seja verdadeiro

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Prioridade às cadeiras ou à escuta? Há uns anos atrás, François, que tinha participado em várias acções de formação de comunicação não violenta, ligou-me a pedir ajuda. Acabava de ser nomeado director de uma casa da juventude num bairro desfavorecido de Bruxelas e tinham-lhe pintado um quadro catastrófico do ambiente que por lá se vivia. Pelo vistos, os jovens do bairro estavam revoltados e tinham destruído a sala de estar da casa, que era o local de convívio onde decorriam as oficinas criativas. François já tinha uma longa carreira na área da assistência social e humanitária mas nunca tinha lidado com jovens ditos da rua. Encontrei-me com ele e com os membros da sua equipa que, por seu lado, já conheciam bem o bairro. Inf ormei-me sobre a história da revolta e falei com alguns jovens. Pelos vistos, a anterior direcção tinha feito promessas sobre certas actividades e sobre os programas, e nada tinha sido cumprido. Os jovens tinham criado grandes expectativas que não se realizaram e, um dia, perderam a cabeça e partiram tudo o que era cadeira e sofá daquela sala! François disse-me que os seus superiores administrativos insistiam para que se pusesse a casa em condições o mais depressa possível e que se comprasse mobília nova, e pediu-me a minha opinião. Respondi-lhe: «Para quê reconstruir a casa, com a bomba ainda por desactivar? E quase uma provocação: os jovens vão verificar que há dinheiro para substituir a mobília, mas que não há para cuidar das pessoas! É a melhor maneira de se carregar outra vez no detonador: eles ficam com a impressão - com ou sem razão - de estarem a ser menosprezados, de serem considerados como coisas que podem ser arrastadas de um programa para o outro. E urgente que se lhes testemunhe alguma consideração humana, que eles sejam escutados e que se tente compreender as suas frustrações.» Aceitei a proposta de escutar os jovens e de levar todo o tempo que fosse preciso para se restabelecer a paz. Ele queria que eu lhe fizesse uma proposta concreta, com um valor definido, para apresentar à direcção. Sem imaginar ao certo o número de horas que tal trabalho iria exigir, avancei com a proposta de quatro módulos de quatro horas para poder falar com cerca de quinze jovens, o que correspondia nessa altura a um orçamento global de cerca de vinte mil francos belgas. François voltou a ligar-me uma semana mais tarde para me comunicar que a proposta tinha sido rejeitada, pois a direcção acabara de 198

esgotar o orçamento daquele ano ao votar a atribuição de cento e cinquenta mil francos para renovação da sala e aquisição de novas cadeiras. Especificou também que a direcção considerava aquilo uma prioridade: para que os jovens se sentissem bem, o ambiente tinha que ser acolhedor. Mas também estava determinada a reforçar as medidas de vigilância para garantir que o material não fosse maltratado. Claro que importa haver um ambiente acolhedor, mas qual a utilidade de um ambiente acolhedor quando se tem o coração cheio de revolta e de ódio? É uma atitude repleta de boas intenções, mas será que está ao serviço da verdade das relações humanas? Claro que importa garantir a segurança do material, mas reforçar a vigilância será realmente o meio mais eficaz e mais satisfatório para todos? Esta história verídica demonstra até que ponto as nossas instituições são parecidas connosco ao não conseguirem ainda colocar o factor humano no centro das suas preocupações, deixando-se ingenuamente distrair por toda a organização anexa. A violência é a explosão de uma bomba de vida impedida E quando uma pessoa fica sem palavras para se exprimir, e sem paciência para escutar, que começa a rodear-se de arame farpado. Certo dia, acompanhámos cerca de vinte jovens em dificuldades numa sessão de dois dias de escalada e exercícios arrojados, com cabos e pontes aéreas, no campo de treinos do regimento de comandos. O campo situava-se em plena natureza e não tinha cerca em redor. Tínhamos recebido uma série de avisos dos responsáveis desses jovens: «Olhem que eles são perigosos, não os percam de vista, não os deixem fugir...» ou então «Estão doidos, eles vão é começar logo a beber e a provocar distúrbios no primeiro café da esquina, tragam-nos de volta ao fim do primeiro dia.» Saímos confiantes. E com razão. De facto, aqueles jovens, que habitualmente vivem entre as quatro paredes de um lar de acolhimento ou então na rua, depois de passarem um dia inteiro ao ar livre suspensos por cordas a cem metros do chão, depois de atravessarem pontes Himalaia por cima de desfiladeiros, roçando os cumes dos abetos, depois de terem sentido calor, fome e medo, depois de discutirem, refilarem e rirem com os adultos, que poderiam querer ao cair da noite senão estar reunidos à volta da fogueira, com as tendas montadas e o jantar a aquecer? O que é que os apaziguava? O bem-estar, cujos ingredientes são o sentido do que se faz, e a sensação de existir.


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