de julho de mil novecentos e setenta e seis as vinte e três horas e trinta minutos horário de Roma. O verão havia acabado na Itália. Estávamos no começo de outono, mas o clima continuava quente e seco por estarmos na costa do Mediterrâneo por esse motivo eu usava apenas uma camisa de algodão branca e uma calça de alfaiataria preta. Eu estava acomodado no primeiro pavimento do avião na poltrona de número cinqüenta ao lado da janela. Ao meu lado havia dois senhores. Um deles era italiano, pois troquei algumas palavras com ele durante o vôo. O outro que estava sentado na poltrona ao lado do corredor deduzi que era árabe pela roupa que trajava com elegância: Túnica verde musgo bordada com fios

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Grão Vizir dourados e turbante vermelho com uma pedra de rubi no centro. Os dedos das mãos estavam com anéis de ouro amarelo cravejados de pedras preciosa. Parece um “vizir”pensei.Olhei discretamente para os detalhes da roupa(coisas de alfaiate).Num determinado momento ele olhou para mim e me cumprimentou com um aceno de cabeça.,acho que ele percebeu que eu estava olhando.Fiquei sem graça e parei de olhar.Mas nunca me esqueci da sua sobriedade,do requinte e da elegância que ele tinha dentro daquelas vestes e nunca imaginei que tal detalhe fosse fazer a diferença na minha vida.Meus pertences estavam em uma pequena mala de viagem que me foi emprestada pelo seu Gregório.A essas alturas minha mala estava no compartimento de bagagens junto de outras tantas.Comigo ficou uma pequena maleta onde eu carregava o pouco dinheiro que me restou,objetos de higiene pessoal, dois maços de Marlboro, e um mini-dicionário Italiano-Português que eu comprara com o dinheiro emprestado pela dona Amparo.Ouvi dizer que o idioma português se assemelhava ao Italiano,mas mesmo assim não quis arriscar.Minha maleta contendo meu inseparável violino Stradivarius também ficou comigo.Guardei-a no bagageiro que ficava acima da janela.Eu tinha duas opções,ou viajava de navio e levava uma semana ou mais para aportar no Brasil,ou ia de avião para chegar no dia seguinte.Apesar do medo de altura optei pela viagem aérea porque eu não tinha tempo a perder.Já que minha vida iria mudar que fosse logo. Fiquei olhando para a escuridão do céu admirando as estrelas. Depois baixei meu olhar em vão na tentativa de enxergar alguma coisa. Eu sabia que o Mediterrâneo estava lá embaixo, e eu me afastava cada vez mais não só dele como da vida que eu tinha. Sempre fui uma criança introvertida. No vilarejo onde eu morava todo mundo sabia da vida de todo mundo. Todos naquele lugar sabiam que meu pai batia na minha mãe e que corria atrás de tudo quanto era mulher. Isso me envergonhava. Talvez por esse motivo eu evitasse o contato mais próximo com outras pessoas. Sendo só eu não tinha que dar satisfações a ninguém. Quando algum curioso vinha me perguntar algo sobre meus pais eu desconversava. Não tive amigos. Nunca senti necessidade de ter um. Sempre gostei da minha própria companhia. Claro que como todas as crianças às vezes eu sentia falta de ter um brinquedo, uma festa de aniversario com os colegas da escola e da igreja, mas meu pai sempre dizia que isso era supérfluo. Fui acreditando nisso.Afinal a única coisa que meu pai soube dar para mim foram surras e incontáveis castigos.E assim foi minha infância.Quando meu pai nos abandonou,não tive tempo para ser adolescente.Tenho a sensação de que os dez anos que se passaram até eu completar vinte anos eu passei no limbo.Foram dias e anos de trabalho duro e muita tristeza.O início da minha fase adulta não foi nada fácil.Perdi minha mãe,minha casa,me afastei de Deus e do dia para noite afastei de Crotone e da minha querida Itália.Talvez para nunca mais voltar.Qual o futuro que eu teria no Brasil? Será que encontraria meu pai? Arranjaria um trabalho? Encontraria um sentido para viver? Faria as pazes com Deus? Não. Ele foi quem me abandonou. Ele não existe e nunca existiu.Nas cartas meu pai dizia que os Brasileiros eram amistosos e alegres assim como os italianos.Que São Paulo era uma cidade grande e que tinha de tudo um pouco.Apesar disso me sentia inseguro.Lembrei-me de uma passagem da biografia de Charles Darwin.Ele esteve no Brasil algumas vezes e na última vez quando retornou a Inglaterra seu país natal ele disse: "Dou graças a Deus e espero nunca mais visitar um país de escravos...”. Fiz-me uma pergunta: Será que o Brasil era tão bom quanto meu pai dizia, ou estaria Darwin mais uma vez com a razão? O vôo levou mais ou menos onze horas sem escalas. Mas não percebi. Dormi quase o tempo todo. Só acordei quando a bela aeromoça me chamou. Eu era o único passageiro ainda a bordo. Minhas pernas começaram a tremer. Finalmente eu estava no Brasil. Aeroporto Internacional de Viracopos (Campinas, São Paulo, Brasil) ano 1976.

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Patrícia Franconere Eu estava com vinte anos de idade.

15 Ao descer o último lance das escadas do avião fiz o sinal da cruz. Eu acabara de pisar em solo Brasileiro. Sentia-me perdido no meio de tanta gente e numa terra estranha. O céu estava azul com poucas nuvens e o clima estava quente apesar de ser início do inverno no país. Fez-me lembrar Crotone. Dois ônibus aguardavam os passageiros e a tripulação do avião para levar até o prédio de desembarque. Sentei no primeiro banco ao lado de uma senhora. Mas ela não falou comigo e eu também fiquei quieto. Olhei para os lados e nem sombra do “vizir”. Certamente estava no outro ônibus, pensei. Fiquei fascinado com o tamanho do aeroporto e a quantidade de aviões estacionados no pátio. Outros tantos levantavam vôo enquanto outros aterrissavam. Eram aviões de todos os modelos, tamanhos e diversas companhias aéreas. Bem diferente do minúsculo Aeroporto Crotone. As pessoas conversavam animadamente dentro do ônibus. Mas havia muita gente e muitas nacionalidades. Eu ainda não sabia distinguir quem falava português ali. Eu apenas observava. Quando o ônibus parou descemos todos e caminhamos para as instalações internas do aeroporto. Depois de passar mais de uma hora na alfândega, perdi mais de meia hora para apanhar minha mala na esteira rolante. Eu estava cansado, com fome. Ainda tinha mais uma viagem para fazer de Campinas a São Paulo. Peguei um dos táxis que estava parado diante do aeroporto. Entreguei o endereço para o motorista que me disse: — Rua dos Ingleses é isso? — Sim — respondi. — Eu conheço. Fica na Bela Vista. — Não... Não... Bixiga! — corrigi no meu português “italianado”. — É a mesma coisa. _informou o atencioso motorista. — Você é italiano? — ele perguntou ao notar meu péssimo português. Para minha surpresa eu havia entendido tudo o que ele falava e respondi que sim. O amistoso motorista conversou comigo durante todo o trajeto. Muitas coisas eu entendi, mas a maioria ficou no ar. Nunca me esqueci do seu nome afinal era foi o primeiro Brasileiro com quem conversei na vida. Ele se chamava Paulo. Ele me disse que no Brasil havia vários italianos e que era comum esbarrar com um deles pelas ruas. Disse que o povo aqui no Brasil já estava acostumado com a língua e o jeito expansivo dos italianos. O motorista ligou o radio do carro assim que entramos em São Paulo. Para minha surpresa começou a tocar “Noe due per sempre” (Wess e Dori Ghezzi) Me contive para não chorar. Uma ponta de nostalgia começou a se instalar no meu coração.Paulo percebeu que eu estava emocionado mas permaneceu calado.Logo depois ele me informou que era comum tocar nas rádios Brasileiras cantores italianos.Pepino di Capri era o mais comum entre eles.Era estranha a sensação,mas de alguma maneira eu já não sentia mais tanto medo. A cidade como meu pai havia escrito tinha perídios muito altos. Trânsito pesado e muita gente andando pelas ruas. Ao contrario do clima de Campinas São Paulo estava frio. Caia a tão famosa garoa descrita pelo meu pai nas cartas. Eu estava calado e quieto no banco de trás do táxi quando o carro parou em frente a um sobradão antigo de fachada amarela e portões verdes. Logo me dei conta que havíamos chegado. — É aqui. Rua dos Ingleses setenta e quatro. — disse o bom homem. 46


Grão Vizir Paguei e me despedi. O motorista ao entregar minha mala que até então estava no compartimento das bagagens me desejou boa sorte e eu agradeci. Quando o carro se afastou fiquei parado diante da casa durante algum tempo. Minhas pernas estavam bambas. Por quanto tempo elas ainda agüentariam o peso do meu corpo? Continuei parado. Tive medo de entrar. Será que encontraria meu pai ali dentro? Qual seria a sua reação ao me ver? Precisei conter o impulso de dar meia volta e sumir dali naquele momento, mas ao mesmo tempo sentia que não dava mais para voltar atrás. Não sei exatamente qual a reação queria que meu pai tivesse ao me ver. Eu estava cheio de sentimentos confusos.Eu queria poder abraça-lo e ao mesmo tempo queria matar.Jogar na sua cara a morte da minha mãe.Fiquei uma meia hora parado no mesmo lugar.Algumas crianças brincavam na calçada.Uma menina com cabelos loiros e uma boneca encardida nas mãos sorriu para mim.Ela me perguntou alguma coisa mas eu não entendi.Só depois que de muitos dias foi que descobri o que ela me perguntou: — Não vai entrar? Como eu não respondi, ela me puxou pelo braço já que minhas mãos estavam ocupadas com a bagagem. Fomos entrando devagarzinho. Era uma sala grande com sofás e poltronas espalhados estrategicamente no ambiente. Ao fundo avistei um balcão de recepção. Havia uma senhora de cabelos grisalhos. A pequena menina continuava a me puxar. A cada passo que eu dava meu coração disparava dentro do peito. Ao me aproximar do balcão a senhora sorriu para mim. — Posso ajudar? — Não falo português. — respondi. — Ah! É italiano? — Sim — respondi. — Não se preocupe. Sou Brasileira, mas já hospedei tantos italianos aqui, que fui obrigada a aprender um pouco do idioma. Basta você falar com calma que eu entenderei e vice-versa; Entendeu? — Entendi. — respondi. Após um profundo suspiro continuei. — Eu procuro meu pai. — respondi. — Antes de qualquer coisa, como é o seu nome rapaz? — Ferdinando. — respondi. — Ferdinando. Bonito nome. — Obrigado. — respondi. — Você está procurando seu pai? Qual o nome dele? — perguntou a paciente senhora. — Giuseppe Vetorazzi. Ele esteve hospedado aqui a mais ou menos dez anos. Será que a senhora o conhece? Ela ficou com um ar surpreso e calou-se. Logo em seguida chamou a menina que me levara até ela. — Martina, vá chamar seu avô lá na cozinha! A menina entrou correndo por uma porta lateral. Um senhor baixo e barrigudo aproximou-se. Era calvo e os poucos cabelos que restavam eram prateados como os da senhora que em atendia. — Esse é meu marido João. — a mulher informou.

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Patrícia Franconere — O que foi? — ele perguntou a mulher. — Esse moço veio da Itália. — informou a senhora. Logo depois se dirigiu a mim. —De onde mesmo meu filho? — Crotone. Vim d Província de Crotone na Calábria. — respondi apreensivo. — Ele disse que é filho do de Giuseppe Vetorazzi. — Informou. O homem arregalou os olhos surpreso. — Mas como filho do Giuseppe? — ele perguntou num tom de voz elevado. — Você tem certeza do que está falando meu rapaz? Fiquei olhando para o homem. Não entendi o que ele havia perguntado. — Vou perguntar devagar para você entender. Você tem certeza de que é filho do Giuseppe Vetorazzi? — Sim respondi. — O senhor o conhece? Marido e mulher entreolharam-se. Atitude suspeita pensei. Antes que pudesse me perguntar mais alguma coisa, entreguei meu passaporte Italiano para confirmar o que eu dizia. Eles analisaram atentamente o documento. Percebi que estavam boquiabertos e minha aflição só aumentava. — O senhor o conhece? — Perguntei novamente. O homem coçou a cabeça. — Você pode aguardar um pouco meu rapaz? — perguntou-me o senhor. Eu respondi que sim com o balançar da cabeça. Os dois saíram pela mesma porta lateral. Fiquei apreensivo. O pouco deles durou no mínimo meia hora. Durante esse tempo andei de lá para cá pela sala. Nas paredes havia fotos antigas de família. Nas janelas havia cortinas de renda e estavam abertas por onde entrava claridade já que não havia nenhuma luz acesa. Talvez esteja no fim a minha busca obsessiva pela verdade, pensei Eu havia andado quilômetros dentro da sala quando o casal voltou. A senhora carregava consigo um livro grande nas mãos. — Você deve estar cansado meu jovem rapaz. — disse a senhora. — Venha aqui se sentar um pouco. — ela me apontou um sofá de estampas florais com almofadas de crochê. Pedi que ela se sentasse primeiro, logo depois me sentei. O senhor sentou-se numa poltrona de napa vermelha ao lado do sofá. — Meu nome é Catarina. Eu e meu marido João somos proprietários da pensão há mais de vinte anos. — Então quer dizer que vocês conhecem meu pai? — perguntei ansioso. — Sim. Nós o conhecemos. Ele se hospedou aqui há mais ou menos uns dez anos. — É esse tempo que ele saiu da Calábria. Ele estava morando aqui com o Pedro. Irmão do seu Pepe e da dona Amparo. — Me lembro do Pedro. Bom homem aquele. Pena que ele tenha falecido. Você sabe que ele faleceu não sabe? — perguntou-me a dona Catarina. Percebi que ela ficou preocupada por ter me revelado algo que eu não sabia. — Sim. Soube disso há algum tempo. — respondi. Vi o alivio nos olhos da senhora no mesmo instante. Nesse momento ela abriu o tal livro em uma página qualquer. Era o livro de entrada dos hóspedes. — Olhe, aqui tem a assinatura do seu pai. — ela me mostrou apontando com o dedo para uma das linhas

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Grão Vizir Ao verificar notei que era realmente a caligrafia de meu pai. Apesar mal ter freqüentado a escola ele tinha uma caligrafia uniforme e arredondada fácil de ler. Diferente da minha que nunca passou de garranchos. — É dele mesmo. — respondi apreensivo. — Você nos disse que é filho do Giuseppe. Você tem irmãos? — perguntou o seu João. — Não. Sou filho único. — E sua mãe onde ela está? Ela não veio com você? — perguntou a dona Catarina. Fiquei pensando com meus fieis botões. Quem deveria fazer as perguntas não seria eu? — mas respondi apesar de estar me aborrecendo com tantos rodeios. — Minha mãe faleceu há cerca de dois meses. — a mulher pegou minhas mãos carinhosamente. E instintivamente eu as afastei. — Meu pobre rapaz. Sinto muito por sua perda. Como foi que ela morreu? Contei a verdade. Claro que omiti o fato de estar na cama com a inimiga da minha mãe na hora da tragédia, afinal ninguém mais precisava saber dessa minha falha de caráter. — Jesus! Como esse pobre rapaz deve ter sofrido! — exclamou a dona Catarina. Logo a pós dizer que sentia muito e que estava comovida com a minha história ela me fez mais perguntas. Desta vez percebi que ela se cercava de cautela, mas mesmo assim prosseguiu. — Sua mãe teve um breve romance com seu pai daí nasceu você? — perguntou à senhora. Que pergunta idiotia foi aquela? Pensei irado. — Como? Minha mãe? — eu não estava entendendo a onde à mulher pretendia chegar. Mas continuei. — Minha mãe não era nenhuma vagabunda minha senhora, ela e meu pai eram casados! Nesse momento percebi que o casal estava nitidamente desconcertado. — Desculpe meu filho, mas é que seu pai se hospedou nessa pensão como solteiro! — Não acredito! — eu disse decepcionado. — Ele não foi capaz de uma sordidez dessas. — Não se exaspere meu filho. — disse do Catarina numa tentativa em vão de me acalmar. Seu João saiu da sala por um breve momento. Voltou depois com uma caixa de madeira nas mãos. Ao abri-la retirou de dentro um cartão amarelado. — Olhe meu filho. Esta é a ficha que seu pai preencheu no dia em que deu entrada aqui na pensão. Peguei o tal documentos nas mãos e vi com meus próprios olhos que o casal estava dizendo a verdade. O velho tinha se instalado como solteiro. Nesse momento uma imagem passou na minha mente. Vi meu pai numa mesa de bar bebendo vinho e cercado de muitas mulheres Brasileiras. — O que meu pai contou quando chegou aqui? — perguntei. — nesse momento eu já estava de pé. Minha paciência já tinha se esgotado para eu permanecer sentado. — Ele nos disse que era um homem solteiro, que nunca havia se casado e não tinha família na Itália. — Que descarado! — esbravejei. — E o seu Pedro não desmentiu? — Não. Ele nunca disse nada. Sentei-me novamente. — Não me surpreendo com isso. É a cara do meu pai fazer esse tipo de coisa. — admiti. 49


Patrícia Franconere — Sinto muito. Nós não podíamos adivinhar... — disse o seu João na tentativa de se desculpar. Mas eles não tinham culpa mesmo. — Mas qual o verdadeiro motivo que trouxe o seu pai para o Brasil já que pelo visto ele mentiu. — Ele estava desempregado há algum tempo. Para ser sincero ele não gostava de pegar no batente. Desempregado era a verdadeira profissão dele. Mas a desculpa que ele nos dava era a seguinte: O país estava em crise. Emprego se tornara difícil principalmente no vilarejo onde morávamos. Então ele tentaria a vida em um novo país. Diziam que no Brasil estavam contratando mão de obra italiana há muitos anos e quem vinha para cá conseguia enriquecer.Essa foi a desculpa. — Vocês nunca mais tiveram notícias do seu pai? — perguntou sue João. — Ele nos enviou algumas cartas e dinheiro durante algum tempo, mas depois parou. Mas estávamos certos de que ele voltaria um dia para Itália ou nos enviaria passagens para virmos para cá. Porém ele nunca nos deixou um endereço. Os anos foram passando e ele nunca mais deu notícias. Minha mãe ficou muito doente com seu desaparecimento. Ela nunca mais foi à mesma. Tornou-se um zumbi do dia para noite e permaneceu nesse estado durante anos. Decidi procurar por ele aqui no Brasil só depois de sua morte.Não tenho mais ninguém na Calábria.Estou sozinho nesse mundo. — Santo Deus! Como você deve ter sofrido! — disse dona Catarina. Desta vez percebi que ela queria me tocar novamente, mas se conteve. Acho que ela percebeu que eu não era adepto ao toque. — E como você conseguiu esse endereço? — continuou a mulher interessada. — Só descobri o endereço desta pensão porque a irmã do seu Pepe encontrou uma carta antiga com o remetente. Essa era a única pista que eu tinha do meu pai. Agora estou aqui, diante de vocês na expectativa de obter alguma resposta. — Meu filho, você deve estar cansado da viajem. Acho melhor acomoda-lo primeiro em um dos quartos. Você não tem outro lugar para ficar tem? — Não. — respondi. — Pretendia me hospedar aqui mesmo caso não encontrasse meu pai. — Então vou preparar um quarto para você. — decidiu à senhora por conta própria. Logo em seguida voltou-se para o marido. — João queira por gentileza levar o nosso hóspede lá para cima. Acomode-o no quarto ao lado do quarto do seu Giácomo e mostre o banheiro no corredor para que ele possa se banhar. Eu vou pedir a Maria que prepare algo para ele comer. Após uma reflexão sumária, percebi que o casal queria ganhar tempo. O que haveria acontecido com meu pai? E porque tanta demora em me dizer a verdade. Senti que estavam protelando com a resposta, mas a troco de que? Apesar de tudo, permiti que me levassem até o quarto. Eu estava cansado demais, precisava repousar nem que fosse por meia hora para colocar as idéias em ordem. Sendo assim permiti que eles continuassem com a manutenção do suspense por mais algum tempo.

16 Tomei um banho demorado no pequeno banheiro revestido por porcelanas portuguesas. Dormi por mais de quatro horas sem ser interrompido. Tive sonhos confusos e perturbadores. Acordei abruptamente. Ouvi um burburinho que vinha do andar debaixo. Olhei no meu relógio de pulso.

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Grão Vizir Eram seis horas da tarde e o cheiro de comida caseira entrava por minhas narinas despertando-me não apenas do sono, mas também a fome. Levantei e lavei meu rosto numa pequena pia que ficava no quarto ao lado da janela. O quarto era pequeno com duas camas de solteiro em madeira escura, uma cadeira estofada e um armário embutido de duas portas. Olhei pela janela. Vi vários edifícios e muitas casas antigas.Muitos carros passavam pela rua e os pedestres pareciam loucos num vai e vem frenético.Era o oposto de Crotone.Saí do quarto e desci lentamente as escadas.Estava na hora da verdade.Eu precisava de respostas.Tinha que descobrir onde meu pai estava.Precisava acertar minhas contas com ele.Ao chegar na metade dos degraus percebi que havia algumas pessoas conversando na sala.Tive vontade de voltar para o quarto mas continuei. — Nosso mais novo hospede acordou! — disse a pequena menina de cabelos louros. Ela continuava com a estranha boneca encardida nas mãos. Desci timidamente. Não gostava de ter pessoas me observando. — Vó o moço bonito acordou! — disse a menina matraca. — Você deve estar com fome. — disse dona Catarina ao pé da escada. Eu sorri mesmo sem vontade. Ela me levou até a cozinha. — O jantar já foi servido há algum tempo. Mas eu não quis acordá-lo. — disse a boa senhora enquanto puxava uma cadeira a cabeceira mesa para que eu me sentasse. — preparo seu prato em um minuto. Senti meu estomago roncar. — Não sei o que você está acostumado a comer, mas a comida que eu sirvo aqui é bem Brasileira. Eu não falava português, mas conseguia entender o que a mulher me dizia, pois ela fazia o uso de mímicas para se fazer compreender. Ela foi colocando travessas e mais travessas sobre a mesa. — Hoje é quarta feira. Dia de feijoada. Você vai experimentar um prato típico Brasileiro. — Meu pai comentou nas cartas dessa tal de feijoada. — Ele gostava muito. — ela revelou sem se estender. Eu me servi de tudo que havia na mesa: feijoada, arroz, couve, torresmo e um ovo estrelado que ela acabara de fritar por cima. Obrigado meu Deus por essa deliciosa refeição! a boca.

— pensei assim que levei a primeira garfada

— Espero que goste! — disse a dona Catarina. Logo em seguida sentou-se a minha direita e ficou me observando. — Está boa? — ela me perguntou. — Para quem passou boa parte da vida tomando sopa de cabeça de peixe essa é uma iguaria dos Deuses. — revelei com um meio sorriso no canto dos lábios. —Você não se parece com seu pai. — concluiu a senhora. — Você é muito bonito. Tem uma elegância natural, fala pouco. O oposto dele. Que novidade! Pensei. Assim que terminei de comer afastei o meu prato. — Quer mais alguma coisa?

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Patrícia Franconere — Não obrigado. Estou satisfeito. Acho até que cometi o pecado da gula. Apesar de ter renunciado a Deus tinha alguns costumes que eram difíceis de esquecer de uma hora para outra. Mas era para mim apenas uma questão de tempo. — Cadê o seu João? — perguntei. — Ele foi até o mercadão do Parque Dom Pedro e ainda não voltou. Deve ter ficado conversando com os amigos em algum lugar. A senhora me serviu a sobremesa. — Romeu e Julieta. — ela disse. Enquanto eu me deliciava com a iguaria jogamos conversa fora. Uma das empregadas da pensão estava sentada assistindo televisão. A dona Catarina pediu que ela saísse para que tivéssemos um pouco de privacidade e pediu que ela impedisse que qualquer outra pessoa entrasse naquele local. Senti naquele momento que a revelação não tardaria. E foi o que aconteceu. — Como dissemos à tarde, seu pai se registrou aqui na pensão como solteiro, e foi como solteiro que ele levou a vida aqui. Ele era um homem bom. Pagava as contas em dia, não era arruaceiro. Era trabalhador. Não acreditei quando ela disse trabalhador, mas enfim... — Não tínhamos porque desconfiar dele. No mesmo ano em que ele se hospedou aqui ele conheceu uma mulher chamada Concetta. Apesar do nome italiano era Brasileira daqui de São Paulo. Seus pais eram imigrantes de Nápoles dizia seu pai. Ela trabalhava como operária na mesma marcenaria em que seu pai trabalhava. A única coisa que sei dela é que ela morava com uma amiga numa casinha no bairro do Brás. — Eu não acredito que meu pai tenha feito uma safadeza desta com minha mãe! — Calma meu filho. Estou te contando, mas quero que você tenha calma. Isto aconteceu há dez anos atrás. _Mas influenciou até agora na minha vida. Onde ele está? Por onde aquele maldito anda! — perguntei irado. — Ele mora aqui perto? — continuei. — Não. Ele mora no bairro da Mooca. — A senhora tem o endereço dele? Eu quero falar com aquele amaldiçoado agora! — Não se precipite. Já está tarde. Amanhã eu lhe dou o endereço. Mas você tem que me prometer que não vai fazer nenhuma besteira. — Eu não vou fazer nenhuma besteira. Só quero poder olhar para ele e perguntar: Por quê? — Meu filho, existe coisas na vida que não tem respostas. Fui para meu quarto que ficava na parte frontal da casa que dava para rua. Fiquei durante muito tempo debruçado no parapeito da janela olhando para a rua. Fazia frio e continuava a garoa. O céu estava encoberto de nuvens e sem estrelas. Eu fumava um cigarro atrás do outro e tentava atirar as bitucas na calçada para não caírem no pequeno jardim que ficava abaixo da janela. Passava das dez horas da noite, mas ainda havia muito movimento de carros e de pedestres na rua. Meu pensamento estava distante. Apesar de ter acabado de chegar ao Brasil já sentia falta de Crotone. Lágrimas rolaram em meu rosto quando me lembrei de minha mãe. Eu conseguia ouvir sua voz perfeitamente. “Ferdinando! Cadê você seu impiastro?” Como eu queria poder voltar no tempo, ser criança novamente e poder desfrutar mais da sua companhia. Por quantas agruras minha mãe passou nessa vida. Que vida desgraçada ela levou ao

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Grão Vizir lado do meu pai. Sem dinheiro, sem amor. Uma vida de doação. Ela se preocupava tanto comigo e com meu pai que acabou se esquecendo de si mesma. Por que não me tornei mais seu companheiro depois que meu pai foi embora? Porque a dona Amparo me atraia tanto? E porque não sentia por ela o mesmo desprezo que minha mãe sentia? Se eu a odiasse como minha mãe certamente eu não estaria em seus braços na hora do terremoto e minha mãe estaria viva. Senti vontade de me atirar pela janela porque estava me sentindo tão insignificante quanto à bitucas de cigarro que eu lançava. Eu me sentia inútil e perdido. Meu pai estava casado. Não conseguia imaginar ele com outra família. Se ele tinha uma nova esposa certamente teria outros filhos. Quantos? Que tipo de mulher se uniria a um homem casado? Ou será que ela também não sabia? Do jeito que meu pai era malandro não era difícil que a tivesse enganado também. A ira se apossou de mim. Minha mãe morta e ele nos braços de outra. Sabendo ou não da situação do meu pai ela não passava de uma putanna. Continuei com vontade de me jogar, mas eu era um covarde para tanto, e mesmo que não fosse aquela altura era o suficiente para que eu quebrasse uma perna, não mais que isso. Pensei também na dona Amparo. Quis o destino que ela se envolvesse com meu pai. Mas era uma boa cristã ao seu modo. O universo conspirava contra ela, mas eu não dei a devida importância. Por que meu Deus entre tantas mulheres no mundo eu fui me aproximar dela? Naquele momento de reflexão me perguntei qual o caminho eu deveria seguir? Encontrar meu pai e culpa-lo pelo sofrimento e morte da minha mãe, fazer as pazes e viver com ele em harmonia ou largar tudo e voltar para Crotone? Ou quem sabe continuar aqui no Brasil e fazer de conta que ele nunca existiu? Eu não fazia a menor idéia de qual seria a minha reação quando estivéssemos frente a frente. Antes eu tinha a Deus para me apoiar. Naquele momento sentia-me só no universo. Por que o ser humano tem que passar por tantas aprovações? Mais uma vez me vi as voltas com as velhas Interrogações do espirito humano: Quem somos de onde viemos, porque vivemos para onde iremos.

17 O sol entrou pela janela do meu quarto.A claridade me despertou.Peguei meu relógeu que estava no criado mudo ao lado da cama.Os ponteiros marcavam sete horas.Dei um salto ,peguei a toalha de banho que estava sobre a cadeira.Ainda de pijama me dirigi ao banheiro que para meu alíveu estava desocupado.Foi um banho rápido.Quando desci encontrei dois homens tomando café na sala de refeições ao lado da cozinha.O ambiente possuia várias mesas com quatro cadeiras cada.Metade das mesas estavam forradas com toalhas xadrez vermelho e branco e aoutra metade de verde e branco.As cores da Itália.Os dois homens me cumprimentaram.Sentei-me em uma das mesas.Não demorou para que a empregada viesse me servir o café.Seu João aproximou-se. — Bom dia meu rapaz.Como foi seu primeiro dia no Brasil.Dormiu bem? — Sim obrigado. — respondi. — Que bom.è seu primeiro dia na cidade.Você tem muito para conhecer.— disse o senhor animado. — Tenho outros assuntos a resolver.— respondi. — Sei.A Catarina me disse que conversou com você. — É verdade.É por isso que me levantei cedo.Quero encontrar meu pai o mais depressa possível. — Entendo.

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Patrícia Franconere Nesse meio tempo a dona Catarina apareceu e sentou-se a minha mesa. — Esta aqui o endereço do seu pai, Ela me entregou uma folha de caderno.Eu olhei para o que estava escrito mas não pude entender. — Fica longe daqui? — perguntei. — Um pouco.— ela respondeu.Mas eu já conversei com o seu Giácomo.Ele é um de nossos hospedes.Ele é taxista e vai levar você até lá. — Sim.Eu o conheço.Nos esbarramos ontem na porta do banheiro. — Bom dia! — cumprimentou o seu Giácomo assim que entro no ambiente.O homem carregava consigo um forte sotaque italiano. Ele usava camisa branca,calça cinza e boina na cabeça.Conversamos pouco na noite antereur,mas foi o suficiente para saber que ele tinha cinquenta anos,era viúvo e veeu de Catanzaro.estava no Brasil há mais de vinte anos e morava na pensão a apenas quatro.Ele não conhecia meu pai.Nós quatro conversamos durante algum tempo.Era bom conversar com alguém no mesmo ideuma. — Então.Que time você torce lá na Itália rapaz? — perguntou seu Giácomo. — Milan.Eu torço para o Milan. — Eu também. Mas qui no Brasil eu sou corintiano. Eu torço para o Corinthians. — Já ouvi falar.— eu disse.Na realidade nunca tinha ouvido falar nesse time ,mas eu queria parecar simpático já que todos eles estavam me tratando com tanta gentileza desde a minha chegada. — Esse é um italiano fajuto.Onde já se viu? Você tinha que torcer para o Palmeiras.Para o Palestra Itália.— disse o seu João para provocar o seu Giácomo — Você não está com nada João.O timão tem a maior torcida do Brasil! — E não ganha um campeonato a séculos.O Vicente Mateus está precisando contratar novos jogadores se quiser ganhar algum título.Seu pai torce para o Palmeiras aqui no Brasil.— informoume seu João dessa vez voltado para mim. — Só por esse motivo me considero desde já um corintihiano. — E roxo! — disse o seu Giácomo entre risadas. — Não entendi. — Corinthiano roxo quer dizer fanático.Entendeu? — Sim. Agora entendi.Eu sou um corintiano roxo! — Vou te levar algum dia no Parque São Jorge para ver os treinos do timão. — Você tem que levar o rapaz para assistir os jogos no Pacaembu ou algum clássico no Morumbi.— disse seu João. — Mas claro! campeonato Brasiliro.

Eu levarei o Ferdinando para assistir todos os jogos do corintians no

Enquanto os cavalheiros polemizavam a mesa, percebi um certo desconforto da dona Catarina.Ela lançou um olhar para seu marido.Ele logo percebeu qual era a sua intenção e calou-se de imediato seguido pelo seu Giácomo.A boa senhora estava com um discurso articulado na ponta da língua.Mil e um motivos para que eu não entrasse em atrito com meu pai.Usava dos meios mais

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Grão Vizir simples até os mais complexos de persuasão.Ela só cessou a argumentação quando pedi mais detalhes a respeito da vida que meu pai estava levando. — Você tem que saber pela boca dele meu filho.O que eu podia dizer eu já disse. Era dez e meia da manha quando saí com seu Gíacomo.Entramos no seu taxi um Corcel branco do ano e fomos para Mooca.Ele informou que o bairro ficava na zona leste e que não era muito longe,mas fora de mão.Demoramos cerca de meia hora.Ele entrou com o carro numa vila de casas todas parecidas e parou na esquina.Ficamos atentos para os números. — É aquela casa verde com ameixeira no jardim.— apontou o seu Giacomo. Fiquei durante algum tempo olhando para casa.Senti frio na barriga,mas eu tinha que ser forte e enfrentar o que estava por vir. — Presiso trabalhar agora rapaz.Boa sorte. Desci do carro.Por um momento pensei que iria desfalecer na calçada,mas ergui a cabeça respirei fundo e caminhei lentamente até o portão da casa.Havia algumas crianças brincando na rua e umas senhoras conversando enquanto limpavam a calçada.Parei diante do portão.Não tive coragem de bater palmas.Espiei por uma das janelas e percebi movimento dentro da casa.Meu coração disparou,o suor corria pelo meu rosto e as pernas tremiam.Eu estava tão apriseunado pelos meus sentimentos que não percebi que alguém puxava minha camisa. — Moço,o senhor quer falar com alguém? — ao olhar para baixo ví um menino de cabelos negros e olhos verdes.Ele deveria ter uns dez anos. — Como? Não entendi.— respondi. — Quer falar com meu pai ou minha mãe? — respondeu o menino desta vez no meu idioma. — Você fala italiano? — perguntei. — Só um pouco. Meu pai é italiano. — E como é o nome de teu pai? — perguntei com o coração saltando pela boca. — Giuseppe. Não sei dizer o que senti naquele momento.Eu estava diante de um meio irmão.Ví o mundo rodopiar bem diante dos meus olhos.Uma parte de mim estava alí naquele lugar desconhecido.Fiz força para não cair.Eu tinha que ser forte.Eu não tinha porque ter medo.Não fui eu quem errei.Tinha que enfrentar os obstáculos que a vida me apresentava. — É com seu pai que eu quero falar.Ele está? — Não.Ele está na padaria.Ele foi comprar frango assado para o almoço.Hoje é sábado e a gente sempre come frango assado no sábado! Frango assado? No meu tempo era cabeça de peixe de segunda a segunda.Pensei. — E a sua mãe está? — Sim.Ela está lavando roupa. — Posso falar com ela? — Claro.Pera aí um pouco. O menino abriu o portão e deu um grito de onde estava. — Mãe! Tem um moço aqui querendo falar com a senhora ou com o pai!

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Patrícia Franconere Uma senhora de cabelos grisálios apareceu no portão enquanto enxugava as mãos no avental.Seus cabelos estavão presos num coque mal feito.Por baixo do avental ela usava um vestido florido e calçava chinelos de couro com meias pretas.O portão estava aberto. — O que o senhor quer moço? — perguntou a mulher sem nenhum traço de simpatia. — Estou procurando o seu Giuseppe. — Ele não está.Saiu. Nesse meio tempo mais duas crianças se colocaram ao lado dela.Um menino parecido com o primeiro,porém menor e uma linda menina de tranças loiras que aparentava ter seis ou sete anos. — Quem é você? É mais um dos amigos italianos vagabundo do meu marido? Naquele momento descobri que senti antipatia a primeira vista por aquela mulher.Eu podia inventar um monte de desculpas para poder dizer, mas resolvi contar a verdade.Se ela já sabia da verdade? Ótimo.Caso contrário, saberia alí na hora por mim. — Sou italiano sim.Mas não sou nenhum vagabundo.Meu nome é Ferdinando Fracadori Vetorazzi e sou filho dele. A mulher quase teve um ataque do coração.Instintivamente ela tentou fechar o portão.Avancei meu corpo de encontro ao portão de ferro e a impedi que fechasse. — Vão para dentro crianças! — ela disse baixinho. — O que você quer com meu marido? — ela perguntou aos sussurros. — Vim para falar com ele. — Ele não está.Esqueça que ele existe! Quem era aquela mulher para dizer aquilo para mim? Senti vontade de lhe dar uns bons tapas.Mas felizmente ou infelizmente nesse caso eu não tinha puxado o gêneu agressivo do meu pai.Sorte dela. — Escute aqui dona.Eu vim de muito longe para falar com ele e vou falar queira a senhora ou não! — dise num tom elevado de voz. As crianças ainda não haviam entrado.Estavam curiosas demais para saber quem era o homem que procurava pelo pai.Ao notar meu tom ameaçador a pequena menina de tranças se pôs a chorar. — Olhe o que você está provocando! — Quem está provocando é a senhora.Quero simplismente falar com meu pai.Tenho esse direito. — Quem é o pai dele mãe? E porque ele tá brigando assim com a senhora? — perguntou a docê menina entre lágriamas.As criaças não entendiam nada. — Já mandei vocês entrarem! — gritou a senhora visivelmente irritada. As crianças entraram correndo.O mais velho continuou postado ao lado da mãe como se estivesse alí para defende-la. — Entra Doménico! — vociferou a mãe. — Mas mãe! A mulher olhou ameaçadoramente para o filho que entendeu na hora que era para sumir dalí.E foi o que ele fez.Depois ela deu uma olhada rápida para a rua.Cumprimentou sem graça duas vizinhas que estavam próximas com um aceno de cabeça,logo voltou sua atenção para mim.

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Grão Vizir — Eu não quero escandalos aqui na minha porta.Ninguém aqui na vizinhança sabe que não sou casada com seu pai e muito menos que ele tem um filho.— disse a mulher bem baixinho para que ninguém pudesse ouvir. — Então deixe-me entrar.— sugerí.

18 As crianças pareciam brotar da casa.Além da menina e dos dois meninos que conheci do lado de fora, mais dois homenzinhos apareceram na sala e se posicionaram ao lado da mãe que a essas alturas estava de pé escorada no batente da porta da pequena sala de visitas.Certamente eram meus irmãos.Contei cinco ao todo. — Domênico,vá até a padaria e traga o seu pai. — Tá bom mãe! — disse o menino ao sair ligeiro. — Vê se não corre! Mas vá depressa! Lembrei-me com saudade da minha infância.Mesmo do outro lado do mundo e em outras épocas as mães são sempre iguais(que me perdoe minha santa mãe por compara-la com aquele diabo). O meninino Domênico saiu sem pestanejar.Notei a incrível a semelhança entre nós dois. — Espero que sua mãe não tenha vindo junto com você.Era só o que me faltava ter que aturar a outra aqui na minha casa! — Outra? — perguntei ofendido.— Acho que a outra aqui é a senhora. — O que você está pretendendo aqui? Acabar com nosso sossego? Veio de tão longe para nos infernizar a vida? Seu pai tem uma outra vida,outra família.Você não tinha que estar aqui.Como conseguiu nosso endereço. A mulher não fechava a maldita boca.Sequer ofereceu para que eu me sentasse.Eu via sua boca se articular mas não conseguia ouvir suas palavras.Certamente um mecanismo de defesa do cérebro para não ser atingido por palavras sem nexo.Enquanto a matraca velha gesticulava e lançava seu veneno,eu observava aquelas crianças ao seu lado.Todos assustados pendurados literalmente na barra da saia da mãe.Todos me observavam calados,cureusos mas com o semblante fechado.Pequenos abutres me rondando.A única que parecia não fazer parte do bando era a pequena menina de tranças.Essa me recepceunava a todo instante com um sorriso caloroso.Num determinado momento a menina puxou a barra da saia da mãe. — É verdade que ele é nosso irmão mãe? — Vão lá para dentro você todos.— ordenou a mulher impaciente. — Mas mãe.Se ele é meu irmão eu quero ficar! — disse a menina. Outro menino de cabelos loiros pegou na pequena mão da menina. — Vamo lá pra dentro.A mãe não quer a gente aqui.Obedece menina teimosa! Isso mesmo Dalmázio.Leve seus irmãos para o quarto. — Mas mãe eu quero ficar.— disse a menina aborrecida. — Vão para o quarto que eu tô mandando.E não quero ouvir um pio! — oerdenou a cascavel. As crianças sairam da sala.A doce menina saiu chorando amparada pelos irmãos.

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Patrícia Franconere A concubina,amázia,amante do meu pai ou sei lá que adjetivo ela tenha continuou a tagarelar. Por que será que esse diabo não morde a língua? Pensei. Minha cabeça estava a mil.Na minha mente visualizei várias cenas de como poderia ser meu encontro com meu pai.Numa delas ele corria até mim e me dava um abraço apertado.Aquele que ele nunca deu.Em outro,via ele se debulhando em lágrimas me pedindo perdão arrependido por tudo que fez.Eu queria do fundo do meu coração que ele estivesse arrependido de ter abandonado eu e minha mãe.Eu achava isso possível vendo o jeito da sua amazia.Que mulher irritante ela era! Se ele me pedisse perdão eu o perdoaria.Acho que no fundo eu estava lá para isso.Para dizer: “Pai,eu te perdoo”. A sala era pequena pintada em tons pasteis.Havia duas portas que eram pintadas de verde.Uma delas a porta de entrada e outra provavelmente dava acesso aos outros comodos da casa.Uma cortina de renda branca cobria janela.Tinha um sofá e duas poltronas de napa marrom,uma estante com uma televisão preto e branco(sei que era preto e branco porque ela estava ligada num programa chamado “Almoço com as Estrelas”)e no centro da sala havia uma pequena mesa com um vaso de flores artificiais sobre uma toalha de crochê branca. Eu observava tudo atentamente.Aquele era sem dúvidas um ambiente familiar.Ouví a panela de pressão que começava a apitar.Era a mulher falando e a panela apitando.Eu não sabia o que me irritava mais,pensei no som do meu violino. Fui interrompido dos meus devaneeus com o abrir repentino da porta.Alí parado estava meu pai com olhar atónito.Ele estava difernte.Mais velho eu diria.Ele já não possuia mais a calvice de antes.Estava praticamente careca.Os poucos cabelos grisalhos que lhe restaram se refugiavam estrategicamente atrás das orelhas.Achei que suas orelhas e seu nariz estavam maeur e ele menor.Sim,ele estava menor.Menor do que eu.Já não era mais o gigante que impunha medo.Sua pele branca estava coberta por manchas esbranquiçadas e por pintas marrons.Sua barba como sempre estava por fazer. — Mas o que está fazendo aqui este impiastro? — disse meu pai gesticulando com uma das mãos,já que a outra estava ocupada com a sacola do frango assado(que por sinal estava cheirando tão bem que quase me desconntrou). — Não faço a menor idéia.— disse a tal da Concetta enquanto retirava a sacola plástica com o frango das mãos do meu pai. Essa foi a minha recepção.Sem abraços calorosos,sem lágrimas,sem pedidos de perdão. — Como foi que você me encontrou qui? Não me lembro de ter dado o endereço? — cadê tua mãe? Ela veio com você para me infernizar a vida? O quê? Depois de tantos anos afastado era daquela maneira que ele me recebia? Que maneira suja de se referia a minha mãe! — Não pai.A minha mãe não veio qui comigo pelo simples fato de ela estar morta! — Como morta? — perguntou meu pai surpreso. — Ela morreu a mais de dois meses. — Mas como morreu? Morreu de quê? — Num terremoto em Crotone.— respondi ríspido. — Deve ser aquele que passou no noticiareu da televisão.— disse a velha rabugenta.

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Grão Vizir Meu pai sentou-se no sofá.Parecia ter ficado abalado com a notícia.O menino Domênico havia entrado na sala assim que meu pai entrou,mas pernmaneceu calado ao lado da porta assintindo a tudo.Acho que ele não queria que notassem sua presença caso contrário a jararaca poderia mandar ele ir para o quarto com os irmãos. — Deus Santo! Eu não pensei que tivesse acontecido algo com vocês.Sinto muito. — Sente mesmo pai? — perguntei cheio de coragem. — Ma é claro caspeta! O que você pensa que eu sou? Um insensível.Pensei. Narrei toda história trágica ao meu pai sentado em uma das poltronas.Nesse meio tempo a bruxa velha alternava entre temperar o feijão na cozinha e ouvir a nossa conversa na sala.Vira e mexe eu ouvia as crianças cochichando atrás da porta.Estavam ouvindo tudo, disso eu tinha certeza.A amazia do meu pai,sentou-se ao seu lado no sofá e ficou me encarando certamente na intenção de me intimidar.Mas eu fiz de conta que não era comigo.Meu pai perguntou como eu havia consegido dinheiro para a viagem.Claro que omiti que tinha sido dinheira da dona Amparo.Inventei um amigo fictíceu e ele engoliu como pato. — Mas no que você está trabalhando? — pernguntou a velha intrometida. — No momento não estou trabalhando.Cheguei ontem ao Brasil não tive tempo de procurar trabalho. Ela e meu pai entreolharam-se. — Então quer dizer que você está sem dinheiro? Você veeu aqui para pedir dinheiro para o seu pai? — Não minha senhora.Eu não vim atrás do dinheiro do meu pai.Eu vim qui atrás dele! queria saber se le estava vivo ou morto!

Eu

Fiquei pensando.Por que meu pai não mandava aquela velha calar a boca? Se fosse minha mãe por muito menos já teria levado uns safanões. — Sei...Sei...Mas o que você fazia na Itália para se sustentar e sustentar a tua mãe? — Eu era alfaiate. — revelei reticente. Eu sabia o que meu pai pensava deste tipo de profissão. — O que? — perguntou meu pai incredulo.Alfaiate? Ma isso é coisa de bicha! Tive vontade de me levantar e sair daquela casa naquele instante.Mas me contive. — Foi o que consegui meu pai.Quando o senhor nos abandonou minha mãe ficou doente e eu tive que trabalhar para ajudar.Entre outras trabalhos que tive esse foi o que pagava melhor.E devo ao seu Gregório que me deu a oportunidade na sua alfaiataria.E se ser alfaiate é coisa de finócheu seu amigo Gregório também é._respondi malcriado. — Não é isso que estou falando.Mas você poderi ter sido marcineiro como teu padre,pedreiro ou coisa assim... — Ser alfaiate é um trabalho honrrado como qualquer outro seu Giuseppe. — Eu sei.Mas o que você pretende fazer agora? Vai voltar para a Italia? — Não pai.Eu resolvi ficar qui no Brasil.Não tenho ninguém na Itália. — Mas aqui você não pode ficar! — disse a abelhuda velha.— A casa é pequena para tanta gente.Não cabe mais nenhuma pessoa aqui.Seu pai também não é rico.Temos cinco filhos para criar.Essa casa ajudei a comprar com emu dinheiro.Eu sempre trabalhei para por as coisas dentro de

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Patrícia Franconere casa.Seu pai está com problemas na coluna e não pode mais trabalhar.Eu sustento essa casa e não posso sustentar um adulto.E tem mais,como eu já disse a vizinhança não sabe que não somos casados e eu espero que continue assim! Se você está aqui atrás de dinheiro sinto informa-lo que você perdeu tempo! Incrível como há coisas que não mudam nessa vida.A preguiça do meu pai é uma delas.Antes ser um finoccheu trabalhador do que um homem preguisoso que vive sendo sustentado por mulheres! Pensei. — Como eu já disse,eu não estou atrás das coisas do meu pai,nem do dinheiro.Eu posso muito bem trabalhar e ganhar o meu. — Isso quer dizer que você não pretende ficar nessa casa? — perguntou a mulher. — Claro que não.Não se preocupe.Eu não vim para atrapalhar a sua vidinha,muito menos para revelar seus podres segredos. — Como ousa falar comigo dessa maneira? — disse a mulher nervosa voltando-se em seguida para meu pai._Você vai permitir que ele me trate assim Giuseppe? Meu pai ia dizer alguma coisa quando outro menino de cabelos ruivos entrou na sala. — Mãe.A Poliana tá com fome! — informou o menino.Ele não sabia se olhava para mãe ou se me encarava.É claro que a fome da menina era uma desculpa.Um meio de entrar na sala e ver o que estava acontecendo. A velha me olhou com insistência.Conclui que seu olhar dizia:

Você está atrapalhando a rotina da casa.Não queremos saber de você.Você é um fardo que não estamos dispostos a carrregar.Você é a prova viva do meu passado de pecados.Vá embora. Me levantei em seguida. — Preciso ir embora. — Fique para almoçar com a gente.— disse meu pai.Não sei se ele estava sendo sincero,de qualquer maneira sua ilustríssima esposa quase o fulminou com o olhar. — Não seu Giuseppe.Fica para uma próxima vez.— Era bem capaz de eu morrer sufocado, entalado com osso de frango, caso comesse da comida daquela velha. Eu já estava de pé quando meu pai chamou as outras crianças.Um a um entrou na sala.Todos com a cabeça baixa menos a menina que continuava risonha. — Este qui é o fratello mais velho de vocês.— disse meu pai para minha surpresa.A megera quase caiu para trás com tal atitude. — Mas como irmão papai? — perguntou o menino Domênico. — Mai tarde eu conto toda a história para vocês ecco? O menino balançou a cabeça afirmativo. Meu pai me apresentou um a um. — Esse é o Domênico.Ele é o mais velho.Está completando dez anos. Outro se aproximou. — Esse é o Dalmazeu e está com nove.

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Grão Vizir Mais um. Estes são o Antôneu e o Lucas que estão com sete e oito anos. A pequena menina estendeu os braços para o meu pai,e para a minha surpresa ele a colocou no colo e lhe deu um beijo afeteuso. — E essa menina linda qui ,é a Poliana.Meu maeur tesouro! — Meu irmão é muito bonito! — disse a menina enquanto meus outros irmãos continuavam carrancudos. Que afeto era esse? Onde estava escondido esse lado acolhedor do meu pai que eu não conhecia? Em certas coisas ele continuava o mesmo.Vivia encostado na mulher como fez a vida toda com minha mãe,mas seu comportamento com ela pelo que pude perceber era de carinho e afeto o contrário da minha mãe.Com ela e com as crianças ele tinha paciência.As crianças ficaram o tempo todo perturbando atrás da porta e ele não fez nada.Cadê o milho? Saí da casa mais aborrecido de quando entrei. Eu já estava no meio da rua quando meu gritou meu nome.Ele veeu correndo ao meu encontro. Percebi que ele segurava algumas notas de cruzeiros. — Tome Ferdinando.Isso é para você se virar até conseguir um emprego. — Eu não preciso do seu dinheiro pai. — Vamos,pegue! Não quero que você venha qui novamente.Os vizinhos podem estranhar um jovem por aqui.Sei que você está na pensão e é melhor que continue por lá.Não quero ter problemas com a Concetta.Você já me creuu contrangimento com as crianças que não sabiam de nada.Então é melhor você cuidar da sua vida longe daqui.Sei que é dinheiro que você quer e eu não tenho.A casa é dos meus outros filhos e da Conchetta.Você não tem direito a nada.Então não perca o seu tempo. Dei as costas para meu pai e continuei meu caminho. Mais uma vez ele pai me apunhalava pelas costas.Mas o que eu esperava afinal de contas? Tapete vermelho? Uma banda? Esse era o meu pai. Sai da casa do senhor Giuseppe com mais raiva do que quando entrei.Maldita mulher,quem ela pensava que eu era? Um interesseiro? Mulher mesquinha.Me senti o mais ordináreu dos fungos. Nunca me senti tão humilhado.Ser repugnante.O que meu pai viu nela? uma mulherzinha feia,grosseira.Ela era bem aquele tipo de mulher que envolve,incute idéias,desperta culpas.Ele estava visivelmente sendo dominado por aquela víbora.Ambos se mereciam.Eles poderiam pegar aquela casa e os pedaços de pau que utilizavam como móveis e enfiar garganta abaixo.Se eu não tinha o amor do meu pai não era dinheiro mirrado que eu iria querer.Naquele dia,decidi que precisava ganhar dinheiro.Queria mostrar para meu pai e aquela putanna velha que eu era capaz de subir na vida sozinho.Mais uma vez ouvi meu pai me chamar de bicha e eu iria mostrar que eu não era.Um dia eles iriam comer miudinho nas minhas mãos.Mas como sonhar não paga imposto continuei com meus devaneeus.Sim eram apenas devaneeus,pois como poderia eu enrriquecer num país estranho sem ter estudo.Nunca conheci uma pessoa enrriquecer sendo alfaiate.E eu era um simples alfaiate.De certa forma acabei dando razão ao meu pai.Eu poderia ter sido outra coisa,mas a vida até então só me deu isso.E era como alfaiate que eu teria que sobreviver.

19 Um mês havia se passado.Eu aproveitava a maior parte do dia para ficar na rua,sempre a procura de emprego.O meu dinheiro estava acabando e eu tinha que me virar.O pouco tempo que eu ficava na pensão era trancado dentro do meu quarto tocando meu violino ou trazendo a tona meu 61


Patrícia Franconere passado inglória.Eu vivia de lembranças amargas.Mesmo sabendo que eu estava hospedado na pensão meu pai não me procurou.Acho que foi melhor assim.As pessoas que moravam na pensão eram amistosas,alegres e hospitaleiras.Tudo era motivo para comemorações, mas eu nunca estava com espírito para festas.Não foram poucas as vezes que o pessoal da rua se reuniam na calçada para tocar samba e chorinho com alguns rapazes que tocavam na bateria da escola de samba Vai-Vai.O seu Giacomo era mestre no cavaquinho e o seu João era número um no pandeiro.Outros rapazes tocavam cuica e surdo.Sempre que o grupo tocava os vizinhos faziam uma roda emtorno deles.Algumas moças mais desinibidas sambavam alegres exibindo seus corpos esculturais.O que eles mais cantavam eram as músicas do cantor Paulinho da Veula e dos Demôneus da Garoa.Cheguei a conhecer o saudoso Adoniram Barbosa e seu amigo Ernesto em uma dessas rodas.Os italianos da comunidade também se reunião para tocar tarantella.Cheguei a tocar meu violino algumas vezes a pedido da dona Catarina.Mas isso foram raras excessões.Apesar de gostar do pessoal da pensão eu não conseguia achar graça em um monte de gente rindo e conversando ao mesmo tempo.Eu achava irritante,por esse motivo quando eu dava o “ar da graça”era coisa de dez minutos.Não mais que isso. Um certo dia,voltando de mais uma das minhas inúmeras idas a uma agência de emprego no bairro da Liberdade,acabei entrando na rua Treze de Maio.Apesar de ser paralela com a rua dos Ingleses onde ficava a pensão ainda não tinha tido a oportunidade de conhece-la.Eu caminhava lentamente pela calçada me sentindo derrotado, confuso,o pior dos mortais.Não aguentava mais ouvir a palavra não.Estava disposto a trabalhar em outro ramo caso não aparecesse logo um trabalho como alfaiate.Reparei que havia um movimento de pessoas nas ruas.Estavam montando várias barracas.Perguntei a um senhor que passava o que estava acontecendo. — É a festa da nossa Senhora da Achiropita que começa amanhã.— respondeu o homem com sotaque italiano. — Nossa senhora da Achiropita? — Sim.Festa da Igreja da Achiropita. — Mas aqui no Brasil tem igreja da Achiropita? — perguntei confuso. — Mas é claro! Você ainda não conhece a igreja rapaz? — Não.— Respondi. — Sabe,a devoção a Nossa Senhora da Achiropita acompanhou os imigrantes calabreses até aqui e criaram raizes através das novas gerações de devotos.E para nosso orgulho, no mundo só existem duas igrejas dedicadas a nossa senhora da Achiropita.Essa do Bixiga e a de Rossano. Fiquei pensando.Por que será que meu pai omitiu esse detalhe nas cartas? O homem pegou no meu braço gentilmente e me apontou uma direção. — Olhe lá.Aquela é a igreja de Nossa Senhora da Achiropita.Você está a menos de cem metros dela. Mais uma vez a imagem da minha mãe veeu preencher minha mente.Quantas vezes ela me revelou que queria conhecer a catedral em Rossano.Agradeci o bom homem e caminhei lentamente.Apesar de ter me afastado de Deus,não pude perder a oportunidade de conhecer a a igreja.Se não por mim,por minha mãe.Continuei caminhando pela calçada.Me deparei com um edifíco de arquitetura barroca.Um predeu tetangular de fachada branca coberto com uma cúpula dourada.A igreja estava aberta ao público.Hsitei ao entrar.Senti o peso de uma mão em meu ombro direito.Olhei para trás e vi a figura de um padre.Ele era de estatura mediana,calvo quase careca e usava óculos.

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Grão Vizir — Seja bem vindo meu filho! Eu simplismente sorri.Não sai do lugar. — Está procurando alguém? — perguntou o padre. — Não.— respodi. — Já conhece a nossa igreja? — Não. — É mais um italiano pelo que vejo.Chegou a pouco tempo no Brasil? — Sim padre. — Entre.Venha conhecer nossa paróquia. — Não sei se devo. — Não entre na igreja por dever,apenas se seu coração mandar. Aspirei profundamente o ar.Que mal faria se eu entrasse? Isso não queria dizer que eu havia feito as pazes com Deus.Era apenas uma cureusidade humana.O bondoso padre entrou comigo.O acompanhei no sinal da cruz.Fiquei admirado com a arquitetura e a grandeusidade da igreja. Minha mãe iria adorar se estivesse aqui.Pensei. — Fique a vontade meu filho. O padre entrou na sacristia.Eu caminhei até um dos bancos.Instintivamente me ajoelhei no genuflexório.Cruzei minhas mãos e comecei a rezar em voz baixa. Creio em Deus-Pai, todo poderoso, criador do céu e da terra e em Jesus cristo seu único filho, Nosso Senhor que foi concebido pelo poder do Espírito Santo nasceu da Virgem Maria Padeceu sob Poncio Pílatos Foi crucificado, morto e sepultado desceu... Ao perceber que estava rezando, levantei-me de imediato, limpei os joelhos da calça e me sentei no banco. Fiquei em selênico durante um bom tempo contemplando a imagem doce de Nossa Senhora da Achiropita. Senti que a emoção estava tomando conta de mim. Segurei-me o quanto pude. Fui surpreendido de súbito por uma avalanche de lágrimas infindáveis acompanhada de pensamentos que passaram a me afligir diariamente. Por que as lembranças da minha mãe não saem da minha mente e a dor da culpa não saia do meu peito? Por que o desprezo do meu pai ainda me abala tanto? O que vai se de mim neste país se eu não conseguir trabalho? Por que eu fui sair de Crotone? Que esperança estúpida achar que encontraria meu pai e ele me estenderia a mão. Ele de certo estava mais preocupado com sua nova família do que um filho que ele abandonou na miséria. Eu estava tomado por pensamentos questionadores quando senti novamente o peso de uma mão em meus ombros. Quando me virei para o lado percebi que o padre, o mesmo que encontrei na

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Patrícia Franconere entrada da igreja estava sentado ao meu lado. Ele me entregou um lenço azul para que eu pudesse secar minhas lágrimas. — Seja o que for que esteja te afligindo vai passar. — Obrigado Padre pelas palavras de conforto. Mas aqui bem a sua frente há um homem com feridas profundas. Sinto uma dor lancinante que vem da alma e ela machuca demais, Acho que essa ferida que se abriu dentro do meu peito nunca mais irá cicatrizar. — Claro que cicatriza. Deixam marcas, mas cicatrizam. Basta ter paciência e fé. — Acho que o senhor está falando com a pessoa errada padre. O homem que está diante de seus olhos já não tem mais paciência e muito menos fé. Percebi que o padre me observava atentamente. — Você quer me contar o que está acontecendo? Percebo que você não está bem. — disse o bondoso padre. — Não padre, Eu não quero falar sobre meus problemas. — Se quiser pode ser em confissão. — Não padre. Não estou pronto para falar. — Se você dividir essa dor com alguém certamente se sentirá melhor. — Padre eu não sou católico. Sou ateu. Não acredito mais em Deus. E sinceramente acho que fazer uma confissão para senhor agora não me ajudaria em nada. O padre deu um suspiro e ajeitou-se melhor no banco. — Você diz ser ateu, mas fez o sinal da cruz quando entrou na igreja. — Força do hábito. — Se é força do hábito quer dizer que você não foi sempre ateu. Estou certo? — Sim padre. — E o que fez mudar de idéia? — Não gostaria de falar a respeito disso. O padre permaneceu alguns segundos calado. Mas percebi que ele queria continuar com o interrogatório. — Por que você estava parado diante da igreja se é ateu?

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Grão Vizir — Minha mãe era devota da Nossa Senhora da Achiropita. Seu sonho sempre foi o de visitar a catedral em Rossano. Mas ela faleceu antes de realizar o seu desejo. Eu não sabia que aqui no Brasil também existia uma igreja da Achiropita. Fiquei curioso. — Faz tempo que sua mãe faleceu? _perguntou o padre. — Não. Entre uma pergunta e outra um silêncio agonizante se instalava. — Do que ela morreu? Nesse instante me levantei do banco. — Padre, preciso ir embora. Foi um prazer conhece-lo, mas acho que não nos veremos mais. — Por que está dizendo isso meu filho. — Porque freqüento mais igrejas. Só por isso. Saí de cabeça baixa. O padre me pareceu uma boa pessoa, no entanto o que eu menos queria naquele momento era estreitar laços de amizade com um sacerdote.

20 Seis meses havia se passado. Meu português estava melhorando visivelmente. Como ainda não tinha encontrado emprego eu ajudava nos trabalhos de manutenção da pensão em troca de casa e comida. Num domingo, estava à mesa eu, seu João seu Giácomo e dona Catarina almoçando quando seu Giácomo comentou: — Fui convidado para ser padrinho de casamento e não tenho um terno decente para me apresentar. — Vá até o centro que lá você encontra lojas masculinas. — informou o seu João. — Mas deve ser tudo o olho da cara! Não tenho dinheiro para gastar de bobeira. — Se eu tivesse aqui uma máquina de costura eu faria um terno para o senhor com o maior prazer. — eu disse enquanto fatiava um pedaço de bife do prato. — Faria mesmo? — Perguntou seu Giácomo. — Claro que sim. E não cobraria muito por isso. — emendei. — Mas não seja por isso. Eu tenho uma máquina de costura no meu quarto. Posso emprestar se você quiser. — disse a dona Catarina. — Eu não sabia que a senhora costurava. — disse surpreso.

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Patrícia Franconere — E não costuro mesmo. A máquina foi herança da minha mãe. Ela está lá encostada há anos. Não sei se ainda funciona, mas se funcionar poderá usá-la se quiser. — Claro que eu quero!— eu disse entusiasmado. Depois de tanto tempo, aquela era a primeira vez que eu me via empolgado com alguma coisa. Assim que terminamos de almoçar fomos para o andar superior para ver a tal da máquina. O quarto da dona Catarina era amplo e bem iluminado.A máquina estava fechada.Ao abrir o gabinete vi que se tratava de uma máquina ELGIN preta de costura reta com regulagem de ponto. Tinha a carcaça de ferro fundido e gabinete de madeira. — Então. O que você achou? — perguntou a dona Catarina para mim. — Preciso testar para saber se está em condições de uso. — respondi. — Tome. Pegue esse retalho de tecido e tente costurar. — disse o seu João. Peguei o tecido de suas mãos e sentei-me a máquina. Após colocar a linha nas bobinas iniciei o processo de costura. Com a destreza adquirida na alfaiataria do seu Gregório costurei vários retalhos até me certificar que a máquina estava boa. O ponto estava um pouco frouxo, mas bastou uma pequena regulagem para que ficasse em perfeito estado. — A máquina está ótima. Concluí. — Então você faz o terno para mim meu jovem? — Sim. Só preciso comprar o tecido. Você escolhe o que vai querer e eu compro. — Deixo tudo por sua conta. Confio no seu bom gosto. — disse o seu Giácomo para minha alegria. — Acho que nesse caso seria melhor usar Oxford, ele é fresco, barato, não amassa e dá um bom caimento. — eu disse todo animado. _Eu só não sei onde comprar os tecidos. — conclui. — Vá a Vinte e cinco de Março. — disse a dona Catarina. — Eu tenho um amigo que tem uma loja de tecidos grande com variedades e tenho certeza que ele fará um preço camarada para você. A senhora foi até a cômoda que ficava ao lado da janela e da primeira gaveta tirou um cartão. — Tome. Esse é o cartão da loja que eu falei. Peguei o cartão e li o que estava escrito: “Abdalla comercio de tecidos finos LTDA”. — Procure pelo João Abdalla. Ele é o proprietário da loja. Diga-lhe que fui eu quem o indicou. Tenho certeza que ele dará um bom desconto para você. — Obrigado. — Agradeci. — Só precisamos agora tirar a máquina daqui e leva-la para o seu quarto.

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Grão Vizir — Isso é fácil. — deduzi. Enfiei o cartão no bolso da camisa e comecei a arrastar a máquina. Em poucos minutos ela estava no meu quarto. Com a primeira parte do pagamento que o seu Giácomo fez, fui até a loja comprar o tecido. Deparei-me com uma grande loja de tecidos variados: crepe, algodão, viscose, tafetá etc. O senhor Abdalla era um senhor de cabelos grisalhos, usava óculos e era muito falante. — Venha ver meu filho os tecidos que tenho aqui! — disse o senhor Abdalla enquanto caminhava para o fundo da loja. _Aqui tem tudo o que você precisar. — Estou impressionado com o tamanho da loja. Por fora não parecia ser tão grande. — comentei enquanto o seguia. — Essa loja tem mais de sessenta anos. Era do meu pai e agora passou para mim. — Com certeza passara para seus filhos também. — conclui. — Sim, sim. Tenho dois filhos que trabalham aqui comigo. O Shihab e a minha princesa Latifah. — O senhor só tem dois filhos? — perguntei curioso. — Não. Eu tenho o Samir que é o primogênito. — Ele não trabalha com o senhor? — Não. Ele é médico. — Puxa o senhor tem um filho médico? — Tenho sim. Ele é neurologista. Ele está morando nos Estados Unidos fazendo doutorado na Universidade de Iowa. — O senhor deve se orgulhar dele não é? — Eu me orgulho de todos os meus filhos. — ele respondeu com os olhos cheios de lágrimas. Nos demos tão bem que ele viria a ser meu primeiro e único fornecedor de tecidos. Comprei para o seu Giácomo o tecido de Oxford cinza chumbo e outros aviamentos como zíper, linha, botão etc. Passei dois dias debruçados sobre a máquina, costurando o terno do seu Giácomo. O terno tinha um caimento tão perfeito que as encomendas foram chegando uma atrás da outra Meus ternos eram elegantes e ao mesmo tempo despojados. O acabamento era de primeira. Todas as peças eram forradas com tecido de poliéster. Por incrível que pareça a sorte parecia estar finalmente ao meu lado. Meu pequeno quarto já não acomodava tantos tecidos. E apesar da minha crescente popularidade, à medida que o tempo passava eu me tornava um homem ainda mais solitário. As encomendas eram tantas que eu não podia ter vida social. Se bem que vida social nunca foi mesmo o meu forte. Minha vida era só trabalho. Eu só não conseguia perder o hábito de tocar meu violino à noite. O único tempo livre que eu tinha. A pensão da dona Catarina já não era tranqüila como antes.

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Patrícia Franconere Era um entra e sai de clientes a toda hora. Eu estava me sentindo constrangido. Não queria abusar da boa vontade do casal Catarina e João, foram por esse motivo que decidi alugar um salão nas imediações para que eu e meus clientes pudéssemos ter mais privacidade e a dona Catarina sua pensão de volta. Os negócios estavam indo de vento em popa por esse motivo decidi contratar outro alfaiate já que eu sozinho não estava conseguindo dar conta de todas as encomendas. Sendo assim, decidi seguir o conselho da dona Catarina e coloquei um anuncio no jornal. Para minha surpresa, mais de vinte profissionais de candidataram a vaga. Entrevistei todos e pedi que cada um deles mostrasse para mim sua habilidade com a máquina de costura.Alguns se mostraram exímios alfaiates.Outros um verdadeiro blefe.Decidi pelo mais jovem entre eles.Seu nome era Augusto.Um jovem franzino de cabelos claros e pele branca.O rapaz tinha mãos hábeis e era tão detalhista quanto eu.Quando por algum motivo eu tinha que me ausentar ele fazia as vezes do dono com maestria. Dois anos havia se passado desde a minha chegada ao Brasil. Meu pai nunca me procurou e eu também nunca mais fui até sua casa. Numa noite, quando eu voltava do trabalho dei de cara com meu pai e minha meia irmã Poliana sentados no sofá da sala. Fiquei feliz ao vê-lo, mas como não sabia expressar minhas emoções simplesmente os cumprimentei com um aceno de cabeça. Se ele estava ali certamente é porque queria me ver.Imaginei que ele tivesse arrependido por ter me tratado tão mal na última vez que nos vimos.Mas como sempre eu estava enganado. — O que o senhor faz qui? — perguntei assim que pus os olhos nele. — Eu preciso falar com você. — disse meu pai como se fossemos as pessoas mais amigas do universo. — Pode falar. — eu disse assim que me sentei na poltrona diante dele. Meu pai estava usando uma calça cinza presa a um suspensório e uma camiseta branca de mangas curtas, enquanto minha irmã usava graciosamente um vestido colorido com flores miúdas. — Eu fiquei sabendo que seus negócios estão indo muito bem e que você está ganhando muito dinheiro. — Pelo que vejo, as notícias correm depressa por aqui. — observei. — É... Eu estive com o José na barbearia e ele me contou que você está com muitos clientes e já tem até funcionários na sua alfaiataria. — disse meu pai para se justificar. — É isso mesmo. Mas me diga. O que o senhor realmente quer? — Eu estou precisando de dinheiro e gostaria de saber se posso contar com você para me emprestar. Fiquei irado com o pedido de meu pai. — O senhor quer o que? — perguntei com toda a raiva que me era de direito. — Faz dois anos que cheguei ao Brasil, fui maltratado pelo senhor e pela sua amasia e agora o senhor vem me procurar com a maior cara de pau para me pedir dinheiro? — Eu estou muito doente. Preciso de remédios. O que a Concetta ganha não dá para molta coisa.

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Grão Vizir Permaneci olhando para a cara do meu pai durante algum tempo, porém ele não se intimidava. — O que é que o senhor tem? — perguntei como se eu não soubesse que qualquer coisa que fosse seria apenas fingimento. — Eu estou com o pulmão fraquinho. Preciso tomar remédios diariamente. — revelou meu pai após um ataque estratégico de tosse. Olhei imediatamente para o cinzeiro. Estava cheio de bitucas de cigarro Arizona. — O senhor não precisa de remédio. Precisa parar de fumar. — conclui. — Virou médico agora? — perguntou meu pai visivelmente aborrecido. — Não meu pai. Mas estou vendo o cinzeiro cheio de bitucas. E pelo que eu saiba aqui na pensão ninguém fuma essa marca vagabunda. — É a única marca que eu posso comprar. Não sou como você que fuma cigarros caros! — Mas eu não estou pedindo dinheiro para o senhor! Aliás, desde que vim para o Brasil não lhe pedi nada. — Mas você tem a obrigação de me ajudar. Sou seu pai e preciso de sua ajuda. — Engraçado. Agora o senhor se lembra que é meu pai. — Ma vai ficar fazendo sermão até quando? Se você não quer emprestar por mim, pense nos seus irmãos que podem ficar órfãos de pai se eu não me tratar! — Não seja dramático pai. Tenho certeza que você desfruta de uma saúde ainda melhor do que a minha! — Você não sabe o que está falando! — disse meu pai. Agora ele se curvava para frente para simular uma crise de tosse. Eu não era bobo, — logo conclui que o que ele queria realmente era ter boa vida as minhas custas. A pequena Poliana continuava sentada no sofá, porém não dizia nada. Vez ou outra abria um sorriso encantador que me deixava desconcertado. Infelizmente eu não conseguia retribuir o sorriso apesar de sentir afeto por ela. Na realidade eu não queria dar o dinheiro ao meu pai, mas me vi forçado a ceder, caso o contrario não me deixaria em paz. Entreguei a ele vinte cruzeiros. — Só isso? — É o que eu tenho no momento. — Ma isso não dá para nada! — O senhor quer comprar remédios ou quer que eu faça a sua despesa do mês? — Vinte cruzeiros é muito pouco.

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Patrícia Franconere — Se não quer então me devolva. — Ma eu tenho um monte de remédios para comprar! — Me passa a receita que eu mesmo compro para o senhor. Mais que depressa meu pai colocou o dinheiro no bolso traseiro da calça. Ele não era bobo de se arriscar a ficar sem ele. Era pouco, mas ainda assim era dinheiro. — Eu só vou pegar porque estou precisando muito. Não quero morrer e deixar meus filhinhos órfãos. — Órfãos como eu o senhor quer dizer? — Mas como você pode ser um órfão de pai se eu nunca morri impiastro? — Mas é como se tivesse morrido. — afirmei. — O senhor não pensou duas vezes em deixar eu e minha mãe sem dinheiro e sem rumo na vida. A pequena Poliana continuava sorrir para mim apesar das coisas duras que eu dizia ao meu pai. E mais uma vez eu me fechei. — Acho bom o senhor ir embora. Está ficando tarde para o senhor andar por aí com uma criança. — Eu me vou sim. Muito triste com sua mesquinhez. Meu pai finalmente se dignou a se levantar. — Vou embora, mas não pense que irá se ver livre de mim. Eu sou o seu pai e você tem que me ajudar. — Eu não tenho obrigação nenhuma com o senhor, muito menos com a sua nova família. Meu pai colocou na cabeça aquele antigo chapéu borsalino. Causava-me estranheza ela ainda não ter se desfeito já que era quase tão velho quanto ele. As visitas do meu pai tornaram-se freqüentes. Vi-me obrigado a todo mês lhe dar certa quantia em dinheiro para a compra de seus remédios caso contrario ele não me daria sossego. O pequeno salão que fora alugado para a alfaiataria já não comportava mais as máquinas de costura. Eu precisava ampliar a o negocio sendo assim tive que alugar um salão maior e foi o que eu fiz. Conversando com o senhor Abdalla, descobri que ele tinha um imóvel para alugar na Rua Oscar Freire. Era uma casa velha com seis cômodos espaçosos,sendo eles três dormitórios ,uma sala grande uma boa cozinha e um banheiro.A casa necessitava de reforma,ficou combinado que eu faria as reformas necessárias e ele me cobraria um preço camarada pelo aluguel.Contratei um engenheiro e uma equipe de pedreiros para dar início as obras.A reforma durou mais que o previsto e meu orçamento também foi além da conta.Tive que interromper a obra pelo meio.Dos seis cômodos da casa apenas os da frente estavam prontos.Continuei recebendo meus clientes meio que na base do improviso.Mas ninguém nunca reclamou.A minha fama de bom alfaiate ia correndo de boca em boca.Não demorou para que eu passasse a vestir empresários,advogados,médicos e homens

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Grão Vizir importantes da sociedade paulistana. A ambição tomava conta de mim cada vez mais. Senti a necessidade de voltar a estudar. Foi aí que entrei para o curso noturno de administração de Empresas do Mackenzie. Nesse ínterim, várias lojas se mostraram interessadas em vender minhas roupas. Mas achei que ainda não era o momento para fornecer-las em larga escala. Decidi então aguardar um pouco mais. Eu queria terminar meu curso universitários para poder me dedicar exclusivamente as minhas roupas. Não queria ser visto como um matuto como costumavam fazer certas pessoas.

21 Bela Vista, (São Paulo, Brasil) março de 1983. Sete anos se passaram tão rápido que nem pude perceber. Eu já não era um simples alfaiate, mas um empresário bem sucedido com título de Bacharel em administração de empresas nas mãos. Graças ao curso universitário tive noções fundamentais para expandir meus negócios. Tornei-me um empreendedor. Sendo um homem de visão decidi não mais ser apenas um alfaiate, mas ter a minha própria fábrica. Uma grife de roupas masculinas. Esse era o momento certo. Eu sabia mais ou menos por onde começar, mas preferi procurar pela ajuda de um especialista. Queria saber exatamente o que eu deveria fazer se tratando de questões legais. Foi então que decidi procurar um advogado. Numa manha de domingo, caminhando pela Rua Treze de Maio, parei diante de uma banca de jornal e comprei o Estadão. Abri o jornal no meio da rua e enquanto caminhava tentava ler os anúncios de classificados. Num determinado momento alguém me disse: — Cuidado para não atropelar os transeuntes! Olhei para ver quem era. Vi o padre Cosmo parado ao meu lado com seu habitual sorriso amistoso. — Como está padre? — perguntei enquanto fechava o jornal. — Vou bem meu filho. E você? — Bem. O padre olhou para mim atentamente. Minha impressão é de que ele me examinava minuciosamente. Sempre que isso me acontecia baixava o olhar. Não queria que ele lesse minha alma. — Minha nova batina ficou perfeita. Acho que vou encomendar mais uma. — disse o padre enquanto colocava as mãos no meu ombro. -Sabe como é né? Nesse calorão que está fazendo a gente acaba transpirando mais do que devia. Assim que passei a costurar, fui incumbido de confeccionar as batinas e todas as vestimentas dos padres da igreja da Achiropita e de todos seus coroinhas. Apesar do meu ateísmo fazia com gosto, pois havia algo no padre Cosmo que nos unia. Talvez o meu passado religioso. — Fique a vontade padre. Sabe que faço suas batinas com prazer. — Sei disso meu filho.

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Patrícia Franconere — A propósito. O senhor não vai rezar missa hoje? — perguntei. — Já celebrei a missa das seis. Agora só tem missa às nove horas. — É verdade. Eu estou perdido no tempo. — Estou vendo. O que está procurando no jornal tão cedo? — Procuro por um advogado. — Está com problemas meu filho? — Não é isso que o senhor está pensando padre. Não estou à procura de um advogado para resolver nenhum problema e sim para me trazer a solução. — Posso saber qual é? — perguntou o padre. — Quero ter a minha própria grife de roupas masculinas padre. Estou pensando em abrir uma pequena indústria de confecção. — Parabéns meu filho! Vejo que os negócios estão indo muito bem! Você está me saindo um grande empreendedor! — Fico feliz com suas palavras amáveis padre. Sei que torce por mim. — Por você e por todos os meus fiéis. Enquanto conversávamos caminhávamos lentamente. Ao avistar um bar convidei o padre para tomarmos um café. Ele aceitou de imediato. Sentamos-nos no balcão e enquanto tomávamos o café fumegante, ele sugeriu o nome de um advogado conhecido. — Conheço um advogado. Ele é freqüentador assíduo da igreja. Parece ser um bom homem. Talvez ele possa dar a orientação que você precisa. — Obrigado padre. Mas já encontrei uns aqui nos classificados. Acho que vou procurar por ele amanhã. — Tudo bem meu filho. Caso não goste dele tenho o cartão do advogado na sacristia, basta me pedir que eu entrego a você. — Pode deixar padre. Se eu precisar eu procuro pelo senhor. Na segunda feira não fui trabalhar. Deixei a alfaiataria entregue nas mãos dos meus funcionários. Quando eu não estava o Alberto resolvia tudo por mim. Eu não podia perder tempo, sendo assim queria estar bem cedo no escritório do tal advogado. Subi a rua da consolação a pé. O número era três mil e noventa e quatro quase chegando à Alameda Santos. Parei diante de um prédio antigo de dez andares. Assim que entrei o porteiro me informou que o escritório ficava no quarto andar. Subi pelo elevador. Assim que ele parou no andar desci e caminhei por um longo corredor de paredes verdes. Era um edifício comercial com várias salas distintas. Parei no número quarenta e dois. Uma bela recepcionista de cabelos longos e loiros veio ao meu encontro assim que entrei.

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Grão Vizir — Pois não. Posso ajudá-lo? — Per favor, eu gostaria de falar com o senhor Alexandre Rezende. — O senhor tem hora marcada? — ela me perguntou. A recepcionista usava uma saia preta tão justa que eu me perguntei se ela conseguia respirar dentro do modelito. Fez-me lembrar a dona Amparo. Uma pontada de nostalgia tocou meu coração. — Não. Eu não marquei hora. — respondi meio aéreo. A lembrança de dona Amparo ao mesmo tempo em que me dava a sensação de prazer me induzia a lembrança de culpa. — Preciso então consultar sua agenda para ver se consigo encaixar o senhor. — Mas é apenas uma consulta rápida. — O senhor me desculpe, mas o doutor Alexandre é muito ocupado. Ele não costuma atender sem marcar hora. Acompanhe-me, por favor. Fiquei aborrecido. Mas mesmo assim acompanhei a bela recepcionista até sua mesa. Afinal a visão dos seus quadris se movendo dentro da justa saia não era de se desperdiçar. Apesar de todos os sentimentos de culpa que afligia meu coração durante todos esses anos não me impediram de ter atração pelas mulheres. Afinal eu era um homem e não sabia viver sem uma bela mulher por perto. Sempre que meus olhos pousavam numa mulher bonita, de curvas perfeitas eu me sentia como se tivesse acabado de tomar uma garrafa de vinho. A sensação de euforia e prazer era praticamente a mesma. Durante esses anos que se passaram aqui no Brasil, engatei vários romances, porém nenhum duradouro. Eram mulheres escolhidas a dedo apenas para me divertir sexualmente, já que eu não tinha condições psicológicas para me envolver sentimentalmente com ninguém. A Imagem de família que eu tinha na minha cabeça era a minha própria. Meu pai batendo na minha mãe e em mim. E isso não evocava em mim nenhum sentimento nobre com relação ao casamento. — Tem um horário vago às onze e meia. Se o senhor quiser aguardar... Consultei o relógio. Eram nove horas da manhã. Como eu já estava lá decidi esperar, afinal eu tinha urgência. — Sim, eu aguardo. — Qual o nome do senhor? — perguntou a recepcionista enquanto se sentava. — Ferdinando Vetorazzi. — É italiano? — perguntou a moça ao reparar meu sotaque. — Sim. — respondi enquanto procurava seus seios dentro do generoso decote que ela ostentava. A moça anotou meu nome num livro e pediu que eu me dirigisse a sala de espera que ficava no final do corredor. Lamentei terrivelmente ter que me afastar daquela visão celestial, mas como não

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Patrícia Franconere tinha alternativa fiz o que ela me pediu. Enquanto eu caminhava lentamente pude perceber que havia apenas uma sala com a porta fechada. No alto estava escrito numa pequena placa de metal “Dr.Alexandre Rezende” Havia na sala de espera apenas um senhor de aparência humilde que me cumprimentou assim que entrei. O lugar era simples e cheirava mofo.As paredes apesar de estarem pintadas com um tom cinza claro não escondia o bolor que corroia parte das paredes e os móveis eram de cerejeira provavelmente de segunda mão. Havia vários bancos vazios dispostos na recepção em fileiras. Sentei-me diante da sala do tal Alexandre Resende. Havia passado meia hora desde que acomodei meu traseiro num daqueles bancos. A porta do advogado se abriu.Uma senhora de nariz empinado saiu da sala exibindo seus anéis de brilhante atarracados aos dedos e colares de pérolas que faziam voltas no pescoço gordo.Um homem de terno e gravata saiu apressado da sala e foi até a recepção falar com a recepcionista,a mesma que me atendeu.Ao se aproximar da mesa começou a falar e a gesticular como um louco. — Você não está aqui para achar nada! Eu não te pago para achar e sim fazer o seu trabalho direito. Isso é o mínimo que se espera de um profissional! — Mas seu Alexandre... — Não me trate pelo nome! Eu sou doutor e quero ser tratado como tal! — Mas doutor... — Não quero mais ouvir a sua voz por hoje! E vou avisando que mais um deslize desses eu te boto no olho da rua! Após tratar a secretária como cachorro sem dono o tal homem voltou sua atenção para a senhora gorda e pediu mil desculpas. Parecia lamber o chão que ela pisava. Logo em seguida a senhora saiu satisfeita e o tal advogado voltou para a sala e se trancou. Após cinqüenta minutos que contei no relógio ele se dignou a chamar o senhor que aguardava na sala há mais tempo que eu. O senhor não permaneceu por mais de cinco minutos dentro daquela sala. Saiu com a cabeça baixa, olhar triste e distante. Mais uma vez o advogado se trancou na sala. Confesso que tive vontade de ir embora, mas algo me impediu. Continuei ali sentado. Quando eu não estava folheando uma revista velha eu estava me movimentando no banco para ver qual a posição era menos incomoda. Mais nenhum cliente apareceu enquanto eu estava ali. Naquele dia eu descobri qual era o verdadeiro significado da expressão “largado as moscas”. Era assim que estava aquele escritório. Permaneci durante algum tempo olhando para o chão. Fiquei contando os tacos de madeira escura para passar o tempo. O piso esta precisando de uma cera. Pensei. O tal Alexandre Rezende entrou e saiu da sala várias vezes me fazendo sentir um perfeito idiota. O sujeito deveria ter no máximo uns quarenta anos, era bem apessoado e se vestia de maneira clássica. Porém reparei que calça que ele usava estava tão comprida que formava uma montanha de panos sobre o sapato.Um relaxo.Pensei. Passava do meio dia quando ele finalmente me chamou. Assim que entrei na sala ele apertou minha mão apontou uma cadeira diante da sua mesa e pediu que eu me sentasse. — Você pode aguardar alguns minutos? Já volto. Após me dizer isso ele saiu. Pesei que fosse realmente voltar logo, mas a sua saída demorou mais de meia hora. Não tendo o que fazer fiquei reparando nos detalhes do lugar. Na sala havia uma

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Grão Vizir estante de madeira que ocupava uma parede inteira. As prateleiras estavam ocupadas com livros de capa dura. Eram livros de direito com temas variados. Um mero artifício para impressionar os clientes. Pensei. A mesa do advogado tinha mais de dois metros de comprimento. Estava abarrotada de documentos e papeis espalhados. Eu estava uma pilha de nervos quando ele entrou. — Desculpe a demora. Eu estava resolvendo um pequeno problema administrativo. Sabe como é. Agente contrata empregados sem experiência por que quer ajudar depois paga por isso. Mas em que posso ajudá-lo? — perguntou-me com um ar forçadamente amistoso. Digo forçadamente porque estava na cara que ele não era amigo de ninguém. — Eu sou alfaiate, tenho minha própria alfaiataria e gostaria de ampliar meus negócios. O advogado olhou para mim com soberba enquanto acariciava o próprio queixo proeminente. — Sei... Sei...Você quer expandir seus negócios.O que seria essa expansão? Comprar uma máquina de costura a mais? Senti o tom de ironia na voz dele. O que ou quem aquele idiota estava pensando que eu era? Tenho certeza que eu ganhava mais na minha alfaiataria do que ele ganhava naquele escritório. No momento em que eu ia responder alguém bateu a porta. Era a secretária de saia justa.

22 — Eu já não falei que não quero ser interrompido quando estiver com clientes? — esbravejou o advogado após golpear a mesa com um soco. — Desculpe seu Alexandre... — Doutor! — Desculpe doutor Alexandre, mas é que a filha da dona Ivete está aqui e disse que não irá embora antes de falar com o senhor! — Diga a ela que eu não vou falar com ninguém. Estou resolvendo o caso da mãe dela, quando eu tiver resposta eu ligo. Nesse ínterim uma moça com cabelos castanhos e compridos e de aparência simplória rompeu a sala. A secretária temendo a bronca do patrão saiu de fininho. — Posso saber por que o senhor não atende mais as ligações da minha mãe? O advogado, com cara de poucos amigos, respondeu secamente. — Eu já falei para ela que estou estudando o caso. — Faz mais de cinco meses que minha mãe contratou os seus serviços e você não fez nada? Você só está enrolando a gente. Se você acha que o caso dela não tem solução então diga. Não fique bancando o advogado “fodão” porque já ficou bem claro que você não é!

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Patrícia Franconere Percebi no tom da bela moça que se simplória ela só tinha a aparência. — Eu disse que ligaria... — O seu problema é esse. Você só diz, mas não faz nada. Ficou arrotando grandeza que faz e acontece agora que não conseguiu o que prometeu fica aí se escondendo. Eu estava embevecido por aquela mulher quando ela se voltou para mim. Por um motivo estranho minhas pernas começaram a bambear. — Minha mãe foi enganada por um advogado sem escrúpulos. Por causa do tal advogado ela perdeu o direito a pensão do meu pai quando ele morreu. Isso aconteceu há dois anos e ela não têm meios de se sustentar. Está velha e cheia de problemas de saúde. Eu trabalho em uma farmácia, mas infelizmente o dinheiro que eu ganho não é suficiente para pagar as contas. Esse advogado aí... — ela apontou para o Alexandre _disse que abriria um processo contra o INPS para reaver a pensão que minha mãe tem direito, mas até agora não fez nada. Agora nos trata como se fôssemos mortos de fome.Tome cuidado com esse tipo de advogado,é bem capaz de ludibriar você também! Fiquei surpreso com a valentia da moça. Apesar de não aparentar ter mais de um metro o sessenta de altura, tornava-se gigante devido à firmeza de seu caráter. — Eu não admito isso aqui dentro da minha sala! Aqui não é mercado de peixe! E por favor, refira-se a mim como doutor, pois é isso que eu sou um doutor! Não sou uma semi-analfabeta como você, uma morta de fome. Certamente sua mãe quis dar o golpe da aposentadoria no INPS agora se faz de vítima dizendo que foi o advogado que agiu de má fé. Gente como vocês eu conheço aos montes! A bela moça desnorteada começou a chorar de raiva. Nesse momento o advogado voltou-se confiante para mim. — Está vendo só? É isso que dá a gente querer ajudar os outros. É isso que dá atender esse tipo de gente! Preciso selecionar melhores meus clientes! Levantei da cadeira abruptamente. Tive vontade de esmurrar o canalha, mas me contive em consideração a moça que estava bem a minha frente. — Você não está tendo una atitude profissional! — respondi para o espanto do advogado. O que ele pensou? Que eu sairia em sua defesa? — Não me trate por você. Sou doutor e exijo ser tratado pelo pronome de tratamento antes do nome! Não admito ser tratado por “você” por uma balconista de farmácia muito menos por um alfaiate italiano. Eu estava há mais de quatro horas esperando por aquele imbecil de terno e não iria me calar após os insultos lançados a mim e aquela moça. — Em primeiro lugar, doutor não é pronome de tratamento nem aqui nem na china! É título de graduação! E pelo que eu saiba advogado é Bacharel em Direito assim como eu sou Bacharel em Administração de Empresas! Portanto, se você não fez doutorado e não defendeu uma tese perante uma bancada você é um simples BACHAREL!

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Grão Vizir — Sou doutor sim senhor! Uma lei do império me confere o título caso o senhor não saiba. Dei boas gargalhadas, depois emendei. — Apesar de não ser Brasileiro, tenho o hábito de ler, coisa que você como advogado deveria fazer também, Sendo assim, sei que o Brasil tornou-se uma república há mais de cem anos. Percebi que o advogado ficou surpreso com meus conhecimentos gerais e principalmente por saber que eu apesar de ser alfaiate era um homem graduado tanto quanto ele. — Por não ser Brasileiro você deveria respeitar as tradições do país. Achei imbecil a colocação que ele fez, mas fiz questão de responder com outra pergunta. _A tradição aqui no Brasil é tomar posse de um título que não é de direito? — Eu tenho direito sim senhor. — disse o tal advogado autoritário. — Se é assim, porque você não presta concurso público para um cargo que exija o título de doutor e apresenta o seu diploma de Bacharel em Direito para ver o que acontece! — Eu não vou perder o meu tempo com um carcamano feito você! — Sou carcamano, mas não sou idiota! Você quer usar o título de doutor para quê? Para humilhar as pessoas como tem feito? Estou com meu traseiro formigando de tanto esperar por você sentado naquele banco maldito. Se soubesse que tipo de profissional você era certamente não teria me dado ao trabalho de esperar. — Se você está aqui é porque precisa de um advogado. Aliás, todo mundo precisa de um advogado, muito mais que um administrador de empresas que você diz que é. Que por sinal deve ser tão bom que trabalha como alfaiate! — E certamente ganho muito mais como alfaiate do que você ganha como advogado! Basta olhar para esse escritório de mau gosto para ver que dinheiro aqui não entra faz tempo. E advogado hoje em dia é igual panfleto, tem no portão de tudo quanto é casa! _A estas alturas eu já estava de certa forma de exibindo para a moça de cabelos sedosos e lábios carnudos. Empolgado continuei. — Só mais um adendo. Doutor é quem pesquisa quem produz conhecimento! Quem apenas reproduz não é doutor de nada! — Eu não vou admitir esse tipo de insulto dentro do meu escritório. Eu poderia muito bem exigir que você me tratasse por doutor! — Pois então faça isso! Eu quero ver o que acontece. Todo mundo sabe que títulos na época dos impérios em todo lugar do mundo só serviam para criar diferenças entre os indivíduos como se alguns merecessem mais respeito que os outros. Mas já que você está tão preocupado com títulos eu lhe concedo um agora. O Título de “Idiota Mor” A bela moça já não chorava. Agora ela parecia se divertir com a discussão acalorada. — Retirem-se do meu gabinete. — disse o advogado irado.

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Patrícia Franconere Abri a porta, esperei que a bonita moça saísse primeiro. Antes de eu sair, porém disse mais umas palavrinhas para o tal dotô. — Conheci homens da “ndrine” na Itália. O advogado ficou com cara de absoluto desconhecimento da palavra. — Caso você nunca tenha ouvido falar é uma máfia da Calábria. A mais perigosa de todas. E posso lhe assegurar que você é bem pior do que qualquer um deles. — Bem se vê com que tipo de gente estou lidando. _Gente certamente melhor que você. E fique sabendo que não é um título de graduação que faz um bom causídico e sim o seu caráter. O advogado ficou calado. Sua única atitude foi bater a porta quando saímos. — Obrigada por abraçar minha causa como se fosse sua. _disse a moça quando estávamos no elevador. — Eu já estava com aquele advogado pelas tampas. Ele não passa de um mal educado. — Você é um homem muito inteligente. Eu jamais poderia supor que advogado não é doutor. — Você nunca ouviu falar que em terra de cego quem tem olho é rei? Aqui nesse país quem é bacharel em Direito pensa que é dotô! E eu não sou inteligente. Apenas gosto de ler. E esse negócio de doutor ou não doutor depende do ponto do vista de cada um. Para mim advogado não é doutor e ponto. A moça sorriu e baixou o olhar. Demonstrava agora uma timidez que eu não vi dentro da sala do advogado. — Você vai procurar outro advogado? — perguntou a moça agora com o olhar atento. — Talvez. Tenho até medo de encontrar outro traste feito esse. Ela sorriu. Duas covinhas apareceram em suas bochechas rosadas. — Você veio aqui por indicação? — ela perguntou enquanto jogava com uma das mãos seus cabelos cumpridos para trás. Pude nesse momento sentir o perfume que vinha daqueles fios brilhantes. — Não. Por burrice mesmo. — respondi. Ela ficou olhando para mim. Percebi que ela não tinha entendido a gracinha que fiz por isso completei. — Encontrei o nome dele nos classificados do jornal. — Ah!

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Grão Vizir A porta do elevador se abriu. Saímos em seguida. Por algum motivo não consegui tirar os olhos da jovem ao meu lado. — Como é seu nome? — perguntei antes que ela fosse embora. — Bete. E o seu? — Ferdinando. — Nome diferente. — ela disse com seu jeito tímido. — Você mora aqui por perto? — perguntei. — Não. Moro na Saúde, perto da Avenida do Cursino. Você conhece? — Mais ou menos. Já estive por lá uma ou duas vezes. — E você mora por aqui? — ela me perguntou. — Moro perto. Moro na Rua dos Ingleses, numa pensão familiar. — Ah! — Você não tem família aqui no Brasil? — Tenho meu pai. Mas ele está casado com outra mulher. Não tenho muito contato. — Ah! — Ouvi você dizer que trabalha em uma farmácia? — Isso. Sou balconista. — A farmácia fica na Saúde também? — Não. Ela fica na Brigadeiro Luiz Antônio. — Qual é a farmácia mesmo? — eu estava realmente interessado em saber onde ela trabalhava. Aliás,eu naquele momento estava interessado em tudo o que dizia a seu respeito.Eu queria saber nome,endereço,idade. — É a Drogaria que fica ao lado da loja de lustres e iluminação. — Acho que sei qual é. Se eu precisar de remédio vou bater lá. — Pode ir. Eu arranjo um desconto especial para você.

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Patrícia Franconere Sempre fui uma pessoa econômica. Mesmo ganhando uma boa soma em dinheiro continuei a morar na pensão. A comida era boa, o quarto continuava só meu, e a dona Catarina se encarregava de lavar e passar minhas roupas, por um preço justo. Isso sem falar que lá ninguém se intrometia na vida de ninguém. Coisa que eu abominava. Eu tinha sempre o mesmo comportamento. Chegava por volta das oito horas da noite,jantava,tomava meu banho e ia para o quarto. Enquanto os outros hóspedes ficavam na sala para assistirem televisão, eu ia para meu quarto tocar meu violino. Essa era a única hora do dia em que eu me permitia as lembranças dolorosas do meu passado. É incrível como a nossa psique insiste em trazer tais lembranças à tona. Quando eu me via envolvido demais na minha consciência eu a dissolvia em álcool. Essa era uma combinação perigosa: Vinho tinto, música clássica e consciência pesada. Eu estava de pijama, tocando meu stradivarius quando alguém bateu a porta. Fingi que não ouvi. Não estava disposto a conversar com ninguém naquele momento. Diga-se de passagem, ultimamente me via conversando apenas comigo mesmo e isto já me bastava. Quem estava do outro lado da porta insistiu. Apaguei meu cigarro no cinzeiro, coloquei meu violino sobre a cama e fui ver quem era. A noite estava quente e sufocante, por isso deixei a janela aberta. Mas não entrava brisa, apenas às mariposas que rodopiavam em torno da lâmpada. Ao abrir a porta me surpreendi. Era o senhor Abdalla acompanhado de outro senhor também de cabelos grisalhos repartido ao meio. Era um senhor de estatura mediana e bem magro. Aparentava ter mais ou menos a idade do senhor Abdalla que estava em torno de cinqüenta anos. — Desculpe-me pelo horário Ferdinando. Mas como você me pediu uma orientação para que possa abrir sua micro-empresa, resolvi trazer o Alfredo para conversar com você. Ele é meu contador há anos e poderá ajudá-lo nesse momento. Cumprimentamos-nos com um breve aperto de mãos. Apesar de não estar disposto a receber ninguém, fiquei feliz com a chegada do senhor Abdalla e seu amigo. O senhor Abdalla era esse tipo de pessoas que parecem ter uma bola de cristal e sabem sempre quando precisamos de ajuda. — Eu contei para ele a sua historia com o advogado. Demos boas gargalhadas. — disse o senhor Abdalla que ao contrario de mim, estava sempre bem humorado. Assim que eles entraram pedi que se sentassem em duas poltronas ao lado da janela. Eu me sentei na cama. — Aquele sujeitinho era uma comédia mesmo. — comentei. — Amigo, eu vim aqui com a finalidade de te orientar quanto à abertura de uma empresa. Sou contador e estou nesse ramo há anos. Em primeiro lugar você tem que escolher uma Razão Social e um Nome Fantasia. No caso da escolha de um nome, é aconselhável ir à Junta Comercial para checar se não existe outra empresa com nome igual ou semelhante ao que você escolheu, no mesmo ramo de negócios, evitando-se, assim, aborrecimentos futuros. Não copie nomes, marcas, já existentes, pois existem legislações específicas sobre o assunto. Você já tem um nome em mente? _perguntoume o contador. — Já sim. — respondi. — Então o próximo passo é a documentação. A documentação vai depender do tipo de empresa que você escolher... Depois vem o contrato social...

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Grão Vizir Enquanto o contador ia falando eu ia anotando tudo em um pequeno caderno de capa dura que eu tinha para esses casos. Depois de me explicar tudo minuciosamente o contador se colocou ao meu dispor caso eu precisasse do seu trabalho. — Considere-se desde já meu contador. — eu disse. O contador abriu um grande sorriso. — Precisamos brindar o novo negócio que está surgindo. — disse o seu Abdalla. — Eu tenho vinho tinto aqui. — informei. Fui até a pequena escrivaninha e abri a garrafa que estava pela metade. Coloquei o vinho em três copos americanos que eu dispunha. — Qual será o nome da sua grife? — perguntou o seu Abdalla. Antes de revelar o nome resolvi contar uma breve passagem da minha viajem de avião até o Brasil. Contei a respeito do homem de cavanhaque e vestes estranhas que se sentou perto de mim no avião. Disse-lhes que ele usava uma túnica verde com bordados dourados e ele usava também vários anéis de ouro e pedras preciosas e que ele parecia um vizir como nos filmes que eu assistia na minha infância. A imagem elegante do homem nunca mais saiu da minha cabeça, por isso optei por “Grão Vizir” como nome da minha grife de moda masculina.

— Puxa! Eu não teria pensado nome melhor para uma grife de moda masculina. Esse nome tem pompa! Pensando bem, tem tudo a ver com as roupas de estilo que você confecciona. — disse o seu Abdalla para minha felicidade. _O que você acha Alfredo? — Sinceramente acho que o nome tem tudo para pegar. É um nome forte e sonoro. E segundo o Abdalla me disse você costura como poucos! E desenha melhor ainda. Tive a oportunidade de ver alguns dos ternos que você fez para o Abdalla. São excepcionais. Nunca vi um caimento tão perfeito. Desconheço aqui no Brasil uma confecção de moda masculina tão boa assim. — Muito obrigado seu Alfredo. Deixe-me apenas fazer uma correção. Eu nunca costurei terno para o seu Abdalla. — Como não Ferdinando? Eu tenho três ternos que você confeccionou para mim! Ta ficando doido? Nesse momento dei uma risada. — era raro essas demonstrações de sentimentos,mas as vezes acontecia. — O que eu confeccionei para o senhor são “Costumes”, pois foram apenas calça social e paletó. Portanto nesse caso o terno é um termo incorreto. Na verdade o terno vem de uma definição que quer dizer três peças que são: colete, calça e paletó. — Vivendo e aprendendo! vinho.

— disse o senhor Abdalla enquanto entornava um bom gole de

— Mas me diga uma coisa. Você fez curso para poder desenhar e costurar tão bem? _perguntou o contador.

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Patrícia Franconere — Não. Aprendi a fazer desenhos e moldes com a ajuda de alguns livros que eu lia do seu Gregório, que foi o alfaiate que me ensinou tudo o que eu sei lá na Itália. Mas a maioria foi tudo a prática que me ensinou. — Você vai longe meu rapaz. Você é corajoso tem ambição e muito talento. Requisitos fundamentais para um empreendedor de sucesso. — Obrigado. — agradeci um tanto constrangido. — Você vai precisar também de um logotipo. — O que é isso? — perguntou o seu Abdalla. _É uma forma particular como o nome da marca é representado graficamente. Logotipo é uma assinatura institucional, a representação gráfica da marca. Por isso ela deverá aparecer em todas as peças gráficas feitas para a empresa. Como toda assinatura, o logotipo precisa seguir um padrão visual que a torna reconhecida onde quer que ela seja estampada. Por isso ela deverá aparecer em todas as peças gráficas feitas para a empresa. — Ah é isso? Então eu também tenho a logotipo da minha loja.— concluiu o seu Abdalla. — É claro que tem.É o nome da sua loja.É o seu letreiro e o nome que está impresso em todos os cartões de visita da loja..— disse o paciente contador. — Sim,sim.— disse o seu Abdalla enquanto coçava a cabeça. — Quando falo em refrigerantes o que lhe vem na cabeça? — perguntou o contador ao amigo Abdalla. — Coca - Cola.— respondeu o senhor Abdalla como se a resposta tivesse na ponta da língua. — Pois então.Todo mundo conhece o logotipo dessa marca de refrigerante.Como ela, existem outras tantas.— explicou o contador. — Puxa,é verdade.Não tinha me dado conta disso até então.— disse seu Abdalla tomando um gole do vinho logo em seguida. — Você já tem idéia do que como vai querer sua logomarca Ferdinando? Ou vai querer ajuda de profissionais especializados? Conheço uma empresa de propaganda que poderia fazer isso para você.— disse o contador. — Tenho uma idéia que acho que pode dar certo._respondi.De dentro da gaveta do criadomudo tirei uma folha de papel. — Olhem.O que vocês acham? — perguntei timidamente. No papel tinha algo mais ou menos assim:

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Grão Vizir

GrãoVizir Os dois senhores se entreolharam.Em seguida dei minhas explicações: — Escrevi com essa letra que parece aquelas letras árabes, egípcias ou gregas,sei lá.Acho que um tipógrafo saberá o que quero dizer.Coloquei no fundo verde que era a cor da túnica do homem que estava no avião.Pensei em colocar a letra em dourado para fazer menção a riqueza das jóias que ele ostentava, mas achei que ficaria um tanto apagado,então optei pela cor preta.Deixei o dourado para as bordas.Eu queria que se parecesse como um pergaminho, mas infelizmente não nasci com habilidades para esse tipo de desenho.O que vocês acham? — Puxa! Eu jamais teria feito isso! — disse o senhor Abdalla boquiaberto. — Parabéns Ferdinando.Ficou muito bom.Muito bom mesmo.— disse o contador balançando a cabeça.Não sou especialista em logomarcas,no entanto,tenho quase certeza de que essa marca vai pegar.É simples,porém forte assim como o nome que você sugeriu.Já posso até visualizar mentalmente a etiqueta no colarinho do paletó.Na minha opinião ficou perfeito.O nome denota masculinidade,virilidade. Eu não cabia em mim de tanta satisfação. — Esse meu amigo tem o toque de Midas.Tudo o que ele põe a mão vira ouro! senhor Abdalla Eufórico.

— disse o

Eu apenas sorri. — É incrível um desconhecido que ele viu uma única vez dentro de um avião ser fonte de tanta inspiração. — observou o seu Abdalla. — Não sei por que, mas a imagem daquele homem nunca saiu da minha cabeça.Não sei quem ele era,e acho que nunca saberei.Mas algo dentro de mim diz que não foi um mero acaso.Tenho certeza de que há algo por detrás disto.Eu jamais teria a idéia de colocar o nome de uma grife de Grão Vizir se não o tivesse visto naquele avião. — Isso tudo aconteceu porque você é uma pessoa sensível e observadora._disse o seu Alfredo._Tenho certeza de que se eu tivesse visto o mesmo homem que você e nas mesmas circunstâncias eu jamais teria feito a ligação entre ele e um vizir e seria menos ainda fonte de inspiração para uma grife ou qualquer outra coisa.Isso chama-se talento para os negócios.Tino comercial.— disse o seu Alfredo com um largo sorriso no rosto. — Eu diria que ele é um homem de visão.Ele vê o que os outros não vêm.Ele encontra a solução nos lugares mais improváveis.— emendou o seu Abdalla. — Por favor, amigos! Isso aqui é apenas um esboço.Não sabemos se dará certo.Não vamos criar expectativas por que o futuro é incerto. — Não se menospreze meu caro rapaz! Você tem tudo para dar certo e vai dar.— concluiu o senhor Abdalla.

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Patrícia Franconere Na realidade, eu estava apostando todo o meu dinheiro nessa nova empreitada.Meus funcionários dependiam de mim e eu não podia falhar em hipótese alguma.Foi tudo estudado e calculado nos mínimos detalhes.Aquele era o momento ideal para arriscar.Eu sentia uma segurança que vinha de dentro de mim.Apesar dos obstáculos que estavam por vir eu tinha que ser forte o bastante para transpô-los. — Agora preciso ir.Meu filho chega amanhã dos Estados Unidos.

24 Era manhã de sexta-feira. Poliana então com quinze anos de idade foi me procurar no trabalho.Eu estava na minha pequena sala, debruçado sobre minha mesa, terminando um croqui quando ouvi uma batida de leve na porta. — Pode entrar.— eu disse sem tirar os olhos do croqui.Assim que a jovem entrou trocamos olhares,ela me lançou aquele sorriso encantador que lhe era peculiar. — Dá licença? — Claro Poliana.Pode entrar! Minha meio irmã entrou na sala obsevando tudo.Eu me sentia feliz cada vez que a via.Ao contrario dos meus outros irmãos ela estava sempre sorridente e eu me sentia bem ao seu lado.Ela se tornara uma bela jovem.Não cresceu muito,sua estatura não ia muito além de um metro e meio de altura,mas seu corpo já tinha contornos de mulher que ficava ainda mais evidenciado quando ela usava calça jeans e camiseta como naquela manhã.Os raios de sol que entravam pela janela incidiam em seu cabelos louros evidenciando o seu tom dourado. — Aconteceu alguma coisa? — perguntei. A bela Poliana caminhou até minha mesa e me deu um beijo no rosto. — Nossa que lindo esse desenho! — ela comentou com os olhos grudados no croqui. Eu soltei um riso forçado. — E aí.O que foi dessa vez.Nosso pai está precisando de dinheiro? — Não.— ela respondeu com um ar misterioso.Percebi que ela queria falar alguma coisa,porém estava receosa. — Vai.Desembucha. — O pai está doente.— ela revelou. — O pai está sempre doente.— conclui. — Agora é verdade.Ele foi internado ontem no hospital.

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Grão Vizir Meu coração saltou do peito.Afastei a cadeira para ficar mais confortável e pedi que minha irmã se sentasse. — O que aconteceu? Por que ele está internado. — Ele teve um princípio de infarte. — Meu Deus! — nesse momento coloquei as mãos na cabeça. — Como é que ele está? — Agora ele está bem melhor.Os médicos disseram que ele vai ficar uns dois ou três dias no hospital em observação. — Em que hospital ele foi internado? — Ele está internado no Hospital das Clínicas. — Ele está sendo bem atendido? — perguntei preocupado. — Acho que sim.Mas ele disse que não.Sabe como ele é né? Para ele nada presta. — Eu sei muito bem como é o seu GiuseppeVetorazzi. — Você vai lá no hospital fazer uma visita? — Claro! Sou filho dele também, apesar dele nunca se lembrar desse detalhe. Poliana baixou a cabeça.Com minha mão em seu queixo ergui sua cabeça e a olhei fixamente nos olhos. — Não é nada com você.Não precisa ficar sem graça.A jovem se pôs a chorar. — O que foi Poliana? O que está acontecendo? Tem alguma coisa que você não me contou? Ela simplesmente balançou a cabeça de um lado para o outro. — Então por que você está chorando desse jeito? — Eu tenho medo que ele morra! Senti vontade de envolver minha querida irmã nos braços,mas infelzmente não consegui.Maldito seja esse meu jeito de não demonstrar emoções! Pensei.Fiquei lá parado,inerte,vendo minha irmã se debulhar em lágrimas.O máximo me concedi fazer foi entregar um lenço que estava guardado no bolso da camisa.Fiquei em silênceu até que minha irmã secasse as lágrimas.Depois continuei. — Eu vou com você agora no hospital. — Agora não é horário de visitas.— ela revelou.Estava ainda com os olhos inchados. 85


Patrícia Franconere — Vamos assim mesmo.Quero ver como estão tratando nosso pai.Ele está num quarto? — Não.Lá é hospital público.Ele está numa enfermaria. — Ele está só? — Não.Tem mais cinco leitos ocupados. Peguei meu paletó azul marinho que estava no encosto da cadeira e sai com minha irmã sem perder tempo.Fomos até a garagem onde ficava estacionado o primeiro automóvel que tive na vida.Um Fiat 147 ano mil novecentos e setenta e nove, movido a álcool. — Que legal, você comprou um carro? — disse minha irmã assim que nos acomodamos no acento. — Comprei.Não dava para visitar meus clientes o tempo todo andando de transporte público.O carro é de segunda mão,mas está em perfeitas condições.— expliquei. — Eu adoro carro preto.— disse minha irmã fazendo menção a cor do carro. Fiz sinal da cruz assim que virei a chave no contato. Percebi que ela me observava atentamente enquanto eu dava a ré. — O que foi? — Você não disse que é ateu? — Disse por quê? — Porque quem é ateu não faz o sinal da cruz. — Nem percebi.— respondi displicente. — Você faz sinal da cruz quando passa na porta de igreja,quando dá seis horas da tarde,quando passa em frente a um cemitério,quando vai dirigir,quando fala palavrão e diz que não percebe? Como pode ser isso? — É força do hábito.— respondi.Ao mesmo tempo fiquei me perguntando porque minha meia irmã era tão questionadora.Ah! Puxou a mim.Pensei. — Mas por que você deixou de ser católico mesmo? Eu já tinha explicado esse detalhe umas quinhentas mil vezes a ela, escondendo é claro alguns detalhes sórdidos do meu passado imundo,mas mesmo assim aquela delicada criatura insistia em trazer o tema a tona e isso só me trazia lembranças dolorosas que me dilacerava o coração. — Porque sim.— respondi um tanto aborrecido. — Porque sim não é resposta. 86


Grão Vizir — Porque você não fica quietinha.Não vê que estou dirigindo?Menina chiveta! Poliana calou-se por alguns milésimos de segundo.Um recorde se tratando dela.Apesar do meu pai estar no hospital ela continuava feliz.Eu invejava tal felicidade. — Você é monossilábico.Nem parece um italiano legítimo.— disse minha irmã para me provocar. — O que? — perguntei como se não tivesse entendido. — Você é monossilábico.Só sabe responder sim, não,é, claro.Você nunca se estende.É econômico nas palavras. — Em compensação você é prolixa.Fala pelos cotovelos.— conclui. Ela calou-se por mais alguns milhonésimos de segundo.Logo vieram mais pérolas de sua boca. — Você fica esquisito dirigindo esse carro. — Esquisito por quê? — Sei lá.Acho que você é muito alto para dirigir esse tipo carro. — Foi o que deu para comprar.— expliquei.— O dinheiro anda curto. — Hum! — Mas um dia ainda vou ter um Chevrolet Monza. — Até lá existirão outros bem melhores. — Que seja! Um dia ainda terei o melhor carro do ano! — arrisquei alto na previsão. — Posso ligar o rádio? — perguntou minha irmã.Já tinha percebido que ela não gostava de silêncio como eu. — Se você prometer fechar a boca... Minha irmã não fugia a regra.Como todos os jovens ela era esperta e curiosa.Uma fita cassete estava inserida no toca fitas.Ao mexer no rádio ela apertou sem querer no botão errado.A fita começou a rodar. — Nossa, que porcaria é essa? — perguntou minha irmã assim que a música começou a tocar. — É a Nona Sinfonia de Bethoven.— respondi. — Posso tirar? — Fazer o que né? Pode.

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Patrícia Franconere Se fosse outra pessoa certamente teria me irritado com tal atitude,mas como era minha irmã relevei. Ela colocou numa rádio qualquer. “...ai de mim ai Ai Blau,Blau,Blau,Blau,Blau,Blau Ela não me quer... — Mas que diabo é isso? — perguntei horrorizado. — Mas em que planeta você vive Nando? — respondeu minha irmã com outra pergunta (ah, Nando era a maneira carinhosa com que minha irmã me tratava). — É música.— Ela informou com maior cara de pau do mundo. — Depois Bethoven que é porcaria. — resmunguei. Minha atenção ficou dividida entre o trânsito pesado e dublagem divertida da Poliana. Ela sacudia o corpo e balançava a cabeça alegremente. A todo instante ela me cutucava no braço para que eu assistisse seu “desempenho”. Fiquei pensando como uma pessoa em sã consciência podia ouvir aquela porcaria melódica. Poliana era uma jovem de sorriso fácil e encantador. Eu me perguntava freqüentemente de onde vinha tanta alegria? Teria ela vindo do reino encantado de OZ? Não. A explicação era bem mais simples. Ao contrário de mim ela foi criada entre paparicos e mimos. Enquanto eu fui criado entre “tapas, socos e milhos”. Eis a explicação. — O pai disse que você encontrou um violino quando era menino. — comentou Poliana enquanto eu dirigia. — É verdade.— respondi atento ao trânsito. — Ele disse que você gosta de tocar música clássica.Você toca um dia para eu ouvir? — Por que você quer me ouvir tocar.Você acabou de dizer que Bethoven é porcaria. É só essas porcarias que eu sei tocar. — Ah ,mas ouvir você tocar é diferente de ouvir esse tal de Bethoven, ou qualquer outro.Você eu conheço,esses caras nem existem mais. — Você deveria acostumar seus ouvidos com música clássica.Eu sempre ouvi, desde criança. — Você gostava de música clássica porque tinha um violino para tocar.— ela concluiu. — Muito pelo contrário.Eu só me interessei pelo violino porque já gostava de música clássica.

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Grão Vizir — Como você encontrou o violino? Onde ele estava? — perguntou Poliana.As vezes eu me perguntava porque as mulheres desde a mais tenra idade falavam tanto.Bem se via que ela era uma legítima descendente de italianos. — É uma história comprida.Um dia com mais tempo eu te conto. — Está bem.— disse minha irmã.Percebi que ela ficou decepcionada,mas não estava a fim de remexer no passado.Ele sempre me trazia lembranças dolorosas.E por incrível que pareça minha irmã tinha o dom sempre trazer a tona o meu passado. O trânsito estava tranquilo e em meia hora estávamos no hospital.Como a maioria dos hospitais públicos esse se encontrava abarrotado de pacientes, de pé, sentados.Havia alguns pacientes deitados em macas e um ou dois sentados em cadeiras de rodas.Havia no ar um cheiro característico de hospital que misturava suor,éter,produtos de limpeza,remédios,sangue entre outros que meu olfato jamais conseguiria distinguir.Ao chegar no balcão da recepção Poliana perguntou a uma das recepcionista a respeito do meu pai. A mulher de cabelos ruins, verificou num computador(um dinossauro eu diria nos dias de hoje)e logo voltou a atenção para minha irmã. — Ele não pode receber visitas agora.— disse a recepcionista mal humorada que não teve ao menos a dignidade de olhar minha irmã nos olhos. — Não falei? — disse minha irmã baixinho.— eles não vão deixar a gente entrar fora do horário de visitas. — Deixa comigo.— Lancei uma piscada cúmplice para minha irmã, me aproximei do balcão e comecei a falar em italiano com a mulher. — Senhora,venho de muito longe para visitar o meu pai. — O quê? Não entendi nada senhor! — Meu pai está muito doente. A recepcionista dessa vez se dignou a olhar para minha irmã. — Quem é esse homem? E o que ele está dizendo? Minha irmã esperta como era entendeu imediatamente qual a minha intenção e entrou na brincadeira. — Ele é meu irmão mais velho. Ele veio ontem da Itália para visitar meu pai. Ele precisa voltar ainda hoje e não pode esperar o horário de visitas. E como à senhora já deve ter percebido ele não fala uma palavra em português. — Diga para o seu irmão que ele não pode visitar seu pai agora. — informou a mulher com cabelos de carapinha.

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Patrícia Franconere Minha irmã se voltou para mim e me mostrou que seu italiano era tão bom quanto o meu. A recepcionista sem entender nada apenas observava. — Ela disse que você não pode visitar nosso pai. — Mas porque não posso visitar nosso pai caspeta? — Porque o hospital não permite Nando! — Vou falar com meu pai e quero ver quem vai me impedir! _ nesse momento, eu já estava falando o mais alto que podia, na tentativa de intimidar a recepcionista. — Diga para seu irmão que aqui não é lugar apropriado para fazer escândalos! recepcionista irritada. — Ta todo mundo olhando para cá!

— disse a

Minha irmã voltou novamente sua atenção para a funcionária. — Meu irmão está muito nervoso e com razão. Ele precisa ver nosso pai. Ele veio ao Brasil a trabalho e se não ver nosso pai agora talvez não tenha mais chance de vê-lo novamente com vida. Caso ele não consiga permissão para entrar a tendência é piorar a situação. Eu sei o que estou falando. Conheço meu irmão. Ele seria capaz de mover céus e terra para poder ver meu pai nem que seja um único minuto. Será que você não poderia abrir uma exceção? Uma senhora gorda que estava do nosso lado no balcão se intrometeu na discussão. — Pobre rapaz! — Deixe-o ver o pai moribundo! Um outro senhor também se manifestou. — Já imaginou se fosse seu pai que estivesse lá dentro agonizando? — disse o senhor encarando a recepcionista. — O cara veio da Itália meu! Deixe o cara entrar e ver o pai! — disse um rapazola com o braço direito engessado. Sem opção a recepcionista saiu por alguns instantes para pedir autorização a seus superiores. Nesse meio tempo minha irmã lançou um olhar cúmplice para mim. Não demorou muito e a recepcionista voltou com dois cartões de visita. — Vocês podem entrar. Mas só podem ficar lá por dez minutos, nada mais que isso. Se não voltarem nesse tempo o segurança do hospital subirá para escoltá-los até a saída. — Obrigada. — disse minha irmã. — Obrigado. — agradeci com cinismo.

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Grão Vizir Ao entrar no quarto me deparei com seis leitos ocupados. Meu pai estava sentado em um dos leitos tagarelando sem parar com outro senhor que estava deitado no leito vizinho. Outros dois senhores também conversavam livremente sem se importar com dois outros pacientes que estavam dormindo. O lugar se parecia mais com o Mercado do Parque Dom Pedro do que a enfermaria de um hospital. A me ver entrar, o velho curvou-se e pôs a mão no peito. Fingiu que não me viu. — Porca miséria! Eu não to mais agüentando de tanta dor no meu peito! logo a seguir. — Eu preciso de um médico!

— ele deitou-se

Acho que nem o paciente que conversava com ele entendeu a mudança brusca em seu comportamento. Aproximei-me do leito do meu pai enquanto ele tentava se cobrir com os lençóis brancos. Poliana vinha logo atrás. — Ferdinando! Você veio ver seu pai — disse o velho picareta fazendo-se de surpreso. — A Poliana me disse que o senhor passou mal, mas pelo que vejo está bem melhor. — eu disse enquanto Poliana beijava a face do nosso pai. — Ma que melhor! — disse o velho italiano gesticulando com as mãos. — Eu estou fraquinho. Não posso nem caminhar! — Eu percebi o quanto o senhor está fraquinho. — eu disse para provocar. — Os médicos falaram que teu pai enfartou! — Estou sabendo. Vim aqui para saber se o senhor está precisando de alguma coisa. — Eu não preciso de nada filho meu. Mas sabe como é. O dinheiro da Concetta não ta dando para nada. Ela também anda doente. Meus filhos estão praticamente sem comer! — Pai! — exclamou a Poliana em voz alta. Ela quase engoliu o velho com os olhos. — Não estamos precisando de nada Ferdinando. _disse voltando-se para mim. — Não se intrometa Poliana! — disse meu pai enfurecido. — O senhor só me faz passar vergonha. — concluiu minha irmã. Meu pai lançou um de seus olhares fulminantes para a filha. Ela calou-se na hora e permaneceu de cara amarrada. — Eu vou ajudar o senhor. Coloquei a mão no bolso do paletó e percebi que minha carteira não estava comigo. Passei a mão nos bolsos da calça e da camisa, só então me lembrei que a deixara no porta luvas do carro. — Eu deixei minha carteira no porta luvas do carro. Vou descer e já volto. — Má que carro? — perguntou meu pai como sempre curioso.

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Patrícia Franconere — Eu comprei um carro usado pai. — Ma ta podendo! — Comprei por pura necessidade. — expliquei. — Eu nunca que tive um automóvel nesta vida! Também nunca trabalhou o suficiente para ganhar dinheiro e comprar um. Pensei. Meu pai tinha o dom de distorcer os fatos. Quem o ouvia falar poderia até imaginar que ele era uma pessoa esforçada, batalhadora que nunca teve o reconhecimento merecido. Mas eu sabia muito bem quem ele era. Saí do quarto para buscar minha carteira antes que ele começasse a fazer perguntas impertinentes. Em menos de dez minutos eu estava de volta. Encontrei Poliana de pé no corredor. — Por que você está aqui? — Você ainda pergunta? Meu pai só me faz passar vergonha. Ele ta lá falando pra velharada que agora que você tem um carro vai levar ele para cima e para baixo. Já está dizendo inclusive que quando tiver alta não vai gastar dinheiro com táxi para voltar para casa já que você é filho e tem obrigação. — Não adianta ficar nervosa. Ele sempre foi assim. — Mas eu não gosto quando ele faz esse tipo de coisa. Ele vive falando mal de você para minha mãe e meus irmãos, mas quando precisa corre atrás de você. Se fosse outro já tinha mandado ela pra puta que... — Poliana, não fala assim. — interrompi. — Apesar de tudo ele é seu pai e gosta muito de você. Ele nunca me tratou com o mesmo carinho que trata você e seus irmãos, nem por isso eu falto com o respeito com ele. — Desculpa. É que às vezes ele me tira do sério. — Você precisa se conter. Ele está ficando velho. Amanhã ele pode faltar. Pode ter certeza que não é nada bom viver sem um pai e sem uma mãe. Falo isso com conhecimento de causa. — Posso imaginar. — Vamos entra então? — perguntei. — Não. Vá você. Não quero presenciar a abertura de carteira.

26 Após ter tido minha carteira saqueada literalmente pelo meu próprio pai deixei minha irmã sã e salva em sua casa. A velha megera estava como sempre no portão conversando com as vizinhas. Provavelmente tomando conta da vida dos outros. Parei meu carro em frente ao portão e esperei a 92


Grão Vizir Poliana descer. A velha curiosa ficou olhando para dentro do carro para ver quem era. Ao me reconhecer me ignorou como de costume. Ela se quer me cumprimentou. Poliana assim que saiu do carro beijou a velha na face, cumprimentou as vizinhas com um breve sorriso e entrou. Antes de sair com o carro pude ouvir uma das vizinhas perguntar: — Quem é aquele rapaz que está no carro? Ela tinha bobis na cabeça e usava um avental branco encardido por cima do vestido de chita surrado. Pensando bem, essas vizinhas deviam fazer parte de alguma confraria. Uma seita. Vestiamse todas praticamente iguais. O tal vestido de chita florido, abotoados na frente e com dois bolsos gigantes (provavelmente para guardar a língua quando despenca da boca). — É um amigo do Giuseppe. Disse a velha enquanto me encarava com aquele mesmo olhar vidrado e ar embasbacado de sempre. Eu não tinha o hábito de freqüentar a casa do meu pai, pois eu nunca fui muito bem recebido. Mas as poucas vezes que estive lá, fui apresentado aos vizinhos ou a qualquer pessoa que por algum motivo estivesse ali presente, como apenas um amigo dele. Isso me incomodava profundamente,afinal de contas eu não tinha nada para esconder.Em compensação aquela velha jararaca...Se eu nunca contei a ninguém que era filho do seu Giuseppe, não foi por causa daquela velha tão pouco por causa dos meu pai que não merecia tal consideração.Se evitei falar de mim para os outros foi porque percebi no olhar dos meus irmãos,com exceção da Poliana que eles tinham vergonha da condição de concubina da própria mãe. Durante o trajeto de volta, deixei de lado o pensamento daquela velha ordinária e foquei na bela jovem de cabelos sedosos que conheci no escritório do advogado picareta. Bete. Certamente era o diminutivo de Elisabete. Era tão pouco o que eu sabia a seu respeito. Tentei esquecê-la por diversas vezes, mas foi em vão. Eu estava muito ocupado com meu trabalho e não tinha tempo para coisas banais como esse tipo de sentimento. Mas, meu coração sofrido era teimoso, acelerava com a simples imagem da moça que se formava constantemente no meu pensamento. Tentei esquecê-la nos inferninhos da vida, nos braços de outras mulheres, porém foram tentativas frustradas que não me levou em lugar algum. Eu precisava tirar a prova dos nove. Tinha que vê-la nem que fosse uma única vez para ter a certeza do que eu realmente estava sentindo. Eu era um homem de sentimento fugaz. Sempre que conhecia uma mulher achava estar apaixonado, porém depois do segundo ou terceiro encontro eu perdia o encanto por elas. Mesmo sabendo disso eu tinha que ver novamente a jovem. Algo dentro de mim dizia que com ela seria diferente, pois meus sentimentos eram diferentes. Passei por diversas vezes com meu carro na porta da farmácia, mas o medo me paralisava e eu acabava sempre desistindo para evitar a rejeição. Será que ela sentia por mim a mesma emoção que eu sentia por ela? Em certos momentos eu achava que sim,afinal de contas ela me disse onde trabalhava,era uma maneira de dizer onde eu poderia encontrá-la. Outras vezes achava que era o contrário. Ela teria me dito onde trabalhava justamente porque nunca imaginou que eu tivesse a cara de pau de lhe procurar. Eu estava decidido a descobrir naquela tarde, qual das duas opções era correta. Subi a Brigadeiro Luiz Antônio e parei meu carro em uma das travessas. Caminhei até a farmácia. Assim que parei na porta enchi o peito de ar e entrei. Ao entrar fui remetido imediatamente ao passado. Vi-me ao lado de minha mãe observando as belas curvas da dona Amparo. De certa forma eu estava vivenciando o mesmo tipo de emoção. Eu estava desejando uma mulher. Só me restava esperar que o final tivesse um desenrolar menos tumultuado que o do passado.

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Patrícia Franconere A farmácia era ampla, com várias gôndolas com remédios expostos que não necessitavam de receita médica e produtos de perfumaria. As prateleiras e o balcão de atendimento eram brancos com vidros transparentes nas portas. Havia alguns clientes sendo atendidos. Caminhei por entre as gôndolas, fingindo estar interessado em algum produto. Eu olhava discretamente para o balcão na tentativa de ver a jovem Bete. Mas atendendo havia apenas dois homens e uma senhora. Achei estranho, afinal eu me lembrava perfeitamente de ter ouvido a Bete dizer que trabalhava no balcão. Fiquei lá por mais algum tempo, como ela não apareceu resolvi perguntar no balcão. — Por gentileza, eu estou procurando pela senhorita Elisabete. Ela está? A senhora que estava no balcão olhou para os outros dois balconistas e me respondeu. — Aqui não tem nenhuma Elisabete. — A senhora tem certeza? Ela me disse que trabalha nessa farmácia. — Tenho sim. Aqui não tem ninguém com esse nome. O senhor pode ter se enganado de farmácia. Aqui na Brigadeiro tem muitas outras. — É pode ser que eu tenha me confundido. Muito obrigado. Dei meia volta. Estava decepcionado demais para ficar fazendo hora. Quando eu estava na calçada um dos balconistas me chamou. — Hei senhor! — Olhei para trás. — A moça que o senhor chama-se Elisabete mesmo? — Acho que sim. Ela me disse que se chamava Bete. Mas com certeza é Elisabete. — Nós temos aqui uma funcionária que é chamada por Bete, mas o nome dela é outro. — E qual é o nome dela? — perguntei ansioso. — Betsabá. — respondeu o rapaz para minha surpresa. Ela tinha um nome bíblico que não era comum de encontrar. — Ela tem cabelos castanhos sedosos, e suas bochechas formam duas covinhas quando ela sorri? _perguntei esperançoso. — Isso mesmo. — Então encontrei minha Bete. — disse com entusiasmo. Depois me condenei por ter sido tão leviano. — Ela acabou de chegar do almoço. Está lá no balcão.

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Grão Vizir Voltei para a farmácia. Ao me aproximar vi Betsabá dentro de um jaleco branco atendendo um cliente. Assim que o cliente se afastou ela olhou para mim e sorriu. Confesso que naquele momento eu não sabia como agir. Eu estava suando frio, o coração palpitava freneticamente e eu me sentia um completo idiota. Eu estava paralisado. Não via mais ninguém na minha frente à não ser aquela jovem de rosto adorável. Eu queria poder aprisionar aquele momento mágico para sempre. Nunca imaginei que pudesse ter por uma mulher aquele tipo de sentimento. Ia além do desejo carnal. — Você veio! — disse minha querida Betsabá assim que me aproximei. Seu sorriso era tão sincero que me senti completamente acolhido. — Eu estava passando com meu carro e me lembrei de você. Deu-me vontade de vê-la. Ela sorriu mais uma vez. Ah, como eram lindas aquelas covinhas! — Pensei que você tivesse vindo atrás da Elisabete. — ela me disse baixinho. Fiquei constrangido. Fiz papel de idiota. Pensei. — Desculpe, é que eu pensei... — Tudo bem. Já estou acostumada. Outro cliente entrou e ela teve que atender para meu desespero. Para não atrapalhá-la afasteime do balcão. Nossos olhares se cruzaram algumas vezes enquanto ela atendia. Inexplicavelmente eu sentia uma alegria profunda na alma e uma vontade enorme de viver. Assim que o cliente saiu me aproximei novamente. — Ferdinando, não posso ficar conversando com você aqui no trabalho. — ela me disse sussurrando. Quase surtei de felicidade quando ela pronunciou meu nome. Ela não tinha se esquecido de mim. Meu nome nunca soou tão bem como naquele momento. — Que horas você sai? Posso passar aqui e te levar para casa? — Quer ir ao cinema comigo? Sair para jantar? — após as insistentes perguntas foi que percebi quão abusada elas poderiam parecer para Betsabá. Nem nos conhecíamos direito. Como eu poderia fazer tais propostas. Ela sorriu mais uma vez, não só com os lábios, mas também com seus lindos olhos da cor de jabuticaba. Mil vezes idiota! Pensei de mim mesmo. — Você não pode me levar para casa, não posso ir ao cinema com você muito menos sair para jantar. Minha mãe não aprovaria. Nem eu. Mas posso comer uma pipoca antes de pegar o ônibus se você quiser é claro. Moça de família. Ideal para casar. Pensei animado. — A que horas eu passo aqui para a pipoca?

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Patrícia Franconere

27 Eu havia chegado à pensão por volta das sete horas da noite e fui direto para meu quarto. Acabara de voltar de um encontro, o primeiro encontro com a querida Betsabá (se é que comer pipoca num ponto de ônibus pode ser chamado de encontro). Apesar do cansaço, pois eu estava na rua desde muito cedo, fui induzido a tocar meu violino para extravasar essa alegria que permanecia contida dentro do meu peito. Meu querido e inseparável Stradivarius, havia se tornado há muitos anos um órgão permanente do meu corpo. Era um tipo de genérico do coração, pois somente através dele eu conseguia por para fora minhas emoções: de alegria ou de tristeza, de ódio ou de amor. Eu estava tocando Bach, quando dona Catarina bateu a porta. Coloquei meu violino sobre a cama e fui atender. — Chegou essa carta para você. — disse dona Catarina enquanto me entregava a carta. — É dá Itália. — ela me informou. — Dá Itália? Quem será que me escreveu? Ninguém sabe onde estou. — conclui. Após entregar a carta, dona Catarina bateu em retirada. Eu fiquei só no meu quarto. Sentei-me na cama e olhei o remetente. Fiquei surpreso ao ver o nome da dona Amparo. Mais uma vez eu estava indo de encontro com meu passado. O que a dona Amparo podia querer de mim aquelas alturas da vida? Como ela sabia que eu ainda estava na pensão? Tive medo de abrir a carta e saber qual o conteúdo dela. Joguei a carta sobre a cama e me sentei encostado na cabeceira. Permaneci inerte com os olhos fixos no envelope lacrado por mais de meia hora. Eu soava frio. Manuseei o envelope algumas vezes, só depois de muito tempo decidi abri-la.

Roma, 25 de abril de 1983. Querido Ferdinando, Eu espero que ao chegar esta carta você esteja gozando de saúde. Estou enviando esta correspondência para pensão, pois é o único endereço que tenho do Brasil. Não sei se você mora aí, de qualquer maneira resolvi arriscar. Estou morando em Roma desde que saí de Crotone. Roma è uma bela cidade.Minha a casa fica no centro, na Via Mecenate 59. Ela tem vista para o Coliseu, que pode ser alcançado a pé, através do maravilhoso Parque Traiano. Também fica perto da Basílica de Santa Maria Maggiore, a Santa Prassede

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Grão Vizir

Igreja, o Fórum Romano, e a Domus Aurea um antigo palácio romano construído pelo Imperador Nero. Sempre penso em você quando caminho pelas ruas da cidade. Após um ano da minha chegada, conheci um homem muito bom que se interessou por mim. Ele é empresário do ramo moveleiro. É viúvo e tem quatro filhos homens todos casados. Ele é bem mais velho do que eu, mas me ofereceu uma vida melhor do que a que eu tinha. Por ser um homem generoso, quis se casar comigo mesmo sabendo do meu passado. Como eu não tinha muitas expectativas aceitei o pedido. Hoje sou a senhora Catanzzaro e vivo com ele numa confortável casa de dois andares. Não tivemos filhos, descobri que sou seca por dentro. Mas tudo bem,ser mãe nunca foi a minha prioridade.Eu gostaria muito que você me desse notícias suas.Você encontrou teu pai? Come você está? Por favor, se essa carta chegar a suas mãos, escreva-me. O endereço completo está no remetente. Sinto sua falta. Morro de saudades do tempo em que passamos juntos. Quantas loucuras! Você ainda continua um belo homem? Se algum dia voltar para a nossa Itália venha me visitar em minha casa. Meu marido não se importará. Um beijo da sua amiga, Amparo. Assim que terminei de ler a carta amassei e joguei no chão. Minhas mãos queimavam como se eu as tivesse colocado em labaredas. Labaredas do pecado. Mais uma vez o passado me atormentava. Num momento de insanidade comecei a falar sozinho. — Hã. Pelo visto continua a mesma. Vendeu-se para um velho a troco de boa vida e ainda por cima quer que eu volte para Itália para revê-la em Roma.

“Sinto sua falta. Morro de saudades do tempo em que passamos juntos. Quantas loucuras! Você ainda continua um belo homem?” Após repetir as palavras escritas na carta continuei a falar sozinho. — O que ela está querendo? Que eu me deite novamente em sua alcova enquanto seu marido trabalha para sustentá-la? Santo Deus! Como fui ingênuo! Não! Não! Mil vezes não! — Eu dizia a mim mesmo como se isso pudesse apagar o que eu fiz da minha memória.

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Patrícia Franconere Meu passado imundo estava ali de volta amassado numa folha de caderno. Por que as coisas tinham que ser assim? Justamente naquele momento em que eu sentia uma ponta de felicidade surgindo no peito por ter encontrado um amor, um verdadeiro amor esse maldito passado voltava para me atormentar. Eu não podia responder aquela carta. Isso definitivamente estava longe dos meus planos. Apesar de ainda nutrir um sentimento de afeto pela dona Amparo, eu não queria que ela se tornasse um fantasma rondando minha vida, ainda mais naquele momento em que eu desejava me casar com a Betsabá. Eu queria constituir uma família e ela foi a minha escolhida. Eu precisava sair daquela pensão e dar um rumo a minha vida. Já estava cansado de sair com mulheres da noite. Eu não queria mais ser um boêmio. O que Betsabá faria se soubesse que minha mãe morreu por minha causa? Que fui um filho ingrato e desnaturado. Como doía lembrar da minha mãe. Por várias vezes me peguei pensando em seus últimos momentos de vida. Eu me colocava no seu lugar na hora do terremoto. Eu a encontrei nos escombros da cozinha. Ela certamente estava preparando algo para eu comer quando chegasse. Pois era assim que ela me recebia quando eu chegava cansado do trabalho. Fico imaginando os tijolos acertando sua cabeça e afundando seu crânio, vigas de madeira perfurando e dilacerando sua carne. Tenho certeza que ela chamou por mim e eu não estava lá para socorrê-la. Estava na cama de uma vagabunda. Na cama da vagabunda do meu pai, da minha vagabunda. Da vagabunda de toda Crotone e certamente de toda Roma. Não. Eu jamais responderia aquela carta. O que passou, passou. Eu estava colocando de vez uma pedra naquele assunto. Se eu não respondesse ficaria claro para ela que eu não estava na pensão, talvez ela pensasse que eu não estava no Brasil sendo assim ela desistiria. Retirei a carta do chão, coloquei dentro de uma pequena bacia de alumínio e ateei fogo. Meu passado tornou-se cinzas. Assim eu pensei. Mas o passado não se apaga da memória. Nunca se esquece. Há sempre algum motivo que nos faz lembrar...

28 Cemitério da Consolação, centro de São Paulo, agosto de 1996. Era uma tarde cinzenta de sexta feira. Fazia muito frio e algumas gotas finíssimas de água gelada caiam do céu incessantemente. Eu estava de casaco cinza de lã fria com acabamento resinado e uma blusa fina de Cashmere preta tudo da minha própria grife assistindo a uma cerimônia religiosa entre estátuas de mármore carrara e estátuas bronze que ornavam os túmulos do cemitério. Eram estátuas de anjos, deuses da mitologia grega entre outros que interpretavam vida e morte. Apesar da aparência triste do local eu me sentia bem com a sensação de paz presente nesses lugares. O cemitério da Consolação é sem dúvida uma escola a céu aberto para quem quer aprender um pouco sobre arte tumular. Ali se encontram trabalhos de artistas famosos abrigando os restos de mortais anônimos abastados e algumas outras pessoas nem tão famosas e tão pouco abastadas como aquela que estava sendo sepultada naquele momento. Eu permanecia a certa distância. Minha esposa Betsabá estava mais adiante acompanhada de minha filha Dominice que aquelas alturas estava com dez anos de idade. O Padre Cosmo a meu pedido celebrava uma missa em intenção a alma da concubina de meu pai que falecera aos setenta anos de idade de acidente vascular cerebral. Como era de se esperar havia muitas pessoas no enterro, a maioria vizinhos do meu pai de origem italiana, espanhola e portuguesa. Aquelas velhas beatas dentro de seus vestidos de chita, blusas de lã desfiadas e meias grossas (provavelmente para esconderem as varizes) não paravam de chorar. Sob a proteção seus guarda-chuvas velhos faziam escândalos como se a tal da Concetta fosse alguma parenta ou alguma divindade vinda do céu. O choro insistente chegava a irritar. Duvidei que existisse sentimento legítimo ali a não ser de meus irmãos e de meu pai que a estas alturas tentava se erguer

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Grão Vizir da cadeira de rodas com algum esforço. Ao perceber que meu pai queria se levantar meu irmão Domênico o ajudou deixando que meu pai se apoiar em seus ombros. Senti uma pontada de inveja da cumplicidade escancarada entre os dois. Durante todos estes anos, meu pai não fez o menor esforço para se aproximar de mim, a não ser quando precisava do meu dinheiro. Eu fiz de tudo para conquistar seu amor e sua confiança, mas nada que eu fazia era suficiente. Continuei a ser ignorado por ele e por meus irmãos com exceção da minha querida Poliana que a cada dia se tornava mais indispensável em minha vida. Meus irmãos Domenico, Antônio e Damásio já haviam constituído família, apenas Lucas e Poliana continuavam a morar com os pais. A não ser Poliana, que havia concluído com êxito o curso de jornalismo nenhum dos meus irmãos se preocuparam com estudos. Eram operários em indústrias e se contentavam com os baixos salários que recebiam. Sei que meu pai os ajudava sorrateiramente com o dinheiro que e u depositava todo final de mês em sua conta. Nunca me incomodei afinal eram meus irmãos e eu não queria que passassem necessidades com a família. O que me deixava muito triste é que mesmo sendo um filho com sucesso reconhecido meu pai preferia os filhos bastardos. Homens acomodados sem nenhum tipo de ambição que se contentavam com pouco. O máximo de lazer que se permitiam era uma ida ao zoológico uma vez por ano com as crianças ou um bate e volta em carros que mais pareciam destroços até alguma praia poluída do litoral. Cheguei a oferecer emprego na minha indústria se eles concluíssem no mínimo o primeiro grau, porém fui sempre mal interpretado. Não conseguiam enxergar que eu queria apenas o bem deles. Eu era sempre visto como prepotente e arrogante. O rico metido. Acho engraçado como certas pessoas ao ver o sucesso de outras as atacam dizendo que para elas tudo é fácil e sempre arranjam uma desculpa para o próprio fracasso. Na minha vida nada foi fácil. Eu tinha tudo para me tornar um delinqüente, mas tive forças para não me abater. Trabalhei duro sem ter sábados, domingos, muito menos feriados. Fui subindo os degraus do sucesso um a um. Quantas vezes tive que descer para poder subir novamente. Isso ninguém enxergava. Achavam que o meu dinheiro caia do céu. Como se isso não bastasse, ao contrário de muitos, não sucumbi aos diversos planos econômicos lançados a cada mudança do governo Brasileiro. Resisti à inflação, ao troca-troca de moedas e o maldito confisco adotado no plano Color. Mas apesar de todos esses fatos, minha consagração no mundo da moda foi obtida no dia dezoito de Julho de mil novecentos e noventa e seis no desfile inaugural do evento de modas de São Paulo: Morumbi Fashion que anos depois se tornaria São Paulo Fashion Week. Tornei-me indiscutivelmente o estilista preferido de dez entre dez homens famosos, modernos e chiques do país. Eu vestia desde celebridades, passando por políticos até chegar aos grandes empresários. Fiz por merecer esse meu sucesso. O Grão Vizir moda masculina iniciou seus trabalhos fornecendo suas roupas para algumas lojas. Utilizava em minhas coleções tecidos importados, pois acreditava na qualidade acima de tudo. A fábrica saiu da Oscar Freire. Foi construída uma fábrica moderna em Jundiaí. A pequena fábrica da Oscar Freire foi reformada e transformada na primeira loja da marca Grão Vizir. Arrisquei alto nessa empreitada e graças a muito trabalho a loja tornou-se um sucesso. Com o tempo abri mais duas lojas nos Shopings Ibirapuera e Iguatemi e passei a comercializar minhas próprias roupas. Fui reconhecido internacionalmente como referência em moda masculina no Brasil e no mundo. Outras três lojas foram inauguradas nos anos noventa: Uma em Milão, outra em Paris e uma em Nova York no ponto mais cobiçado de Manhattam. A Quinta Avenida. Minha grife estava presente nos maiores eventos de moda do mundo. Em mil novecentos e noventa e nove, lancei a etiqueta Grão Vizir Sport acrescentando nessa linha peças mais casuais como camisas em tecidos especiais, tricô, jaquetas e 99


Patrícia Franconere calças jeans. Mesmo com todo meu sucesso profissional, continuei a ser uma pessoa comedida. Eu era avesso às badalações. Estava presente apenas em eventos que necessitavam realmente de minha presença. Eu ainda era facilmente encontrado debruçado sobre meus croquis. Para lidar com a imprensa contratei minha querida Poliana como assessora para dar entrevistas em meu nome. Nela eu depositava minha inteira confiança. Tentei evitar o enterro, só não o fiz em consideração a meus irmãos que apesar de me evitarem não tinham culpa nenhuma da mãe promíscua que os criou. A pedido de Betsabá, custeei o enterro, afinal enterrar uma pessoa naquele cemitério não saia nada barato e eu sabia que meu pai muito menos meus irmão teriam condições financeiras para tanto. A maldita mulher por quem meu pai se apaixonou repousa ali no silêncio definitivo dos mortos num túmulo sóbrio e simples. Ainda assim bem mais do que ela merecia. Bem mais do que minha santa mãe teve. Voltei a Crotone por duas vezes incógnito apenas para visitar o túmulo de minha mãe. Minha presença no enterro da bruxa velha foi útil, pois me levou a ter a idéia de trazer os restos mortais de minha mãe para ser enterrado no Brasil, já que eu não tinha a menor pretensão de voltar para Crotone. Eu era grato a terra estranha que me acolheu de braços abertos e me trouxe fortuna.Eu havia me tornado um legítimo Brasileiro. Eu fumava meu Marlboro quando vi um homem desconhecido de boa aparência se aproximar de Betsabá. Ele usava uma jaqueta marrom de couro. Fiquei atento. Ela agora estava só já que Dominice foi consolar o avô. Percebi que o homem trocou algumas palavras com minha mulher. Ela respondeu alguma coisa, olhou para trás, nossos olhos se cruzaram e imediatamente ela voltou a olhar para frente. O tal sujeito se afastou. Senti tremores pelo corpo. Quem era aquele homem? E o que ele teria dito a ela? Porque ela olhou para mim receosa? Após três meses de namoro eu e Betsabá nos casamos apenas no civil (eu ainda era avesso a cerimônias religiosas). Alugamos um pequeno apartamento de dois quartos no bairro da Liberdade.Sua mãe morou conosco até sua morte cinco meses depois.A coitada morreu sem ver a ver a cor do dinheiro da bendita pensão do marido.Mas o processo ainda corria na justiça.Não demorou muito para que Betsabá recebesse o montante atrasado.Não quisemos saber do dinheiro apesar de nossas dívidas.Aquele dinheiro não nos pertencia.Betsabá comprou cestas básicas e fez doação a instituições de caridade.Boa parte de nossas vidas vivemos naquele apartamento num prédio cujo os moradores eram a grande maioria orientais.Os primeiros anos de casamento foram tranqüilos,com muito amor e cumplicidade.Eu amava Betsabá.Como eu a amava! Ela era tudo para mim. Eu era o oposto do meu pai. Eu a cercava de mimos e estava sempre presente. A cada ano que passava ela continuava mais e mais linda. Na gravidez de Dominice ela se tornou ainda mais bela. Seu rosto estava sempre iluminado com aquele sorriso infantil que lhe era peculiar. Aliás, Betsabá estava sempre contente, ria a toa. Adorava fazer brincadeiras bobas e isso me encantava. “Você pode descobrir mais sobre uma pessoa em uma hora de brincadeira do que em um ano de conversa.” dizia Platão. E eu assinava embaixo. Éramos grandes amantes, amigos e cúmplices. Ela me contou tudo a respeito de sua vida e eu contei da minha. Tudo em seus pormenores. Pela primeira vez em minha vida eu era feliz. Com o nascimento de Dominice passei a sentir ciúmes de Betsabá. Ao contrário de muitas mulheres, após o parto de Dominice, Betsabá voltou rapidamente ao seu peso, porém seus seios estavam mais volumosos, os quadris mais largos e a pele do rosto tão lisa e clara como de uma boneca de porcelana. Minha mulher se tornou ainda mais sedutora. Passei a incluir em minha lista de sandices o fantasma do ciúme. A morte de minha mãe que há algum tempo tinha se afastado dos meus pensamentos, voltaram ainda com mais freqüência. E eu passei a enxergar em cada homem que se aproximava de Betsabá um rival em potencial. Por algum motivo desconhecido passei a achar que os outros homens tinham muito mais a oferecer a ela do que eu. Cada sorriso que ela lançava a qualquer homem eu achava que ela estava se oferecendo. Para evitar que ela se

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Grão Vizir interessasse realmente por outro homem comecei a inventar mil artifícios para que ela não saísse de casa. Esse meu autoritarismo foi aumentando gradativamente sem que eu percebesse. Betsabá foi se tornando uma mulher triste e às vezes deprimida. Mas eu preferia assim. Chamava menos atenção dos homens. Quando minha irmã Poliana dizia para mim que eu estava podando demais minha mulher uma frase do meu amigo Abdalla vinha à tona: “Ele ve o que os outros não vêm” E eu me convencia disso da maneira mais tosca que alguém poderia supor. Os quinze anos de casados fizeram bem a Betsabá apesar de todos os momentos difíceis que passamos. Ela estava ainda mais linda e radiante. Ela soube se libertar das minhas amarras antes que eu a destruísse com meu ciúme. Apesar da maturidade dos seus trinta e cinco anos continuava com o ar jovial. Seus cabelos ainda eram sedosos e continuavam com o castanho natural, sem o menor indício de cabelos brancos ou qualquer tipo de coloração. Suas covinhas nas bochechas eram ainda mais encantadoras e seu corpo continuava em forma com tudo no lugar sem nenhum tipo de esforço. Eu me punha no lugar de outros homens e sabia o quão difícil era resistir àqueles encantos tão femininos. Tive vontade de ir atrás do sujeito para saber o que ele queria com minha mulher. Mas me contive apesar dos maus pensamentos não saírem da minha cabeça. Eu inda morria de ciúme da minha Betsabá. Eu não conseguia ver a minha vida sem ela. Imaginar que ela poderia se apegar a outro homem me torturava. Às vezes eu achava que não tinha motivos para isso, mas na grande maioria das vezes eu tinha quase certeza de que ela me traia. Tínhamos uma vida confortável. Morávamos em um belo apartamento no bairro de Moema, tínhamos uma bela casa na praia da Enseada no Guarujá e um sítio em Bragança Paulista. Ela pouco trabalhava em casa já que tínhamos empregados fixos em todos os imóveis. Eu a tratava como uma verdadeira princesa. Viajávamos constantemente para fora do país. Eu lhe dava tudo o que meu dinheiro podia proporcionar, mas ela parecia nunca estar satisfeita. Seu sorriso nunca era dirigido a mim. Parecia que minha presença a incomodava. Ela só se sentia feliz ao lado de outras pessoas. O sepultamento enfim havia terminado.Chamei o padre Cosmo,a dona Catarina e seu João para entrar no carro pois eu os levei até o cemitério e os deixaria em casa.Em pouco tempo estávamos todos dentro do meu Land Rover Freelander zero quilômetros na cor preta.Era um carro importado.Eu havia comprado o carro há apenas uma semana e seu interior continuava com o cheiro característico de carro zero.O carro era espaçoso e acomodava muito bem nove pessoas.Assim que dei a partida Poliana aproximou-se da janela do motorista. — Belo carro irmão! É esse que você comprou? — ela me perguntou após dar um tapinha de leve no meu braço. — É esse mesmo Poliana. Quer aproveitar a carona?

— perguntei.

— Não.Estou indo com o pai para casa.Ele não deve estar ndada bem.Você falou com ele? — Só duas ou três palavras.Percebi que ele não estava muito a fim de falar comigo.Eu não sou a pessoa mais indicada para consola-lo. — Eu sei.— ela me respondeu com um meio sorriso. — E você como está? — perguntei ao perceber a tristeza em seu olhar. — Mal.Mas vai passar. — Quer ficar lá em casa Poliana? — perguntou minha mulher que estava sentada ao meu lado.

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Patrícia Franconere — Não obrigada Bete.Nesse momento tenho que dar apoeu ao meu pai.Ele já está velho e precisa de cuidados. — Deixe eu te levar para casa.Assim você aproveita e estréia o meu carro novo.— eu disse para quebrar a tristeza que corroia seu peito. — Não faltará oportunidade meu irmão.Se eu tive que andar com você naquele Fiat ridículo que voce tinha anos atrás tenho todo o direito de andar nessa máquina. Assim ela se afastou.

29 Chegamos a nosso apartamento por volta das seis da tarde. Morávamos em uma ampla cobertura que ficava no décimo sexto andar de um luxuoso prédio no bairro de Moema. Como de costume eu e Betsabá não trocamos uma única palavra dentro do carro durante o trajeto. Eu acabara de me sentar no confortável sofá da sala para fumar um cigarro. Eu estava nervoso e ansioso para ficar a sós com ela. Queria saber quem era o estranho que conversou com ela no cemitério e não sossegaria enquanto não tivesse a resposta. — Pai posso ir à casa da Fernanda? — perguntou minha filha Dominice meio reticente. — Fazer o que na casa dela há essas horas? — Ela me chamou pra dormir lá. — me respondeu baixinho. Dominice era uma linda menina de cabelos da cor do mel e tinha olhos verdes escuros como os meus. Parecia-se muito com a Poliana quando criança. Isso era algo que me intrigava. Por que meus meio irmãos pareciam-se tanto comigo fisicamente se a mãe era outra? Bom; genética nunca foi mesmo o meu forte. Quem sabe não seria uma intervenção divina para que eu os aceitasse com facilidade em minha vida. Certamente se eles se parecessem com a vadia velha eu os teria repudiado. — Você está cansada de saber que não gosto de você enfiada na casa dos outros. Se você quer brincar com ela chame-a aqui. Nesse momento percebi que Betsabá me olhava com atenção. — Mas pai, minhas amigas sempre dormem na casa das outras amigas. Por que só eu não posso? — Por que não. — Mas porque não pai? — Porque eu não gosto de você nas casa de estranhos. Eu não tive uma filha para os outros cuidarem. Você é responsabilidade minha e é aqui que você tem que ficar. Dominice segurava o choro. Era geniosa demais para expor sua fragilidade.

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Grão Vizir — Está te faltando alguma coisa? — perguntei. — Ta. — ela respondeu fazendo beicinho. — O quê? — Amigos! Assim que ela respondeu saiu pisando firme. Ouvi o bater da porta quando ela entrou no quarto. — Está vendo? — perguntei a Betsabá que assistia a cena calada. — É culpa sua! — acusei. — Culpa minha do quê? — Esses ataques histéricos que sua filha tem tido. Ela agora só pensa nos amigos. Só quer ficar fora de casa. Isso ela aprendeu com você. — Já vai começar? — perguntou Betsabá enquanto caminhava de um lado para outro e tirava as presilhas que prendiam seus cabelos. Vou para o quarto. Não estou a fim de ouvir sermões. — Você não está a fim de ouvir sermões ou está fugindo de mim como faz sempre? — Eu estaria fugindo de você a troco de quê? — ela me perguntou como sempre altiva. — Para não responder minhas perguntas. Aborrecida Betsabá sentou-se no sofá e me encarou. — Vai. Já percebi que se não lhe der atenção você não vai dar sossego. Então comece logo com a Inquisição Espanhola! — Não acho graça. — resmunguei após acender outro cigarro. — Muito menos eu. — Quem era aquele cara com quem você estava conversando durante o enterro? — Sei lá que cara você está falando! Conversei com tantas pessoas. — Claro que conversou. Quando é que te escapa a oportunidade de falar com estranhos. Você só não fala comigo, mas com os outros você sempre tem assunto. — Eu não tenho culpa se você vive calado remoendo o teu passado. Eu gosto de viver o presente. — Já percebi como você gosta de viver o presente. De preferência com pessoas estranhas como aquele homem que ta abordou no cemitério. — Deixa de ser ridículo. De que homem você está falando? 103


Patrícia Franconere — Não se faça de sonsa. Estou me referindo aquele homem de jaqueta marrom com quem você estava conversando durante o enterro. Você acha que não percebi que você olhou para trás para ver se eu estava observando? — Não estou dizendo que você é ridículo? Aquele homem é irmão da esposa do Domênico. Ele veio me dar os pêsames. Ele certamente teria feito o mesmo com você se você não tivesse esse maldito hábito de se esconder das pessoas. E eu olhei para trás para te dar um toque. Queria que você se aproximasse ao menos para cumprimentar as pessoas que estavam ali. — Eu não me escondo de ninguém. Esse é o meu jeito. Você me conheceu assim e tem que respeitar. — Você também me conheceu alegre, cheia de vida e com vários amigos. Por que você também não respeita a minha maneira de ser? — Você é uma mulher casada. — Sou casada, mas continuo sendo um ser humano como qualquer outro. Tenho desejos, anseios, tenho fome de vida. — Eu conheço muito bem esse tipo de anseios a que você se refere. Conheci mulheres com esses desejos que te consomem! Após o comentário, Betsabá veio para cima de mim como um trem desgovernado. — Não me confunda com as vagabundas com quem você andou a vida inteira. Principalmente aquela piranha italiana que se deitava com pai e filho sem o menor constrangimento. — Eu sabia que se te contasse isso, você iria jogar na minha cara para o resto da vida. São inerentes as mulheres esse tipo de comportamento. Betsabá passou a responder para mim com certa ironia. — Assim como é inerente aos homens esse tipo de comportamento machista. No prato que comeu o pai come também o filho. Se é que você me entende. Depois fica aí se consumindo de remorso pela mãe. Maldizendo Deus ou o que é pior, renegando sua existência como se isso aliviasse em alguma coisa. Enfia-se naquela maldita loja maçônica todas as terças-feiras como se fosse encontrar nesse lugar as respostas para todas as suas perguntas. Betsabá não dava trégua. — Essa tal maçonaria para mim não passa de um “Clube do Bolinha”. Um bando de homens metidos besta que se acham melhores que todo mundo! Tenho a certeza de que a grande maioria que participa não compreende o verdadeiro sentido oculto. Apenas imitam o que os outros fazem. Estão lá apenas para ganhar status. — Você não sabe o que está falando. — eu disse contrariado. — Uma entidade que tem um conceito tão artificial de Deus e de Jesus Cristo e que não se opõe a quem venera o diabo não pode ser boa coisa!

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Grão Vizir — Você nunca se opôs que eu freqüentasse esses lugares! — E adiantaria alguma coisa eu me opor? Fiquei calado. — Fora aqueles livros de filosofia barata que mais complicam do que explicam. Agora para encerrar com chave de ouro, você fica para cima e para baixo com aquele livro, como é mesmo o nome? — ela fechou os olhos para tentar se lembrar e continuou. — Ah! ”Eram deuses os astronautas?” — disse com o dedo indicador e médio das duas mãos fazendo aspas imaginárias no ar. — Agora eu tenho que agüentar você com essa papagaiada de que Deus era um astronauta de outro planeta e que desceu a terra para “trocar o óleo da nave espacial” e os ignorantes daqui acharam que era O DEUS DO UNIVERSO. E que tudo na Bíblia sagrada tinha uma explicação. Uma intervenção alienígena eu diria. Não é a toa que você faz tanto sucesso com suas roupas. Criatividade não lhe falta. Betsabá quando começava a falar não parava sequer para respirar. Nesses momentos eu sempre me arrependia de ter iniciado uma discussão. Ela daria uma boa advogada já que argumentos era o seu forte. — Fico pensando como um homem tão bem sucedido nos negócios pode ser tão inseguro no campo emocional. Deixa-me só lhe dizer uma coisa. A sua mãe morreu porque tinha que morrer. Você não provocou aquele tremor de terra. Tão pouco foi punido porque se deitou com aquela puta calabresa. Você não é tão importante assim para Deus para que ele perca seu precioso tempo com isso. E seu pai não gostava de você muito menos de sua mãe. Aceite isso de uma vez por todas. Isso é um fato! — Você esta jogando baixo. Eu não mereço isso. Eu prometi a você quando nos casamos que nunca a trataria com o mesmo desprezo com que meu pai tratou a minha mãe a vida inteira. E cumpri o prometido. Eu tenho muito amor para te dar e você não quer receber! Logo você que um dia disse que queria morrer de amor! — Você já me matou de amor e agora me mata com o seu ciúme! Nesse momento perdi o chão. — Realmente você não me trata com o mesmo desprezo do seu pai, mas o teu ciúme doentio está me aprisionando e ninguém gosta de viver preso. Não há amor que resista. Caso você não saiba, eu não sou a Betsabá da Bíblia apesar do nome ser o mesmo. Eu não traí Urias com Davi e nunca pensei em trair você com homem nenhum nesse mundo! Tentei refletir, mas as palavras foram saindo da minha boca antes que os pensamentos se formassem. — Minha mãe daria um braço para que meu pai fosse tão presente na vida dela como eu sou na sua. — E eu dou a minha alma para você me deixar em paz! Respirei fundo enquanto ela continuava com a dissertação.

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Patrícia Franconere — Você só se esqueceu de um pequeno detalhe. Não existe só você no mundo. A troca de experiências é fundamental na vida qualquer ser humano. — ao falar seus olhos expressavam dor que eu sempre ignorava. — Que tipo de experiências você está se referindo e com quem seria essa troca? — Sua cabeça é muito suja. Deve ser anos de convivência com as vagabundas italianas e Brasil iras com as quais você sempre se deitou. — ela disse para provocar. Betsabá sabia o ponto exato para me tirar do sério. — Sempre não senhora. Depois que conheci você nunca mais sai com mulher nenhuma. Nunca mais senti necessidade porque eu te amo e você me completa. — Isso é o que você diz. Você é um homem elegante, culto, inteligente, é reservado, uma peculiaridade que o torna sedutor. Vive rodeado de mulheres interessantes nem por isso eu fico te prendendo. A essas alturas eu já tinha acendido mais de cinco cigarros. Betsabá sentara-se numa poltrona. _Você acha que é fácil passar a vida inteira trancada dentro de casa. Você me proibiu de trabalhar, de fazer uma faculdade de farmácia que eu tanto queria, de fazer cursos. Pensei até trabalhar ao seu lado, mas nem isso você permitiu. — Você tem uma filha para cuidar. — Foi bom você tocar no assunto. Porque até sua filha você quer acorrentada aos seus pés. A menina não pode ter amigos, não pode sair de casa. O mesmo ciúme que você tem por mim você tem por ela também. — Não é ciúme. É zelo. Não é porque eu fui abandonado pelo meu pai que vou fazer o mesmo com ela. — Isso não é zelo nem aqui e nem na China. Isso não passa de tirania. — O quê? Você está dizendo que sou tirano? Justo eu que trato as pessoas com igualdade! Pergunte aos meus funcionários como eles são tratados? Pergunte aos meus clientes? Não ganhei prestigio abusando da minha autoridade muito menos sendo cruel com meus funcionários. — Tenho certeza que não. A sua tirania só é revelada dentro dessas quatro paredes. Parei alguns segundos para refletir. Aquele discurso todo deveria ter algum motivo. E eu estava tão cego que não conseguia enxergar a verdade apesar de Betsabá esfregar a todo tempo na minha face. — O que é que está te faltando? Você não gosta mais de mim é isso? — eu perguntei com o coração apertado. Pela primeira vez após a explosão temporária ela falou com ternura. — Não. Eu não gosto mais de você. Eu amo você! Eu sempre amei e tenho certeza que amarei para o resto da minha vida. Mas é complicado viver com um homem que vê fantasmas em tudo quanto é lugar. É difícil conviver com uma pessoa que quer modelar a outra em seu próprio

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Grão Vizir benefício. Eu não sou “massinha” e sua filha menos ainda... Eu queria muito que você parasse de se torturar por causa do seu passado. Pare de uma vez por todas de procurar em seu passado, desculpas para explicar o seu presente. Você sofre com isso e faz as pessoas que estão ao seu redor sofrerem também. Definitivamente você não tem culpa de nada. E queria que você parasse de se humilhar para o seu pai. Você fica implorando por migalhas. Esperando por um amor que nunca existiu. Para o seu pai ele só teve cinco filhos e uma mulher. A tal Concetta. E você nunca foi um filho para ele, apenas a caixa forte de um banco. Ele é como um bandido. Está apenas te estudando para saber qual o melhor momento para te assaltar! Você deveria largar mão dos seus irmãos. Com exceção da Poliana que é um doce, nenhum deles nunca quis saber de você. — Não é bem assim. Eles só não queriam aborrecer a mãe. Sabiam que ela não me queria por perto. Eu faria o mesmo se tivesse no lugar deles. — A Poliana também sabia dos sentimentos da mãe nem por isso se afastou de você. E olha que ela é mulher e sei das discussões acirradas que ela tinha com a mãe por sua causa. — Tenho certeza que com a morte daquela bruxa meus irmãos também se aproximaram de mim. — Não confie muito nisso. Você não é bom quando se trata de sentimentos alheios. E também não sei por que insiste tanto em querê-los por perto. Você não sabe conviver com pessoas. Você é sozinho por vocação.

30 Moema, São Paulo, março de 2001. Eu estava com quarenta e cinco anos de idade. Eu estava em meu quarto de portas fechadas tocando meu Stradivarius sentado em minha confortável cama quando ouvi de longe um ruído. Pousei lentamente o instrumento no colo para prestar atenção, como não ouvi nada voltei a tocar. Era domingo à tarde. Meu quarto era amplo com os móveis e as paredes em tons pastel. O cômodo era ricamente decorado com obras de arte adquiridas em viagens que fiz pelo mundo com minha Betsabá. Fazia muito calor por isso o ar condicionado estava ligado. A veneziana da janela estava aberta, porém os vidros permaneciam fechados para que o ar frio não escapasse do ambiente. Os raios do sol penetravam pelos vidros iluminando o ambiente. Eu tocava um “Nocturne” de Frèdèric Chopin quando o ruído mais uma vez chamou minha atenção. Parei novamente meu concerto solitário e permiti que meus ouvidos captassem o os sons vindos de fora. Mais uma vez, não ouvi absolutamente nada. Voltei a tocar. Chopin era inegavelmente meu músico predileto,e os “Nocturnes” pequenas peças para solo de piano era sem dúvida o que podia existir de melhor na música erudita(na minha modesta opinião).Se eu morresse amanha,gostaria de ser lembrado com a peça Nocturne,Op.9 nº22 solo de violino.Voltei a me concentrar no som do meu violino. Muitas pessoas ficavam impressionadas como eu podia tirar sons tão perfeitos do violino sem ler as partituras. Mas para mim isso era tão simples quanto cortar um blazer. Novamente ouvi um ruído. Dessa vez me levantei e com o violino e o arco em uma das mãos e abri a porta do quarto bruscamente. No corredor encontrei a figura ridícula do meu pai curvado andando com dificuldade se escorando com uma das mãos na parede para poder se sustentar enquanto a outra tentava sem sucesso segurara as calças do pijama que

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Patrícia Franconere estavam frouxas. Sua tentativa de esconder as partes intima foi em vão, já que pude ver nitidamente seu traseiro branco e murcho e seu sexo envelhecido balançando como palhaços num trapézio. — Mas o que o senhor está fazendo aqui no corredor pai? — perguntei aborrecido. — Eu vim aqui pedir para um de vocês desliga aquele peste de ar que vocês têm aqui na casa. Eu estou com muita tosse, caspeta. Será que tão querendo me matar? Se for isso fala logo, que eu me jogo de aqui do alto e acabo com o sofrimento de vocês! — Para de fazer drama pai. — eu disse em tom severo enquanto tentava erguer as calças do velho ranzinza. Coloquei o violino e o arco no chão para facilitar. — O senhor não pode sair da cama. Está fraco.Poderia ter tropeçado em algum tapete e caído a qualquer momento.O senhor tem uma campainha sobre a cama justamente para tocar quando precisar de alguma coisa. — Mas eu toco, toco esta porcaria e ninguém aparece, porca miséria! Acho que vocês são tudo gente surda! — meu pai falava quase sussurrando. Não tinha mais energia na voz. Era preciso prestar muita atenção para entender o que ele dizia. — Vamos lá para o quarto pai que eu desligo o ar para o senhor. Caminhamos lentamente pelo longo corredor até o quarto. — Já pensou se a Dominice vê o senhor com as coisas de fora? O senhor precisa ter mais cuidado quando anda pela casa. A Dominice já é uma moça. — Mas o que você queria que eu fizesse caspeta! Essa porcaria de calça está frouxa! — Está frouxa porque o senhor não amarrou o cordão. Além disso, o senhor deveria estar com a fralda geriátrica. Por que tirou? — Eu não quero ficar parecendo um bambini! — Mas o senhor precisa usar. O senhor não tem mais condições de ir a toda hora ao banheiro. Já troquei seu colchão mais de três vezes em menos de dois meses. Não dá para trocar de colchão cada vez que o senhor fizer necessidades. Vou pedir para a enfermeira colocar novamente. Cadê ela? — perguntei assim que notei sua ausência. — Sei lá onde está aquela vaca gorda. Deve estar na cozinha enchendo aquela pança enorme. Eu não gosto dela. — O senhor não gosta de ninguém. Meu pai estava com oitenta e seis anos. Não gozava de boa saúde. Teve infarto há dois anos, e colocou duas pontes de safena. Precisava de atenção e cuidados especiais. Por esse motivo veio morar comigo já que meus irmãos não dispunham de muitos recursos para cuidar dele e muito menos boa vontade. Meu pai fez uma verdadeira peregrinação na casa dos outros filhos. Nunca passou de uma semana na casa de nenhum deles. Ninguém podia cuidar dele. Estavam todos muito ocupados. Ele tornou-se um fardo na vida dos meus irmãos. Justo os “queridinhos” não queriam ficar com ele. Meu pai já não tinha mais domínio sobre seu intestino e bexiga, por esse motivo usava fraldas. Contratei uma boa enfermeira para cuidar dele, mas ele vivia implicando com a mulher assim como fazia com as outras pessoas da casa. Betsabá por não ter mais paciência com as excentricidades do

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Grão Vizir velho não chegavas próximo do quarto dele. Dominice apesar de ser um doce de menina também não agüentava as broncas que vira e mexe ele dava. — Aquela enfermeira só pensa em me dar banho! Acho que ela gosta de me ver pelado. — “Vamo toma banho seu Giuseppe?” _ disse meu pai afinando a voz na tentativa de imitar a enfermeira. — Qualquer hora mando ela segurar meu cazzo. — Pai não começa. A dona Maria é muito boa enfermeira. — Ecco. De boa ela não tem nada. — Essa já é a quarta enfermeira que eu contrato para cuidar do senhor. Se o senhor espantar essa também, juro que te coloco num asilo! — Era só o que faltava mesmo. Você jogar teu pai num depósito de velho! — O senhor deveria se envergonhar. Estamos no Brasil, não na Itália. Aqui se toma banho todos os dias. O senhor parece que gosta de ficar fedendo pelos cantos da casa! Ninguém é obrigado a agüentar velho fedido! Olha só esse quarto que porquice! Nem parece que é limpo todos os dias. Que situação lamentável está esse cinzeiro. Nunca vi tantas bitucas num único lugar! Qualquer dia o senhor bota fogo no apartamento. Apesar da idade avançada, meu pai fumava cerca de três maços de cigarro por dia. Era um cigarro atrás do outro e ele só apagava quando a brasa atingia o filtro. Seu dedo indicador da mão direita foi diversas vezes foi queimado pela brasa do cigarro. Porém meu pai se quer percebia. Os dedos já estavam calejados. Cheguei a perguntar para os médicos se o cigarro não fazia mal para a saúde dele e os médicos me responderam que naquela idade faria mal se ele parasse de fumar. — Você só reclama! — disse meu pai enquanto tentava em vão segurar a calça do pijama. Estiquei o lençol, e ajeitei o travesseiro enquanto meu pai resmungava. Por mais que a empregada limpasse o quarto, não saia aquele cheiro desagradável: Um misto de couro velho com tabaco. — Vem aqui pai que eu lhe ajudo a se deitar. — Ma eu não quero deitar! — E o que o senhor quer? _perguntei já que nada para meu pai estava bom. — Eu quero comer uma banana. — Agora? O senhor já comeu duas na hora do almoço? — Agora vai ficar regulando as porcarias da banana? — reclamou meu pai enquanto eu o ajudava a se sentar. — O médico falou para o senhor diminuir o carboidrato. — expliquei em vão.

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Patrícia Franconere — Médico... Médico... Esses médicos num entende de nada. — Ta bom pai, eu vou lá na cozinha pegar a sua banana. — Eu quero duas. — Vou pegar uma só. Às vezes eu me perguntava para onde ia tanta banana. Meu pai era fanático por essa fruta. Sua preferida era a banana nanica. Mas não podia ser aquelas pequenas, sempre me pedia que escolhesse na feira as gigantes. Voltei instantes depois, com uma banana descascada, um pano limpo umedecido em água e um pequeno saco plástico. Entreguei a banana ao velho que permanecia sentado na cama apoiando-se com uma das mãos no colchão. Percebi sua cara amarrada. — O que foi dessa vez? Não era a banana que o senhor queria? — Quantas vezes eu tenho que falar que não gosto quando me dão banana descascada? — disse meu pai com a voz chorosa. Eu odiava quando ele fazia aquilo. — O SENHOR VAI MANGIARE A CASCA POR ACASO? — perguntei no limite da minha paciência. Ele permaneceu calado. Peguei a banana de volta e a comi toda em duas mordidas. Mesmo contrariado fui buscar outra. — Toma pai! queria?

Essa está com a casca. Ta bom assim para o senhor? Era isso que o senhor

Meu pai ao pegar a banana olhou-a com intensidade. — A outra era maior. — concluiu o velho esganado. Às vezes eu achava que ele fazia birra só para me provocar. Mas analisando melhor eu concluía que ele era irritante mesmo. Sempre foi. — Agora eu vou ter que andar com uma trena para cima e para baixo para medir as bananas para o senhor? Meu pai não respondeu. Mas ficou com aquela cara de “nada” quando está contrariado. — Vê se come logo essa porcaria, caso contrário ela volta para fruteira. O velho teimoso começou a descascar lentamente a banana. Enquanto ele se distraia com a fruta eu tentava limpar um pouco da sujeira que ele havia deixado sobre criado mudo. Eu jogava as bitucas de cigarro dentro do saco plástico quando percebi que ele não conseguia descascar a bendita. — Me dá aqui essa porcaria que eu descasco. Tomei a banana das mãos do meu pai e a descasquei em milésimos de segundo.

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Grão Vizir — Toma. Vê se come logo e se deita. Dá um pouco de sossego. Meu pai começou a comer lentamente. Era uma tarefa árdua já que ele não possuía dentes e se recusava a usar próteses. Voltei a limpar o cinzeiro. Entre uma bituca e outra eu o observava atento. Seu corpo grande e fragilizado mal conseguia se sustentar sozinho. Suas mãos levavam um tempo considerável para levar a fruta até a boca. Elas eram fracas e trêmulas. Estavam longe do vigor que tinham quando se afundavam em meu crânio, quando espancavam minha mãe sem o menor indício de humanidade ou quando percorriam as curvas tentadoras da dona Amparo nas tardes quando sumia de casa. O homem que um dia impôs medo em casa e despertou desejo das mulheres estava agora diante de mim devastado pela ação impiedosa do tempo. Ele comia a fruta como se fosse à última que comeria na vida. Acho até,que com aquela idade tudo o que ele fazia,era como se fosse à última vez. Então ele fazia com intensidade inclusive encher com esmero a minha finita paciência. — Essa porcaria suja toda a mão! — resmungou meu pai me mostrando as mãos lambuzadas de banana. Só ele mesmo para sujar as mãos com uma única banana. — Sujou toda sua mão porque o senhor não tem cuidado! — respondi aborrecido. Peguei o pano úmido e comecei a limpar as mãos do meu pai. _O senhor é pior que criança! Da próxima vez vou pedir para a empregada amassar a banana. Se quiser r vai comer no prato com uma colher. — Mas ta pensando o quê? Que sou porco para comer lavagem? Não respondi. Passei a limpar sua boca. Esfreguei o pano delicadamente em seus lábios finos. Meu pai era uma pessoa muito branca, por esse motivo as manchas de senilidade na pele eram evidenciadas no rosto, no dorso da mão e nos braços. Seus cabelos estavam praticamente extintos. Uma penugem ou outra se acumulava desordenadamente na face. Isso quando passava semanas sem se barbear. Seu nariz e suas orelhas aumentaram de tamanho com o passar do tempo. Mas cresciam para baixo. Enquanto eu o limpava ele permanecia com os olhos fechados. Parecia apreciar esses breves momentos de intimidade. Mas com meu pai nunca se tinha certeza de nada. — Pronto, o senhor já está limpo. Agora vê se deita e dorme um pouco. Entendeu? — Nesta casa velho só serve para dormir, caspeta! Ignorei as reclamações do meu pai e o ajudei a se deitar. Cobri seu corpo com uma manta fina. Quando eu estava saindo do quarto ele voltou a reclamar. _ Este travesseiro está me importunando! — reclamou o choramingão. — Joguei o saco de lixo sujo e o pano umedecido com estupidez sobre o criado mudo. Ergui a cabeça do meu pai com cuidado e ajeitei o bendito travesseiro. — Ta bom assim? — perguntei. _Agora ta. _respondeu meu pai com cara de satisfação. Eu já estava fechando a porta do quarto quando ele gritou: — O ar!

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Patrícia Franconere Rodei nos calcanhares e voltei. Contive o riso enquanto caminhava até a parede ao lado da janela onde ficava instalado o ar condicionado. Assim que desliguei saí do quarto com uma rapidez meteórica. Sequer olhei para o meu pai cujo olhar eu sentia queimar em minha nuca. Durante todo o tempo que meu pai permaneceu hospedado em minha casa, senti várias vezes a necessidade de perguntar por que ele maltratou por anos a fio a minha querida mãe. Quais os méritos que filhos bastardos possuíam para merecer o seu amor incondicional que ele não encontrava em mim. Nunca tive coragem de perguntar, talvez por medo da verdadeira resposta. Aquela resposta derradeira que acaba de vez com nossas esperanças. Era melhor não obter uma resposta do que ouvir: “Eu nunca gostei de vocês” Minha pergunta permaneceria para sempre presa na garganta, e eu sem resposta.

31 Eram sete e trinta da manha de uma quarta-feira. Eu minha esposa Bete e Dominice tomávamos café da manhã na copa. Numa mesa quadrada de granito, nos servíamos de pão francês leite com achocolatado bolo e frios variados. Estávamos em silêncio, que era cortado de vez em quando apenas pelos ruídos dos talheres na mesa. — O seu Giuseppe vai me deixar doida! — disse a enfermeira ao passar pela copa em direção à cozinha. — O que foi que ele aprontou dessa vez? — perguntou a Bete. — Ele virou a tigela sem querer e caiu toda a sopa de pão com leite no carpete. Fiz menção de levantar, mas a Betsabá me impediu segurando meu braço. — Senta e toma o seu café. Voltei a me sentar. — Maria peça para a empregada limpar a sujeira, por favor. — Eu mesmo limpo dona Bete. — disse a enfermeira saindo logo em seguida. Betsabá não disse mais nada. Porém eu sabia há tempos que ela se incomodava com a presença do meu pai naquela casa. Continuei calado para evitar discussões desnecessárias. Voltamos ao silêncio inicial. — Mãe, me deu o maior medo essa noite! silêncio torturante da copa. — O que foi que aconteceu Dominice? — Aquela paralisia novamente. — Que paralisia? _perguntei.

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— disse minha querida Dominice quebrando o


Grão Vizir — Há tempos sua filha tem tido uns pesadelos estranhos. Ela diz que acorda no meio da noite e não consegue mover o corpo. — Como assim não consegue mover o corpo? — perguntei intrigado. — É pai. Às vezes eu me deito, fecho os olhos e de repente não consigo mais mover o corpo. — Você não consegue mover o corpo porque está dormindo Dominice. — explicou Betsabá. — Mãe, eu não to dormindo quando isso acontece! — respondeu Dominice contrariada. — Eu estou acordada, estou consciente, sei tudo o que se passa a minha volta, só não consigo abrir os olhos ou me mexer. — Claro que está dormindo filha. Isso é pesadelo. Todo mundo tem. — Eu nunca tive isso. — informei como se alguém ali naquela mesa quisesse ouvir minhas experiências pessoais. — Mãe. Para uma pessoa ter pesadelo ela precisa estar dormindo, quando isso acontece comigo eu estou acordada! Eu tento me mexer, mas o meu corpo parece não ouvir os comandos do cérebro! — Ta bom filha, qualquer dia desses te levo num psicólogo para ver o que você tem. — disse Betsabá enquanto cortava um generoso pedaço de bolo de laranja. — A senhora não está me levando a sério, mas é verdade. É muito ruim ter esse tipo de sensação. Já faz muito tempo que eu tenho isso, mas agora está piorando. — Isso deve ser cansaço filha. Você tem estudado muito e agora que resolveu trabalhar na parte da tarde na loja do seu pai. Você não tem tido tempo para descansar. Deve ser um alerta do corpo. Pode estar relacionado também com a adolescência. Seu corpo esta sofrendo transformações constantemente. Teorizou a mãe. — Não é cansaço mãe. — enfatizou Dominice. — Esta semana vou à igreja da Achiropita fazer a sua inscrição para o catecismo, já aproveito e peço para o padre Cosmo benzer você. — Essa menina está precisando de um médico e não de um padre! catecismo? _perguntei irritado.

E que papo é esse de

— A Dominice vai fazer o catecismo. — Me informou Betsabá. — Você já me obrigou a batizá-la e agora vem com esse negócio de catecismo? — Você fez não fez? — perguntou Betsabá. — Fiz e não acrescentou nada na minha vida. Hoje enxergo as coisas por outro ângulo.

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Patrícia Franconere — Quem sabe o dia em que eu não pegar mais você fazendo o sinal da cruz eu acredite em suas palavras. Enquanto isso não acontecer ela vai fazer o catecismo como eu e você fizemos. E não se esqueça que foi a dona Catarina que fez questão que ela fosse batizada porque ela e o seu João queriam ser os padrinhos. O pedaço de pão que eu acabara de engolir desceu raspando a garganta. Despejei o restante do leite que estava na xícara para ajudar a massa de glúten encontrar o caminho tortuoso até o estômago. Como eu gostaria que o leite ajudasse a descer também as besteiras que Betsabá dizia especialmente naquela manhã. — Aquilo foi uma conspiração entre você a dona Catarina o seu João e o padre Cosmo. Estão todos mancomunados na intenção de me converter novamente ao catolicismo. Sinto decepcioná-los, mas aviso que isso é perda de tempo. Eu já tinha me levantado da mesa quando Dominice me perguntou: — Pai, eu posso fazer um baile de debutante no meu aniversário de quinze anos? Voltei a me sentar. — Como assim, baile de debutante? — Ah pai. Vai me dizer que o senhor não sabe o que é um baile de debutante? — Claro que sei o que é um baile de debutante, eu quero saber para quê você quer um baile. Não pode comemorar seu aniversário com um bolinho como tem feito todos os anos? — Se liga pai. Todas as minhas amigas fazem baile quando completam quinze anos. — Pensei que isso tivesse caído em desuso. — Me causa espanto você que é uma pessoa ligada à moda não saber dessas coisas. — comentou Dominice enquanto mordiscava uma torrada. — Você não conhece seu pai Dominice? Com certeza ele não quer que você faça festa. Imagina se ele vai querer estar num lugar cheio de gente? Ele quase não comparece aos eventos de moda, quem dirá um baile de debutantes. É bem provável que ele prefira comemorar seu aniversário dentro do quarto do seu avô. — Já vai começar Betsabá? — perguntei indignado. Voltei à atenção para Dominice. — O que você vai precisar para esse tal baile? — A gente precisa alugar um salão de festas e contratar um serviço de bufet. Tem salão que já tem o serviço de bufet incluso. Preciso de no mínimo dois vestidos longos de festa... — Dois? — perguntei surpreso.

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Grão Vizir — Claro pai. O senhor não quer que eu vista o mesmo vestido à festa inteira quer? — perguntou Dominice entusiasmada. _E conto com a sua genialidade para desenhar os modelos exclusivos para mim. _concluiu a linda jovem esfuziante. Eu sorri nesse momento. Sua alegria era contagiante. — Não está muito cedo para pensar nisso? Seu aniversário é só em setembro. — concluí. — Se liga pai. A gente tem que alugar o salão com antecipação caso contrário só vamos encontrar as porcarias. O senhor também não está trabalhando na sua próxima coleção de inverno mesmo ainda sendo verão? — Estou. — admiti. — Então? É quase a mesma coisa! Isso sem falar que tem o meu vestido também. O senhor precisa gerar nessa sua cabeça criativa algo maravilhoso, divino, celestial... — Devagar com o andor, eu não disse que concordava. — Eu falei para você não criar expectativas Dominice. Teu pai é avesso a festas, mesmo que seja da própria filha. _disse Betsabá enquanto revirava com os dedos os farelos de torrada sobre a toalha da mesa. Imaginei por um instante que o conceito que ela fazia mim numa escala de zero a dez oscilava entre zero e um. Decidi que já era tempo de avançar o ponteiro. — Mas também não disse que não concordava. — Betsabá me olhou com um misto de surpresa e alegria. Dominice deu um salto da cadeira e veio ao meu encontro. — Meu paizinho... Meu paizinho... Eu sabia que você iria permitir. Você é rabugento, mas nem tanto! Ela me abraçou com força e me beijou a face. Por incrível que pareça ainda me sentia constrangido com essas demonstrações de afeto escancarado. Pela primeira vez no último mês vi um lindo sorriso iluminar o rosto da minha querida Betsabá. — Não estou com tempo disponível para cuidar dos assuntos inerentes a festa. Isso fica por sua conta e da sua mãe. Não se preocupem com dinheiro. Façam o melhor. E se você quiser mesmo que eu desenhe seu vestido... — Seus vestidos! — corrigiu Dominice. — Tudo bem, SEUS VESTDOS é bom dizer o que você pretende o quanto antes, pois como você mesma disse eu tenho a coleção de inverno para me preocupar. — Pai você pode também fazer um vestido para a Naiara? — perguntou Dominice com a cara de pau dos jovens. A propósito, Naiara era uma amiga dela. — Absolutamente não! As únicas mulheres para quem eu costuro é você sua mãe. Mais ninguém. Trabalho com moda masculina. E por falar nisso, preciso me apressar. O Abdalla vai ao escritório hoje, tenho muitas encomendas de tecidos importados para fazer.

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Patrícia Franconere Saí apressado. Betsabá me acompanhou até a porta. Há muito tempo ela não vinha cumprindo esse ritual. Encostada no batente ela me puxou e me beijou suavemente os lábios. Vi nitidamente a chama da paixão em seus olhos. Enlacei-a pela cintura e beijei seus lábios com desejo e paixão.

32 São Paulo, 20 de setembro de 2001. Era uma manhã nublada e fria. — Você já pegou as chaves do carro pai? — perguntou Dominice com a porta da sala aberta. — Peguei filha. — respondi enquanto levava as malas para a sala. — Vai logo pai! — intimou Dominice. Ela não conseguia esconder a ansiedade. — Calma menina, seus padrinhos não vão sair de Borá! — expliquei. — Não sei por que o seu João e a dona Catarina foram morar numa cidade tão longe! resmungou Betsabá.

— Ele nasceu naquela cidade. Seus irmãos estão todos lá. — Aquilo não é cidade é uma aldeia. — explicou Dominice. — Concordo plenamente. Mas não posso falar muito, Crotone não era muito maior. — concluí com uma ponta de saudosismo. — Vai logo pai,não enseba,são mais de quatrocentos Quilômetros! — E é pra mim que você vem falar? Quem inventou de ir buscar seus padrinhos para o seu aniversário foi você. — É claro, você acha que eu não iria convidá-los para virem no meu aniversário? Que culpa tenho eu se o meu padrinho está tão velho que não consegue mais dirigir. — explicou Dominice com uma pitada de ironia. — É você tem razão. — concluí. — Maria qualquer coisa você liga no meu celular! — avisei. — Tudo bem seu Ferdinando. Mas pode ficar tranqüilo, seu pai vai estar bem. — Pai se toca! Você acha mesmo que o celular pega naquele lugarejo? Duvido que tenha até mesmo telefone fixo; quem dirá antena de celular. — Nossa, mas essa cidade que vocês vão é tão pequena assim? — perguntou a eficiente Maria.

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Grão Vizir — Você já viu um dedal? — perguntou Dominice a enfermeira. — Claro que já. — Pois a cidade cabe toda dentro de um e ainda sobra espaço. Lá não existem carros. O pessoal anda a cavalo e ônibus eles nunca viram, se locomovem por meio de charretes. A Maria riu divertida. — Pai já vou avisando que vou ouvir música no caminho. — Só quando estivermos na estrada. Vou ouvir o noticiário do rádio. Quero saber notícias a respeito dos atentados de onze de setembro. — Que coisa chata pai! Saímos do apartamento às dez e meia da manhã. Paramos na estrada para almoçar e algumas vezes para as necessidades fisiológicas. A viagem foi tranqüila, porém demorou mais de seis horas contando com as paradas. Chegamos a Borá no final da tarde de quinta-feira. Estávamos exaustos e famintos. Fomos recepcionados no portão pela dona Catarina que andava com uma certa dificuldade devido à idade avançada. Nos cumprimentamos e entramos em seguida.A casa ficava na cidade próximo a prefeitura.Era uma casa branca de portões azuis circundada por uma varanda.Havia uma rede estendida onde estava deitado o seu João.Assim que ele nos viu levantou-se com esforço titânico e veio até nós. — Que bom que vocês vieram! — disse o seu João enquanto abraçava a afilhada. — Que trabalhão estamos dando a vocês não é? — continuou enquanto cumprimentava Betsabá e eu. — Não é trabalho nenhum seu João. É um prazer. — concluí. _Essas horas vocês deveriam estar tomando providências com relação ao aniversário. _disse dona Cataria. — Não se preocupe dona Catarina. Está tudo acertado. O bufet se ocupará de tudo. E para dizer a verdade fazia muito tempo que eu não pegava uma estrada. E é tão bom viajar, a gente espairece a cabeça. — Isso é mesmo. — disse dona Catarina com um sorriso largo. — A cidade apesar de minúscula é um encanto. Agora eu entendo por que vocês vieram para cá. Concluiu Betsabá sorridente. Nesse momento uma moça loira de cabelos claros aproximou-se sorridente. — Martina, você está aqui também? — perguntei surpreso. — Vim na semana passada. Não tive aulas na faculdade essa semana, por isso, vim ver meus avós. — Você veio sozinha de carro? — perguntei.

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Patrícia Franconere — Não. Eu não dirijo na estrada. Meu pai me colocou no ônibus. — E como vão seus pais? Eles irão à minha festa? — perguntou Dominice. — Eles estão bem. Claro que sim. Eles gostam muito de você Dominice. — disse Martina sempre simpática. — E eu deles. — emendou Dominice. — Vamos entrando pessoal que está frio aqui fora. Vocês devem estar com fome não é? — Morrendo. — informei. _Que cheirinho delicioso é esse dona Catarina? É o que eu estou pensando? — — É isso mesmo meu filho. Fiz aquelas bracholas que você tanto gosta. — Me deixa ver se adivinho. A senhora fez também aquele capelete de queijo com massa fresca com molho de tomate temperado com uma folha de louro? — Isso mesmo. — ela assentiu risonha. — Vamos entrar então, estou morrendo de fome. _declarei enquanto entrava com as malas. Naquele dia especificamente eu estava bem humorado. Apos nos fartamos no jantar com as iguarias servidas fomos eu,Betsabá,seu João e dona Catarina descansar na varanda enquanto as empregadas limpavam a cozinha.Martina e Dominice resolveram dar um passeio pela praça. — Mas não está tarde para vocês saírem meninas? — perguntei preocupado com o adiantado da hora. — Relaxa pai. Ainda são oito horas. E o que pode acontecer de mal com a gente aqui em Borá? — disse Dominice com ironia. — Não se preocupe Ferdinando, a cidade é tão pequena que mais parece um condomínio do que qualquer outra coisa. Aqui todo mundo se conhece,não há perigo nenhum.A moçada costuma ficar na praça a noite vendo a fonte luminosa e jogando conversa fora.A Martina já fez amizade com umas meninas e uns meninos daqui.Fique despreocupado que são gente boa. Mesmo contrariado permiti que ela saísse, não queria impor minha vontade na frente do casal, afinal, eu não estava em minha casa. Betsabá ficou olhando surpresa com a minha reação. — Leva um casaco filha que está frio. — disse Betsabá carinhosamente. — Eu vou colocar mãe. — Toma conta da minha filha Martina. Ela só tem quatorze anos. — eu disse com o coração sangrando. — Fique tranqüilo Nando. Está comigo está com Deus! OPS! Eu quis dizer... Está comigo está segura.

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Grão Vizir — Não voltem tarde. Pegaremos a estrada pela manhã. _informei agoniado. Ficamos sentados num banco enquanto eu avistava as duas meninas afastando-se da casa na escuridão. Se alguém tivesse olhado para mim naquele momento teriam notado a aflição em meus olhos.

33 Passavam das onze horas da noite e as meninas não chegavam. Eu acendia um cigarro atrás do outro enquanto caminhava com passos pesados pela varanda. Dona Catarina apareceu na Janela. — Não se preocupe Ferdinando, daqui a pouco as duas aparecem. Você sabe que jovens se esquecem da hora quando engatam uma conversa. Venha assistir o filme conosco, está bom. — Prefiro ficar aqui e esperar se a senhora não se importar. — Você é que sabe. — disse dona Catarina sem graça.Logo ela saiu da janela. Continuei a caminhar. Aproximei-me da janela e através da cortina branca de renda pude ver que todos estavam sentados num único sofá diante da televisão. Estavam atentos ao filme e alheios às outras coisas. Como eu queria ter o mesmo desprendimento. Todos que estavam na sala me conheciam muito bem. Sabiam que eu tinha esse zelo quadruplicado pela Dominice por isso ligavam para meu comportamento superlativo. Só quero ver o roteiro de desculpas que elas irão me dar! Pensei. Eu estava tão aborrecido que por um momento pensei em cancelar a festa de aniversário como punição pelo ato de rebeldia. Mas logo abstive essa idéia. Eu continuava divagar quando o som distante da campainha do telefone me trouxe de volta a Terra.Meu coração começou a bater desordenadamente.Tive imediatamente um mau presságio quando ouvi a voz da dona Catarina no telefone. — Mas como foi acontecer isso Martina? Quem a socorreu? Como ela está? Não acredito! Santo Deus! Entrei correndo na sala. Dona Catarina aos prantos continuava com o telefone colado ao ouvido.Betsabá sem entender o que estava acontecendo perguntava a todo instante: — O que foi? Cadê minha filha? O que foi? Fala dona Catarina! Numa atitude intempestiva tomei o telefone da senhora. — Alô Martina, me deixa falar com a Dominice; agora! — falei num tom intimidador. Porém a moça só chorava. — O que foi que aconteceu? — perguntei e como resposta só ouvi choro. — Vai Martina se acalma e me diz o que aconteceu. _ela continuava chorando. _O QUE FOI QUE ACONTECEU PORRA!

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Patrícia Franconere Ouvi a pior resposta que um ser humano poderia ouvir na vida. Nesse instante, Betsabá começou a chorar compulsivamente. Não precisei dizer uma única palavra, meus olhos cheios de dor revelavam uma alma dilacerada. Não foi difícil concluir o que acabara de acontecer. — NÃO! NÂO! — ela gritou com as mãos cobrindo o rosto numa tentativa de não ver o que estava acontecendo. Dona Catarina a envolveu em seus braços, mas ela se desvencilhou. Estava tomada por uma dor lancinante. — Como aconteceu? — perguntei. Minhas mãos tremiam compulsivamente, eu mal conseguia segurar o fone. Onde está o corpo? — perguntei com a voz embargada. — Eu não acredito! Minha filhinha... O que aconteceu com a minha filhinha. _dizia Betsabá andando de um lado para o outro aos prantos. As duas empregadas da casa já tinham ido se deitar ao ouvir a gritaria foram ver o que estava acontecendo. Eram mãe e filha. Ambas vestiam penhoar acolchoado.Enquanto a mãe uma senhora que aparentava uns quarenta anos de idade dava um sedativo para dona Catarina a filha que parecia não ter mais de quinze ano se incumbia de acalmar o seu João.Assim que desliguei o telefone todos me perguntaram o que tinha acontecido. Com a voz ainda embargada relatei: — A Martina disse que elas estavam com um grupo de amigos na praça conversando quando inexplicavelmente Dominice desmaiou do nada. — Como desmaiou? — Perguntou Betsabá beirando o histerismo. — Não sei dizer, a Martina não conseguiu explicar. — Não faz sentido. Minha filha tem saúde,como ela poderia estar morta? — perguntou Betsabá. As lágrimas não paravam de sair do seus olhos. — Onde ela está meu filho? — Perguntou dona Cataria. — A Martina disse que foi acionada a ambulância e ela foi levada para o Hospital público de Paraguaçu Paulista. — Mas por filhinha filha foi levada para outra cidade? — perguntou Betsabá. — após soar o nariz. — Aqui em Borá não temos hospitais públicos. Somente um posto de saúde que atende durante o dia. — informou seu João. — Vamos logo pelo amor de Deus! — implorou Betsabá no limite de suas forças. — Fica muito longe Paraguaçu Paulista fica muito longe daqui? — perguntei assim que peguei as chaves do carro.

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Grão Vizir — Não meu filho. Fica a uns dezoito quilômetros de distância. Você não levará mais que quinze minutos. — disse seu João. — Vou com você para te mostrar o caminho. — Obrigado seu João. Mas acho melhor o senhor ficar aqui com a dona Catarina.Vou com a Betsabá. — Você não está em condições de dirigir Ferdinando. — Concluiu a dona Catarina. — Cida será que seu marido poderia ir com eles até Paraguaçu? _Perguntou a dona Catarina a empregada mais velha. — Claro dona Catarina. Com o barulho ele também se levantou. Saímos em poucos minutos deixando para trás o casal de idosos inconsoláveis. — Nos dê notícias meu filho. Se Deus quiser há de ser um equivoco tudo isso. — disse dona Catarina. DEUS... DEUS... Onde diabos estava DEUS naquela hora? abandonado.

Mais uma vez havia me

— Peçam para Martina voltar para casa, por favor! _continuou dona Catarina. Ela naquele momento queria ter a neta por perto.Isso era perfeitamente compreensível. Pedro marido da empregada dirigia meu carro enquanto eu tentava inutilmente consolar minha Betsabá. Como poderia ser eu convincente se ela sabia que uma lança em brasa trinchava meu coração dentro do peito. Pedro nos observava a todo instante pelo retrovisor. Seus olhos marejados não escondiam seu sentimento. O carro tornou-se pequeno para tanta dor. A estrada estava vazia,e o pé do motorista não desgrudava do acelerador.Em menos de vinte minutos estávamos no pronto socorro de Paraguaçu Paulista.Ao entrarmos fomos logo para recepção.Uma das atendentes pediu que aguardássemos o médico.Depois de algum tempo um rapazola recém formado veio ao nosso encontro. — Cadê minha filha? — perguntou Betsabá com os olhos inchados de tanto chorar. — Venham comigo. — disse o médico. Acompanhamo-lo pelos corredores da emergência. Eu não largava as mãos de Betsabá.Seu Pedro nos acompanhava.Vi Martina no corredor ela veio até nó. Chorava compulsivamente. — Eu não sei o que aconteceu! Perdoem-me! Perdoem-me! Perdoem-me a culpa foi minha?

Foi por minha causa que ela saiu de casa!

Abracei Martina com força. Eu sabia exatamente o que ela estava sentindo. Eu tinha a consciência de que ela não tinha culpa de nada, mas sabia que não era o que ela pensava. Precisou que algo terrível acontecesse para que eu me desse conta que também não tinha sido culpado pela morte da minha mãe. Precisávamos naquele momento falar com o médico.

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Patrícia Franconere — Pedro você pode ficar com ela? — perguntei. Logo ele estava ao seu lado. Era empregado da família há anos,não escondia o carinho que sentia pela Martina. Continuamos nosso longo percurso pelos corredores sombrios do hospital. Entramos numa pequena sala.Havia uma mesa de madeira com duas cadeiras de frente e outra do médico.Porém ninguém se sentou.O jovem médico cruzou os braços e começou a narrar os procedimentos médicos. ..._então fizemos todos os exames. Ela certamente sofreu uma parada cardíaca na praça. Entrou em óbito logo em seguida. Dei um violento soco na mesa. — Eu quero a minha filha viva! Cadê a minha filha? Vocês mataram a minha filha! Betsabá me segurou pelo braço. Eu estava tão agressivo que ela pensou que eu fosse esmurrar o médico. — Eu quero outro médico! — Não adianta outro médico senhor, ela está sem os sinais vitais. Após a conversa ele nos entregou o atestado de óbito, nos levou até o necrotério e saiu nos dando assim à privacidade que necessitávamos para nos despedir de nossa boneca. Ela estava num canto da sala fria deitada em uma maca coberta com um lençol branco dos pés a cabeça. Puxei lentamente a coberta. Betsabá abraçou a filha e começou a chorar compulsivamente. Fiquei ao seu lado olhado para aquela bela jovem que parecia dormir. Coloquei o ouvido em seu peito. Não ouvi nada.Aproximei meu rosto em seu nariz e não senti respiração.Ela estava fria,porém seu rosto continuava corado. Não... Não... Como poderia estar morta minha filhinha? Ela que há poucas horas nos alegrava com seu sorriso maroto e divertido. Não era justo ela morrer antes do seu aniversário. Não era justo ela morrer. Um filho nunca deveria morrer antes dos pais. Só agora vejo que minha mãe foi agraciada por Deus por morrer antes de mim. Ela enfim jamais sentiria a dor que eu estava sentindo naquele momento. O que é o abandono de um marido perto da dor da perda de um filho. Como era terrível a sensação de impotência. Voltamos no dia seguinte para São Paulo onde ela seria enterrada.

34 Jardim Marajoara (São Paulo, Brasil) 22 de setembro de 2001. Cemitério de Congonhas. Era início de primavera. Uma chuva torrencial meio fora de hora caia incansável trazendo o que restava do frio do inverno consigo. Num pequeno salão de aproximadamente 20 metros quadrados e portas de vidro que, tremulavam com o bater do vento forte, eu e outras pessoas nos amontoávamos ao lado da aniversariante que completaria 15 anos de idade. Seu rosto era pálido como uma boneca de cera e suas feições permaneciam estáticas iluminadas pelas fortes luzes que 122


Grão Vizir vinha do teto. Seus cabelos da cor do mel acomodavam-se sobre os ombros como cascatas. Próximos a mim estavam o Padre Cosmo e minha querida Poliana. Exatamente às oito horas da noite as luzes se apagaram e as velas do bolo foram acesas. Eu Ferdinando Fraccadori Vetorazzi e minha mulher Bete nos colocamos ao lado de nossa filha Dominice.Com meu velho violino Stradivarius em mãos comecei a entoar os primeiros acordes de parabéns a você.As pessoas presentes começaram a cantar: Parabéns pra você, Nesta data querida, Muitas felicidades, Muitos anos de vida! Para Dominice nada! Tudo! E como é que é? É! É pique. É pique... É pique...É pique...É pique... É hora... É hora... É hora...Ratimbum! DOMINICE... DOMINICE... DOMINICE... Não houve alegria naquela canção. Apenas dor e lágrimas. Não houve presentes. Apenas flores. A festa de aniversário de Dominice havia mudado de endereço, porém os convidados continuavam os mesmos. No chão, ao redor do caixão pousavam os presentes ainda embrulhados. Duas pequenas mesas foram postas ao lado do caixão com uma pequena parte dos doces e salgados que seriam servidos na festa. O bolo de dois andares com decoração de rosas vermelhas permanecia intacto. As quinze velas brancas que ornamentava o bolo continuaram acesas. Ninguém se atreveu apagá-las. Meus irmãos estavam todos presentes, meu pai chorava emocionado sentado em sua cadeira de rodas que estava estacionada próximo ao caixão. Passavam das dez horas da manhã.Essa foi a nossa última homenagem prestada antes de fechar o baú branco de madeira.Os funcionários do cemitério estavam ali parados aguardando o final da cerimônia para darem continuidade ao trabalho.Eles olhavam tudo com o olhar frio e distante de quem está acostumado com esse tipo de tragédia.As pessoas ao redor do caixão aproximaram-se para dar o último adeus.Um dos funcionários pegou a tampa do caixão e se aproximou.Era a última vez que eu veria minha linda menina.Aquela cena me torturava.Quando os homens foram colocar a tampa,dei-lhes um empurrão e comecei a orar debruçado sobre minha Dominice num ato de desespero.

“...CREDO in unum Deum, Patrem. Omnipotentem, factorem coeli et terræ, Visibilium omnium et invisibilium. Et in unum Dominum Jesum “Christum, Filium Dei...”. Todos os presentes choravam comovidos. — Deus, me perdoe porque pequei. Perdoe-me se enlameei seu santo nome. Mostre-me agora a tua força e a tua bondade! Traga-me de volta minha filha que eu prometo servir a ti durante o resto da minha vida. Concedei-me esse milagre o Deus todo poderoso!

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Patrícia Franconere

Nesse momento senti uma mão quente pousar em meu ombro. Olhei para o lado. Era meu amigo Abdalla. Naquele momento tudo o que aconteceu passou em fração de segundos. Seu Abdalla me afastou do caixão. Pensei que tudo estava acabado. Foi quando vi um homem desconhecido vestindo um jaleco branco se aproximar do caixão de Dominice. Ele usava um estetoscópio pendurado no pescoço e logo percebi que ele colocou sobre seu peito. — O que você está fazendo? _perguntei sem entender nada. — Saia daí! Deixe-a em paz! — Não se preocupe Ferdinando. Ele é o meu filho Samir. Ele sabe o que está fazendo. Olhei perplexo para seu Abdalla sem entender nada. Betsabá estava em estado de torpor, parecia estar em outra galáxia. O filho do seu Abdalla continuava a examinar minha adorada Dominice. Tudo aconteceu tão rápido que meus olhos ainda embaçados de lágrimas não conseguiram acreditar no que viam. O filho do seu Abdalla tirou um pequeno espelho do bolso do jaleco e o aproximou das narinas de minha filha. O tempo todo ele cochichava algo em seu ouvido que não pude escutar. Confesso que naquele instante tive pena do seu Abdalla. Seu filho só podia ser um louco. Pensei. Todos que estavam ao redor olhavam atônitos sem entender o que estava acontecendo. Inclusive os funcionários do cemitério que até então pareciam indiferentes ficaram perplexos com a cena. — Ela está viva! — disse o tal Samir em voz alta para que todos ouvissem. Rapidamente ele a tirou do caixão. — Preciso levá-la com urgência até um hospital. Ele saiu apressado com minha filha inerte nos braços. — Para onde ele a está levando? — perguntei no auge do desespero. — Fique tranqüilo, ele está levando para o Sírio Libanês onde ele trabalha. Betsabá olhou para mim com desespero no olhar e começou a gritar histérica. — Ele roubou nossa filha! Aquele homem roubou minha filha! O velório tornou-se uma confusão generalizada. Seu Abdalla me puxou pelo braço e eu fiz o mesmo com Betsabá.

35 Hospital Sírio Libanês (Bela Vista) São Paulo 22 de setembro de 2001.

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Grão Vizir Eu e Betsabá estávamos nervosos sentados num grande sofá na recepção pomposa do hospital. Ao nosso lado estava o meu Amigo Abdalla tentando nos consolar. Permanecíamos calados até a chegada do Neurologista Samir. Levantamos rapidamente assim que o avistamos. — Então doutor? Como ela está? Podemos vê-la? — Fiquem tranqüilos. Ela está viva e passa bem. — Graças a Deus! — exclamei. — Vou conversar com vocês, depois vocês podem subir para UTI. — UTI doutor? — perguntou Betsabá desesperada. — Sim. Ela está na UTI, mas não precisa se preocupar. Ela está apenas em observação, amanhã no mais tardar ela irá para o quarto se ocorrer tudo bem. Suspiramos aliviados. — Como o senhor descobriu que nossa filha estava viva? — perguntei. Meu amigo Abdalla havia nos contado, mas eu queria ouvir o relato da boca do próprio médico. — Meu pai me disse tempos atrás que você comentou com ele a respeito de uma sensação que sua filha tinha ao dormir. Você se lembra? — Claro que sim. Lembro-me de ter dito isso assim que cheguei ao meu escritório. Fiquei intrigado com o relato da minha filha, por esse motivo comentei com o seu pai. — Pois então. Ele me relatou que sua filha sentia certo receio em dormir porque tinha a nítida sensação de perder os movimentos e ainda estar acordada não é isso? — Sim é isso, mas o que tem a ver? — Na época cheguei a comentar com ele que ela poderia estar tendo o sintoma da catalepsia Projetiva. Mas não dei muita importância por não se tratar de nada grave. Ele mesmo acabou se esquecendo de falar com você. — E você não sabe Ferdinando como isso está me corroendo. — disse o senhor Abdalla de cabeça baixa. — Não se culpe por isso meu amigo. — Falei dando um tapinha nas costas do meu grande amigo. — Mas o que é isso doutor? — perguntou imediatamente Betsabá. — O que é essa tal catalepsia projetiva? — Vou tentar explicar de uma maneira bem simples para que vocês possam entender: Quando nós dormimos, nosso cérebro envia um comando que faz com que nosso corpo tenha os movimentos suspensos durante o sono.

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Patrícia Franconere — Mas por quê? Perguntou Betsabá. — Para que não corramos o risco de nos machucar quando temos algum sonho violento, ou qualquer coisa parecida. — Ah... Sei... — Continuando, o corpo fica temporariamente paralisado. Esse efeito é conhecido como paralisia do sono ou catalepsia projetiva e naturalmente todos nós temos,mas essa paralisia cessa assim que acordamos por isso a maioria das pessoas sequer imaginam a existência desse efeito.O que certamente acontecia com a Dominice é que ela retomava a consciência antes que o cérebro enviasse o comando “despertar”para o corpo.Ou seja,ela acordava e não conseguia se mexer por mais esforço que fizesse.Esforço mental quero dizer,já que esforço físico é inútil nesses casos. — Que horror! Betsabá.

Então quer dizer que não era um pesadelo como eu dizia? — perguntou

— Não. Era real.— respondeu o médico. — Coitada da minha filhinha! Por que eu não a levei ao médico? — lamentou minha querida esposa com ar cansado. — Estava se sentindo culpada por não ter dado atenção devida ao problema da filha. — A catalepsia projetiva não é perigosa embora às pessoas que tenham esse sintoma sintam muito medo. O problema é quando essa catalepsia se desdobra catalepsia patológica, que é o que aconteceu com a Dominice. — Mas por que a pessoa tem isso doutor? — perguntei. — A origem do problema pode ser tanto externa como um traumatismo craniano, quanto congênita má formação em alguma região cerebral, disse o neurologista. Mas na realidade a medicina não tem muito a dizer. Pesquisas nessa área ainda estão sendo feitas. — Mas como o médico do pronto socorro não percebeu que ela estava viva? — perguntei indignado. — Eles nos deram o atestado de óbito. — Por ser um hospital público de uma pequena cidade do interior provavelmente não dispunham de equipamentos tecnológicos para definir com precisão os sinais vitais. Se ela estivesse em São Paulo, ou qualquer outra cidade grande esse engano certamente não teria acontecido. _Minha filha seria enterrada viva! — concluiu Betsabá aos prantos. O médico calou-se por alguns instantes. Logo em seguida retomou o raciocínio. — Quando meu pai me ligou e me disse o que tinha acontecido e as circunstancias logo me lembrei do caso, por isso sem perda de tempo, fui ao cemitério para me certificar de seu óbito. Por meio de testes simples pude perceber que ela estava viva.Eu conversei com ela até perceber uma lágrima escorregar no canto dos olhos.Nesse exato momento tive a certeza que ela me ouvia. — Não temos palavras para agradecer! — eu disse com os olhos marejados.

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Grão Vizir O médico apenas sorriu. Somente naquele momento pude perceber a semelhança com o pai. Não só de aparência, mas de caráter.

Final Província de Crotone (Calábria) Itália 2010. Eu estou com cinqüenta e três anos de idade

“Eu nasci em março de 1956 numa pequena casa de pedra no ponto mais alto de uma colina verdejante. O lugar era tão alto que às vezes eu tinha a impressão de poder tocar o céu com as pontas dos dedos”. A tal casa de pedra já não existe mais, nem as mesmas pessoas, nem as outras casas. Ainda assim Crotone é um paraíso. Eu estou sentado no mesmo lugar que costumava ficar quando menino. Fico extasiado olhando para a imensidão azul de águas límpidas do Mediterrâneo. Eu ainda tenho a sensação de poder tocar o céu com a ponta dos dedos. Apesar de ser um homem maduro, ainda me sinto pequeno diante da magnitude da natureza. Ainda olho para o horizonte, não mais para encontrar Deus. Olho com saudade por saber que as pessoas que tanto amo estão a minha espera do outro lado do oceano. Minha querida Betsabá, minha adorável Dominice, minha irmã querida Poliana e os poucos amigos que fiz durante trinta anos de Brasil. Saí de Crotone em busca de respostas e voltei sem elas. Mas isso não mais me apavora. Vivo um dia de cada vez e tento fazer isso da melhor maneira possível. Hoje não me culpo mais pela morte de minha mãe. Agora sei que a culpa não foi minha. As pessoas se cercam de culpas o tempo todo, umas entram em desespero como eu, outras levam a vida adiante e conseguem ser felizes. Nunca fui culpado também pelo desamor de meu pai. Não se pode obrigar as pessoas amar você.Ele morou comigo até sua morte em dois mil e sete quando um infarto fulminante ceifou-lhe a vida numa tarde quente de verão. Minha querida Dominice, agora está com vinte e quatro anos. Formou-se em medicina e namora com um médico do Hospital das Clínicas. Nunca mais teve problemas com catalepsia, mas não são raras as vezes que me pego a noite entrando sorrateiro em seu quarto com um espelho nas mãos. Só fico sossegado quando aproximo o espelho de suas narinas e percebo a mancha provocada por sua respiração. Continuo amando loucamente minha Betsabá. Tento agora controlar meu ciúme.As marcas do tempo começaram a aparecer assim como os quilinhos a mais.Mesmo assim ela continua linda... Se foi um milagre o que aconteceu com Dominice? Sinceramente eu não sei e acho que nunca saberei. Existem perguntas na vida que não tem respostas e humilde é aquele que aceita esse fato. Há certas verdades que não são para meros mortais como eu. A única coisa que eu sei é que a vida me deu uma nova oportunidade para ser feliz. E dessa vez eu agarrei com unhas e dentes. Fiz as pazes com Deus. Fim

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Patrícia Franconere

Esse romance foi registrado pela Fundação Biblioteca Nacional

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