A CORRIDA
Rui Madruga & Catarina Carrola Maio 2010
Artigo 1º República Portuguesa Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Constituição da República Portuguesa
CENA #01 EXT/ZONA RIBEIRINHA DE LISBOA/DIA Anacleto corre. A sua silhueta destaca-se de todas as outras que, ao fim da tarde, praticam jogging nesta zona. Extremamente
magro,
55
anos,
cabelo
comprido
e
despenteado mas já com alguma calvície, rosto enrugado e muito bronzeado, calções e camisa de alças desbotados (completamente indumentária
fora os
de
moda).
sapatos
de
Destacam-se
atletismo
nesta
impecavelmente
limpos e novos. São cor-de-laranja vivo, destacando-se na parte lateral um “A” maiúsculo verde fluorescente. Corre a grande velocidade, no seu rosto está estampado um enorme sorriso. Enquanto corre aprecia sapatos
que
traz
calçados.
Não
ouve
com deleite os os
sons
que
o
rodeiam, imagina-se como um corredor de fundo, aplaudido e encorajado por uma acicatada multidão. Passa
por
prazer
a
vários
monumentos
paisagem:
Torre
lisboetas,
apreciando
com
de
e
dos
Belém
Padrão
Descobrimentos. CENA #02 EXT/ZONA RIBEIRINHA DE LISBOA, ESPLANADA/DIA Afonso,
35
anos,
bem
parecido,
veste-se
de
forma
elegante, sofisticada e alternativa. Em cima da mesa está um
computador
portátil
de
última
geração,
ao
lado
de
esboços de letterings e layouts gráficos com referências a sapatos de desporto. Afonso fala ao telemóvel enquanto a outra mão passeia pelo teclado do computador. AFONSO ... o cliente que esteja descansado, o anúncio será entregue dentro do prazo. Pelo canto do olho vê Anacleto. Acompanha com o olhar a corrida. Anacleto desaparece de vista com o rio Tejo ao fundo.
CENA #03 INT/BALNEÁRIO MUNICIPAL ALCÂNTARA/NOITE Anacleto toma um retemperante duche. Na sua cara está estampado um enorme sorriso.
Transpira no rosto o imenso
prazer proporcionado pelo duche. O vapor de água misturase no ar. Vê-se um corpo magro, mas musculado entre água e vapor. No compartimento do duche, Anacleto coloca os ténis estrategicamente na sua linha de olhar e de maneira a nunca os perder de vista. CENA #04 INT/RECEPÇÃO BALNEÁRIO MUNICIPAL ALCÂNTARA/NOITE Anacleto maneira
caminha sóbria:
em
direcção
calças
de
à
ganga
recepção.
Veste-se
usadas
casaco
e
de
azul
escuro. Traz a mochila ao ombro, o par de botas numa mão e o par de ténis noutra. Senta-se no banco corrido do balneário, arruma os ténis num impecável saco de pano e começa
a
calçar
as
botas.
Nisto,
é
interrompido
por
Manjerico, o cão de Dona Ana. Dona Ana, uma quarentona, toma conta do Balneário e é uma mulher com ar atrevido, bem disposto e faladora. No rádio toca a música “Alfama” dos Madredeus e o balneário está decorado com motivos das marchas populares. DONA ANA (enquanto desce as escadas e conserta a camisa) Oh Manjerico, ‘tá quietinho, não incomodes o Sr. Anacleto. ANACLETO (enquanto faz uma “festa” a Manjerico e sorri) Deixe lá estar o animal... DONA ANA (enquanto pega no Manjerico ao colo e senta-se na sua secretária onde está um manjerico)
Isto os animais são piores que as pessoas, parece que adivinham quando há festa... O Sr. Anacleto não quer ir logo ao ensaio das marchas? Eu e o Manjerico vamos desfilar por Alfama...este ano o padrinho é o gordinho do Preço Certo. ANACLETO Agradeço Dona Ana, mas hoje só quero é cama... (pausa) ...e eu é mais maratona, não é marcha. (sorri envergonhado) Anacleto levanta-se e sai. Dona Ana levanta-se da sua secretária e vai até à porta, vendo Anacleto dobrar a esquina. DONA ANA (com o Manjerico ao colo) É pena, o Anacleto é que já marchava...
CENA #05 EXT/ARCADAS DA PRAÇA DO COMÉRCIO/NOITE Anacleto está deitado na sua improvisada cama de cartão, enquanto limpa cuidadosamente os seus ténis. Aproxima-se Artur, outro sem-abrigo, visivelmente alcoolizado. Tem 60 anos
e
as
suas
vestes
resumem-se
a
farrapos,
sapatos
rotos que revelam meias esburacadas e imundas. Há muito que não toma banho. Vem com um grande pedaço de cartão nas mãos. ARTUR (em tom jocoso) Então, e não é que já cá está o campeão mundial dos sem-abrigo.
Anacleto ignora Artur e nem levanta o olhar. ARTUR (simula um microfone com a garrafa) Ora diga lá Sr. Campeão da Maratona da Beira-Rio qual foi o prémio de hoje? Uma noite com tudo pago no Ritz da Praça do Comércio com vista privilegiada para as arcadas e para os pés deste seu humilde criado? (Artur dá um gole na garrafa) O Sr. Campeão acompanha-me num digestivo? ANACLETO (ignorando-o) Sabes que não bebo. ARTUR Claro, o Sr. desportista não bebe, não fuma. O campeão ainda está à espera da convocatória para a selecção de pé descalço... do pé descalço não, que o Sr. Campeão mesmo já não tendo motor anda sempre com pneus novos. Porque o Sr. Anacleto é um campeão, e um campeão tem sapatilhas de campeão. Oh campeão, mostra-me lá os xanatos. ANACLETO (irritado) ‘Tás maluco? Deixa-me em paz! Vai curá-la para outro lado. ARTUR (muito ofendido) Curá-la? Oh campeão, eu não ‘tou bêbado.
Vá mostra lá os sapatinhos que te metem a correr, oh Cinderela. ANACLETO (cada vez mais irritado) Vai à merda, pá! Deixa-me da mão. Artur, furioso, afasta-se e deita-se numa cama de cartão. Anacleto, vira-se para o outro lado com ar de poucos amigos e adormece. CENA #06 EXT/ARCADAS DA PRAÇA DO COMÉRCIO/AMANHECER Anacleto acorda. Repara que a sua mochila está aberta! Aflito
procura
o
saco
de
pano
onde
guardara
os
seus
estimados ténis. Não estão lá. Em vez destes estão os sapatos esburacados de Artur. Olha em redor, disposto a verbalizar
a
acusação,
mas
não
o
encontra:
Artur
desapareceu. ANACLETO (em tom enraivecido) Que grande sacana! CENA #07 EXT/ZONA RIBEIRINHA DE LISBOA/DIA Anacleto está sentado de costas para o rio a ver as pessoas que passam a correr. Olha no vazio. Os corredores passam indiferentes. CENA #08 INT/RECEPÇÃO BALNEÁRIO MUNICIPAL ALCÂNTARA/NOITE Dona
Ana
espera
por
Anacleto.
Levanta-se
da
sua
secretária e vai até à porta procurá-lo. Intrigada, olha para o seu relógio de pulso. Aconchega o seu casaco de malha e volta para dentro.
CENA #09 EXT/ARCADAS DA PRAÇA DO COMÉRCIO/NOITE Anacleto está só, deitado na sua cama de cartão. Não consegue adormecer. Está imóvel de olhos abertos, não pestaneja, olha o vazio. Nas mãos segura velhos recortes de
jornais.
O
frio
aperta
e
Anacleto
encolhe-se.
Ao
longe, passa um varredor de rua empurrando um carro de lixo. CENA #10 EXT/ZONA RIBEIRINHA DE LISBOA/DIA Anacleto,
sentado
no
chão,
virado
para
o
rio,
está
pensativo a olhar para as pessoas que praticam o seu jogging
diário.
Olha
atentamente
para
os
sapatos
que
passam mesmo à sua frente. De repente, uma sombra tapalhe a visão. Anacleto levanta o olhar. À sua frente está Afonso
que
esplanada.
o
observara
Trocam
olhares:
dias
antes
Anacleto
a está
passar
pela
admirado
e
curioso, Afonso sorri com ar de quem conseguiu encontrar algo de importante. CENA #11 EXT/ZONA RIBEIRINHA DE LISBOA/DIA Uma
equipa
de
filmagens
está
junto
ao
rio.
Muito
equipamento e muita azáfama típica dos dias de rodagem. Anacleto está a ser caracterizado e penteado em frente a uma tenda. As mãos passeiam incessantemente pelos braços da cadeira, está nervoso e desconfortável. Enverga camisa e calções de cores vivas e próprios para a prática de atletismo. Aproxima-se uma assistente que transporta uns sapatos de corrida iguais aos que lhe foram roubados. O olhar de Anacleto ganha outro brilho. Anacleto tenta não perder
de
vista
os
sapatos.
Afonso
aproxima-se
Anacleto. AFONSO (sorridente) Sr. Anacleto, está preparado?
de
Não se preocupe, isto é muito fácil do que correr a maratona. Anacleto acena com a cabeça. AFONSO (virando-se para Anacleto) Está ali a ver a câmara? (aponta) Anacleto diz que sim com um gesto de cabeça. AFONSO Só tem de fazer o seguinte... Quando eu disser acção, corre na direcção da câmara... É só correr... e sorrir, Sorrir, tem de sorrir... ok? Anacleto repete várias vezes um gesto afirmativo com a cabeça. Anacleto calça os sapatos de corrida e acaba de se equipar. A equipa está pronta a filmar. A câmara está mesmo em frente a Anacleto. Batem a claquete. AFONSO Atenção, Motor, Silêncio... Acção! Anacleto começa a correr em direcção à câmara mas não sorri. Passa pelo lado da câmara, não pára, “ouve” o estádio
a
levantar-se
e
a
aplaudir.
Os
gritos
de
incentivo aumentam de tom. Anacleto continua a correr deixando para trás a equipa de filmagens perplexa. Já distante, Anacleto pára, coloca as mãos nos joelhos, olha para trás, sorri e continua a corrida.