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A Baleia (2022): Aronofsky mais uma vez culpa Deus e o mundo

A alegoria religiosa mais uma vez ganha espaço na filmografia de Aronofsky, e agora ele dialoga com Herman Melville e seu “Moby Dick”, além de trazer Brendan Fraser em atuação forte e convincente, ainda que o roteiro se arraste demais

Darren Aronofsky não oferece soluções fáceis. Em uma filmografia recheada de obras incutidas pela obsessão e pelo simbolismo religioso (e todos os questionamentos consequentes a isso), ele entregou nada menos que obras irretocáveis: “Pi”, “Réquiem para Um Sonho”, “Fonte da Vida”, “O Lutador”, “Cisne Negro”, “Noé” e “Mãe!”. Cada qual é carregado por uma vertente que, juntos, os transformam em um quebra-cabeças complicado, nada prazeroso, mas, ao mesmo tempo intrigante, reflexivo, provocante e complementar. É uma pena acompanhar “A Baleia”, uma exceção que incomoda por razões muito além do motivo mais aparente: um erro.

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O filme continua tocando nos diversos temas comuns à filmografia de Aronofsky. Contudo, o resultado alcançado é arrastado e aquém da história que o carrega, o que é uma grande pena, pois foi adaptado por Samuel D. Hunter de sua própria peça. As características teatrais estão todas na tela: verborragia, espaço limitado e personagens que vão e vêm no mesmo cenário. Porém, ao invés de aproveitar o potencial do texto, tanto o roteirista quanto o cineasta se ativeram ao contexto, e não à nova linguagem. Adaptar um texto teatral para a tela é um desafio e tanto — basta ver o que Denzel Washington fez com “Um Limite Entre Nós” e o quanto ele transitava pela casa preenchendo os espaços, apesar dos exageros; ou o que Roman Polanski fez em “Deus da Carnificina”, cujo aproveitamento de um só apartamento ocupa o longa inteiro, e jamais o torna ameaçado pelas falas constantes, pois há uma palavra importante, e que faltou em “A Baleia”: ritmo.

Desta forma, se há verborragia em cena, não há necessariamente um problema (afinal, toda a filmografia de Woody Allen se baseia nisso). A questão é torná-la permitida sem controle, sem cadenciamento e sem o tal ritmo. Em seguida, o espaço limitado não se transformaria em um problema caso o cineasta não tornasse sua câmera apenas circular – a locomoção de seu protagonista, sua falta de fôlego, sua esperança pelo próximo – tudo isso já foi abordado na própria filmografia de Aronofsky de forma muito mais competente e, principalmente, eficaz. É claro, então, que o ir e vir dos personagens se torna aborrecido.

O personagem principal, Charlie (Brendan Fraser), é retratado como um homem em autodestruição. Ele passa seus dias no sofá de seu apartamento, comendo compulsivamente sempre que a tristeza o invade, e isso acontece praticamente o filme inteiro. A partir deste ponto, é importante evidenciar duas escolhas: Aronofsky utiliza a perda do marido de Charlie como uma explicação simplista para sua luta constante contra seus demônios internos; e o problema central, que reside na desconexão entre a preocupação em retratar Charlie e o olhar lançado ao contexto ao seu redor, enquanto ele tenta se reconectar com sua filha. A todo custo, ele quer que ela recupere a bondade que havia em seus valores quando ele a abandonou, aos oito anos. Mais oito se passaram, e agora Ellie (Sadie Sink) é rebelde, impulsiva, grosseira e iminentemente catastrófica.

O filme apresenta um homem que reconhece seus pecados e é visto como merecedor de piedade. Embora a compulsão alimentar de Charlie possa atenuar o abandono parental, a obra reduz a filha abandonada a alguém que eventualmente perdoará seu pai. Quando a trama amorosa de Charlie é apresentada, a abordagem do envolvimento LGBTQIAP+ se mostra anacrônica e trágica para os personagens envolvidos. Aronofsky critica a igreja, apontando-a como responsável pelas tragédias da história, mas os coadjuvantes próximos têm suas misérias associadas a esse amor. O sofrimento do longa é causado por um sentimento que raramente é positivo.

O cinema de Darren Aronofsky é marcado por outros dois temas recorrentes: conflito entre pais e filhos e religião. Aqui, Charlie é um homem que sofre com a compulsão alimentar e busca redenção por seus pecados. No entanto, a abordagem ultrapassada do cineasta quanto à relação amorosa LGBTQIAP+ acaba tornando a trama previsível e trágica. Brendan Fraser entrega uma performance emocionante, cuja construção do personagem se dá por toda a vulnerabilidade do ator em seu atual estado de carreira, mas, muito além disso, consegue construir um perso- nagem que não se poda pela ingenuidade e, ainda assim, faz questão de enxergar o lado bom da vida. Contudo, a manipulação da trilha sonora de Rob Simonsen e a exploração excessiva da miséria do personagem podem afastar o espectador. A abordagem da religião também é superficial, sem explorar hipocrisias e mentiras. Aronofsky acaba reforçando constantemente os dramas que não precisavam ser tão exaustivamente reiterados, e a utilização de momentos descartáveis de simpatia, como as cenas das dificuldades de Charlie para tomar banho, é pouco sutil e pode parecer uma exploração da miséria do personagem. Tudo soa equivocadamente gratuito, até mesmo os questionamentos do personagem com o que o fez perder o marido.

Darren Aronofsky cria uma dinâmica ultrapassada de sofrimento em relação aos amores LGBTQIAP+ e reforça estereótipos femininos com a presença de três personagens irritadas. Hong Chau se destaca como uma cuidadora não condescendente, enquanto Samantha Morton traz uma visão nada ortodoxa (e caricata) sobre a própria filha, mas isso é utilizado pelo diretor para reforçar a bondade do protagonista. Já Sadie Sink perde com o roteiro verborrágico (aliás, todos perdem), e acaba repetindo sua personagem de “Stranger Things”. Aliás, a representação feminina e LGBTQIAP+ é frágil e a discussão secundária sobre a beleza das palavras é desperdiçada. Aronofsky utiliza isso como um dado utilitário para criar pontes entre pai e filha e um final piegas. Charlie é autodestrutivo, mas precisa da permissão da vítima para morrer e desfrutar do paraíso, pois é visto como um homem bom. É uma pena que sequer a fotografia de Matthew Libatique ajude o longa a ganhar significância, pois a exploração do mesmo ambiente não soa eficaz do ponto de vista linguístico, tendo em vista o tamanho do apartamento e dos espaços nunca utilizados. Tudo é uma questão de perspectiva, e faltou empatia não ao sofrido Charlie, mas sim à significância da iminente morte que trouxe todos os simbolismos literários de Melville à tona. Tudo fica no meio termo e no lado ruim do melodrama, inclusive o filme.

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