seja verdadeiro

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cessidades e dos nossos valores, e melhor nos poderemos empenhar na sua valorização. Eis um exemplo. Pierre, trinta e seis anos, vem a uma consulta e queixa-se regularmente da relação com a companheira. «— Sinto-me sempre manipulado pela minha companheira. — Pode indicar-me o que é que, nas suas observações, lhe tem dado essa impressão de manipulação? — Ela diz-me: «Nunca percebes nada, não fomos feitos para nos entendermos.» — Se tentar escutar o sentimento existente por detrás dessa impressão de manipulação, o que é que sente? — Raiva e cansaço. Fico com a impressão de que sou sempre eu que tenho de a compreender, e que se não conseguir estar sempre a compreendê-la, deixo de ter valor. No fundo, só presto para alguma coisa, aos olhos dela, se estiver constantemente a compreendê-la. — E se escutar as necessidades que essa raiva e esse cansaço lhe indicam, o que é que sente? — Uma necessidade de respeito, de respeito por mim próprio, uma necessidade de ser tomado por quem realmente sou, e não pela pessoa que ela gostaria que eu fosse. — E uma impressão familiar, já vivida por si no passado, isto de não ser aceite pelo que realmente é? — Completamente, é como se estivesse em frente à minha mãe: tinha a impressão de que estava a ser injustamente acusado em frente a um juiz. Sentia-me indignado porque a minha identidade própria não estava a ser reconhecida e, ao mesmo tempo, impotente para a fazer valer. — E como é que se sente ao recordar essas memórias? — Cansado e decepcionado. — Será que esses sentimentos de cansaço e decepção indicam a necessidade do Pierre se aceitar mais a si próprio, de dar a si próprio mais espaço, de se permitir viver mais a sua própria identidade? (Emocionado.) — Sim, completamente. — Se de facto essas necessidades lhe parecem verdadeiras, sugiro que as repita em voz alta para dar a si próprio a oportunidade de as assimilar, de começar a vivê-las interiormente. (Após um tempo de silêncio.) — Tudo bem, preciso de me aceitar mais a mim próprio, de dar a mim próprio mais espaço, e de me permitir viver mais profundamente a minha própria identidade.»

Observação Sugiro muitas vezes às pessoas em trabalho de acompanhamento que formulem em voz alta as suas necessidades. A experiência mostra que a pessoa, ao ouvir a formulação de uma necessidade que corresponde realmente ao que ela tem vivido, tende a manifestar as duas reacções seguintes: 1) ou diz: «É isso mesmo, essa é que é a minha necessidade, vou ter que pensar no assunto depois da consulta, vou apontar a ideia», e a necessidade permanece virtual, como um método terapêutico que se lê num livro ou num artigo mas que nunca chega a ser integrado pela experiência; 2) ou responde muito depressa: «Pois, mas de qualquer maneira, sempre foi assim, não acho que as coisas possam mudar. Não existe solução, porque é que por isso hei-de identificar as minhas necessidades?» Ao reagir assim, a própria pessoa enterra com pensamentos negativos a necessidade que tentava emergir à tona da sua consciência. Nem sequer lhe dá tempo para existir e ser identificada, recalcando-a logo à partida. Por estar atento a esses dois riscos, incito muitas vezes a pessoa a levar todo o tempo que for preciso, com muita calma, para reformular a sua necessidade em voz alta após ter verificado que esta lhe parece corresponder à realidade. Para certas pessoas, trata-se de um exercício fácil e agradável ao qual aderem com todo o gosto, sentindo no final a alegria de identificar e exprimir claramente as suas necessidades. Na maioria das vezes, o sentimento por elas partilhado é de alívio, de bem-estar, e a necessidade preenchida é de clareza, de compreensão, de abertura para uma nova pista ainda por explorar. Para outras pessoas, é uma etapa muito difícil. O interdito que pesa sobre o facto de sentirem necessidades, e mais ainda de as exprimir em frente a alguém, é de tal ordem que elas nem sequer conseguem repetir a mais elementar das frases, como por exemplo: «Preciso de respeito pela minha identidade». É quase impossível, as palavras não saem. Torna-se então necessário levar a cabo um trabalho de «domesticação» que pode exigir algumas sessões, até que a pessoa se sinta à vontade para exprimir a sua necessidade, falar sobre ela, comentá-la, distingui-la das outras, isto é: compreendê-la. «Com-preender», é fazer seu. Vivo sempre esses momentos, sejam eles fáceis ou difíceis, como se fossem experiências sagradas. Vejo a pessoa a tomar conta da sua vida novamente, a redimensionar-se e reunir-se, a acolher-se e recolher-se. E não será de facto sagrado esse regresso à vida e ao 77


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