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Não Sei Quantas Almas Tenho: Incessante busca por Fernando Pessoa
from O Regional PG
Em reinterpretação do conto de Fernando Pessoa, Cavi Borges e Patrícia Niedermeier brincam com a linguagem cinematográfica e vão do naturalismo ao flerte com o expressionismo alemão
A fluidez com a qual os vampiros transitam pela imortalidade é invejável. Eles podem ficar séculos parados em uma mesma cidade, apenas contemplando o efeito do tempo na pele de diferentes gerações; podem se fantasiar de guerrilheiros ou guerreiros, de cavalheiros ou líderes religiosos. Seja qual for o melhor encaixe para a história, definitivamente conseguem se sobrepor ao tédio – afinal, que escolhe têm?
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Neste experimento de Cavi Borges e Patrícia Niedermeier, o espectador vai se deparar com essa questão, e vai perceber que a fluidez vampírica tem um quê poético muito forte, principalmente quando o pano de fundo são as paisagens portuguesas. “Não Sei Quantas Almas Tenho” fala exatamente sobre isso.
De um lado a outro, o existencialismo é colocado à prova com a tal da fluidez. Ambos são vampiros e ambos querem a sensualidade à flor da pele em cada gesto, mas ao mesmo tempo buscam o gozo da vida por outros meios, como a palavra. Por isso, aqui e ali eles permeiam em Portugal, como se não precisassem discutir absolutamente nada à exceção de dois pontos, a existência e a próxima mordida. Com a mesma fluidez de seus protagonistas, o filme carrega questionamentos que não se encontram apenas no roteiro deste longa, e sim em sua grande inspira- ção: o poema homônimo de Fernando Pessoa. A partir das palavras do mestre português, Cavi e Patrícia mergulham em uma ambientação interessante, porque mexe diretamente com o sensorial, fazendo com que seus protagonistas, interpretados pela própria Patrícia e por Jorge Caetano, transpusessem os cinco sentidos em cena.
Da pitaia nas mãos dela, escorrendo suco vermelho-sangue por suas mãos, às beiras de precipícios, cavernas e castelos. Em nove capítulos, o documentário ensaiado, ou a ficção com toque realista, faz do espectador um convidado a mergulhar na orgia verbal que se forma minuto a minuto. O tempo, aliás, como é de se esperar em um filme sobre vampiros, é ao mesmo tempo escasso e infinito. É possível senti-lo nas paisagens, por exemplo, enquanto ambos entoam as palavras de Pessoa sem pressa alguma. Em outros cortes, porém, ele se torna urgente, à medida que os personagens precisam lidar com suas questões carnais, do erotismo de suas ações ao existencialismo que flui com as referências do próprio cinema; das mais claras às intrínsecas nas ações ou na fotografia, abraçando a ficção com os dois pés (ou seriam garras) no realismo, que surge oportunamente para complementar o passar do… Tempo.
Sim, o tempo é precioso para este filme, e a longa discussão entre os personagens de Jorge e Patrícia pode levar alguns espectadores a questionar o modus operandi deste roteiro, mas a verdade é que este é um grande flerte ao cinema contemplativo, que faz questão de não cadenciar o ritmo, tornando-o fluido como sua proposta sugere. Nisso, Cavi e Patrícia, em mais uma parceria com Jorge (vide “Fado Tropical”) fazem questão de evidenciar o desenvolvimento dos personagens, o que permite à dupla aproveitar a cena com domínio teatral.
Em “Não Sei Quantas Almas Tenho”, não há discussão sobre a construção do cinema de vampiro, do horror moderno ou da lógica aplicada ao cinema de ficção ou documental. Porém, tudo está ali. Os cineastas aproveitam da genialidade de Pessoa para transmitir ao espectador uma espécie de brincadeira visual, cujo resultado envolve pela autenticidade de todas as referências juntas, do bom gosto técnico e narrativo, e do prazer em encontrar os atores em performances tão à vontade. Não é todo momento de tela que envolve, mas o filme se aproveita disso e deixa o espectador à vontade para decidir. A fluidez vampiresca estará ali, de uma forma ou de outra, e não estará para brincadeira.
