Os visitantes do Oriente

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OS VISITANTES DO ORIENTE CONTO de NATAL

Mestre Rabiscador 2016 1


O relato que se vai seguir conta uma série de eventos que ocorreram nos últimos quatro meses e nos quais fui involuntariamente envolvido. Não se reveste de especial suspense, pois os leitores ficam desde já a saber que neste momento, quatro meses após o início dos acontecimentos, me encontro bem, em casa da minha mãe, numa pequena cidade no centro de Portugal. Ela vive com uma irmã, a minha tia, igualmente idosa, surda e fraca de cabeça. Eu encontro-me no salão da velha casa, junto à lareira e ao presépio que tem mais de 40 anos. Escrevo estas linhas, enquanto revisito os acontecimentos que mudaram por completo a minha maneira de ver as coisas. Por vezes distraio-me, como aconteceu há momentos quando colhi e observei atentamente um dos reis magos, o Melchior, como fazia quando era menino. Mas vou descrever o ocorrido, sem grandes retoques literários e publicarei na internet à medida que termine estes curtos textos. Devo dizer que não passo o Natal aqui, na minha casa de infância há pelo menos dez anos. Tudo começou em Setembro. Ou melhor, tudo acabou em Setembro. A minha relação sentimental que durava há cinco anos terminou. Não vale a pena falar nisso, muito menos referir o nome daquela mulher. Os acontecimentos que decorreram depois da separação fizeram com que eu a esquecesse. Hoje, ela pouco significa para mim, apesar de termos estado juntos seis anos. Em Setembro tive de abandonar a casa onde vivia. Tal foi um dos resultados da separação. Não sabia para onde ir, estava desorientado e portanto resolvi tirar uns dias de férias. Comprei um bilhete de avião para a ilha grega de Samos. Sempre achei que o mês Setembro é o mês ideal para disfrutar da luz, das cores, do mar e da calma das ilhas gregas. Parti no dia seguinte.

Não tinha reservado qualquer hotel em Samos, pelo que ao chegar ao aeroporto procurei o balcão do Turismo e perguntei onde me poderia alojar, de preferência junto ao mar. Deram-me a morada de um hotel que tinha quartos disponíveis, para onde me dirigi de táxi. A viagem durou uma hora, durante a qual pensei naquilo que esta escapada me poderia trazer. Esquecer a recente crise conjugal? Divertirme? Bebedeiras? Uma breve mas interessante aventura sexual?

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Cheguei ao hotel ao princípio da tarde. Na receção disseram-me que, efetivamente, tinham um quarto disponível, mas que ainda não estava pronto. Podia portanto ir dar uma volta e aparecer dentro de duas horas. Dirigi-me ao pequeno porto de embarcações de recreio e sentei-me numa esplanada a beber gin tonic e a observar o movimento dos barcos para outras ilhas. Tinha estado exatamente naquela mesa no ano passado, com a mulher com quem vivia. No cais, junto ao mar, estava um animado grupo de turistas, que iam entrando em pequenos barcos pneumáticos que depois zarpavam do porto. Terminei o meu gin tonic e dirigi-me para junto do grupo. Reparei que eram jovens, homens e mulheres, louros, com boa aparência e que quase todos tinham uma garrafa na mão. Entre eles falavam inglês, mas pelo menos alguns deveriam ser nórdicos e alemães. Duas jovens altas e louras disseram-me algo que não entendi. Respondi dizendo que era português e elas riram-se muito "oh portuguese, Cristiano Ronaldo!". Depois apontaram para o mar e disseram-me: "there, big party, come with us!". Entrei junto com ela e mais uma dúzia de jovens no bote que entretanto tinha chegado.

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A travessia no bote foi divertida e já bem regada. Demorou quase uma hora, pelo que chegámos a outra ilha quase ao fim da tarde. Era uma ilha pequena, com três ou quatro bares de praia, nada mais. Os barcos continuavam a chegar e percebi que se tratava de um evento patrocinado por uma marca de GIN, chamada "Ginástik". Por todo o lado estava escrito: "With Ginástik you are fantastic". A música lounge tocava sem interrupção e toda a gente baloiçava os corpos na fímbria do mar. Enfim, não sei bem se a música era lounge ou outra qualquer,mas era assim: "Pom-Pom-Pom-Paf;Pom-PomPom-Paf;Pom-Pom-Pom-Paf…" Eu estava bem disposto, numa roda com as duas louras e mais gente, com os pés dentro de água. Essa é a última recordação que tenho, não me lembro de nada mais, pois perdi a memória. Explico-me: quando acordei, sozinho na praia, quando o Sol já nascia, não me lembrava onde estava nem quem era, nem nada. Isso mesmo, nem do meu nome me recordava! Já agora, chamo-me José. Recuperei a memória depois, a pouco e pouco , em circunstâncias que relatarei. Ainda hoje não sei a causa desse distúrbio, embora deva dizer que, na semana anterior à viagem, no auge das minhas discussões conjugais, tive um desmaio e me dirigi ao hospital onde nada de anormal me detetaram. O relevante é que estava ali na praia, sem saber quem era nem onde estava. Verifiquei igualmente que me tinham roubado a carteira e o telemóvel (conforme "O Homem Perdido".) Atravessava esse momento de desorientação, quase de pânico, quando verifiquei que uma barcaça com cerca de duzentas sombras chegava a praia, que se encontrava deserta, ou melhor onde se encontrava unicamente a minha pobre pessoa.

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Percebi então que as sombras que desembarcavam naquela madrugada eram refugiados. Homens, mulheres e crianças, molhados, cheios de frio e que falavam línguas estranhas. Não sei como, encontrei-me no meio dessa mancha de gente. Logo a seguir desembarcaram soldados, que entendi serem gregos e que obrigavam todos os refugiados a ficarem agrupados, como um rebanho. Tentei dizer que não fazia parte dos refugiados. Contudo, a minha cabeça ainda estava demasiado confusa para explicar quem era e o que fazia ali. Tentei comunicar no meu fraco inglês, mas não encontrava as palavras que queria. Depois tive de acompanhar o grupo para dentro de um navio militar e ao fim da tarde estava noutra ilha, num enorme acampamento, onde nos deram uma sopa, uma barra de cereais e um café. Mandaram-me dormir numa tenda com cerca de vinte pessoas. Mas não consegui dormir, principalmente devido aos ruídos que faziam os meus companheiros de tenda. A pouco e pouco, muito a pouco e pouco, comecei a recuperar a memória. Revi a minha, mãe, o meu pai, episódios da minha infância, a minha primeira casa (esta mesmo, em que agora vos escrevo).Lembrei-me que me chamava José, mas pouco mais.

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Os dias que se seguiram foram de grande confusão. Percebi que a primeira coisa a fazer era registarme, como faziam todos. O balcão para registo começava a funcionar cada manhã e estava aberto até meio da tarde. Havia duas filas, uma para refugiados com documentos, que era longa, e outra para refugiados sem papéis, como eu, que era enorme e dava voltas ao campo. Tentei explicar que o meu caso era diferente, mas não houve nada a fazer. Tinha que esperar na fila. Cada dia os funcionários só conseguiam registar uma parte das pessoas que fazia fila. Nisto passaram-se três ou quatro dias. Quando, finalmente consegui chegar ao funcionário e lhe disse que não era refugiado, ele não acreditou na minha história. Que estava ali para registar refugiados e não para registar turistas. Como a minha entrevista demorava muito tempo, os refugiados que estavam na fila começaram a fazer barulho para eu me despachar. Fui-me embora e voltei no dia seguinte. Aceitei registar-me como refugiado. Quando disse meu nome (José) ao funcionário, ele franziu o sobrolho mas aceitou e introduziu os dados no computador. Depois houve outro problema: o sistema informático não aceitava Portugal como país de origem de refugiados. Após nova discussão, o funcionário disse-me que a partir o da seguinte só seria distribuída comida a quem estivesse registado. Desesperado, disse ao funcionário para ele escrever o país que quisesse. Disse-lhe que era natural da Nazaré, o que é verdade, e que a minha profissão é publicitário, coisa que ele não entendeu. Depois de muita confusão, o badge que finalmente me concederam ficou assim: Name: José Birth: Nazaré Nationality: Παλαιστίνη Profession: ξυλουργός

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Faço uma breve pausa neste relato para esclarecer alguns pontos suscitados pelos leitores mais curiosos desde que comecei a publicar estes textos. Sou efetivamente natural da Nazaré, porque os meus pais aí trabalhavam quando nasci. A cidade onde vive a minha mãe e onde agora me encontro não é longe da Nazaré. Trabalho desde há muitos anos numa empresa de publicidade e sou criador de algumas frases publicitárias que os portugueses ouviram durante os últimos anos. Por exemplo, são da minha autoria os seguintes slogans: Cerveja ##### a sede que sabe bem. Tome banho no mar, pode nadar, mas não se esqueça de voltar Se conduzir beba, mas água No Banco ##### o seu dinheiro terá asas Ou ainda para um partido político : Tenha confiança, com o #### o povo vai encher a pança Aqui, na velha casa onde agora escrevo, descobri um dos meus primeiros trabalhos, cuja maquete publico abaixo, como parte integrante do relato: #### a colónia que cheira a homem. Fechado este parênteses, continuo o relato.

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O meu objetivo no acampamento nas semanas que se seguiram era simples, alimentar-me, agasalharse e informar-me do que se passava e de como poderia sair dali. Isto, porque convencer os guardas de que era um turista e não um refugiado se revelou ser completamente impossível. Tinha pouco em comum com os refugiados, pelo que não convivia com ninguém até conhecer um Sírio chamado Samir. Ele foi meu companheiro nos dias que se seguiram. Era poeta.

Samir era um poeta solitário, tinha perdido a família mas ainda tinha fé na humanidade... e via beleza em coisas irrelevantes, mesmo no que acontecia no quotidiano do campo de refugiados. Continuou a escrever os seus poemas num pequeno e frágil caderno escolar. Escreveu sobre a esperança, sobre o amor, sobre a fragilidade, sobre as cores da sua cidade, sobre a mudança, sobre a vulnerabilidade, sobre a fragilidade, sobre a impermanência. Tinha dado aulas na Universidade de Alepo e era um grande conhecedor de Fernando Pessoa. Sabia todas as ruas onde o poeta tinha morado em Lisboa, a sua infância solitária, a Ofélia, os objetos encontrados na sua arca, os heterónimos, o desassossego. Citava frequentemente o poeta. Por exemplo gostava de dizer " amanhã eu também serei aquele que deixou de passar nestas ruas". Perguntou-me detalhes da língua portuguesa que conhecia um pouco, mas que o fascinava. Mais espantoso ainda, conhecia alguns dos novos poetas que escrevem na internet. Recitou de cor poemas dum tal Nuno Miguel Morais, de um tal Paulo Santos e de uma tal Marita Ferreira. As nossas conversas eram fascinantes e eu fiz alguns desenhos que ilustravam os seus poemas. 8


Não vou descrever o resto do meu quotidiano no campo durante os meses de Outubro e Novembro. As filas para tudo, as tentativas de explicar que era português, a dificuldade para compreender o que nos iria acontecer, as complicações para arranjarmos um país de acolhimento, as deficientes condições sanitárias, principalmente quando o frio chegou. Espero que um dia a opinião pública se interesse por este tema. Quando ganhámos um pouco mais de confiança, Samir revelou-me duas coisas inesperadas: Ele tinha dado informação falsa quando se registou: tinha dito que era casado com uma rapariga que estava igualmente no campo, na esperança de conseguirem país de acolhimento com mais facilidade. Os dois tinham estado de acordo com esta estratégia. A segunda coisa era dramática, estava gravemente doente, tinha vindo para a Europa na esperança de conseguir um tratamento, mas a sua situação tinha-se degradado desde a chegada. Tinha os dias contados.

Samir faleceu no dia 1 de Dezembro, comigo a seu lado e com os cuidados de um médico e uma enfermeira gregos, que tentaram minorar o seu sofrimento. Esteve lúcido até ao fim e unicamente nos dois últimos dias passou verdadeiramente mal. Pediu-me para eu guardar o seu caderno com poemas e o deitar no Tejo, logo que chegasse a Lisboa. Deu-me igualmente uma pequena medalha em ouro, com uma meia-lua e umas inscrições em árabe. Disse-me que queria que fosse para o meu filho, se eu alguma vez tivesse um filho. O corpo foi depois levado pelas autoridades, e terá sido enterrado no cemitério aqui perto. Nenhum dos refugiados o pode acompanhar à sua última morada, pois ninguém foi autorizado a deixar o campo. Quando Samir se começou a sentir verdadeiramente mal teve uma conversa comigo. Disse-me, "José, se queres sair deste campo brevemente e não apodrecer aqui durante um ano, sabes o que tens a fazer. Tens de ser eu". Continuou: 9


"É evidente que ninguém acredita nessa tua história de que és turista e não refugiado. Além disso, os países de acolhimento só querem famílias, os homens sozinhos não têm prioridade, são os últimos da lista. Então quando eu morrer, troca o teu badge pelo meu e vai ter com a rapariga, enfim com a minha mulher. Está no pavilhão 322FP25, do outro lado do campo." Ao princípio pareceu-me uma ideia completamente louca, mas, depois de refletir aceitei a sugestão fiz. Troquei os badges logo que constatei que Samir estava morto. A partir desse momento eu era Samir, natural de Aleppo, e Samir estava morto mas tinha sido José. Na manhã em que levaram o corpo de Samir atravessei o campo e fui à procura da rapariga. Quando a descobri tive uma enorme surpresa.

Era uma rapariga muito jovem, com feições perfeitas e olhos verdes. Mas estava grávida. Pelo tamanho da barriga, o bebé não demoraria muito tempo a nascer. Disse-lhe que Samir tinha morrido e procurei saber mais coisas sobre ela, para além da sua pele cor de canela, do cheiro a cravo e dos lábios framboesa. Só que ela, praticamente não falava inglês, nem qualquer outra língua além do árabe. Senti-me ridículo, qual Tarzan a apresentar-se a Jane. Enfim, percebi que se chamava Mary, vinha de uma aldeia Síria, perto de Aleppo, e toda a sua família tinha morrido na guerra. Estava muito contente com a sua gravidez, mas, claro não queria que o bebé nascesse no campo de refugiados. Tinha estado muito preocupada nos últimos dias, já que, contrariamente ao combinado, o Samir tinha deixado de aparecer. Mostrei-lhe o meu badge, agora com o nome e os dados pessoais de Samir e fiz-lhe um sinal com as mãos mostrando que eu e ela, agora, estávamos juntos. Ela sorriu e os seus olhos mostraram um brilho de diamante. Dei-lhe a mão para a ajudar a caminhar no meio da poeira, por entre as pedras do caminho e dirigimo-nos ao escritório onde os funcionários tratavam da colocação dos refugiados.

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A situação era dramática: a lista para a Alemanha tinha oitocentas pessoas em espera. A lista para a Suécia tinha quinhentas e vinte. A para a Dinamarca tinha quatrocentas e oitenta. E, cada semana, continuavam a chegar mais refugiados. Eu desesperei e disse, apontando para a barriga de Mary: "It's a scandal, my son will be born in a refuggee's camp!" A funcionária, uma italiana de olhos grandes, olhou meigamente para Mary e disse. "Aspectta! Sembra che c'è stato una rinuncia per un Paese…ai…Madonna! Non mi ricordo il nome!".

10. A funcionária concentrou-se no écran do seu computador. O país do qual ela se queria recordar era Portugal! Percebi que não havia muitos refugiados interessados em ser acolhidos por Portugal. Uma família para a qual tudo estava tratado tinha desistido na véspera, depois de ter visto na televisão imagens de confrontos violentos após um jogo de futebol entre dois grandes clubes. Por isso havia uma possibilidade de regressarmos a Portugal já dentro de três dias. As autoridades portuguesas tinham tudo preparado para receber uma família. Imediatamente, eu aceitei a oferta, mesmo constatando que Mary não fazia ideia onde ficava Portugal. No dia seguinte veio um voluntário português para nos fazer um briefing e nos dar explicações básicas e elementares de como era a vida em Portugal. Eu, obviamente não disse que era português, era Samir, um poeta Sírio natural de Aleppo. Durante mais de duas horas ouvi as explicações dadas pelo voluntário português, que falava inglês e que eram traduzidas para árabe por uma intérprete. Eu acenava para ela com a cabeça, com um ar de que entendia tudo. Depois de algumas informações gerais e de nos ensinar umas frases básicas, o voluntário disse que havia meia dúzia de mitos que convinha desmistificar: 1 É falso que os homens portugueses só gostem de mulheres pequenas. 2.É falso que as mulheres mandem nos maridos. 3.É falso que, nas praias portuguesas, a água do mar seja quente. 11


4.É falso que os portugueses costumem dormir a sesta. 5. É falso que as mulheres portuguesas sejam envergonhadas. 6. É falso que cada português tenha três telemóveis. Por fim, o voluntário confirmou que os portugueses eram um povo falador e barulhento mas muito respeitador. Além disso toda a gente adorava crianças e tinha para com elas uma enorme empatia. Ao ouvir isso, Mary olhou para mim com olhos meigos. Já antes, ao ouvir informações sobre os portugueses, Mary ria-se para mim, muito divertida. É verdade que a maneira dela rir começava a mexer comigo. Escrevi bastante e fiz alguns rabiscos durante essa reunião.

No dia 9 de Dezembro saímos do campo, com cada um com um saco de plástico com meia dúzia de haveres. Assim são os refugiados, tudo o que têm cabe num saco de plástico. Um grupo de habitantes do campo, ao saber que nos íamos embora, resolveu fazer uma pequena festa, na véspera, ao fim da tarde. Eram de várias nacionalidades, sírios, etíopes, libaneses, afegãos. Alguns voluntários também se juntaram e cantámos canções de várias partes do mundo. A Mary dançou com elegância e delicadeza, apesar da sua barriga. Verifiquei que finalmente a língua não era uma barreira à comunicação, dei por mim a falar em português com os outros e com a sensação de que toda a gente compreendia o que eu dizia.

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No dia seguinte entrámos num autocarro que nos levou a um pequeno aeroporto, onde começou uma longa viagem, com três escalas, até Lisboa. Mary dormiu com a cabeça no meu ombro e eu coloquei o meu braço à volta dela. Durante a noite, quando ela dormia, pus a minha mão sobre a sua barriga. Senti os movimentos do bebé. Quando entrámos no avião para o último voo, de Zurique para Lisboa, uma hospedeira veio ter connosco e mostrou-me um e-mail que me era dirigido. Dizia assim:

Dear Mr Samir, Portugal is pleased to receive you and your family. We will provide all the conditions for you all to live with dignity and we hope you will you will enjoy our country and the portuguese people. We arranged a very simple welcome ceremony with the press on your arrival, and I hope you feel comfortable with that. It will take place on de VIP room of the airport. I was informed that you are a poet, so I have included in the programme of the ceremony the reading of one of your poems by yourself. We will translate it into portuguese.

Best Regards

The Minister

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Finalmente aterrámos em Lisboa bastante cansados. Mal saímos do avião um senhor elegante dirigiuse a nós: "I am the Minister, very pleased to meet you", e levou-nos no meio de uma grande comitiva, para uma sala cheia de fotógrafos e jornalistas, onde ficámos quase cegos com os flashes das máquinas fotográficas. Havia alegria, e muito ruído. Uma enorme faixa dizia: "Bem vindos, visitantes do Oriente!" Eu e Mary éramos os visitantes do Oriente! Então eu disse ao ouvido do Ministro. "Oh Senhor Ministro, é que eu sou português!" O Ministro estancou, agarrou-me o braço com muita força e puxou-me para trás da porta por onde tínhamos acabado de entrar. Fez um sinal aos seguranças para não deixarem entrar ninguém. Continuou a agarrar-me o braço com força e disse: "Ó pá vens armado em esperto, é? Queres arruinar todo o meu plano e ridiculizar-me face à oposição, é isso? Aviso-te: ou desempenhas bem o teu papel ou voltas já para a Síria! Vá, está caladinho e faz de Sírio"! Arrastou-me novamente para a sala. O ministro fez um discurso sobre o enorme esforço de Portugal, que estava na vanguarda dos países europeus no acolhimento dos refugiados. Depois os jornalistas fizeram perguntas sobre a travessia do Mediterrâneo e sobre a vida no campo. Respondi no meu inglês, que, de ser tão fraco não alimentou suspeitas. Mas, curiosamente, os jornalistas estavam muito mais interessados em Mary do que em mim. Pediram-lhe para ela dizer coisas em árabe e depois em português. Riram-se muito quando ela disse "Gosto de pastéis de nata" e "onde fica loja chinesa?". Tiraram grandes planos à barriga, ao seu sorriso e perguntaram-lhe como se ia chamar o bebé. Ela olhou para mim e disse a que ainda não sabíamos. Por fim o Ministro anunciou: "Agora Samir vai dizer um poema".

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Toda agente olhou para mim e fez-se um silêncio profundo durante largos momentos, eu não sabia o que fazer, mas a cara do Ministro mostrou-me que deveria continuar a representar. Lembrei-me que dentro do saco de plástico estava o caderno com os poemas de Samir. Tirei o caderno, abri uma página qualquer. Vi que estava em português. Li:

Refúgio Não vim para a qui porque quis Vim para aqui porque na minha terra Alguém matou alguém, que matou alguém, que matou alguém Que mataria alguém Antes disso até gostava da música da minha terra Vou estar bem aqui há florestas, caminhos, casas E há um refúgio Sei que não querem que os vossos filhos um dia sejam refugiados. e é só questão de um dia

Quando acabei de ler o silêncio continuou.

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Verifiquei que havia lágrimas nos olhos de muita gente. Foi Mary quem quebrou o gelo, dando-me um beijo. Aplaudiram.

Os dois dias que se seguiram foram bastante desagradáveis. Separaram-me da Mary e levaram-me para um local, que depois vim a saber que era a sede dos serviços de segurança. Fui interrogado por uns funcionários zelosos, pacientes mas de ar cínico. Parece que havia um alerta sobre terroristas que alegadamente se queriam infiltrar em Portugal para cometerem algum atentado. Pensaram que eu era um deles. Mostraram-me fotografias de uns barbudos para ver se eu os conhecia. Depois tive que repetir, infindas vezes, como tinha chegado ao campo de refugiados. Obviamente não acreditavam. Durante dois dias só me deram bolachas, sandes de fiambre e água. Tive muitas saudades da comida do campo de refugiados. Só me deixaram dormir três horas. Ao terceiro dia apareceu o Ministro que me pediu mil desculpas. Disse que finalmente tinham confirmado a minha identidade. Mostrou-se chocado com o que me tinha acontecido e levoume, num carro de luxo para um hotel, igualmente de luxo, numa colina de Lisboa. Tinha uma vista maravilhosa. Mary estava nesse hotel. Finalmente, senti o enorme conforto de a poder abraçar, respirar o seu cheiro e sentir a sua pele. O Ministro disse que o melhor seria eu e Mary ficarmos no hotel uns dias e sermos discretos, até a poeira assentar e os jornais não se interessarem mais por este casal de refugiados. Aliás, ele tinha dado ordens que trouxessem rapidamente outros refugiados para contentar o apetite dos media. Todos os gastos com a nossa estadia seriam por conta do governo, claro. Durante os dez dias que se seguiram passeámos nos jardins do hotel, fomos à piscina, à sauna , ao jacuzzi, e ao fitness. Ao fim do dia estávamos autorizados a sair do hotel e dar passeios à beira Tejo. A Secretária do Ministro, simpatiquíssima, telefonou cada dia a perguntar se estava tudo bem. O pessoal do hotel simpatizou com Mary. Queriam saber quando nascia o bebé e qual seria o seu nome. Mary começava a dizer algumas frases em português, que aprendia comigo e escutando a televisão. 16


Apesar de tudo, ao fim de uns dias, eu e Mary já nos aborrecíamos. Finalmente, a Mary conseguiu convencer o chefe de cozinha que a deixasse cozinhar as nossas refeições na magnífica cozinha do hotel. Depois comíamos no nosso quarto. Cozinhou petiscos deliciosos. Um dia, ao fim da tarde, apareceu o Ministro. Perguntou se eu e a Mary tínhamos gostado do hotel lembrando que era o melhor de Portugal. Entregou-me pessoalmente todos os documentos que eu necessitava. Igualmente concedeu a Mary uma autorização de residência, de prazo indefinido e um passaporte. Entregou-me um telemóvel e um tablet de topo de gama. Deu-nos um envelope, dizendo que era uma ajuda para o enxoval do bebé. Continha uns milhares de euros. O Ministro sabia da minha separação no mês de Setembro, e sugeriu que fossemos passar uns dias a casa da minha mãe, até ao nascimento do bebé. Perguntei a Mary e ela aceitou alegremente Entretanto verifiquei os meus e-mails e mensagens, coisa que já não fazia há meses. Alguns amigos companheiros de trabalho tinham-me reconhecido na televisão, quando viram a conferência de imprensa. Tinha algumas mensagens curiosas: 17


"Oh Zé, agora és refugiado? Isso deve ser para sacares algum subsídio, não?" Oh Zé, vais ter direito a uma casa por seres refugiado, é isso? Grande malandro!" "Tragédia, fizeste um filho à árabe! o que é que tens na cabeça, rapaz??" "Agora deste em poeta? Isso ainda dá menos dinheiro do que a publicidade, tem juízo!" "Zé, lembrei-me de ti por que te vi na televisão! Há quanto tempo não nos vemos! Temos de ir almoçar!". Também tinha uma mensagem interessante da minha ex-namorada: "Zé, vi-te na televisão, disfarçado de refugiado acompanhado de uma bela mulher. Pareceu-me que ela está grávida, terei visto bem? Tinha razão quando dizia que és um verdadeiro idiota! Como não consegui falar contigo e necessitava de espaço, dei todas as tuas coisas a uma instituição de caridade. É uma dessas instituições que tu costumas ajudar, deves ficar todo contente. Um beijo!".

Neste momento encontro-me na casa da minha infância a terminar este relato e a Mary está aqui ao lado a dormitar. A barriga está enorme e o bebé deve nascer brevemente. Apesar de não saber muito sobre o Natal, a Mary fez um desenho um pouco tosco e infantil de Jesus, Maria e o Menino para pôr qui no presépio. Esta noite sonhei com o bebé. Vi-o já rapazinho a fazer surf nas ondas da Nazaré, tal como eu já fiz, quando era jovem. Sonhei que ele surfava a maior onda de sempre, uma onda enorme que nunca mais terminava, pois que nunca rebentava e dava várias voltas ao mundo.

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A minha mãe e a minha tia estão radiantes. Também me viram na televisão mas não perceberam nada devido à surdez. Leram o cartaz que dizia "Visitantes do Oriente" e pensaram que era um spot publicitário sobre os reis magos que eu estava a filmar. Entendem-se muito bem com a Mary, embora às vezes digam que ela é espanhola, outras vezes italiana e outras vezes marroquina. Passam horas a discutir qual deve ser o nome do bebé.

FIM

Epílogo A única trave mestra que coloquei quando iniciei este relato foi a seguinte: "escrever um conto de Natal tendo o tema dos refugiados como pano de fundo". O conto teria então de ter concórdia, paz, serenidade, harmonia, família e natividade, no contexto do absurdo da crise que neste momento assola muitas regiões. O desenvolvimento do relato, os azares de José e a sua posterior salvação, o pessoano poeta Samir, a terna e cativante Mary e o pragmático Ministro foram-me sugeridos por todos aqueles que participaram, de um modo ou outro, nesta história. Quando falo da salvação de José refiro-me simplesmente ao fato dele se ter tornado consciente de que qualquer um de nós pode tornar-se um "refugiado". É só necessário que um dia, algo corra mal. Rui

Boas Festas!

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