O gato que pintava setas amarelas (Versão em português - Lo que me contaron los gatos del Camino)

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Tradução de Carlos Costa e Luís Costa


Ninguém pode perder-se no Caminho. Os que seguem os seus sinais, não têm que se preocupar, uma vez que estes guiarão os nossos passos até Santiago, garantindo que ao longo de campos, bosques, planícies, aldeias, prados e cidades, não falte um lugar onde descansar, onde se abrigar, alimentar ou acalmar a sede dos peregrinos. Sem dúvida alguma que as setas amarelas são o seu sinal mais famoso e representativo: pintadas à mão ou com um modelo, podemos encontrá-las nas pedras, paredes, árvores ou em qualquer lugar que se considere visível para os caminhantes, e apontam sempre para o nosso destino. Faça frio ou faça calor, vento, neve, ou que haja bosta de vaca no chão, estas marcas amarelas serão sempre nossas cúmplices. São tão misteriosas e fascinantes, que sempre que as vamos não podemos deixar de sentir-nos acompanhados por aqueles que as pintaram zelando por nós: quiseram que as vejamos para que confiemos em segui-las e deixemos que aconteça entre elas toda a magia do caminho. Esta história fala destes sinais, mas também do difícil que é dizer adeus. Quem me contou foi um gato que encontrei nos bosques do Caminho do Norte e me assegurou que muitas destas setas tinham sido pintadas por alguns gatos seus amigos, que aprenderam o maravilhoso ofício de sinalizar o Caminho.

Cada peregrino costuma começar o seu caminho onde mais lhe convém, a única regra é fazê-lo segundo aquilo que te peça o teu corpo e espírito. Alguns começam na distância exata para que possam receber a Compostela, enquanto que outros saem da


porta da sua própria casa, mesmo que esta se situe na outra ponta do mundo. O peregrino de que fala esta história era um destes últimos, vinha de muito longe e já estava a caminhar há bastante tempo. Aqueles que já alguma vez empreenderam esta fascinante viagem saberão que a maior parte da magia de caminhar está nas pessoas com que nos vamos encontrando, e para este peregrino não foi diferente. Durante os seus incontáveis dias de caminho, tinha feito uma carrada de bons e melhores amigos e amigas de todos os países do mundo, ficando a gostar tanto deles que poderia dizer que os considerava como se fossem a sua própria família. Uma noite, num albergue que já estava a poucas etapas de Santiago, este peregrino levantou-se da mesa depois de jantar, deixando os seus amigos a brindar e a celebrar o facto de que já faltava pouco para o final da sua viagem. Saiu para a rua sozinho sem ser visto por ninguém e, sob a luz das estrelas, chorou tanto ou mais que num dia de chuva na Galiza. A razão pela qual chorou, foi que se apoderou dele um sentimento de imensa tristeza, que lhe inundou o coração ao dar-se conta de que quanto mais perto estava do seu destino, mais depressa chegaria o momento de despedir-se para sempre daquelas pessoas de que tanto gostava e de tudo aquilo de bom que o Caminho lhe estava a dar. Sentado sobre uma pedra no pátio traseiro do albergue, sentiu-se tremendamente desconsolado. Ficou durante um bocado com os olhos cravados no rasto branco das constelações que durante tantas noites o acompanharam, só que desta vez as estrelas estavam esborratadas por causa das lágrimas que lhe enchiam os olhos. Passados alguns instantes, quando ficou em silêncio, notou ao seu lado a pequena e suave presença de uns olhos brilhantes, que o tinham estado a observar desde que saíra do albergue. Era um gato que se aproximou dele e ao vê-lo tão triste encostou-se a ele para o consolar. O peregrino pegou nele e pousou-o no colo, enquanto lhe acariciava o pelo e lhe explicava o porquê da sua tristeza, como se fosse um confidente com quem podia falar dos seus pensamentos, apesar de saber que o gato não podia percebê-lo. Curiosamente, o gato parecia atento às suas palavras e dava-lhe a sensação de mostrar empatia pelos seus sentimentos. Um pouco mais aliviado, e agradecido pela companhia, o peregrino sentiu-se com algum ânimo para regressar ao albergue e preparar-se para dormir naquela noite. Secou as lágrimas dos olhos e despediu-se do gato, não sem antes lhe dar uma lata de atum que levava num dos bolsos para essas ocasiões que só acontecem nas etapas mais duras e longas. Dirigiu-se então para dentro, pensando que o mais difícil seria guardar o sorriso durante os últimos dias que se aproximavam, sabendo que a cada passo que daria estaria mais perto da dura e inevitável despedida.


Nessa noite, o gato ficou durante algum tempo pensativo, enquanto lambia dos bigodes as últimas migalhas de atum. Tinha ficado bastante impressionado com a situação daquele homem, pois foi a primeira vez que viu alguém tão triste no Caminho. Já há algum tempo que percorria a sua rota até Santiago e esperava poder chegar dentro de alguns dias, pois tinham-lhe dito que as suas ruas eram sempre uma festa, cheias de alegria, reencontros, música e, principalmente, boa comida. Ainda assim, sentiu que mesmo que se atrasasse algum tempo a chegar ao seu destino, valia a pena tentar ajudá-lo. É sabido por todos que os gatos são animais muito astutos, mas para além disso, este conhecia todos os segredos do Caminho, pelo que não lhe custou muito ter uma ideia brilhante! Não só para ajudar esse peregrino tão entristecido, mas também todos aqueles que se sentissem da mesma forma. Nesse mesmo instante traçou um plano que poria imediatamente em prática: durante o dia caminharia, estudaria e anotaria todos os caminhos alternativos para descobrir novos itinerários possíveis; e durante as noites sairia para modificá-los, repintando as marcas para que não acabassem nunca. Como conhecia todos os armazéns onde os trabalhadores das estradas guardavam a tinta amarela utilizada nas obras, decidiu que utilizaria a sua cauda como pincel para pintar durante a noite novas setas, que de manhã, já secas, seriam seguidas pelos peregrinos rumo a novos caminhos. Estes seriam mais longos, dando voltas, indo ao contrário ou em círculos. O plano não podia falhar, caminhariam durante muito mais tempo e assim não teriam que se preocupar em dizerem adeus. E foi assim que depois daquele encontro o gato começou a explorar novas e incontáveis rotas do Caminho, para as marcar com a sua cauda molhada em baldes de pintura amarela. Durante o dia caminhava por todos os lugares e cantos possíveis, abrindo vias que acabava de conhecer e vivendo aventuras que só ele poderia explicarnos. Consultava velhos guias e tratados sobre o Caminho, visitava albergues, pousadas, mosteiros, casas e bares para falar com os hospitaleiros ou qualquer outra pessoa que se encontrasse para absorver novas informações que lhe pudessem ser úteis. Com o tempo foi descobrindo lugares maravilhosos e pouco conhecidos, pelos quais haveriam de passar os caminhantes a cada novo dia. Estudava cada centímetro de terreno, cada desnível, cada paisagem, cada rio, povoação, fonte, ribeiro ou montanha, com a intenção de, para além de manter sempre no Caminho os peregrinos seguros e servidos, fazê-los descobrir lugares incríveis a que jamais iriam se tivessem seguido um único itinerário, tentando que cada etapa fosse mais bonita que a anterior. Quando


a noite chegava, antes de se enroscar a dormir, voltava a atrás, a todos estes lugares para pintar as setas amarelas. Acabou por se tornar num pequeno especialista! Não havia um único palmo de qualquer caminho que não conhecesse como as almofadinhas das suas patas. Todos os animais e plantas, incluindo fadas, gnomos e duendes recorriam a ele. Diz-se que há muita gente que garante ter-se cruzado com uma cauda com a ponta da cauda amarela e que também houve outros gatos que lhe seguiram o exemplo e começaram a abrir caminhos para poderem vir de qualquer parte do mundo. E os peregrinos? Perguntas tu… Pois, a verdade é que nunca se deram conta das mudanças no rumo dos seus passos, já que estavam tão deliciados com os lugares que descobriam a cada dia, que esqueciam logo a seguir os seus guias, mapas e aplicações de telemóvel, desejando apenas que o próprio caminho os guiasse. O gato, para além de astuto, era principalmente bondoso, e não queria que ninguém ficasse para sempre a dar voltas sem nunca chegar a Santiago. É por isso que a qualquer momento, se os próprios peregrinos o sentissem no seu interior, poderiam encontrar as marcas que só eles podiam ver e que os dirigiam de maneira a entrarem nalgum caminho que os levasse de maneira mais directa a Compostela. Passaram-se os anos e o Caminho converteu-se numa imensa rede de rotas diferentes que se conectam umas com as outras, abarcando todos os cantos imagináveis da península ibérica, incluindo muitos outros países ou mesmo cruzando os mares. Todas estas artérias eram um fluxo transbordante de felicidade e de boas intenções que mudavam as pessoas. O certo é que a qualquer pessoa teria parecido impossível que alguém tão pequeno, com a sua cauda e um balde de pintura tivesse conseguido chegar a realizar tal obra. Muito tempo depois, aquele peregrino triste com o qual o gato se encontrou um dia, seguia caminhando sem saber realmente qual era o seu destino, alheio ao desconsolo que naquela noite o invadiu tantos dias antes. Ainda que agora estivesse plenamente feliz, tinha uma barba encaracolada e densa que lhe saltava sobre o peito enquanto caminhava, e um sorriso que não se lhe apagava nem com uma tempestade das que te deixam as meias todas ensopadas. O gato, já velho e um pouco mais cansado, seguia com a sua missão de criar novos caminhos e de cuidar e ajudar todas as pessoas que precisassem. O tempo passou-lhe a sua fatura e de tanto se absorver na sua missão, esqueceu-se que ele próprio um dia tinha tido vontade de chegar a Santiago.



Numa noite, quem sabe se por destino ou coincidência, o peregrino acabou a sua etapa no mesmo albergue em que, anos antes, saiu para se sentar desconsolado sob as estrelas. O gato, que naquela noite também foi ali parar, dormia junto da mesma rocha em que se tinham encontrado pela primeira. O peregrino saiu para apanhar ar e caminhar sobre a relva, e o gato, ao ouvir os seus passos, levantou os olhos; ao veremse um ao outro, ambos se reconheceram naquele mesmo instante. O pobre felino, já debilitado pelo passar dos anos, já não emanava a mesma vitalidade daquele primeiro encontro, ainda que os seus olhos continuassem a ter o mesmo brilho de sempre e se pudesse ler neles que se alegrava de ver o seu velho amigo, que pegou nele e o colocou sobre o colo para o acariciar. O peregrino começou a recordar aquela noite na sua cabeça e toda a tristeza que sentiu, dando-se conta que tinha caminhado muitíssimo mais do que esperava, esticando a sua viagem para não perder todas as coisas que lhe deixariam saudades do caminho. Ao fixar o seu olhar na delgada cauda do gato e na sua ponta amarela, percebeu que tinha sido ele quem o havia ajudado a prolongar durante tantos anos a amargura da despedida, imerso na felicidade de um Caminho que nunca acaba. Também compreendeu que no fundo ambos estavam perdidos, encurralados, seguindo setas e abrindo caminhos, mas sem um destino aonde chegar. Foi então que o peregrino pensou que estaria na hora de pôr fim à sua viagem e decidiu que não o faria sozinho… Na manhã seguinte, e antes que mais alguém acordasse, pediu ao hospitaleiro uma cesta que atou à parte superior da sua mochila e convidou o gato a vir com ele, para que seguissem juntos as setas até chegar a Santiago. Este iluminou a sua carita cansada, e não tardou a subir e sentar-se, acenando com a cabeça, como quem diz: “De que estamos à espera?”. Foi assim que seguiram rumo ao seu destino, esquecendo as melancolias que surgiriam no momento da despedida, desfrutando de cada segundo que passavam na companhia um do outro e descobrindo juntos este último troço de caminho tão emocionante. Poucas etapas depois, chegou o feliz e inevitável dia em que chegaram à Praça da Catedral de Santiago. O fim do seu trajeto tinha chegado e o peregrino sentou-se no chão a chorar, sem saber se era de tristeza ou de felicidade. Provavelmente de ambas. O gato encostou-se a ele uma última vez, e senão fosse porque a ciência diz que nós humanos somos os únicos animais que podem chorar, qualquer pessoa que visse os seus olhos poderia assegurar-nos que também estes estavam cheios de lágrimas. Despediram-se e cada um seguiu um rumo diferente, sem mais demoras, felizes pelo tempo e espaço que compartilharam.


Ao ver o seu amigo felino cruzar a praça e meter-se entre as pedras da catedral, o peregrino, ainda que com um grande vazio dentro de si, sorriu, contente. Quem sabe se o nosso gato continuou a pintar mais algumas setas amarelas até novos lugares, ou se finalmente ficou o resto dos seus dias em Santiago para desfrutar da alegria das suas ruas, das pessoas que lhe dão vida e, obviamente, da sua comida. O certo é que se os gatos têm sete vidas, se nos apercebermos de tudo o que ele foi capaz de fazer numa única, imaginem o que poder vir a conseguir com todas as restantes. O peregrino, dias depois, voltou para casa com aquela estranha sensação que temos ao acabar um livro de que gostámos tanto, que não o queríamos acabar. A inquietação e os desejos com os quais começou esta viagem , converteram-se numa nostalgia que o acompanhava por todo o lado. Em cada folha da relva, em cada árvore, nas nuvens, na chuva, nas pedras, nas estrelas… a cada passo que dava algo lhe recordava o quão feliz era por ter tido a sorte de ter estado ali, junto de tantas pessoas queridas e, ainda que tentasse, quando estes momentos faziam o seu ninho nos seus pensamentos, nunca podia deixar de esboçar um sorriso nos seus lábios. Dizem que a todos aqueles que acontece algo parecido, é porque sabem que, ainda que tenham deixado de caminhar, o Caminho nunca os deixa.


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