UMA REFORMA ORTOGRÁFICA INEXPLICÁVEL

Page 16

António Emiliano Uma reforma ortográfica inexplicável: Comentário razoado dos fundamentos técnicos do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990) —Parecer, 2008

gravação ou de representação espectrográfica, obterei dez registos ligeiramente distintos, que posso associar à forma fonética exemplar acima indicada. Se nove falantes do meu dialecto fizerem o mesmo exercício comigo, obter-se-á cem registos distintos da mesma forma fonética e da mesma palavra. Se dez falantes de cada uma das quatro principais zonas dialectais portuguesas do continente fizerem o mesmo exercício, obter-se-á quatrocentos registos distintos. Quando os linguistas falam de fonética do português estão implicitamente a referir-se ao que se designa por ‘fonética sistemática’ ou ‘fonética segmental’. É um nível linguístico abstracto (porque não tangível ou não observável directamente) que contém, entre outras coisas, os sons da língua qua categorias fonéticas não contingenciais (relativamente às condições e circunstâncias concretas da prolação). É esse nível linguístico fonético, povoado por unidades discretas claramente diferenciadas e delimitadas, que a transcrição fonética torna visível através de símbolos literais, diacríticos e auxiliares especiais. Assim, nas normas cultas de Portugal e do Brasil, a palavra ‘concepção’ — que, do ponto de vista das “pronúncias individuais”, pode ter infinitas variantes prolativas de acordo com as circunstâncias em que se desenrola cada acto de fala — do ponto de vista estrito da fonética sistemática está associada a duas formas fonéticas básicas, uma europeia [kõsɛˈsɐ̃ũ̯], outra brasileira [kõsepiˈsɜ̃ũ̯]. Ao contrário da forma fonética europeia, a forma brasileira contém prolação da consoante oclusiva bilabial surda [p], a que corresponde na grafia a letra P, com epêntese da vogal [i] para desfazer o grupo consonântico “culto”, à qual não corresponde na grafia nenhum elemento. Ao contrário da forma fonética brasileira, a forma europeia contém uma vogal pré-tónica palatal média aberta [ɛ], a que corresponde na grafia a sequência -EP-. Pode dizer-se que o P desta sequência é “mudo”, ou inorgânico, como o agá inicial de palavras como ‘humano’ ou ‘haver’, mas, na realidade, esta letra consonântica tem valor diacrítico relativamente à letra E precedente, indicando, por razões históricas que não interessa aqui explicar, que a mesma letra vocálica corresponde a uma vogal média aberta [ɛ] e não a uma vogal fechada [ɨ] (como sucede em ‘concessão’).

14


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.