Tempos Conservadores: estudos críticos sobre as direitas. Volume 3: Direitas na Europa

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Sumário

Nota dos Organizadores ................................................................................ 7 Prefácio David Maciel ................................................................................................... 14

Direita e esquerda na história: considerações pontuais acerca de alguns casos de dislexia conceitual Muniz Ferreira ................................................................................................. 24 O conceito de nação e do nacionalismo presentes no partido de extrema direita, o Front National Guilherme Franco de Andrade…………...........................................................57 Estrema destra i nuovo fascisti: Casa Pound e a crítica ao fascismo sob a perspectiva de Antonio Gramsci Jefferson Rodrigues Barbosa……………………………………………..............87 O populismo de direita e suas estratégias de sobrevivência na Alemanha: o Alternativ für Deutschland (AfD) Vinícius Liebel…………………………………………………………………….105 Pode a Frente Nacional ao poder chegar? O terceiro excluído da vida política Jean-Yves Camus…………………………………………………………………134 Ausência de consenso: os partidos de extrema direita como família partidária João Carvalho…………………………………………………………………….153


Nota dos Organizadores Um espectro ronda a Europa: à direita

O terceiro volume da coleção Tempos conservadores: direitas na Europa é resultado dos esforços para a construção de um projeto editorial com o objetivo articulado na proposição de mapear o pensamento da direita, suas ideias, instituições, organizações e personagens. Para o segundo volume lançado em 2018, dedicado às Direitas no Cone Sul,1 haviam sido encaminhadas contribuições para além do debate específico sobre a América Latina — em especial, recebemos também textos cujas temáticas abordavam a conjuntura europeia, e isso nos estimulou a construir condições para um terceiro volume dedicado à análise de fenômenos europeus. O primeiro volume de Tempos conservadores foi lançado em 2016. Os textos foram produzidos para serem disponibilizados como e-book, visando à divulgação dos trabalhos que compunham aquela edição. 2

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Disponível em: <http://temposconservadores.blogspot.com/2018/09/saiu-o-volume-2-temposconservadores.html>, Acesso em: 07/12/2019. 2

Disponível em: <http://temposconservadores.blogspot.com/2016/10/tempos-conservadoresestudos-criticos.html>, Acesso em: 07/12/2019.


GUILHERME DE ANDRADE, JEFFERSON BARBOSA, MARCOS VINICIUS RIBEIRO, RODRIGO JURUCÊ

Neste terceiro volume, o projeto se consolida com textos de seis autores — quatro pesquisadores brasileiros e dois europeus (de Portugal e da França). O prefácio foi escrito pelo professor de História Contemporânea da Universidade Federal de Goiás (UFG), David Maciel. Foram abordados aspectos do pensamento político, fundamentos e ações de intelectuais e organizações (movimentos e partidos) à direita do espectro político na Europa recente. O livro apresenta, portanto, artigos com singular profundidade argumentativa e fundamentos conceituais e teóricos de extrema relevância para a conjuntura atual. São materiais escritos e pensados para serem, como diria Karl Marx, “armas da crítica”. Como convencionalmente se espera de uma nota introdutória, sintetizamos aqui as ideias centrais de cada um dos capítulos. Ao final, destacamos algumas das preocupações centrais que orientam os organizadores dos três volumes de Tempos conservadores. No primeiro capítulo da obra, Muniz Ferreira interpreta o pensamento político da direita e suas expressões históricas na contemporaneidade. “Direita e esquerda na História: considerações pontuais acerca de alguns casos de dislexia conceitual, apresenta a temática como reflexo do que o autor denomina “onda contrarrevolucionária”, que assolou, a partir da Europa, uma dinâmica de ofensiva à direita, influenciando a mobilização de seus apologistas. Muniz Ferreira revela aspectos e fundamentos históricos e filosóficos da formação dos pressupostos da ética burguesa, como manifestação daquilo que a obra clássica de Macpherson considerava como “ética de individualismo possessivo”. Através de uma análise histórica sobre elementos da modernidade e da contemporaneidade, o autor estabelece, assim, conexões entre acontecimentos e ideias que marcaram a construção dos pressupostos da direita, em suas inúmeras variantes, tais como a justifi-

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cativa para a manutenção da ordem dos senhores, a defesa da intocabilidade da propriedade e a reação motivada pelo medo da “ditadura da maioria”. Esta perspectiva analítica vem acompanhada de apontamentos sobre novos temas e expressões correlacionados, alguns dos quais abarcando explicações pontuais, como a concepção de totalitarismo. O autor problematiza, ainda, as variantes do pensamento político da direita e seus mitos e mitologias marcadas por concepções que confirmam o caráter polifônico de concepções como “neoconservadorismo”, “libertários de direita”, “anarcocapitalismo”, ou “nazismo de esquerda”, todas compreendidas por Muniz Ferreira como manifestações contundentes da diversidade de concepções das direitas, estando seus fundamentos marcados por debilidades argumentativas e pressupostos muitas vezes irracionais. É isso, afinal, que possibilita ao autor apresentar sua tese sobre a dislexia que marca os fundamentos de discursos e ideologias à direita do espectro político. No capítulo seguinte, o historiador Guilherme Franco de Andrade traz ao debate uma preocupação já demarcada por outros autores da presente coletânea: a operacionalidade dos conceitos identificados na busca de classificar as manifestações políticas à direita do espectro político. Para isso, ele apresenta parte sua tese de doutorado sobre a atual fase da Frente Nacional, com Marie Le Pen à frente do partido. Segundo o autor, o extremismo político articula-se como expressão de suporte para a identificação das particularidades da xenofobia e do retorno a uma perspectiva paradigmática de cunho conservador assentada na defesa da comunidade, da terra e do sangue. Sob esta perspectiva, o nacionalismo de vertente chauvinista conclama os defensores da nação supostamente ameaçada por inimigos internos e externos. O extremismo político de direita constitui-se, assim, em instrumento conceitual para distinguir as manifestações clássicas destes fenô-

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menos que marcaram a primeira metade do século XX. Destacando as modificações dos fundamentos ideológicos e de propaganda da FN francesa, o capítulo traz, ainda, elementos para a compreensão do papel do Estado como garantidor dos interesses da comunidade étnica. O etnopluralismo apresenta-se como subterfugio para o discurso anti-imigração e de defesa da cultura. O Estado é fundamental para a garantia dos direitos e privilégios nacionais. Enfatiza-se, dessa forma, o nacionalismo como principal componente ideológico e retórico dos discursos dos dirigentes da FN na França. Finalmente, ao se concentrar nesta análise sobre o papel do Estado e os fundamentos nacionalistas, Guilherme Franco de Andrade defende, afinal, a importância de sua análise: Embora esse campo de pesquisa seja extremamente debatido na academia, não existe consenso entre os diversos pesquisadores sobre uma categoria de análise que seja suficiente para agrupar esses partidos. Por ser um objeto de estudo atual e em constante transformação e ressignificação, além de localizado dentro da perspectiva historiográfica, chamada história do tempo presente ou história imediata, ele é bastante extenso e controverso.

No terceiro capítulo, “Estrema destra i nuovo fascisti: Casa Pound e a crítica ao fascismo sob a perspectiva de Antonio Gramsci”, Jefferson Rodrigues Barbosa, professor de Ciência Política na Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), apresenta seu primeiro estudo sobre a Casa Pound, escrito há dois anos. O autor aborda os elementos preliminares desta organização italiana e suas táticas e estratégias pouco convencionais situadas a uma extrema direita mais tradicional. Fundada em 2003, a Casa Pound se destaca como uma das mais expressivas organizações chauvinistas na Itália, declaradamente herdeira do fascismo e das ideias de Mussolini, e pela tentativa de resgate das chamadas “políticas

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sociais do fascismo”, enfatizando em sua agenda política propostas no campo da habitação, saúde, segurança e emprego, mas somente aos cidadãos italianos — portanto, com um forte discurso anti-imigração. Atuando como uma das mais articuladas organizações chauvinistas na Europa, seus sectários se autodefinem como “fascistas do terceiro milênio”, sublinhando, assim, uma continuidade ideal com o passado e, ao mesmo tempo, sinalizando sua capacidade de interpretar e intervir no presente, dentro de um universo discursivo e categorial fundamentado na suposta defesa do território, da identidade e da comunidade. Sob novo enfoque, contando a pesquisa do autor agora com atual estágio de desenvolvimento, os conceitos e teorias gramscianas sobre o fascismo são instrumentalizados para o estudo de manifestações chauvinistas contemporâneas, tendo como fundamento o estudo de caso sobre a Casa Pound. Em “O populismo de direita e suas estratégias de sobrevivência na Alemanha: o Alternativ für Deutschland (AfD)”, o pesquisador Vinícius Liebel apresenta uma interessante análise do cenário político alemão contemporâneo, destacando o principal partido de extrema direita na atualidade, o Alternativa para Alemanha. Liebel fez seu doutorado em Ciência Política em Berlim, e o contato com a história política e a cultura alemã proporcionou a ele subsídios para um prolífico debate em torno da referida organização. A temática se alinha ao campo das discussões sobre organizações denominadas generalizadamente como “populistas”, conceito que o autor busca instrumentalizar em sua abordagem. Considerando a recente ascensão do Alternativ für Deutschland, observa-se que um de seus temas mobilizadores pauta-se pela instrumentalização da retórica islamofóbica. Além deste elemento-central, o capítulo destaca, ainda, a identificação dos nomes de dirigentes e iniciativas da AfD sob o espectro do conceito de raça, posicionamento típico da retórica dos chauvinistas racialistas tradicionais da primeira

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metade do século XX, que prezam o conceito de cultura na sua propaganda política, enfatizando a defesa da comunidade, da cultura e das tradições diante de uma suposta “ameaça”. Para confirmar sua hipótese sobre a debilidade retórica e argumentativa de fundamentos conservadores, misóginos e de supremacia cultural, o autor apresenta também elementos da propaganda do AfD e sua abordagem a temas como o feminismo, em que se destacam características ideológicas como expressão dos denominados partidos populistas. Para Liebel, “dado seu caráter multifacetário e híbrido, aceitando diferentes matizes de todos os espectros da política, o populismo configura-se, ao final, não em uma ideologia, mas em uma retórica que serve a um fundo ideológico”. Outra contribuição significativa que integra o presente livro é o capítulo do pensador francês Jean-Yves Camus, analista das manifestações de extremismo político na Europa e autor de extensa bibliografia, entre artigos e livros acadêmicos e textos vinculados aos meios de comunicação, como o Le Monde Diplomatique. Atuando como diretor do Observatório das Radicalidades Políticas da Fundação Jean-Jaurès (ORAP), Camus aborda a atual fase da Frente Nacional francesa, sob a perspectiva do desempenho eleitoral da candidatura de Marine Le Pen nas eleições de 2017, destacando tanto o perfil de seus eleitores e quanto as temáticas que mobilizam sua base de apoiadores. Fundado em 1972 por Jean-Marie Le Pen, a Frente Nacional (FN) é a mais importante organização chauvinista na França e, sem dúvida uma das mais expressivas e influentes na atualidade. Para Camus: “a FN é, após as eleições presidenciais dos 23 de abril e 7 de maio de 2017, seguidas das eleições legislativas do mês de junho subsequente, a segunda ou terceira força política do país, de acordo com a referida contagem. Sua presidente, Marine Le Pen, qualificou-se para o segundo turno da Presidência, como Jean-Marie Le Pen em 2002, mas com uma pontuação muito superior:

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21,3% dos votos no primeiro turno e 33,9% no segundo — respectivamente, 7.678.491 e 10.638.475 votos. Por outro lado, o autor ressalta também os desafios para a consolidação da FN frente as dificuldades para obtenção de maioria parlamentar, tendo em vista as novas eleições presidencias que ocorrerão em 2022, assim como a falta de credibilidade da agenda política do partido, pricipalmente entre a maioria dos eleitores, com destaque para os mais escolarizados e residentes em regiões de grandes cidades — onde a FN tem pouca representtividade devido à sua maior influência nas regiões do interior do país — e entre eleitores de menor escolaridade. Finalmente, ao abordar a questão das variadas manifestações partidárias nacionalistas e populistas na Europa, Jean-Yves Camus adverte: Populismo e nacionalismo são, de qualquer forma, termos que precisam ser usados com muito cuidado. O primeiro é muito mais um estilo do que uma ideologia. É a crença em uma oposição irredutível entre ‘o povo’, considerado como uma entidade orgânica dotada da presciência natural do bem comum e das elites naturalmente desonestas, monopolizadoras e desconectadas do fato nacional. [...] A este respeito, é necessário alertar contra o estabelecimento de uma equivalência dos rótulos [...] torna necessária uma grande cautela semântica.”

No último capítulo do livro, “Ausência de consenso: os partidos de extrema direita como família partidária”, o pesquisador português João Carvalho, apresenta elementos do debate das ciências sociais e da historiografia europeia contemporânea, procedendo a uma revisão bibliográfica das proposições e tipologias para a análise dos diversos grupos políticos chauvinistas e marcados por discursos antissistema e anti-imigração. Em larga medida, estes constructos estão arraigados à defesa e crítica do Estado, à legitimação ou oposição ao liberalismo, à defesa explícita de uma concepção racialista baseada em critérios biologizantes, ou, ainda, a retóricas que

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falseiam a realidade e apresentam um discurso de defesa étnico-cultural ameaçado pelo “invasor estrangeiro”. O caráter também prolixo destes discursos, tanto quanto efêmero de alguns destes movimentos e partidos, dificulta a compreensão de analistas do campo da comunicação e de especialistas no campo das ciências humanas. Com um leque de referências bibliográficas de grande valia para os estudos das direitas, como os trabalhos de Carl Mudde, João Carvalho apresenta elementos e critérios que nortearam sistemas de classificação destas organizações na Europa nas últimas décadas, sobretudo os grupos de direita tradicionalistas e contemporâneos. Segundo o autor, entre as tipologias e classificações instrumentalizadas por pesquisadores do tema, um fator prevalece determinante: o axioma antidemocrático, seguido do conceito operacional de “extrema direita” no tocante à caracterização destas organizações: Uma revisão da literatura identificou a existência de cinco características ideológicas que são recorrentemente mencionadas em investigações sobre esta família partidária: nacionalismo, racismo, xenofobia, antidemocracia, e um Estado forte (MUDDE, 2000). Curiosamente, a antidemocracia é uma conceção mais ampla que os outros quatro traços ideológicos, mas é, simultaneamente, considerada uma condição necessária dos PED (EATWELL, 2004). Portanto, a aplicação da categoria de extrema direita exige a avaliação das propriedades antissistema dos partidos selecionados (IGNAZI, 2002, 2006; CARTER, 2005)..

Como se observa, os textos que compõem este terceiro volume da coleção Tempos conservadores abarcam a nossa intenção de contribuir com a fundamentação histórica, teórica e conceitual para o estudo das direitas no continente europeu, trazendo à cena análises substanciais sobre as modalidades de organização e a atuação de intelectuais e grupos situados à direita do espectro político — sempre numa perspectiva da luta de classes.

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Compreendidas aqui como manifestações de facetas da ética burguesa, as ideologias e organizações devem ser abordadas sob o critério das particularidades de suas manifestações. Afinal, as expressões da direita, quando abordadas de forma generalizante, podem não auxiliar na compreensão do fenômeno e na busca das melhores estratégias de combate. É neste sentido, especialmente, que os capítulos ora publicados nesta obra foram pensados: para serem “armas da crítica” em sua “luta antifascista”.

Os Organizadores (Dezembro de 2019)

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Prefácio David Maciel*

O fascismo nunca morreu, apenas hibernou e adquiriu novas formas! Apesar de tragicamente derrotado na Segunda Guerra Mundial, ao custo de 60 milhões de vidas, ele sobreviveu incubado no mundo político de várias maneiras durante o meio século seguinte, marcado pela Guerra Fria, por revoluções anti-imperialistas e por ditaduras de variados tipos. Isto porque o fascismo clássico conferiu uma nova qualidade às concepções de direita associadas ao conservadorismo, ao elitismo aristocrático e ao nacionalismo estatólatra: o apoio de massas. Ou seja, conferiu legitimidade popular à sua perspectiva desigualitária e reacionária ao incorporar novos elementos políticos e ideológicos e ao mobilizar setores das classes subalternas (pequena burguesia e “classes médias”) em sua defesa. Se desde a Revolução Francesa há uma reação organizada a partir do Estado e de instituições tradicionais, como as igrejas de setores das classes dominantes (aristocracia e frações burguesas), compreendendo a perspectiva igualitarista emanada da ascensão das classes trabalhadoras à condição de sujeito político, com o ——————— * David Maciel é professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFG. Coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Contemporânea e o Grupo de Pesquisas “Capitalismo e História”, do CNPq. *


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fascismo essa reação se organiza como movimento de massas e adquire uma profundidade repressiva ainda não vista. Daí em diante, todas as concepções desigualitárias tornaram-se mais ou menos tributárias do fascismo, favorecendo sua perenidade e incorporação às formas da dominação burguesa desenvolvidas a partir da Segunda Guerra Mundial. A primeira e mais abrangente foi sua incorporação às estruturas e ao modus operandi dos Estados capitalistas, não apenas nos Estados autocrático-burgueses, mas também nas ditas democracias liberais, por conta da perspectiva contrarrevolucionária de contenção do chamado bloco socialista, do combate às lutas anti-imperialistas na periferia e do controle político interno. Os métodos e técnicas de controle policial do conflito político desenvolvidos pelo fascismo, particularmente os mecanismos de repressão e informação, foram incorporados como estruturas permanentes à ossatura legal dos Estados, funcionando normalmente mesmo nos momentos de “baixa fervura” e nos ambientes “democráticos”. Na periferia, os elementos fascistas constituem o núcleo duro da autocracia burguesa ao lado dos elementos autoritários, assumindo o protagonismo na condução da ação estatal em determinados períodos, como nas ditaduras militares. Em segundo lugar, ele sobreviveu em partidos neofascistas, que se incorporaram ao jogo parlamentar-eleitoral afirmando-se nacionalistas e mesmo democráticos, mas sem abandonar o racismo, a xenofobia, o elitismo e o anticomunismo explícito. O Movimento Social Italiano, na Itália do Pós-Guerra; o Partido da Representação Popular do integralista Plínio Salgado durante a República Populista no Brasil; mais tarde, o Partido Nacional Democrático da Alemanha, fundado em 1964 na antiga Alemanha Ocidental; e, ainda atuante, o National Front da Grã-Bretanha, assim como a Frente Nacional francesa são exemplos desta forma de sobrevivência. Em terceiro lugar, o fascismo sobreviveu

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entre “as viúvas de Hitler”. Como uma corrente ideológica “subterrânea”, alimentada pelo revisionismo histórico sobre temas como o Holocausto e a Segunda Guerra, e pela “adoração” de textos, dizeres e imagens dos líderes fascistas, surgiram grupos de tamanho e perfis variados organizados em torcidas de futebol, grupos de rock, centros culturais etc., que agem como gangues com capacidade restrita de mobilização e convencimento, mas capazes não apenas de atos simbólicos como pichações, depredação de prédios, cemitérios, símbolos e monumentos, como também de atos de extrema violência como a agressão e o assassinato de judeus, muçulmanos, imigrantes, homossexuais, militantes, lideranças de esquerda, dentre outros. No entanto, a partir das últimas décadas a extrema direita de inspiração fascista ou protofascista não só colocou a cabeça para fora explicitando suas posições mais raivosas, como conquistou uma audiência crescente, desdobrada em força política e ascensão eleitoral. Esta ressurgência é fruto das características gerais assumidas pela sociedade burguesa no atual estágio do capitalismo, condensadas num bloco histórico novo, que combina neoimperialismo (a chamada “globalização”), reestruturação produtiva (novas tecnologias, acumulação flexível, pós-fordismo), neoliberalismo e pós-modernismo. Nesta situação, o velho fascismo volta a seduzir como se representasse o novo! O desenvolvimento de novas tecnologias e de novas formas de organização da produção capitalista, sintetizadas no conceito de “pós-fordismo”, desencadeou um movimento tão avassalador de substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto que impôs ao mundo do trabalho um processo de flexibilização/precarização das relações de trabalho e retirada progressiva dos direitos sociais, tornando a vida ainda mais instável para milhões. O desemprego, a rotatividade no trabalho, o arrocho salarial e a redução/eliminação dos direitos sociais tornaram-se corriqueiros não apenas para os

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trabalhadores de baixa qualificação e pequena capacidade organizativa, mas também para os trabalhadores qualificados e de profissões com um longo histórico de mobilização e organização. Paralelamente, a eliminação progressiva das barreiras protecionistas que limitavam a movimentação do capital e a importância crescente da mediação exercida pela esfera financeira no processo de acumulação capitalista reforçaram a concentração de riqueza, submeteram a dívida pública à lógica da especulação, limitando a capacidade de os Estados nacionais implementarem políticas econômicas anticíclicas e de interesse popular. Esta situação criou um sentimento de insegurança e desalento não apenas entre trabalhadores, particularmente os trabalhadores precarizados, mas em setores das classes médias, incluída a pequena burguesia, sentimento favorável ao messianismo político e às soluções “definitivas” da antipolítica. Enquanto isso, os partidos e organizações ligados ao movimento dos trabalhadores e tradicionalmente identificados com a distribuição de renda, a luta por direitos e o bem-estar social, uma vez no poder, mostraramse incapazes de ir além de versões moderadas do neoliberalismo, rendendo-se à lógica do mercado e à chantagem imposta pelo grande capital. Desde o início dos anos 80, sucedem-se os casos de aplicação do programa neoliberal por partidos de esquerda social-democratas, como o PS na França de Mitterrand, o PSOE na Espanha de Gonzáles, o PSD na Alemanha de Schröeder, ou o PT no Brasil de Lula e Dilma. Mesmo os partidos mais à esquerda no espectro político, identificados com a tradição oriunda da Revolução Russa, mostraram-se incapazes de propor algo além de um “Welfare State” ampliado, cuja viabilidade histórica foi-se esfumando cada dia mais. Esta situação implicou não só a derrota ideológica da perspectiva socialista diante das teses neoliberais de que “não há alternativa” ou do “fim da História”, mas uma tendência de queda do voto de esquerda, abrindo

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caminho para o avanço da extrema direita como alternativa à direita neoliberal. As eleições de 2002 na França, opondo Chirac à Le Pen, apenas anunciaram uma tendência que só cresceu desde então. O colapso da URSS e do chamado bloco socialista no final dos anos 80 contribuiu ainda mais para esta situação, na medida em que favoreceu o discurso liberal que associa o projeto socialista a uma experiência fracassada de capitalismo de Estado, além de liberar nestes países os demônios ideológicos do ultranacionalismo, da xenofobia e do racismo, aprisionados por décadas de supremacia política comunista. Não à toa, o Leste Europeu é a região onde a extrema direita mais avançou nas últimas décadas, criando partidos de massa e ocupando o poder em diversos países. Na verdade, a progressiva identidade programática entre a direita liberal e a esquerda social-democrata em torno do neoliberalismo revela mais do que um processo de institucionalização da luta política que tem imunizado o regime democrático-burguês cada vez mais diante das lutas sociais e das demandas da maior parte da população. Revela a prevalência da perspectiva autocrática do despotismo burguês, ou seja, ao defender a eliminação dos controles políticos sobre a livre movimentação do capital, o neoliberalismo propõe e garante que não apenas o acesso a bens e serviços seja definido em absoluto pela lógica do mercado, mas a própria vida social, favorecendo ainda a mais a subsunção do trabalho ao capital. Assim, os ditames do mercado se impuseram sobre o sistema de representação política e o aparato de Estado de tal maneira que o encaminhamento de qualquer alternativa programática por dentro da legalidade é extremamente dificultado ou mesmo inviabilizado, esvaziando o conteúdo político do processo democrático. Os efeitos nocivos desta situação têm-se revelado no aumento dos níveis de abstencionismo eleitoral na maioria dos países, no aumento da promiscuidade entre partidos, agentes públicos e interesses privados nas

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eleições, nos parlamentos e nos governos, com reflexos diretos na descrença generalizada de importantes setores da população com a participação política e com os próprios direitos democráticos. Ou seja, o esvaziamento dos procedimentos democráticos tem suscitado o avanço de uma perspectiva autocrática nos respectivos Estados burgueses, mesmo naqueles que se constituíram como democracias burguesas ao longo do século XX, assemelhando-se ao Estado burguês na periferia capitalista. Esta situação favorece o discurso fascista da “antipolítica” — ou seja, a negação da democracia e das decisões politicamente mediadas por parte das forças de extrema direita — e atrai a adesão dos desiludidos e desalentados, ansiosos por soluções “definitivas”, particularmente aquelas encarnadas num líder carismático do tipo “salvador da pátria”. Esta mercantilização absoluta da vida também se reflete no plano da subjetividade, com a falência do ideário iluminista que alimentou a civilização burguesa por 200 anos com base nos valores da igualdade e liberdade individuais (cidadania universal), da racionalidade, do progresso e do bemestar, e da supressão da singularidade pelas redes sociais. A prevalência dos interesses do capital globalizado (o chamado 1%) sobre os do restante da população (os outros 99%) — particularmente os bilhões de trabalhadores — criou uma crise de sentido que atinge todas as esferas da vida cultural burguesa, colocando em xeque sua ordem significante. Os valores da ética do trabalho, da liberdade cidadã, da soberania do povo-nação a partir do Estado nacional, do individualismo, da eficácia racional e do cientificismo/tecnicismo são contraditados diretamente pela precarização contínua das condições de trabalho e pela subsunção absoluta do trabalho vivo (criação e autonomia) à lógica trabalho morto (parcelização, mecanização, automação, heteronomia); pelo autocratismo das relações políticas e do processo de tomada de decisões no mercado, nas empresas e no Estado; pela

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imposição da liberdade de movimentação do capital globalizado sobre as economias nacionais e locais nos países periféricos e também nos países centrais; pelas crises ambiental e sanitária; e pela expansão sem fronteiras do “Estado de mal-estar social”. Esta crise de sentido promove uma mistura eclética entre concepções, valores e sentimentos como o irracionalismo, o relativismo cultural, o fundamentalismo religioso, o narcisismo etc., mas que de uma maneira ou de outra contribuem para a desqualificação do diálogo democrático entre posições divergentes, da tolerância e do respeito pelo diferente, da solidariedade com os mais fragilizados, enfim, da perspectiva igualitarista, favorecendo o discurso de ódio, a violência, a negação da política como mediação entre interesses conflitantes e a crença em “salvadores da pátria”. A hiperexposição do cotidiano, dos gostos e vontades dos indivíduos nas redes sociais gera um processo de exacerbação do narcisismo, mas ao mesmo tempo de supressão da singularidade, daquilo que individualiza cada um, pois cria-se um código comportamental em que a aceitabilidade e o reconhecimento social são dados pela homogeneidade. Todos são iguais, pois não mais existem patrões e empregados, apenas empreendedores tentando vender a si e aos seus bens por meio de fotos, áudios, vídeos e postagens de sua própria vida. Todos parecem diferentes, pois tudo é revelado, não há mais privacidade, cada um tem sua própria vida, mas todos se apresentam iguais, com os mesmo gostos, pontos de vista e hábitos, se organizando em torno de identidades fluídas, intercambiáveis entre si e definidas ao sabor das circunstâncias do mercado, da “customização” e da “fidelização” dos consumidores. Assim, o “outro” que se distingue do “eu” e a partir de quem este se define não mais existe de fato, predominando um “eu” sempre igual, mesmo que aparente ter muitas faces. O fascismo con-

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temporâneo reage a esta situação de “transparência”, “fluidez” e homogeneização, causador de medo, ansiedade e descrença, refundando o “outro” ao mobilizar o “eu” em torno de uma nova coletividade, que, por sua vez, torna a anulá-lo como indivíduo. Por suposto, uma coletividade excludente, já que não é baseada na condição de classe, mas em fatores biológicos e/ou culturais (raça, povo, nação, religião etc.), porém, com forte potencial mobilizador em um mundo de diluição das fronteiras físicas e culturais. Nestes termos, o neofascismo canaliza o desalento e a anomia para o radicalismo político e o compromisso militante, recuperando o sentimento de pertencimento. É neste ambiente socioeconômico e ético-político que a extrema direita tem vicejado e crescido política e eleitoralmente nos últimos anos, criando partidos de massa e movimentos de largo fôlego. Abrangente, mas não indefinido, o conceito de extrema direita abarca um arco de concepções político-ideológicas que vai do “populismo de direita”, passando pelos partidos nacionalistas xenófobos e chegando ao neofascismo propriamente dito. Na verdade, estas distinções são mais teóricas do que práticas, pois os movimentos e partidos da extrema direita misturam concepções de cada uma delas numa salada reacionária oportunista que varia de acordo com as circunstâncias. Em geral, predominam a perspectiva desigualitária, matriz da qual emanam todas as outras nos sentidos político, social, cultural e racial; a perspectiva antidemocrática da antipolítica, na medida em que se questionam os princípios da democracia liberal, da divisão de poderes, da cidadania universal e da própria política como mediação do conflito social em favor da repressão política contra a esquerda e os “desviantes” e de fórmulas autoritárias e centralizadoras que reforcem o poder do Estado sobre a sociedade civil; o nacionalismo como elemento integrador do “povo” e excludente do “outro”, baseado na cultura ou mesmo no racismo e podendo

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evoluir para a xenofobia; a supressão dos direitos sociais para os “estrangeiros”, imigrantes e descendentes, quando não para todos; e a primazia do mercado. Hoje como ontem, o fascismo e a extrema direita em geral, acomodam-se aos interesses do grande capital (interno ou imperialista), atendendo-os prioritariamente e submetendo-se aos seus imperativos, o que na atual quadra histórica implica uma relação de afinidade ou mesmo de adesão aberta ao neoliberalismo. Portanto, não é estranho que, por mais nacionalista e/ou populista que seja o partido de extrema direita em questão, o ataque aos direitos sociais e trabalhistas seja comum, mesmo nos movimentos e partidos que defendem sua limitação aos “nativos”, o que, na prática, significa retirar direitos dos segmentos menos qualificados e mais mal remunerados do mercado de trabalho. Nos países periféricos, geralmente o nacionalismo da extrema direita nada tem a ver com uma perspectiva econômica anti-imperialista e de desenvolvimento nacional, limitando-se aos aspectos cultural ou racial e associando-se aos interesses do capital externo. Estas duas últimas características são as que mais diferenciam os partidos e movimentos neofascistas de hoje do fascismo clássico. Assim, nos últimos anos, em aliança ou não com outras forças de direita, a extrema direita conquistou o poder em países de importância mundial ou regional, como Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, Itália, Polônia, Índia, Turquia, Israel e Brasil, além de Hungria, Ucrânia, Filipinas e Noruega. Constituiu, ainda, agremiações partidárias que já se apresentam como a segunda ou a terceira força eleitoral em tantos outros países, como França, Alemanha, Áustria, Holanda, Suíça, Finlândia, Dinamarca etc. Por outro lado, este avanço político da extrema direita aponta para o agravamento da crise da ordem do capital, na medida em que seu programa nada mais faz do que

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aprofundar seus aspectos mais destrutivos e perversos para a enorme maioria da população. Neste sentido, o combate à extrema direita deve definirse como combate à própria ordem do capital, não apenas à sua face mais repressiva e violenta, colocando a perspectiva socialista no horizonte imediato da luta social. Ao descrever e problematizar as formas e procedimentos da extrema direita de ontem e de hoje, os autores aqui reunidos buscam não apenas compreender este fenômeno histórico pretensamente encerrado no passado, mas contribuir para a sua superação no contexto atual.

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Direita e esquerda na história: considerações pontuais acerca de alguns casos de dislexia conceitual Muniz Ferreira*1

Um dos componentes fundamentais da ofensiva combinada das direitas neoconservadora e neoliberal na atualidade brasileira é a demonização das forças de esquerda e a reivindicação de todos os méritos históricos, econômicos e conceituais para si próprias. Elemento constitutivo da onda contrarrevolucionária, que tem varrido a maior parte do mundo desde o final dos anos 1980, este expediente fraudulento constitui a manifestação ideológica e discursiva dos propagandistas da perenidade da ordem burguesa, no sentido de impugnar preventivamente todos os esforços de recomposição das forças anticapitalistas nos terrenos político, social e intelectual em escala local, regional e mundial.

——————— * Muniz Ferreira é professor do Departamento de História e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRJ).


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Manejando sistematicamente a massiva supremacia que exercem sobre os meios de comunicação, a indústria cultural e outros instrumentos de formação da opinião pública, ventríloquos e escribas, comunicadores e artistas midiáticos, acadêmicos enquadrados e pretensos filósofos têm-se colocado a serviço das mais impressionantes revisões histórico-conceituais comprometidas com a realização do objetivo mencionado. Inscrevem-se neste repertório geral as tentativas de apresentar o fascismo e o comunismo como fenômenos políticos não apenas equivalentes em sua suposta malignidade, mas também integrados ao mesmo hemisfério político: aquele ocupado pelas forças de esquerda. Os breves apontamentos seguintes visam oferecer argumentos para a desconstrução desta insidiosa alquimia discursiva, a qual, pretendendo redefinir os termos do debate histórico político, não tem logrado produzir outra coisa, senão um patético exemplo de dislexia conceitual.

Direita e esquerda — conceitos dinâmicos As elaborações originais dos conceitos “direita” e “esquerda” definiam diferentes atitudes adotadas em face da Revolução Francesa. Sua acepção preliminar nomeava as diferenciações, no âmbito do próprio processo revolucionário, entre as forças sociopolíticas interessadas em acelerar e aprofundar os aspectos mais radicais (no sentido de resolver pela raiz os problemas identificados pelo projeto revolucionário) das forças que, adotando uma postura de gradualismo e moderação, comprometiam a execução dos próprios objetivos proclamados na agenda da revolução. Tomando como referência uma prosaica distinção entre os lugares habitualmente ocupados pelos representantes jacobinos (esquerda) e girondinos (direita) no interior da Assembleia Nacional, as designações diferenciavam projetos políticos e apoios sociais substancialmente distintos.

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A furiosa oposição, que não hesitou em recorrer à invasão militar, apresentada pelo mundo aristocrático europeu aos acontecimentos franceses, ratificou e cristalizou a confrontação entre um campo político revolucionário burguês e popular, de esquerda, e outro aristocrático e contrarrevolucionário, de direita. Deste modo, a contraposição inicialmente referida ao debate parlamentar francês adquiriu contornos internacionais ainda mais nítidos e profundos. A uma esquerda revolucionária popular e patriótica (patriotes foi uma das designações que os revolucionários atribuíram si mesmos em contrapartida aos emigrés, aristocratas que partiam para o exílio) contrapunha-se agora uma direita nobiliárquica e transeuropeia. A derrota militar dos exércitos bonapartistas, portadores dos últimos vestígios institucionais do espírito revolucionário que se apoderou da França em 1789, possibilitou a cristalização de uma ordem continental politicamente autocrática e elitista e ideologicamente contrarrevolucionária. O diktat imposto pela Convenção de Viena ao mundo europeu, que reivindicava a legitimidade dinástica como critério para o reconhecimento dos governos, consolidou, em caráter definitivo, o confronto irreconciliável entre as forças políticas republicanas, jacobinas e democráticas de esquerda e os poderes monárquicos, absolutistas e conservadores de direita. Com a incorporação das forças socialistas, assentadas nos interesses classistas e nas reivindicações operárias, ao território das esquerdas, a partir de 1830, configurou-se, em sua quase totalidade, o campo político da esquerda europeia oitocentista, restando como ressalva a volatilidade histórico-política da vertente liberal em suas oscilações de percurso. Desde o seu advento no século XVII inglês, o liberalismo político se apresentava como alternativa à concepção democrática da soberania popular (no terreno filosófico, conceito elaborado a partir da noção rousseauniana

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de Vontade Geral), sacralizando, desde sempre, os direitos naturais do indivíduo em contraposição aos direitos soberanos do Estado. Ao assentar o sistema político sobre o contrato entre os cidadãos, não hesitou, no entanto, em hierarquizá-los entre aqueles aptos a constituírem o governo civil (os proprietários) e os privados de tal aptidão (os não proprietários), renomeados, nos escritos de John Locke como cidadãos “ativos” e “passivos”. No contexto da Restauração Monárquica Francesa (1815-1848) e da Primavera dos Povos de 1848, o liberalismo, através da pena de pensadores continentais, como Benjamin Constant, consolidou sua completa dissociação das perspectivas jacobinas, republicanas e democráticas. Apegandose à defesa da monarquia constitucional e aos sistemas censitários de representação política, descomprometeu-se até mesmo com a defesa do sufrágio universal. Diferenciando as liberdades políticas próprias da democracia clássica em detrimento das liberdades individuais características da modernidade, descomprometeu-se com a defesa dos direitos exercidos na esfera pública em troca da garantia da intocabilidade da esfera privada.1 Este deslocamento da consciência liberal do território republicano, democrático e radical e sua reconciliação gradativa com as forças políticas aristocrática e conservadora repercutiu também na esfera intelectual e cultural. Ao aderir, na esfera da cultura, aos formalismos artísticos, ao esteticismo aristocratizante, ao culto da intimidade à sombra do status quo, abriu caminho para a ofensiva das forças da reação no âmbito do pensamento, possibilitando um assalto aberto à Razão emancipatória e a sua desfigura-

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CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos (1819). Revista Filosofia Política, n. 2, 1985.

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ção instrumentalizadora, como no exemplo paradigmático do social-darwinismo de Herbert Spencer, companheiro de viagem do vitalismo nietzschiano, ambos antecipadores da ética e da estética fascistas do século XX.2 É evidente, no entanto, que nem todos os integrantes da corrente liberal percorreram todas as estações desta trajetória sinuosa. No próprio Reino Unido de Locke e Spencer — onde o liberalismo se encarnou em um partido político, no sentido peculiar atribuído a esta expressão no século XIX, uma tendência da esquerda Whig se permitiu uma aproximação com o operariado cartista, para a apresentação de proposições ao parlamento voltadas para a ampliação do direito ao sufrágio. Em outras partes — na Rússia, por exemplo —, liberais se ergueram contra o absolutismo tzarista, mantendo vivo o imaginário antidespótico que animou esta corrente em sua infância política na Europa Ocidental. Em linhas gerais, entretanto, as sucessivas concessões, recuos e conciliações com as forças do velho mundo, praticados pelos segmentos mais representativos da consciência liberal europeia, abriu caminho para uma ofensiva geral das forças conservadoras e reacionárias na virada do século XIX para o XX. Ao proceder desta forma, propiciou a ocorrência de fraturas irreversíveis que, a partir de então, cindiriam o território liberal em uma esquerda política adjacente ao campo democrático e radical, um centro político aderente ao status quo, e uma direita cúmplice das vertentes mais retrógradas e antipopulares. Por outro lado, ao manifestar sua compatibilidade com o conservadorismo no terreno da política, a direita liberal iniciou um movimento, o qual, ao término de várias décadas de aproximações, tensões, atritos e conver-

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MAYER, Arno J. A burguesia se inclina. A força da tradição: a persistência do Antigo Regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Ver também: SCHORSKE, Carl E. Viena Fin-de-Siècle. São Paulo: Unicamp; Companhia das Letras, 1988.

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gências, acabou por emprestar seu programa econômico privatizante, individualista e antioperário para ser colocado em prática por governos de confissão conservadora ou neoconservadora.3 Resta dizer que a esquerda — configurada no processo da Grande Revolução, primeiro em suas variantes democrática radical, republicana e jacobina; mais tarde igualitária e comunista —, na Conspiração dos Iguais liderada por Grachus Babeuf, também seguiu seu rumo. Impulsionada pela sensibilidade social de intelectuais e reformadores humanistas como Saint Simon, Fourier e Robert Owen e pela militância política de homens como Louis Blanc e Auguste Blanqui uma nova esquerda socialista foi adquirindo forma. Com a adesão de Marx e Engels ao movimento em meados dos anos 1840 e a posterior reelaboração teórico política da teoria socialista em um sentido revolucionário e proletário, a ala mais radical do campo da esquerda passou a ser ocupada pela vertente comunista e sua concorrente anarquista. É este amplo leque de forças de esquerda, dos jacobinos aos comunistas, passando por anarquistas e blanquistas, que protagonizou a mais importante experiência de exercício de poder pelas massas populares, incluindo seu núcleo proletário na segunda metade do século XIX: a Comuna de Paris. Acontecimento impactante, que provocou, como resposta, um recrudescimento elitista e conciliador no campo liberal; autoritário e antipopular no âmbito conservador, e propiciou um deslocamento de forças situadas na ala direita desta corrente para posições ainda mais reacionárias e regressivistas (tradicionalismos religiosos e seus derivados políticos).4

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Cf. GOOBY-TAYLOR, Peter. Welfare, hierarquia e “nova direita” na era Thatcher. Lua Nova, n. 24, set. 1991. 4

BRESCIANI, Maria Stella. O pensamento político conservador após a Comuna de Paris. In: BOITO JR., Armando (Org.). A Comuna de Paris na História. São Paulo: Xamã, 2001.

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A corrente conservadora, como o nome indica, surgiu como expressão política da defesa dos princípios, valores e instituições políticas características da Europa do Antigo Regime. Autocrática, anti-igualitária e elitista, representou a encarnação, como já foi dito, da mais fidedigna reação do mundo aristocrático europeu à Revolução Francesa. Os princípios fundamentais, que advogou desde a sua gênese foram os seguintes: a) a preeminência da ordem sobre as liberdades, tanto individuais quanto coletivas; b) privilégio da autoridade sobre a representação política; c) prioridade da legitimidade do poder de Estado em relação às demandas procedentes do tecido social.5 Em suas origens, visceralmente antiliberal e antidemocrático, para não dizer antioperário e antissocialista, o conservadorismo, em sua irradiação continental e evolução temporal, incorporou novos componentes à sua matriz inicial. Destarte, em sua sedimentação no interior dos mundos mediterrâneo, latino e católico incorporou outros elementos a sua identidade política, como o paternalismo hierárquico; a rejeição romântica da modernidade; a defesa do direito divino dos reis, a prédica da monarquia católica: a combinação do integrismo teológico com o elitismo político social, o organicismo social como doutrina, e o corporativismo como programa de reestruturação das relações entre o capital e o trabalho, de modo a prevenir a luta de classes.6 Do mesmo modo, no cenário histórico do mundo germânico setentrional tendo como eixo central o Reino da Prússia, uma variante específica do conservadorismo político estabeleceu seus contornos no curso do processo de unificação alemã concluído em 1871 com a criação do Império ——————— 5

Cf. MAYER, op. cit., 1987.

6

STERNHELL, Zeev. A modernidade e seus inimigos! In: STERNHELL, Zeev (Org.). O eterno retorno: contra a democracia a ideologia da decadência. Lisboa: Editorial Bizâncio, 1999.

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Hohenzollern. Tratava-se de uma vertente que, ao combinar conservação e transformação, modernidade e tradição, instituiu a chamada “via prussiana” do desenvolvimento do capitalismo mundial. Destacou-se, nesta vertente, a nação, não mais compreendida como a expressão da soberania popular (como no discurso dos revolucionários franceses de 1879) nem como encarnação política da substância abstrata e genérica do Volk (povo), como postulado pelos românticos e pangermanistas. A questão da nação se resolvia com a constituição do Estado, estabelecendo a equivalência conceitual Staat-Nation, sem espaço para veleidades “utópicas” e românticas do tipo Nation=Volk.7 Mais de um século depois, no mundo anglo-saxão, o conservadorismo conheceu um novo surto de aggiornamento em sua cultura política, combinando o recrudescimento de sua oposição à modernidade sócio-política (democracia, socialismo) e cultural (modernidade, iluminismo) com a incorporação plena da plataforma liberal na economia, agora, na verdade, neoliberal.8

Direita, militarismo e práticas exterministas A utilização massiva das instituições repressivas do Estado e de forças militares na coibição das classes subalternas em rebelião e no controle dos setores populares em situações normais é tão antiga quanto a existência do Estado e da luta de classes. Na época contemporânea, a militarização da política pelos detentores do poder constitui uma regularidade inscrita no

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BENNER, Erica. Really existing nationalisms: a post-communist view from Marx and Engels. Oxford: Clarendon Press, 1996. 8

Cf. GRAY, John. Falso amanhecer: os equívocos do capitalismo global. Trad. Max Altman. Rio de Janeiro: Record, 1999.

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tempo da longa duração. A invasão militar, a formação de coalizões agressivas e um quarto de séculos de guerras sucessivas contra a França, revolucionária primeiro e bonapartista depois, foram os expedientes empregados sem qualquer constrangimento pelas potências aristocráticas europeias para alcançar a restauração da monarquia absolutista no território francês.9 Execuções em larga escala, mobilização de destacamentos militares contra populações civis, fuzilamentos sumários de lideranças revoltosas foram os expedientes utilizados pelas forças da ordem no sistema internacional da Convenção de Viena, para esmagar as reivindicações nacionais, populares e operárias, tanto na Primavera dos Povos como nas guerras de libertação do povo italiano ou na Comuna de Paris. Inversamente, foi através de guerras sucessivas, as quais manifestavam um poder destrutivo que aumentava direta e proporcionalmente com a incorporação das descobertas científicas e a evolução dos recursos industriais aplicados à arte da guerra, que as classes aristocráticas associadas aos estratos superiores das burguesias resolviam suas pendências com os de baixo e administravam as relações entre si. Uma nítida ilustração disto são os conflitos bélicos interestatais ocorridos sob a vigência do “sistema de segurança coletiva” pactuado na Convenção de Viena: Guerra da Criméia (1853-1856); Guerra Austro-ítalofrancesa (1859-1860); Guerra dos Ducados, entre a Alemanha e a Dinamarca (1864); Guerra Austro-Prussiana (1866); Guerra Franco-Prussiana (1871) e, finalmente, a guerra que implodiu aquele sistema, A Primeira Guerra Mundial (1914-1918).10

——————— 9

LOSURDO, Domenico. A revolução, a nação e a paz. Estudos Avançados, v. 22, n. 62, 2008.

10

HOBSBAWN, Eric. A construção das nações. In: ________. A era do capital. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

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Como resultado destes desenvolvimentos, dois elementos de grande importância histórica se consolidaram no interior do mundo das ideias de então. Em primeiro lugar, o militarismo, alimentado pela crença na utilização da força como o recurso mais eficiente para solucionar disputas e contenciosos entre os Estados. A mais característica corporificação desta concepção foram a aristocracia Junker da Prússia, conduzida através de sucessivas operações militares, ao comando do Império Alemão (em 1871), e a condição de potência ascendente no sistema de poder mundial no final do século XIX.11 O segundo elemento foi o nacionalismo. Na época das guerras tecnológicas (metralhadoras, encouraçados, submarinos e aviões de combate), com capacidade crescente de provocar danos à própria população civil e letalidade sem precedentes, tornou-se indispensável a disseminação de ideologias que mobilizassem para a morte exércitos de milhões de pessoas e persuadisse outros tantos milhões de civis a suportarem as vicissitudes e privações produzidas pela guerra. Para este propósito, foram elaboradas, ou resgatadas, duas diferentes modalidades de ideologias nacionais. A primeira combinava elementos discursivos de caráter estatal com um componente acessório conservador ou liberal.12 Em sua narrativa, o Estado encarnava o espírito da nação, por vezes uma obra da providência, por outro, o paraíso idealizado da comunhão dos cidadãos para além das barreiras de classe riqueza e poder. Uma segunda tomava emprestado motivos e representações da cultura romântica, retratando o Estado-nação como a cristalização do espírito nacional, frequentemente entendido como a unidade de destino, de tradição e cultura, de língua, de confissão e de sangue.13

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HOBSBAWN, Eric. A era dos impérios. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

12

Cf. MAYER, op. cit., 1987.

13

HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. São Paulo: Paz e Terra, 2013.

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Neste ponto, é essencial recuperar as formas através das quais as forças de esquerda resistiam, rejeitavam e se opunham a estas construções ideológicas das classes dominantes. Às mistificações nacionalistas de extração romântica ou estatista, as esquerdas democráticas, republicanas e jacobinas, de base crescentemente pequeno-burguesas e não mais burguesas, recuperavam o seu conceito original de nação como a expressão da soberania popular. Acepção esta que continuaria a se manifestar, ao longo do vindouro século XX, nos movimentos anti-imperialistas e de libertação nacional do chamado mundo periférico.14 Já as esquerdas operárias e socialistas apresentavam como alternativa aos nacionalismos e militarismos das classes dirigentes suas perspectivas internacionalistas (“Os operários não tem pátria”, a não ser quando ascendem ao poder e se convertem em “classe nacional”, imediatamente antes de se engajarem, na condição de agentes propulsores, ao processo da revolução mundial) e antimilitaristas (“paz entre nós, guerra aos senhores”), contrapondo aos projetos das classes dirigentes de lançar os trabalhadores uns contra os outros nas guerras, a solidariedade internacional dos trabalhadores contra as classes dirigentes no cenário mundial.15 Nem mesmo a transformação de uma parcela da liderança do socialismo mundial em linha auxiliar do nacionalismo e do militarismo estatais, às vésperas, durante e depois da Primeira Guerra Mundial, invalidou esta descrição. A reorganização do movimento socialista no pós-Primeira Grande Guerra com a criação da Internacional Comunista ratificou e consolidou as

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LOSURDO, Domenico. A Revolução, a nação e a paz. Estudos Avançados, v. 22, n. 62, 2008.

15

Sobre a Primeira Internacional ver: COLE, G. D. H. Historia del pensamiento socialista, v. II. México: Fondo de Cultura Económica, 1975. A respeito da Segunda, ver: CARONE, Edgard. A II Internacional pelos seus congressos (1889-1914). São Paulo: EDUSP, 1993.

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distinções político-ideológicas anteriores: a uma direita burguesa-aristocrática nacionalista e militarista, continuou se opondo uma esquerda operária internacionalista, antimilitarista e revolucionária.16

As direitas após a Primeira Grande Guerra A Primeira Guerra Mundial, além de materializar as mais disparatadas distopias militaristas, românticas e exterministas, produziu também implicações políticas e ideológicas multifacetadas. Uma delas foi propiciar os elementos germinais para uma nova síntese entre o nacionalismo romântico e o militarismo aristocrático estatal. Da inusitada experiência vivida por combatentes de diferentes procedências e condições sociais nas trincheiras das linhas de combate, forjou-se uma narrativa, que reconheceu aí as bases de reconstrução do sentimento nacional através de um “romantismo de aço”, calcado na generalização da Fronterlebnis (experiência do Front). Em seu desdobramento, esta construção intelectual serviu de esteio a toda uma concepção, que combinava o elogio da modernidade técnica com o culto da “alemanidade”; rejeitava os cosmopolitismos de orientação liberal e os socialismos de extração marxista e proletária, oferecendo os componentes ideológicos e discursivos para o advento de uma nova direita nacionalista, contrarrevolucionária e, pela primeira vez, mobilizadora de massas.17 O segundo aspecto foi o lançamento das bases para a implantação de políticas estatais de contrainsurgência preventiva e permanente, para as quais as direitas seriam de grande valia. O ponto de partida foi o triunfo bolchevique no outubro russo de 1917, seguido pelos levantes revolucionários

——————— 16

Cf. LENIN. A guerra e a social-democracia da Rússia. Lisboa, Portugal: Edições Avante, 1977, pp. 557-564. 17

GRAMSCI, Antonio. Sobre el fascismo. México: Ediciones Era, 1979.

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na Alemanha, Áustria e Hungria nos anos 1918 e 1919. Vislumbrando nestes acontecimentos russos o ingresso da Europa na época das revoluções proletárias, desde então potencialmente apoiadas pelos recursos de uma entidade estatal expressiva, classes dirigentes e governos europeus recorreram a um vasto somatório de recursos tanto preventivos (concessões políticas e econômicas) quanto repressivos e militares (mobilização de forças militares regulares e irregulares contra os revolucionários). Esta foi a gênese de um novo ciclo de militarização da política, na qual o combate ao inimigo revolucionário interno passava a ser interpretado nos termos da guerra de destruição e extermínio máximo que acabara de ser travada, propiciando o interesse de setores crescentes das classes dirigentes, que experimentaram mais diretamente a “ameaça revolucionária” (Alemanha, Áustria, Itália, Hungria) e dos setores sociais sob sua influência, nos novos movimentos direitistas, que combinavam discursos e práticas militaristas (Corpos Livres, Capacetes de Aço, SA, Fasci di Combatimento, Cruz Flechada), com um nacionalismo exacerbado, romântico, antioperário e antissemita.

De onde vem o fascismo? Até o advento destes fenômenos políticos, todas as direitas europeias eram, sem exceção, conservadoras e elitistas (estamos aqui falando da política europeia anterior à Primeira Guerra Mundial). O chamado “populismo” [sic!] völkish não passava de uma corrente cultural sem representação no mundo da política partidária; porém, os ecos deste romantismo völkish, conquanto politicamente derrotado no movimento de unificação da Alemanha, ressurgiriam atualizados na República de Weimar através das obras de autores como Friedrich e Ernest Jünger, Carl Schmitt, Werner Sombart, Oswald Spengler e Martin Heidegger.

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A principal função destes intelectuais de direita era demonstrar que a idealização das virtudes inatas do Volk alemão poderia conviver com o culto da autoridade estatal e a apologia da modernização industrial e tecnológica. Era o Modernismo Reacionário, corrente intelectual que, ao reunificar as principais vertentes do pensamento de direita alemão, preparou as condições espirituais para o triunfo do nacional socialismo. Assim como seus antecessores völkish do século XIX, os modernistas reacionários desprezavam as tradições radicadas no iluminismo: o pensamento calcado na razão, o materialismo filosófico, a noção de luta de classe, o cosmopolitismo liberal, a democracia representativa e o socialismo. Vislumbravam a existência de dois tipos de comunidades nacionais, aquelas baseadas na unidade do sangue, no ímpeto das energias vitais primordiais e as que se fundavam no intelecto, na individuação e na multiplicidade. Valorizavam as primeiras em detrimento das segundas, conduzindo suas formulações ao limite do antiintelectualismo e da reprovação daqueles que, segundo eles, “traíam o sangue com o intelecto”, preconizando, em lugar disso, “pensar com o sangue”. Rejuvenescidos pelo contato com o esteticismo voluntarista de Nietzsche, pelo social-darwinismo e pela Fronterlebnis (experiência do Front),18 militaram na linha de frente de defesa da völkishkultur alemã, germinada na força do sangue, da raça e do destino germânicos, contra as conspurcações da Zivilisation desenraizada, sem alma, artificial.

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Alguns “modernistas reacionários”, em particular Ernest Jünger, que fora militar e combatera nas trincheiras da Primeira Grande Guerra, identificavam na solidariedade construída no front, nos laços de sangue instituídos entre os combatentes e no heroísmo patriótico dos que se sacrificaram pela Alemanha as bases para a reconstrução da unidade da nação alemã. Não é preciso enfatizar aqui em que medida tais formulações antecipam o discurso de Hitler e seus seguidores. Sobre a vida e as ideias de Jünger e outros modernistas reacionários, ver: HERF, Jeffrey. O modernismo reacionário. São Paulo: Editora Ensaio, 1993.

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Ideologia de vanguarda no campo da política da direita na época de Weimar, o modernismo reacionário de matriz völkish definiu as balizas essenciais da cultura conservadora germânica do século XX, antecedendo, preparando o terreno, enriquecendo o acervo ideológico do nacional socialismo. Os fascismos foram, assim, as primeiras direitas a adotarem um discurso e um sistema de organização voltados para a mobilização de massas, integrados por componentes discursivos "igualitários", nacionalistas (de perfil romântico) e até "anticapitalistas" (normalmente expressos nos ataques à “plutocracia judaica” ou internacional). Tratava-se de uma estratégia que, como já foi sugerido, visava derrotar a esquerda operária em lugares onde ela havia alcançado substantiva representatividade entre as massas (como na Alemanha e na Itália) e disputar espaço efetivo nos sistemas políticos de representação ampliada da Europa do pós-Primeira Grande Guerra, que avançava em direção ao sufrágio universal. Na prática, o anticapitalismo fascista se limitava, como visto, ao combate às burguesias "alienígenas" (judaica e anglo-americana), e seu igualitarismo encobria a reivindicação de uma organização social não mais baseada nas hierarquias provenientes do nascimento (aristocracia) e da riqueza (burguesia), mas na "pureza racial' (na Alemanha) e na devoção à nação (na Itália).19 Tudo isto, no entanto, jamais conheceu qualquer efetivação para além do discurso e da dinâmica interna dos próprios movimentos. Uma vez no poder, as tendências "pragmáticas" se sobrepuseram às “utópicas” e as "revoluções fascistas" se dissiparam na acomodação às estruturas econômicas, políticas e sociais pré-existentes. O exemplo histórico mais eloquente ——————— 19

TOGLIATTI, Palmiro. Lecciones sobre el fascismo. México: Ediciones de Cultura Popular, 1977.

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disto foi a disputa interna do NSDAP, que resultou na Noite das Longas Facas, com a decapitação dos setores mais “inconformistas” [sic!] das SA e do Partido Nazista. Os fascismos, portanto, mudaram a direita no sentido de “contaminá-la” com discursos e mesmo práticas organizativas até então só utilizadas pelas esquerdas (anticapitalismo, igualitarismo e mobilização de massas), apesar do caráter farsesco, demagógico e incompleto daqueles.

O nazismo era “de esquerda”? A originalidade do nacional-socialismo consistiu em sua capacidade de combinar tradições ideológicas até então divergentes e até concorrentes. Por um lado, o nacionalismo romântico pangermânico, derrotado no processo de formação do império alemão, e, por outro, o nacionalismo estatista e militarista encarnados pela aristocracia Junker e os círculos políticos vinculados à dinastia Hohenzollern. Se, para uns, a nação era o Volk, para outros, era o Staat. A reconciliação destas duas concepções no nacional-socialismo fez do movimento o propositor de um novo nacionalismo romântico e pangermânico (o “romantismo de aço”) combinado com o nacionalismo estatista e militarista de extração Junker. Tais fatores possivelmente explicam a aprovação dos círculos militar-aristocrático e monarquista da ascensão de um ex-cabo austríaco e sua “horda de desclassificados sociais” das SA ao governo do Reich (o ajuste de contas com a “horda” viria depois). Explicariam também os crescentes atritos entre a liderança nazista e os representantes dos demais setores das classes dirigentes alemães no período hitleriano quando os objetivos de guerra e da política exterior do Estado alemão passaram a se orientar por abordagens cada vez mais “ideológicas” e “utópi-

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cas”, como na guerra de destruição total contra a URSS, na política de germanização do Leste e nas demandas de uma instauração de uma “Nova Ordem Mundial” de cariz racista-arianista. O historiador inglês conservador Hugh Trevor-Roper se dedicou a uma minuciosa análise das relações de Hitler com os integrantes e representantes das classes dirigentes alemãs, conceituadas por ele como German Establishment.20 Com esta categoria, o historiador inglês denominava os estratos superiores das burocracias civil e militar do III Reich, os líderes políticos, a diplomacia, em resumo, aquilo que outros autores antes dele já haviam classificado como a elite tradicional, cujas origens remontam ao processo de constituição do Estado imperial sob a condução da dinastia Hohenzollern. Estes personagens teriam desempenhado um papel fundamental na ascensão de Hitler ao poder em 1933, constituindo-se, num primeiro momento, em seus fiéis servidores, para, mais tarde, padecerem amargas desilusões com os rumos de sua política e se lançarem em sua oposição. A trajetória de homens que, a partir de posições proeminentes no corpo diplomático e nas forças armadas, participaram de conspirações para destituir o ditador alemão exemplifica, para Roper, o destino deste estrato sócio-político. O fator de aproximação entre o ímpeto belicoso e expansionista do Führer e o programa conservador deste establishment fora seu comprometimento comum com a restauração do poderio alemão aniquilado pelas disposições do Tratado de Paz de Versalhes. Ambos, tanto Hitler quanto os conservadores alemães, desejavam a restauração do poderio militar do país. Ambos aspiravam a uma ordem política autoritária, que expurgasse da so-

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TREVOR-ROPER, H. R. Hitler’s War Aims. In KOCH, H. W. Aspects of the Third Reich. Londres: Macmillan Education, 1988.

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ciedade e da política alemãs as forças “nocivas” e “alienígenas” do liberalismo, da democracia, do cosmopolitismo e do socialismo em ascensão na República de Weimar, acalentando desejos de aquisições territoriais; esta convergência, porém, terminava aqui. Os objetivos dos representantes do establishment possuíam um caráter essencialmente limitado e restauracionista. Pretendiam o restabelecimento das fronteiras do extinto império de Guilherme I, o que acarretava a anexação da maior parte da Polônia. Talvez estivessem dispostos a ir “um pouco além” — como de fato o foram — absorvendo a Áustria e os Sudetos, fundamentalmente para preencher o “vazio” político deixado ali pela dissolução do império dos Habsburgo, mas no essencial suas demandas tinham caráter conservador. Seguramente, detestavam a URSS, devido ao seu sistema sócio-político, mas não estavam motivados a conquistá-la. Jamais cogitaram, acima de tudo, a necessidade de uma “revolução alemã”, mesmo no sentido mais propriamente “contrarrevolucionário”, conforme a concebiam os nazistas. Ora, sendo o ponto de convergência o “revisionismo”21 do sistema de Versalhes e o de divergência o “revolucionarismo” [sic!] ideológico nacional-socialista, ambas as perspectivas conviveram no interior dos mecanismos de produção das políticas de Estado do Reich até que a implementação da agenda “ideológica” hitleriana fraturasse a aliança entre os dois setores. Da convivência entre conservadores e nazistas teria resultado um sentido mais “pragmático” e “razoável” da política exterior do Reich. Da supremacia nazista dimanou uma política ideológica em seu caráter e em sua condução. Para Roper, o divisor de águas entre estes dois momentos ocorrera, como não poderia ser diferente, por ocasião da guerra contra a União ——————— 21

“Revisionismo” aqui diz respeito à revisão dos termos do Tratado de Versalhes, considerados desfavoráveis ao Estado alemão.

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Soviética. Esta guerra — cujo empreendimento constituiu a quintessência do milenarismo hitleriano e em cujo desenrolar seu poderio transitou do zênite ao nadir — assinala o divórcio definitivo entre o projeto do establishment conservador alemão e os objetivos internacionais do chanceler do Reich. Neste projeto irredutível de hegemonia, nesta competição inadiável pela anulação dos efeitos internacionais da revolução bolchevique através do poder da contrarrevolução alemã, investiu o autor do Mein Kampf todas as suas forças vitais, o que lhe propiciou a visualização do Milênio ariano no mundo e a experimentação do sabor cartaginês da derrota. Mesmo o texto de Roper, que no âmbito da historiografia burguesa é um dos mais avançados na investigação acerca da expressão dos interesses sociais na política (materializado nas análises das relações do Chanceler com as elites aristocráticas da sociedade alemã), silencia a respeito do posicionamento e das perspectivas de um setor essencial da sociedade alemã: os homens da grande indústria do período. Apenas um deles, o industrial Fritz Von Thyssen é mencionado en passant, como exemplo da desilusão de apoiadores de primeira hora do nazismo com os rumos adotados pela política do Reich depois de 1939. A própria posição de classe do historiador inglês o impediu de identificar nos propósitos belicistas e hegemonistas do nazismo as aspirações e interesses do grande capital alemão.

Franquismo e Salazarismo foram fascismos tout court? A originalidade do nacional-socialismo consistiu em sua capacidade de combinar tradições ideológicas até então divergentes e até concorrentes. Por um lado, o nacionalismo romântico pangermânico, derrotado no processo de formação do império alemão, e, por outro, o nacionalismo estatista

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e militarista encarnados pela aristocracia Junker e os círculos políticos vinculados à dinastia Hohenzollern. Se, para uns, a nação era o Volk, para outros, era o Staat. Se considerarmos como modelares as experiências dos fascismos alemão e italiano, observaremos que eles possuem uma dinâmica histórica e uma anatomia comum. Nos dois casos um movimento ideológico e político mobilizador extrapartidário (os Fasci na Itália, os Corpos Livres na Alemanha) antecederam o partido, que surgiu como uma força política mobilizadora e orgânica no seio da sociedade civil antes de empolgar o poder de Estado. Em ambos os casos, esta organicidade e a capacidade de mobilização se assentaram na utilização intensiva de uma ideologia de pureza racial em um caso, de grandeza nacional em outro, bem como no carisma pessoal do líder (o Duce e o Führer). Uma vez no poder, o traço mais saliente do sistema sociopolítico colocado em prática nestes países foi a organização corporativa do trabalho através dos sindicatos nacionais, que agrupavam trabalhadores e patrões sob a bandeira da colaboração de classes e da rejeição ao conflito social. Se estas experiências nos fornecem o modelo, faltam alguns destes aspectos tanto no caso espanhol como no português, senão vejamos. Tanto no caso de Franco quanto no de Salazar faltaram: a) um movimento político mobilizador pré-existente (a Falange Espanhola não foi criação de Franco, mas aliada, e teve importância secundária durante o domínio franquista); b) uma ideologia política própria ou uma síntese ideológica própria, o que fez com que recorressem a um acervo de ideias já existentes, no caso, o nacionalismo conservador/romântico e o catolicismo integrista, acarretando compromissos com as instituições que eram as suas encarnações na sociedade — a monarquia e a Igreja, na Espanha de Franco, a Igreja católica, no Por-

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tugal de Salazar. Subsistem também muitas dúvidas em relação à importância do carisma pessoal, senão de Franco, pelo menos de Oliveira Salazar). Por fim, não existiu um partido político franquista ou salazarista de massas antes da chegada de ambos ao poder. Por estes motivos, prefiro considerar que os dois ditadores ibéricos foram fascistizantes e filo-fascistas, mas não fascistas, no sentido mais rigoroso e conceitualmente preciso da palavra.22

A redução e identificação do nazismo ao comunismo no mundo ocidental do pós-Segunda Grande Guerra Os elementos inovadores do nazismo e do fascismo em relação às direitas que os precederam foram astutamente distorcidos pelos ideólogos da direita liberal no período da Guerra Fria, para identificar os inimigos de então, os comunistas, com os inimigos do passado, os fascistas. Em suas elaborações mais refinadas, como nos textos de Hannah Arendt, a causa comum de fascistas e comunistas (ambos “totalitários”) era a negação do indivíduo e das liberdades individuais, a estatolatria e a ambição de estabelecimento do "poder total" sobre a sociedade. Esta, com variações e notório empobrecimento argumentativo nos nossos dias, tem sido a base ideológica das mais do que duvidosas tentativas de redução e equiparação do fascismo ao comunismo e a caracterização de ambos como fenômenos “de esquerda”. A contribuição de Hannah Arendt à reflexão acerca do fenômeno totalitário de modo geral — e do nacional-socialismo, em particular — tem sido amplamente reconhecida e valorizada nos campos da práxis política e das ——————— 22

Acerca do franquismo e sua relação com a Falange Espanhola, ver: BREA PEDREIRA, Ana et al. Historia de España contemporánea. La Coruña: Baía Edición, 1997. Sobre o salazarismo, ver: REZOLA, Maria Inácia. A igreja católica nas origens do salazarismo. Locus: Revista de História, v. 18, n. 1, Juiz de Fora, 2012, pp. 69-88.

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ciências humanas. Sua conceituação do totalitarismo e a tentativa de empreendimento de sua genealogia histórico-política têm desempenhado uma função estimulante seja no apoio, seja na contestação às suas teses por parte dos estudiosos quer do nazismo, quer do stalinismo. Contudo, suas interpretações do caráter e dos processos de concepção e implantação da política externa da Alemanha hitleriana carecem de sustentação historiográfica. Produzida no quase imediato pós-Segunda Grande Guerra (1951) nos Estados Unidos, sua obra não foi beneficiada pela interação com uma cultura mais aberta aos novos horizontes da investigação histórica, como a vertente historiográfica francesa nucleada pelos Annales. Ao basear suas conclusões na apreciação de fontes até então consideradas alternativas, como livros de memórias, relatos, correspondência, discursos e textos de doutrinação política, careceu a autora, sobretudo, de um instrumental teórico-metodológico que lhe possibilitasse uma apropriação mais crítica dos documentos que logrou consultar. Ademais, Totalitarismo, o paroxismo do poder — uma proposta ambiciosa de abordagem teórico-política da problemática do poder total — antecede em praticamente uma década o adensamento da interlocução acadêmica e historiográfica sobre a variante germânica do fascismo.23 Para além destas tentativas de interpretação, o estabelecimento de equivalências estruturais entre o regime soviético e o nazismo esteve a cargo de historiadores vinculados a uma corrente revisionista da historiografia. Esta vertente, que teve na obra do historiador alemão Ernest Nolte seu principal expoente, interpretava o hitlerismo como mero reflexo do “comunismo”.24 ——————— 23

FERREIRA, Muniz. “Do passado vem a tempestade”. Notas historiográficas sobre as políticas externas do Terceiro Reich Alemão. Caderno de Estudos e Pesquisas, ano VIII, n. 19, jan.-abr., 2004. 24

Acerca das interpretações historiográficas de Nolte, ver o artigo de Demian Melo no blogue Junho, intitulado “Ernst Nolte e a historiografia revisionista”. Disponível em: <http://blogjunho.com.br/ernst-nolte-e-a-historiografia-revisionista>. Acesso em: 02/09/2017.

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Para Nolte, as principais ações da liderança nazista foram interpretadas como reações aos atos da União Soviética. Até mesmo o holocausto judeu teria sido uma reação à eliminação, causada pelos bolcheviques, das antigas classes dirigentes russas e aos supostos massacres soviéticos na Ucrânia. Das elaborações de Nolte emana não a caracterização do nazismo como fenômeno “de esquerda”, mas a justificativa do nazismo como reação ao comunismo e os primórdios de uma construção discursiva que igualará os crimes comprovadamente praticados pelos nazistas a supostos delitos de igual proporção imputados aos soviéticos. Tal operação discursiva perseguiria a produção de uma ratificação historiográfica para as justificativas de caráter defensivo e reativo com as quais os próceres do III Reich procuraram justificar seus arreganhos, inclusive diante do Tribunal de Nuremberg. Mais tarde, em suas obras e nas de seus consortes e sucessores, os massacres de pessoas, atribuídos aos governos comunistas, ultrapassariam largamente os praticados não só pelos regimes fascistas, mas também as vítimas do colonialismo, das intervenções militares e das guerras desencadeados pelas potências imperialistas. Uma audaciosa operação de whitewashing historiográfica e midiática, com fortes repercussões em nossos dias. Seguindo a via aberta pelos artífices da equiparação entre nazismo e comunismo iniciada pelos teóricos do totalitarismo e do revisionismo, a historiografia conservadora dos EUA conduziu, já na década de 1970 do século XX, tais elaborações a um novo patamar. Se o revisionista Ernest Nolte realizara a defesa histórica do fascismo apresentando-o como um fenômeno político que simplesmente reagia às ameaças e ações agressivas do “comunismo soviético”, coube a Robert Contest e outros expoentes da historiografia conservadora estadunidense tentar comprová-lo localizando um holocausto soviético, o Holodomor.25 Ora, argumentar que um dos piores ——————— 25

Ver a este respeito: LOSURDO, Domenico. Stalin: história crítica de uma lenda negra. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004.

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massacres praticados pelo regime hitlerista teve um correspondente soviético significa minimizar a malignidade do nazismo, negando sua responsabilidade exclusiva pelo maior de seus crimes. Denunciar um suposto holocausto praticado pelo regime soviético contra a população ucraniana elimina a singularidade do genocídio do povo judeu e equipara, fraudulentamente, fenômenos políticos diametralmente opostos. Ocioso dizer que este suposto holocausto jamais foi comprovado empiricamente e, por isto, rejeitado pelos historiadores acadêmicos situados fora do âmbito revisionista e ultraconservador.

O neoconservadorismo Em sua versão intelectualizada e ideológica, o neoconservadorismo emana, de forma essencial, das elaborações de Leo Strauss, um pensador e professor universitário nascido na Alemanha, ao final do século XIX, radicado nos Estados Unidos no final da década de 1930, fugindo da perseguição nazista. Dez anos mais tarde, já como docente nas universidades de Chicago e Stanford, Strauss elaborou uma filosofia política que conjugava a crítica da modernidade política ocidental (Maquiavel, Hobbes, Rousseau e Hegel), o resgate dos valores e ideias da democracia grega e a reivindicação da restauração do direito natural e dos princípios transcendentes da religião revelada como pilares para a refundação da democracia liberal. Seu pensamento foi acolhido por um setor da elite intelectual norte-americana que, a partir dos anos 50 do século XX, fora assombrada pelo fantasma da decadência dos valores e da desagregação das energias vitais de seu país pela influência das concepções e políticas liberais e progressistas.26

——————— 26

Sobre Leo Strauss e o neoconservadorismo, ver: ANDERSON, Perry. Spectrum: de La derecha a la izquierda em el mundo de las ideas. Madri: Ediciones Akal, 2008.

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Como alternativa, foram lançadas as bases de um projeto de restauração da coesão das elites sociais e políticas e de conservação do poderio mundial dos EUA, tendo por base o regate dos princípios tradicionais da cultura e do modo de vida norte-americanos supostamente sob ataque. A solução era o combate às ameaças tanto dentro quanto fora do país, mantendo a sociedade mobilizada e consciente de sua individualidade nacional e da superioridade de seu modo de vida, alegadamente acossados por seus inimigos. Tais ideias encontraram apoio junto aos círculos mais direitistas do partido republicano e entraram em complexa simbiose com o pensamento religioso fundamentalista a partir do final dos anos 1970. Seu primeiro momento de esplendor se deu durante a era Reagan, com seus ataques aos direitos civis, o keynesianismo às avessas, a corrida armamentista e a confrontação com o “comunismo” — leiam-se: as experiências de transição socialista e os movimentos revolucionários ao redor mundo.

Neonazismo e neofascismos em tempos de contrarrevolução planetária O ciclo de contrarrevoluções, que a partir de 1989 se abateu sobre o Leste Europeu, representou a culminação de uma ofensiva das forças reacionárias em nível mundial, capitaneadas pelos governos republicanos de Reagan e Bush pai nos EUA entre os anos 1981 e 1992. Os episódios mais emblemáticos desta vigorosa onda (neo)conservadora na política mundial foram a demolição do Muro de Berlim e a reunificação alemã em 1989 e a desagregação da União Soviética em 1991. Com a humilhante capitulação sem resistência dos regimes de transição socialista e a ascensão das forças comprometidas com a restauração capitalista, instaurou-se um clima propício ao fortalecimento sem precedentes e ao ressurgimento das mais empe-

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dernidas concepções e correntes políticas da direita mundial. Os protagonistas dos processos de restauração burguesa/capitalista, em seus esforços no sentido de demolir as realizações dos regimes derrotados, remover do imaginário social qualquer apreciação favorável às experiências históricosociais encerradas e disseminar ideias e valores adequados aos novos tempos, criaram um ambiente cultural fecundo para o ressurgimento do racismo, da xenofobia, do anticomunismo em suas várias manifestações, e do fascismo. Ainda que o reordenamento político gerado pelas restaurações privilegiassem, na maior parte dos casos, os sistemas liberal-representativos, sob clara hegemonia conservadora o caldo de cultura para a rápida difusão de posições de extrema direita se espalhou por todo o corpo social. Desta forma, grupos políticos, oficiais ou informais, encontraram estímulo para a reivindicação de tradições aristocráticas e monarquistas, religioso-integristas, colaboracionistas e até abertamente nazistas e fascistas. Seja na aglutinação de jovens delinquentes skinheads, seja no retorno de setores religiosos intolerantes e antissemitas, seja na atuação institucional-parlamentar de grupamentos orientados por agendas ultraconservadoras, a restauração representou, no terreno político cultural, um movimento impetuoso de retorno ao passado. Porém, não apenas nos países antes comprometidos com as experiências de transição socialista o ciclo regressivo se fez sentir. Mesmo na Europa Ocidental liberal-capitalista, o Zeitgeist ultrarreacionário e fascistizante foi perceptível. Ali, a base material para o crescimento das correntes reacionárias foi gerada pelos representantes políticos e ideológicos do grande capital, em seus esforços no sentido de fazer recuar conquistas econômicas e sociais das classes trabalhadoras, obtidas nas quatro décadas anteriores, solapando as bases do Estado de bem-estar social e preparando

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o capital para os processos de reestruturação produtiva sob hegemonia neoliberal. O recuo frequentemente desorganizado das forças de esquerda (socialistas, comunistas, esquerda trabalhista), oferece terreno para a ofensiva acelerada das forças de ultradireita, sejam elas de extração tradicionalista e fascistizante (França, Espanha), ultranacionalistas e filo-fascistas (Inglaterra, Alemanha, Áustria) ou “neopopulistas” [sic!] de direita (Holanda, Bélgica, Dinamarca, Itália). Praticamente em toda a Europa Ocidental, verificou-se um avanço liberal-conservador na política, uma consolidação gradual do predomínio das forças de direita e ultradireita e a desfiguração da centro-esquerda social-democrata, convertida em força auxiliar da direita conservadora-liberal, em suma, o recuo da influência e/ou o isolamento político das forças de esquerda e ultraesquerda. Nos dias de hoje, em alguns destes países ocidentais, o neofascismo, fragmentado no aspecto organizativo e marginalizado politicamente pela hegemonia liberal-conservadora, não vai além de uma constelação de ajuntamentos marginais políticos e jovens de instrução e de emprego pelas políticas neoliberais. Em outras circunstâncias, manifesta-se sob a forma de partidos políticos, clubes e associações culturais integrados à institucionalidade existente. Nestes últimos, sua retórica e seus métodos são adaptados à atmosfera política e intelectual dominante, atualizando e por vezes reformando suas ideias centrais. Deste modo, principalmente no mundo de fala alemã, as concepções mais diretamente referidas no nacionalismo romântico (völkish) e no pangermanismo cedem espaço para o nacionalismo xenófobo, o racismo comunitarista (europeu) e diferencialista (ariano). A defesa aberta do nazismo e seus malfeitos é dissimulada pelas impostações revisionistas. Porém, em um arco mais amplo de questões sociais e culturais, a prédica e a atuação dos grupos neofascistas na disputa pelo coração das

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massas tomam forma na condição de uma exacerbação do conservadorismo. Nos temas referentes aos direitos civis, liberdade de escolha e livre orientação sexual, estas formações perfilam, sem maiores surpresas, com as demais forças conservadoras do mundo no combate ao direito ao aborto, na oposição às reivindicações feministas, na pouca sensibilidade para com as questões ecológicas e na condenação do homossexualismo. Estes grupos costumam defender políticas de “tolerância zero” para delitos menores, reivindicando penas draconianas para pequenos furtos, ao passo que fazem vistas grossas para os crimes financeiros e escândalos de corrupção. Quando conseguem representação nos parlamentos, seus porta-vozes defendem a reeducação pelo trabalho para viciados em drogas e opõem-se decididamente a que se reduza para menos a idade legal para a prática de atividades homossexuais.

Conclusão: nazismo “de esquerda” para “libertários” de direita, um duplo caso de dislexia No espectro político da chamada “nova direita brasileira”, adquirem visibilidade crescente as ações, discursos e propostas dos chamados “libertários de direita”. Já em sua autodesignação, esta vertente manifesta seu descompromisso com a lógica conceitual e sua ausência de escrúpulos na apropriação de um adjetivo elaborado muito anteriormente para a denominação de posicionamento político e ideológico profundamente distinto. Com efeito, a expressão “libertário” passou a ser empregada, no final do século XIX, para definir concepções, propostas, grupos e organizações políticas integradas ou adjacentes ao campo da esquerda revolucionária, que demarcavam suas posições em face dos socialismos tanto de inspiração marxista quanto reformista, através da prédica da destruição imediata do Estado, no

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processo de superação da ordem burguesa-capitalista sem qualquer período intermediário e sem a realização de quaisquer pré-condições. Seu nítido pertencimento à esquerda era enfatizado nos substantivos aos quais habitualmente se encontrava associado: anarquismo libertário ou socialismo libertário. Sua utopia societária apontava não apenas para a eliminação completa do Estado e todas as formas de dominação política, mas também, a exemplo de outras correntes socialistas e revolucionárias, para a supressão do capital, da propriedade privada e do Estado no processo de transição para uma sociedade autogestionária, formada pela livre associação dos indivíduos. Atribui-se a Antonio Gramsci a afirmação segundo a qual o anarquismo teria as suas origens primevas na tradição liberal, e não no socialismo. Determinados autores, como Max Stirner e Henry David Thoreau — um, teórico da completa autonomia do indivíduo em face do Estado e da sociedade e o outro, propositor da tática da desobediência civil contra o poder da autoridade estatal —, foram reivindicados, ao longo do tempo, tanto por anarquistas quanto por liberais. Os “libertários de direita” de nossos dias encenam sua vinculação à linhagem ideológica e intelectual anarquista, ao verbalizarem a proposição de um “anarcocapitalismo” [sic!], baseado na plena liberdade individual e na rejeição do poder do Estado; porém, sua nebulosa identificação com os seguidores de Bakunin e Malatesta se dissipa prontamente na enunciação das bases materiais de seu projeto social: a propriedade privada como suporte da liberdade individual, a regulação da vida social pelo mercado, como sucessora do poder do Estado. Organizados desde 1971 em um partido político nos Estados Unidos e exercendo sua influência em significativas áreas da vida política e cultural daquele país, os “libertários de direita” apresentam-se como um dos subprodutos da Contracultura dos anos 1960. Em seus aspectos exteriores esta vertente ideológica paga tributo à atmosfera do tempo que a originou. Da

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Nova Esquerda estadunidense constituída naqueles anos, recebeu a influência da rebelião contra os elementos programáticos e organizativos das tradições políticas que se cristalizaram, ao longo do século XX, naquela sociedade norte-americana. De seu apreço pelo “novo” emerge sua determinação em se diferenciar do “velho” liberalismo estadunidense, acomodado às regras do New Deal desde a década de 30, “leniente” em face das políticas “intervencionistas” e reguladoras, “cúmplice” do acordo do Estado com os sindicatos de trabalhadores. Como “libertários”, porém, demarcam posição em face do neoconservadorismo crescente na sociedade estadunidense das últimas décadas contrapondo as interdições e reações contra reivindicações e direitos já conquistados de mulheres, negros e homossexuais, a intocabilidade dos direitos individuais, desde que devidamente assentados sobre a propriedade, a riqueza e o poder de compra de cada um.27 Em termos gerais, os “neolibertários” atualizam os temas do pensamento liberal do século XIX, já reciclado pela intervenção dos autores da Escola Austríaca do pensamento econômico de meados do século XX e pelos neoliberais monetaristas das últimas cinco ou seis décadas. Requentando antigas utopias individualistas, mercadocêntricas e antiestatistas, fazem-no, entretanto, parcial e condicionalmente. Rejeita toda e qualquer intervenção do Estado no processo de regulação das atividades econômicas(até mesmo no que se refere ao monopólio da moeda e da implementação de políticas monetárias), nas relações entre o capital e o trabalho, nos processos de produção e redistribuição da riqueza produzida socialmente; porém, não podem dispensar o exercício do papel coercitivo do Estado na repressão aos indivíduos, grupos, movimentos e classes sociais que não ——————— 27

Cf. AUGUSTO, André Guimarães. O que está em jogo no “Mais Mises, menos Marx”. Disponível em: <http://marxismo21.org/wp-content/uploads/2015/04/Mises-Marx.pdf>. Acesso em: 02/09/2017.

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aceitem as regras contratuais da sociedade do “livre mercado” ou desrespeitem o princípio da soberania absoluta da propriedade privada, defendendo até mesmo “ditaduras temporárias” e formas aristocráticas de exercício do poder. Na noite mercantilizada dos indivíduos proprietários, todos os Estados intervencionistas são vermelhos e pardos. Assim, os fascistas, elogiados um dia por Mises, como uma alternativa válida para a defesa do capital e da propriedade, converteram-se depois em furibundos inimigos das liberdades, individuais e econômicas, portadores de concepções autoritárias, “populistas” e “estatistas”, de extração socialista, do mesmo tipo da de seus arquiinimigos, os comunistas. Estava instaurada uma das mais espetaculares simplificações conceituais da história do pensamento político de todos os tempos: a inscrição dos fascismos no campo das esquerdas e a identificação orgânica e estrutural entre fascistas, socialistas e comunistas. Por mais persuasiva e convincente que esta infundada redução possa parecer aos olhos e ouvidos de pessoas dotadas de intelecto preguiçoso, ou pouco instruído e suscetível ao poder da propaganda, ela evidencia o esgotamento dos recursos imaginativos da consciência liberal, na época de realização de suas mais sombrias distopias. O máximo volume de sua reverberação precederá o canto de cisne da credibilidade das agências e sujeitos que tiverem tido a infelicidade de apregoá-la.

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O conceito de nação e do nacionalismo presentes no partido de extrema direita, o Front National Guilherme Franco de Andrade*1

O surgimento da nação moderna O nascimento das nações modernas como conhecemos hoje teve sua primeira experiência na declaração de Independência dos Estados Unidos da América e na formação da Primeira República representativa, inspirado pelas ideias iluministas desenvolvidas na França no século XVIII. Entretanto, a formação das primeiras nações modernas é um tema ainda muito debatido no meio acadêmico, existindo diversos debates sobre os entornos da construção da nação. O estudo dos fenômenos do nacionalismo na Europa é visto como um produto das transformações da sociedade capitalista, assim como o desenvolvimento e a ampliação do Estado, como órgão responsável pelo principal controle das sociedades. O nacionalismo também é analisado como um produto da construção histórica das nações modernas. ——————— * Guilherme Franco de Andrade é doutor em História pela PUC-RS. E-mail: guilherme_ andrade@hotmail.com.


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A importância de estudá-lo não reside apenas no ponto de vista das relações humanas com seu meio, sobretudo dos riscos que o ultranacionalismo ocasionou na Europa nos séculos XIX e XX, mas compreende também a urgência e a atualidade da temática, visto que o continente europeu tem sido palco de levantes sociais e de demonstrações extremistas de grupos nacionalistas. Ante o agravamento da crise econômica, o enfraquecimento da política dos partidos tradicionais e dos conflitos de identidade nacional, percebemos maior aceitação e espaço para partidos e grupos nacionalistas no cenário político europeu que ganham força eleitoral em países com instituições historicamente estabelecidas. O desenvolvimento da nação é, portanto, objeto crucial do ideal nacionalista. Sua materialidade, sua expansão territorial — ou manutenção das fronteiras —, a política voltada para seus membros — em que uma única comunidade política é beneficiada — têm como base os mesmos pressupostos e sentimentos nacionais. Devemos lembrar que existe uma importante separação entre o que é nação como federação e o que são o Estado e suas funções burocráticas e administrativas, configurando-se, afinal, dois lados de uma mesma moeda. Nesse sentido, o nacionalismo funciona como uma engrenagem que consegue desenvolver sentimentos de amor à pátria e estabelecer projetos que buscam o desenvolvimento nacional e dos cidadãos, ainda que no âmbito da estrutura do Estado. A diferença do significado objetivo entre Estado e nação fica mais evidente quando conseguimos enxergar as diferenças entre ambas: o Estado, em sua composição, é formado por instituições públicas, por estruturas hierárquicas e é detentor exclusivo do monopólio da força e da coerção. A nação, em sentido estrito, é uma comunidade “imaginada”, política, composta por indivíduos com aproximações culturais, detentora de singularidades linguísticas, semelhanças étnicas e pelo sentimento de pertencimento a um mesmo território comum.

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Para o historiador Eric Hobsbawm (1992, p. 27), a nação em seu modelo atual teria a "característica básica da nação moderna e de tudo o que a ela está ligado é a sua modernidade”. Segundo ele, as nações modernas como conhecemos se diferenciam das outras formações nacionais do passado pelo fato de o discurso nacional estar ligado às políticas governamentais e à política capitalista liberal. Tal característica particular das nações modernas não existia nas nações até a Revolução Francesa. Assim, Hobsbawm estabelece uma separação entre nação e nação moderna, tendo como principal diferença quando o Estado opera o conceito em seu discurso político e social. A criação da nação como projeto de sociedade linguística e etnicamente homogênea fez parte do projeto político liberal que se desenvolveu de forma majoritária nos séculos XIX e XX. Nas nações modernas, é o governo que está diretamente ligado ao conceito de nação; ele é o principal responsável por criar formas burocráticas, organiza os padrões oficiais da sociedade, elegendo uma língua oficial. Além disso, designa uma religião oficial, opera uma máquina administrativa para o envolvimento dos cidadãos e a lealdade ao Estado. Para o historiador Benedict Anderson (1983), a nação nada mais é do que uma comunidade limitada, soberana e, sobretudo, imaginada. Limitada porque, por maior que elas sejam, sempre haverá fronteiras finitas; soberana porque pressupõe lidar com um grande pluralismo. Viva e, finalmente, imaginada porque seus indivíduos, mesmo nunca conhecendo integralmente uns aos outros, compartilham signos e símbolos comuns que os fazem reconhecer-se como pertencentes a um mesmo espaço imaginário. Ainda sobre o conceito de nação, segundo Hans-Jurgen Puhle, para se estudar o desenvolvimento das nações modernas europeias, faz-se necessário compreender diversos fatores que contribuíram para seu desenvolvimento. Para Puhle (1994, p. 13.), o continente europeu é um produto de

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sua história, pois sua formação vai além das suas fronteiras, regiões, Estados e nações, sendo que não teria como sobrepor uma ordem de importância, ou maior relevância em uma característica sobre a outra. Investigar como se deram essas transformações é o que contribui para a abordagem do processo real de construção das nações europeias. Além das questões da formação das fronteiras e regiões europeias, o autor também elucida a importância de outros fatores que contribuíram para o desenvolvimento das nações modernas, como as questões de ordem econômica, social e política que constituem questões específicas, resultando em construções, invenções das “identidades” locais e regionais, que são resultado também do mercado e da sociedade civil (PUHLE, 1994, p. 13). Dessa forma, uma nação é resultado da construção de diferentes regiões, de diferentes Estados, com indivíduos de diferentes nações. E isso devido à enorme riqueza cultural e da diversidade existente em toda a Europa. Segundo Puhle, tais características do continente europeu impõem ao pesquisador o cuidado e a preocupação preliminar com duas questões de extrema relevância. A primeira é a existência de um amplo material a ser moldado, investigado e explorado. Já a segunda se refere aos processos históricos complexos de interações, interferências de instituições e até mesmo as formas de violência a partir das quais são moldadas identidades. Estes são aspectos, segundo o autor, igualmente importantes e não devem ser esquecidos (PUHLE, 1994, p. 13). Para alguns pesquisadores, os movimentos nacionalistas tiveram seu auge no final do século XIX e início do século XX, com o final da pósSegunda Guerra Mundial, que marcou a derrota do nazismo e do fascismo, principais modelos políticos nacionalistas — uma conjuntura em que nacionalismo perdeu sua emergência e significado para as massas. No plano político, o discurso nacional foi substituído pela defesa do sistema capitalista,

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devido à intensificação do conflito do Ocidente frente o comunismo da União Soviética. Os discursos nacionalistas só voltariam a entrar em destaque na década de 1990, com o fim da União Soviética e início dos processos separatistas na Europa, África e Ásia (BRUBAKER, 1996). Para Brubaker (1996, p. 23), a União Soviética era um Estado multinacional, não só em termos demográficos e étnicos — além da extraordinária heterogeneidade étnica de sua população —, mas, fundamentalmente, em termos institucionais. O Estado soviético era tolerante e agia de forma passiva para a não integração dessas comunidades à cultura soviética. Assim, essas múltiplas nações estavam institucionalizadas como componentes fundamentais do Estado e seus cidadãos. Por não planejar um processo de transformação dessas “nações” como parte integral da sociedade soviética, a União Soviética preparou sua própria morte, pois a não integração foi crucial para a desintegração do Estado soviético e para moldar os conflitos separatistas que ainda prevalecem em Estados russos (BRUBAKER, 1996, p. 41). Sob este mesmo modelo, outros países do Bloco Comunista sofreram com processos históricos parecidos, como é o caso da Iugoslávia em seu processo de desintegração. Cabe destacar que, nesse processo de desmantelamento dos países comunistas, verificamos o ressurgimento dos movimentos nacionalismo e separatistas na década de 1990, tanto nos países da Europa Oriental como na Europa Ocidental (BRUBAKER, 1996, p. 42). O retorno dos partidos e movimentos nacionalistas no fim da década de 1980-1990 trouxe novas perguntas para os pesquisadores, tais como: “Como compreender o retorno da pauta nacionalista no cenário político, em um mundo globalizado e interligado?” “Quais as novas pautas políticas dos novos movimentos nacionalistas?” Na academia na década de 1990, segundo Hroch (1996), os pesquisadores que se deram ao trabalho de investigar esses novos fenômenos no calor de seu aparecimento procuraram ex-

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plicar que, durante os regimes comunistas, o nacionalismo teria sido proibido, visto que a tendência política da internacional comunista era de âmbito internacionalista; portanto, o nacionalismo não era incentivado pelos governos comunistas. Dessa forma, as pesquisas sobre o nacionalismo colocaram como resposta o retorno do nacionalismo como resultado de problemas mal resolvidos pelo comunismo. Para Hroch, esses argumentos, por um período razoável, foram convincentes para explicar o nacionalismo no final do século XX, mas, nos últimos cinco anos, essa perspectiva passaria a ser refutada pelos novos pesquisadores (HROCH, 1996, p. 36). Dessas teorias antigas, o que sobreviveu, segundo Hroch (1996, p. 37), foi o conceito de nacionalismo como espécie de “epidemia” que deve ser tratada; nestes termos, o principal paradoxo do nacionalismo seria encontrar um método adequado para tratar essa problemática. Segundo o autor, é necessário procurar explicações mais profundas para explicar o aparecimento do nacionalismo no século XXI e as implicações que tais movimentos podem ter no futuro da sociedade europeia. É necessário, diante disso, compreender a ascendência dos movimentos nacionalistas através do processo histórico especifico de cada país. Hroch evidencia que cabe ao historiador, em primeiro lugar, fazer considerações sobre o conceito de “nacionalismo” ponderando sua aplicação nas diversas áreas das ciências humanas. O tom generalizante com que costuma ser abordado pode lhe conferir diversos significados, alguns dos quais empobrecedores de sua real significação e esquivos das necessárias problematizações. Explorar de forma ampla e generalizada o conceito de nacionalismo, pretendendo com isso caracterizar diferentes processos históricos, contribui para tornar ainda mais difícil a compreensão de suas particularidades (HROCH, 1996, p. 37). Contrapondo-se a isso, Hroch esclarece que a abordagem do nacionalismo deve ser restrita à sua formação original,

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ou seja, não como sinônimo de identidade nacional ou programa de desenvolvimento nacional, mas “como um estado de espirito (mental e coletivo), que dá prioridade aos interesses e valores da nação, acima de todos os outros interesses e valores” (ibidem). Dessa forma, na questão contemporânea do reaparecimento do sentimento nacionalista, o autor recomenda que tratemos esse processo como “movimento nacional”, que é compreendido como um esforço organizado por parte de alguns setores da sociedade, na busca de determinados “direitos”. Na esteira desse raciocínio, para uma compreensão mais acurada dos movimentos nacionais e do nacionalismo, é necessária a formulação preliminar de algumas premissas, as quais, segundo o autor, seriam determinantes para a abordagem do processo histórico estudado. Em primeiro lugar, “nacionalismo” deve ser entendido como expressão de um grupo social existente em determinada nação, compreendido como resultado de um longo processo de formação do Estado-nação. Em segundo lugar, o principal elemento de compreensão de formação de uma nação é a identidade nacional, e não o nacionalismo. E, em terceiro lugar, o processo de formação das nações modernas não foi um erro na História, como sugerem alguns autores — pressupondo o nacionalismo como responsável pelas duas guerras mundiais no século XX —, mas, antes, um processo natural de transformação da sociedade europeia moderna, em paralelo com a industrialização, o capitalismo e a burocratização das instituições nacionais. Outro pronto importante para a análise da emergência do nacionalismo seria compreender também a emergência das nações, das formações das identidades nacionais e as disputas entre determinadas culturas que habitam o mesmo espaço cotidiano, como um processo que ocorre majoritariamente no mundo ocidental.

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Dessa forma, no que tange ao nosso objeto, que é o estudo do partido de extrema direita francês, o Front National, observamos como, conhecido por sua postura ultranacionalista, ele ganha maior evidencia e destaque a partir da década de 1990.

A extrema direita europeia Embora esse campo de pesquisa seja extremamente debatido na academia, não existe consenso entre os diversos pesquisadores sobre uma categoria de análise que seja suficiente para agrupar esses partidos. Por ser um objeto de estudo atual e em constante transformação e ressignificação, além de localizado dentro da perspectiva historiográfica, chamada história do tempo presente ou história imediata, ele é bastante extenso e controverso. Segundo Jean-Yves Camus, podemos compreender o aparecimento da extrema direita no século XX através de “três ondas” históricas. 1 A primeira coincide com o início dos movimentos extremistas e a consolidação do seu modelo, através de sua implantação nos regimes nazifascistas na década de 1930. A segunda onda corresponde aos movimentos neofascistas que procuram reorganizar-se na Europa durante a Guerra Fria, principalmente na França, Espanha, Portugal e Itália. Além dos movimentos neofascistas e negacionistas que surgiram na Europa na década de 1960, as ditaduras em Portugal e Espanha, que pertenciam à primeira onda da extrema direita, remodelaram-se e serviram de exemplo para inspirar alguns grupos da segunda onda. Em ambos os países, a transformação do modelo de governo afastou-se um pouco da ideologia do fascismo clássico, como no tocante ao abandono do corporativismo e das questões raciais. Ambos ——————— 1

CAMUS, J-Y. Metamorfoses políticas na Europa. Le Monde Diplomatique Brasil, 01/05/2002. Disponível em: <http://diplo.org.br/2002-05,a299>. Acesso em: 10/05/2011.

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os governos tentavam legitimar seus governos autoritários com base na defesa nacional e na contenção do avanço do comunismo na Europa, característica que também marcava os movimentos de extrema direita em outros países europeus. Na França, isso se deu por meio dos grupos Jeune Nation e Fedération des Étudiants Nacionalistes 2 e, na Itália, pelo MSI — Movimento Social Italiano.3 A terceira onda dos partidos extremistas ocorre quando realmente voltam a ter espaço político, ou seja, durante a década de 1980. É nesse período que os partidos de extrema direita passam a assumir um projeto econômico ultraliberal, protestando contra a imigração africana e asiática na Europa, assumindo uma postura de defesa “cultural” de cunho xenófobo e nacionalista. A extrema direita, como podemos verificar, tem sido desde a metade do século passado tema de grande relevância acadêmica, sendo cada vez

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A Federação dos Estudantes Nacionalistas (FEN) surgiu durante os anos da Guerra da Argélia, no meio universitário. Era ultranacionalista, racista, xenófoba, antissemita e antiliberal. Seu objetivo principal durante o conflito argelino era conseguir disseminar o seu programa antidemocrático no meio universitário. Fundada por estudantes da Universidade de Sorbonne, que se colocavam como “vanguarda”, tinha como objetivo desenvolver um projeto político para a extrema direita. Os fundadores da FEN utilizavam os pseudônimos François d’Orcival e Fabrice Laroche para assinar os textos produzidos por Amaury de Chaunac-Lanzac e Alain de Benoist, respectivamente. Sua criação foi, aparentemente, uma resposta dos estudantes conservadores à crescente vertente dos marxistas na academia francesa e dos movimentos estudantis, em particular a Union Nationale des Étudiants de France (UNEF). 3

O MSI surgiu no cenário político italiano logo após a Segunda Guerra Mundial, fornecendo, anos adiante, corpo à Alleanza Nazionale. As duas agremiações, com trajetória em comum, auxiliam a compreender o processo e a possibilidade de definição conceitual de neofascismo. Criado, inicialmente, a partir dos quadros do Partito Nazionale Fascista e da própria burocracia do regime fascista italiano, o MSI buscava arregimentar o capital político e a mobilização fascista após a queda do fascismo, mantendo alguns de seus referenciais e postulando a herança fascista de modo explícito. A este respeito, ver: MARCHI, Riccardo. Movimento sociale italiano, Alleanza Nazionale, popolo delle liberta: do neofascismo ao pós-fascismo em Itália. Analise Social, v. XLVI, n. 201, 2011, pp. 697-717.

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mais alvo de pesquisa de diversos campos das ciências humanas, principalmente entre historiadores, filósofos e cientistas sociais. E sobretudo após o ressurgimento de plataformas políticas chauvinistas e xenófobas no final do século XX e início do século XXI. A primeira dificuldade encontrada no estudo da extrema direita se dá do ponto de vista conceitual, dada a existência de ampla literatura que trata desses movimentos políticos desde 1960. As diferentes formas de categorização e abordagem nos chamam a atenção para um primeiro questionamento sobre qual categoria define concretamente essa classe política, já que os especialistas a categorizam de diferentes formas: direita radical, ultradireita, extrema direita, direita nacionalista, ultranacionalista, além de outras formas e expressões possíveis para denominar esses partidos. Por outro lado, as divergências e influências políticas também dificultam a categorização desses partidos. Os grupos de extrema direita possuem uma literatura própria, com questões históricas, políticas e nacionais específicas, o que torna difícil homogeneizar todos esses grupos em uma mesma categoria de análise. Outro ponto que merece destaque é que, em mais de 50 anos de pesquisa sobre a extrema direita, a academia anglo-saxônica não conseguiu chegar a uma terminologia em comum, problema já mencionado aqui, mas ainda mais relevante quando se pondera que ele também constituiu um campo de disputa intelectual. Dito de outra forma, a quantidade de termos e diferentes conceituações sobre o objeto de pesquisa em si também é alvo de disputas entre diferentes correntes de pensamento acadêmico, o que colabora mais ainda para a dissidência terminológica. Quando o processo de avanço científico está muito ligado às condições políticas, e a atual definição do problema se torna o principal critério para sua relevância, existe o agudo

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perigo de reflexão trivial, sem fôlego e não-histórica. A finalidade política domina ou, pelo menos, prejudica o nível de conhecimento e as análises se tornam empiricamente anuladas.4 (BACKES, 1990)

De acordo com Hainsworth: A extrema direita contemporânea surgiu em circunstâncias sociopolíticas e históricas muito diferentes das extrema direita pré guerra e durante a da guerra. Notavelmente, a democracia liberal e capitalista tornou-se mais embutida na Europa Ocidental e o clima internacional evoluiu da Guerra Fria para o degelo, para aceitar a "queda do muro" e a retirada do comunismo.5 (HAINSWORTH, 2008, p. 2)

Em termos políticos, podem-se comparar quatro características essenciais que diferenciam a extrema direita do fascismo: a visão econômica, o posicionamento político, o nacionalismo e o militarismo. Neste sentido, a extrema direita rompeu com alguns dos paradigmas que caracterizam o fascismo. No plano econômico, os novos partidos radicais se posicionam a favor do capitalismo e do mercado, não se colocam mais como “terceira via”, ou se apresentam como alternativa entre o capitalismo e o socialismo. No começo da década de 1980, o FN, por exemplo, pregava o ultraliberalismo, que depois foi alavancado por Ronald Reagan e Margareth Thatcher (BASTOW, 1997). Nas questões sociais, a extrema direita defende o estado ——————— 4

Em tradução livre: “When the process of scientific catch-up is linked too much to the political conditions, and the topicality of the definition of the problem becomes the main criterion for its relevance, the acute danger of trivial, breathless, non-historical reflection exists. Political purposiveness dominates or at least harms the level of knowledge of empirically crashed analyses.” 5

Em tradução livre: “The contemporary extreme right has emerged in socio-political and historical circumstances that are very different to the pre-war and war-time ones. Notably, liberal and capitalist democracy has become more embedded in Western Europe, and the international climate has evolved from Cold War to thaw, to take in the ‘fall of the wall’ and the retreat from communism.”

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de bem-estar social, mas com limitações a partes especificas da população. Na concepção do Estado, essa nova direita abandonou a centralização do poder de um governo com um único partido — embora seja importante dizer que não temos nenhum exemplo de partidos de extrema direita em um cargo presidencial ou posição majoritária com legitimidade e apoio das massas para imprimir um golpe. A parte mais radical desses partidos se dá nas questões da segregação étnica, do controle rígido da imigração, na moral cristã e em posicionamentos conservadores em relação às minorias (BASTOW, 1997, p. 70). Outra diferença é o abandono do militarismo e das formações de milícias, que eram de vital importância para os regimes fascistas, para garantir a manutenção do poder, o controle sobre a sociedade e também no tocante aos planos expansionistas, o que não ocorre com os partidos de extrema direita. Sua posição é extremamente nacional no que respeita à defesa de sua nação e o controle das fronteiras, e não existe um projeto internacionalista nem alinhamento político com outras nações em um grande projeto extremista (ibidem, p. 72). Dentre as características que comumente são ligadas ao fascismo e também à direita radical está o nacionalismo.6 Em ambos os movimentos, o nacionalismo é um fator importantíssimo, muito embora as concepções de nação e nacionalismo sejam bastante diferentes. Diferente do nacional-socialismo que tinha como projeto de mil anos a expansão da sua ideologia para outras nações “arianas”, a extrema direita atual sequer planeja projetos expansionistas. O nacionalismo conforme entendido por eles é algo estritamente regional, próprio; é uma relação quase

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O nacionalismo será discutido no item 1.2.2. do presente texto.

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de inversão do expansionismo e algo que deve ser protegido como um “animal em extinção”, sendo imprescindível também que exista em um espaço geográfico definido, sem expandir fronteiras. Diferente do que acontecia na Segunda Guerra Mundial, em que os movimentos nacionalistas lutavam por questões territoriais, por limites de fronteiras, ou para resgatar território perdido ou anexado por outros países, até mesmo em disputas por colônias, os partidos de direita radical na Europa não têm em sua agenda tais pautas. Do ponto de vista internacional, por exemplo, o FN defende a autonomia de cada país europeu, dentro de seus limites geográficos, para que todos possam exercer seus costumes culturais e linguísticos, demonstrando simpatia pelas individualidades culturais, desde que elas fiquem a uma boa distância de seu país (TAGUIEFF, 1997). Outra diferença crucial no que tange ao nacionalismo da extrema direita na atualidade é não ser orientado por uma questão “étnica”. Muito embora o racismo, o antissemitismo e a xenofobia sejam características presentes nesses partidos, não existe um programa de purificação racial, cujo sucesso é essencial para o futuro do país, como era o caso do nazismo na Alemanha (WIEVIORKA, 1992). Segundo Wieviorka (1997), a atual extrema direita se orienta menos pelas questões biológicas como outrora; não existe um programa eugenista, ou de purificação racial no programa político desses partidos. O preconceito que existe se orienta por um senso de inferioridade em relação a tudo aquilo que não se encaixa categoricamente no padrão nacional, ou seja, quando a relação é de inferioridade cultural, religiosa, linguística e econômica não está relacionada com a questão étnica, mas com posições sociais (ibidem). Finalmente, o militarismo, que foi base fundamental para a ascensão do nacional-socialismo e também para o fascismo, hoje sequer existe nos partidos radicais. Ainda que em grupos neonazistas e skinheads exista uma

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exaltação das forças repressivas e que o visual estético seja uma forma de geração do medo, nos partidos políticos o militarismo é deixado de lado (SHIELDS, 2007). Muito embora o FN tivesse em suas fileiras vários excombatentes da Guerra da Coréia e da Argélia, o partido nunca possuiu milícias de combate ou relação direta com o exército francês.7 Esse ponto remete de novo à questão do nacionalismo: como no fascismo, o nacionalismo estava intimamente ligado ao exército e a seus feitos históricos, sobretudo na exaltação dos heróis de guerra. No que diz respeito à extrema direita, obviamente existe um respeito pelas forças armadas, mas nada mais do que o respeito pelos soldados que defendem a nação, como em qualquer outro país (SHIELDS, 2007). Para Camus (1989), o que definiria os partidos de extrema direita europeus como família partidária seria, em primeiro momento, uma matriz ideológica em comum, constituída pelo nacionalismo (étnico), pelo autoritarismo e pelo programa político de cunho “populista-nacionalista”. Embora haja diferenças nas pautas políticas de cada partido que compõem essa “família”, a ideologia é o que constituiu a principal característica de aproximação entre eles. Conforme reitera Mudde (2000), o primeiro critério utilizado para categorizar os partidos de extrema direita é a matriz ideológica e política; são essas aproximações que os definem como membros dessa subfamília política. Os partidos de extrema direita estão inseridos no cenário democrático e agem dentro dos limites impostos pelas democracias ocidentais; portanto, o uso do termo “extremo” não está associado à violência ou qualquer referência ao fascismo, mas às concepções e posicionamentos políticos, ao contrário do que aponta Norris. ——————— 7

Sobre o período das guerras coloniais, ver: JAUFFRET & VAÏSSE, 2012; MONNERET, 2008, pp. 144-145; MONTAGNON, 1984, pp. 127-128; STORA, 2005, p. 25; e ERVILLE, 2002.

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Nesse mesmo sentido, tanto Taguieff (1997) como Rydgren (2005) reforçam o argumento que dissocia a extrema direita do fascismo tradicional, indo no sentido contrário às colocações de Norris (apud TAGUIEFF, 1997). Portanto, a extrema direita é assim denominada por se enquadrar no extremo do espectro político e ideológico dos partidos de direita. Em termos políticos, os partidos de extrema direita compartilham das seguintes características: rejeição ao multiculturalismo e ao pluralismo, oposição ao liberalismo econômico e autoritarismo nos âmbitos social e cultural. No sentido religioso, o FN tem uma ligação enorme com o catolicismo, mas defende a laicidade do Estado. Em outros partidos de extrema direita, predominam as religiões católicas e protestantes. Para Mudde, podemos definir a extrema direita a partir de três pontos: o nacionalismo, o autoritarismo e a xenofobia. Para Carter (2005, p. 16), a extrema direita é caracterizada por sua rejeição aos valores fundamentais (direitos humanos), procedimentos e instituições (eleições livres, iguais, diretas e secretas, competição partidária, pluralismo, estado de direito, separação de poderes) do Estado democrático constitucional, ao passo que se distingue por aquilo que abraça: o absolutismo e o dogmatismo. Os partidos de extrema direita vão além: na sua compreensão de Estado e nação, o sentimento de pertencimento étnico, de nacionalismo, transforma a relação de como o Estado deve atuar. Nesse sentido, o Estado é percebido como organismo que deve controlar e suprir as necessidades da população, ou seja, para a extrema direita, o Estado é responsável por garantir privilégios à população local frente aos estrangeiros. E os privilégios não só do ponto de vista econômico, mas também no que respeita à prioridade em empregos, ao acesso à moradia, à ampliação do estado de bem-estar social, à educação e saúde pública, todas garantidas pelo Estado. Segundo Rydgren (2005), tais preocupações e mudanças no

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projeto político da extrema direita é um das características principais que a separam da tradição fascista. Para Carter (2005), “o extremismo de direita enfatiza a noção de desigualdade dos indivíduos e os modelos de extrema direita da ordem política e social estão enraizados na crença na necessidade de desigualdade social e política”. 8 Dessa forma, percebemos que o projeto político da extrema direita acredita que a desigualdade faz parte das democracias liberais e do processo natural da sociedade, sendo função do Estado garantir que ela seja institucionalizada. Para Minkenberg, um dos grupos intelectuais que mais influenciaram o pensamento dos partidos de extrema direita é o movimento Nova Direita,9 de Allain Benoit. Esse grupo, pertencente à extrema direita da terceira onda, teve papel importante para a transição dos movimentos de extrema direita, da base do fascismo, para a mudança ideológica dos anos 80. Segundo Minkenberg, a Nova Direita defendia que o multiculturalismo era uma espécie de câncer para as culturas europeias, por defender a incompatibilidade entre as culturas ocidentais com a cultura dos imigrantes, principalmente os de origem africana (mulçumanos). A Nova Direita foi, neste sentido, um dos movimentos responsáveis pela transição do racismo étnico para o preconceito cultural, que foi amplamente aceito pela extrema direita, inclusive pelo FN.

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Em tradução livre: “Institutionalized right-wing extremism emphasizes the notion of inequality of individuals and ‘extreme right-wing models of political and social order are rooted in a belief in the necessity of institutionalised social and political inequality.” 9

A Nova Direita (Nouvelle Droite) é um movimento político intelectual francês criado por Alain de Benoit, que criticava o multiculturalismo e a incompatibilidade entre as culturas (ocidentais x orientais), bem como a necessidade legitima de resistência e segregação cultural. Tendo enorme aceitação na Europa, inclusive no FN, foi a base ideológica para o racismo culturalista.

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Ao analisar esta terceira onda de extremismo, é importante reconhecer o papel do movimento intelectual dos anos 1970 até os anos 1990 como uma força para a renovação ideológica de direita. A formulação do conceito de “etnopluralismo” pela Nova Direita rompeu com o pensamento antigo utilizado pela extrema direita — sobre as ideias antiquadas de racismo biológico e superioridade branca. Ao apropriar-se diretamente do conceito de “direito de ser diferente” da esquerda política, a Nova Direita enfatizou a incompatibilidade entre culturas e etnias e defendeu a legitimidade da resistência europeia à mistura cultural. O etnopluralismo é uma segregação politicamente forçada de culturas e etnias segundo critérios geográficos — essencialmente, uma espécie de Apartheid global — e a partir do contramodelo da Nova Direita sobre o multiculturalismo, que funciona como uma estratégia modernizada contra a imigração e a integração. Ele precede e se funde às mensagens xenófobas promulgadas por políticos e autores do mainstream.

O Front National e o nacionalismo O partido francês, originalmente criado como Front National pour l'unité Française10 (FN), foi fundado em 5 de outubro de 1972, procurando reunir o eleitorado dos conservadores franceses. A direita francesa se encontrava em situação delicada na década de 1970; em primeiro lugar, os movimentos conservadores não obtinham confiança e respeito da população. Após várias tentativas de organização partidária, ou de formação de outros movimentos conservadores, a direita estava desorganizada, dividida em pequenas facções. Durante o periodo do pós-guerra até a década de ——————— 10

Frente Nacional pela união francesa, nome que seria abandonado futuramente perma-necendo apenas o Frente Nacional (Front National).

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1970, os grupos conservadores haviam falhado em suas tentativas de representação política e de união partidária (MAYER & SINEAU, 2002, p. 43). No início do FN, segundo Paulo Fagundes Vizentini (2000), o partido foi uma mistura de várias vertentes do pensamento conservador, incluindo os nostálgicos de Vichy e os anti-Gaulle11 neofascistas, intelectuais e ativistas, sob a liderança de Jean-Marie Le Pen. Os membros dos partidos de extrema direita na Europa apresentavam particularidades distintas:

Os partidos de extrema direita tinham uma composição etária curiosa. Eram formados por pessoas acima de 60 anos e que haviam sido nazistas no passado; e depois se-guiase a faixa de pessoas de meia idade, onde a pirâmide reduzia-se drasticamente; abaixo, uma ampla base social de jovens entre dezesseis e vinte e quatro anos. [...] Fora essa exceção, normalmente os partidos viviam uma vida vegetativa e semiclandestina; veteranos de guerra, entre outros, que tinham seus clubes e associações e que uti-lizavam certas causas periféricas (cabe salientar que essa é uma forma de retomar-se a linha política). (VIZENTINI, 2000, p. 51)

A criação do FN foi inspirada no sucesso eleitoral do partido neofascista italiano, o Movimento Sociale Italiano (MSI). O início do partido se deu com grupos distintos, incluindo membros do governo de Vichy, opo-sitores do general De Gaulle, membros do movimento poujadista, neofas-cistas, militantes que participaram da FEN, JN e ativistas que não possuíam vínculo partidário, mas simpatizavam com a ideia de organizar um partido de extrema direita. O início do FN esteve sob a liderança de Jean-Marie Le Pen e François Duprat.

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Opositores do presidente francês Charles de Gaulle, que ocupou o cargo durante a ocupação nazista na França em 1944, no exílio, e também foi presidente entre 1959 a 1969.

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Segundo Jean-Yves Camus, o nacionalismo encampado pelo FN era diferente dos outros partidos franceses. Essa diferença ficaria muito evidente entre o nacionalismo defendido pelo partido de centro-direita e pela extrema direita. Os partidos tradicionais que estavam intimamente ligados ao projeto liberal não se posicionavam na defesa da soberania nacional e pouco fi-zeram para manter as colônias como território francês, não priorizando a defesa da cultura francesa como uma questão fundamental (CAMUS, 1989, p. 18). Já a extrema direita representada pelo FN e PFN colocava o nacionalismo e a defesa da pátria como prioridades, conseguindo, assim, apropriarse do nacionalismo, tornando-se a principal defensora das “causas nacionais” na França. Tanto que o patriotismo se tornou algo próprio, legitimo, exclusivo desses partidos. Segundo Camus, “a distinção entre nacionalistas tradicionais e o nacionalismo da extrema direita, fica evidente após a guerra da Argélia, e nos ajuda a compreender o porquê de o FN e o PFN12 liderarem a extrema direita e se tornarem “donos” do patriotismo na França” (CAMUS, 1989, p. 19). O FN, em seu “programa de governo”, tinha uma estrutura política e ideológica baseada na defesa da identidade nacional, ameaçada pela imigração e pela internacionalização do comércio e da globalização, e também no retorno do “glorioso” nacionalismo francês. Em seu alegado plano de defender a França, lançava-se contra seus inimigos internos (anteriormente judeus, maçons e protestantes, agora imigrantes, principalmente árabes e muçulmanos) e contra os inimigos externos (especulação internacional e forças das multinacionais e do corporativismo). O FN defende valores tradicionais e instituições que, segundo ela mesma, devem basear-se na iden——————— 12

Parti des Forces Nouvelles (PFN) é um partido criado em 1974 por dissidentes do Front National (e também da Ordre Noveau).

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tidade francesa e nos princípios de família, exército, autoridade e catolicismo (HAINSWORTH, 2004, p. 44). O FN, em sua primeira eleição em 1973, autodeclarava-se um partido defensor do nacionalismo e das raízes do povo francês, compreendendo a nação francesa como resultado de uma entidade orgânica, construída por uma civilização etnicamente homogênea, sendo produto da história, da cultura e da sua civilização (BOURSEILLER, 1991, p. 88). Segundo o FN, a França seria uma nação construída a partir das memórias das grandes batalhas, do sofrimento e do sacrifício da população francesa; dessa forma, todo cidadão deveria honrar os costumes e as tradições, e essas conquistas deveriam ser reverenciadas pela população, respeitando-se o passado de glória (BOURSEILLER, 1991, p. 89).

O que nós temos de mais comum entre nós, aqui, hoje, e com nossos compatriotas franceses que estão no exterior deste recinto, é a noção de patrimônio, seu patrimônio cultural acumulado por séculos de trabalho e de sacrifícios, por gerações que nos precederam, seu imenso patrimônio moral cultural. (LE PEN, 1987. p. 10)

Nesse mesmo sentido, Jean-Marie Le Pen explica que “a nação é a comunidade de língua, de interesse, de raízes, seus mortos, o passado, a hereditariedade e a herança. Tudo o que a nação lhe transmite no nascimento tem já um valor inestimável” (ibidem). Podemos pontuar aqui que o discurso de exaltação das batalhas, do militarismo, da ideia de o nacionalismo ser hereditário nos lembra as pseudociências, as teorias raciais e a eugenia dos séculos XVIII e XIX. Esse discurso de Jean-Marie Le Pen é uma tentativa de tocar a população nas questões nacionalistas, visto que parte dos militantes do FN, principalmente os ex-combatentes (Argélia e Coreia),

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sente frustração frente à derrota da França em manter suas colônias africanas e asiáticas. No processo de construção do projeto político do FN, podemos perceber também que, além da questão militar para reforçar o nacionalismo, o partido procurou construir outros símbolos, principalmente buscando heróis na história da França, personalidades históricas que pudessem reforçar, simbolizar o novo nacionalismo desenvolvido pelo Front National. Nesse processo de busca para encontrar heróis, vemos o fortalecimento do catolicismo dentro do partido. Para representar o FN, foi escolhida a figura de Joana D’Arc como símbolo de nacionalismo do FN, uma heroína francesa, nacionalista, católica, devota à nação, que sacrificou sua vida em prol da liberdade do país, sem ter qualquer ação individualista, a nação acima de qualquer desejo individual. A escolha de Joana D’Arc também passa pela questão da busca pela tradição histórica do país, demonstração de orgulho com o passado histórico. A escolha do símbolo do partido é também uma forma de procurar unir todas as células dentro do partido, colocando um novo foco a ser seguido, supondo que essa nova escolha conseguisse superar antigas figuras como Napoleão Bonaparte, Marechal Pétain, General Boulanger, Charles Maurras e Pierre Laval. O uso da História Antiga pela extrema direita na França já ocorria desde o governo de Vichy. Segundo Glaydson José da Silva, hoje o FN procura utilizar o passado para recriar uma identidade nacional:

É da História, como grande campo de alusões e de suas relações com a “identidade nacional” que Le Pen extrai referências para seus discursos, estabelecendo paralelos com heróis (sobretudo Joana D’Arc) e atos fundadores da História nacional, criando uma França mítica da qual o partido tem necessidade e faz apelo na justificativa de suas posições ideológicas. (SILVA, 2007, pp. 98-118)

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Parte da inspiração do FN também vem do governo de Vichy. Os saudosistas do antigo regime buscaram, em algumas leis racistas do governo provisório, para incorporar ao programa do FN, principalmente nessa época que ainda se discutia o antissemitismo no partido. A influência do catolicismo é bastante presente no FN, quando identificamos o uso de sujeitos importantes para a Igreja Católica francesa, símbolos do nacionalismo e do cristianismo francês. Dessa forma, verificamos o uso da figura de Joana D’Arc como símbolo católico e nacionalista e também a figura de Clovis, o rei do império franco, responsável por unir os diversos povoados francos. Clóvis é uma figura bastante importante na cultura francesa, principalmente para os católicos. Ele foi responsável pela mudança religiosa nos territórios francos, pois se converteu ao catolicismo, abandonando os cultos nórdicos, germânicos, que predominavam em grande parte da população (DAVIES, 1993, pp.10-17). Quando Clóvis se torna cristão, ele promove o processo de cristianização em seu reino, de modo que sua figura para o FN tem importância em dois sentidos: primeiro, por representar um ícone do nacionalismo francês, por ter unificado os territórios francos e dado início ao que se tornaria futuramente a França. E, em segundo lugar, pelo forte apelo católico que Clóvis representa junto à ala católica do partido (DAVIES, 2010, pp. 576-587). Para Peter Davies, a elevação de Joana D’Arc e Clóvis como símbolos do partido corresponde à nova visão do FN sobre nacionalismo, como esses dois sujeitos representando o que há de mais puro e fiel à história e tradição da França (DAVIES, 1999, p. 20). Quanto ao nacionalismo do FN, o partido procurou posicionar-se em defesa dos cidadãos naturais franceses. Cabe pontuar que tal sujeito defendido pelo FN seria: o cidadão francês que proviesse de uma longa geração de franceses (podemos indicar aqui que isso seria o francês branco cauca-

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siano), católico, nacionalista, identificado com sua terra, um cidadão orgulhoso de suas raízes e identificado com a História da França, que valorizasse o desenvolvimento da nação acima da vontade individual (FN, 1973). Para Jean-Yves Camus, a questão da nação é algo central no FN, sendo o nacionalismo o principal ponto de referência ideológico. Podemos afirmar que a ideia da nação é o ponto vital, é a fonte principal de luta e é fundamental para o discurso do partido (CAMUS, 1989, p. 18). Dar ênfase à nação é a questão-chave para ocupar os espaços deixados pelos outros partidos. A defesa da nação como pauta da agenda política do FN tem dois objetivos: o primeiro é para legitimar a ideia de o nacionalismo pertencer ao FN, e quando outro partido utiliza dessa tática o FN sai em defesa da sua ideia acusando a oposição de apropriação política. O segundo objetivo é obrigar outros partidos a também fazerem um discurso que saia em defesa da soberania nacional (ibidem). Na concepção de nacionalismo para o FN, segundo Bruno Megret e George-Paul Wagner, a identidade francesa é mais que nacionalismo é um “instinto natural”. Um dos secretários do FN, Jean-Pierre Stirbois, chegou a afirmar, em um artigo publicado na revista do partido, a National Hebdo, que “o FN se tornou referência, quando tomou como prioridade a política nacional”, colocou que a “a nação é uma entidade política fundamental, é a crença de que o nacionalismo prospera em situações concretas, em que indivíduos e grupos se unem para sobreviver, proteger e se reproduzir” (STIRBOIS, 1988, p. 217). Para James Shields, o abandono do antissemitismo nos discursos e no posicionamento dessa nova extrema direita representada pelo FN demonstra uma evolução no sentido ideológico e discursivo, priorizando exclusivamente a defesa do nacionalismo, da identidade francesa. Na déca-da de 1990, a imagem do partido ficou cada vez mais acentuada à xenofobia.

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Nos discursos de Jean-Marie Le Pen, o partido deveria ser lembrado como “nacional, social e de direita popular” (FN, 1995) e também se colocava como “nem direita, nem esquerda — francês” (FN, 1994, p. 4). No que tange à principal característica do FN, sem nenhuma surpresa é a defesa incondicional do nacionalismo e da nação. Desde seu início, em 1973, até meados dos anos 1990, os líderes do partido coordenaram diversas campanhas políticas na defesa da nação, colocando como contraponto a visão internacionalista do socialismo (BIRENBAUM, 1992, p. 67). O anticomunismo e o antissocialismo têm sido uma estratégia consistente, a exploração do medo da população em relação à revolução bolchevique, serviu de terreno para o crescimento do partido e para marcar posições estratégicas (SIMMONS, 1996, p. 223). A campanha de Marine Le Pen foi pautada pelo nacionalismo. Durante seus discursos, seu grupo de campanha organizava o ambiente com enormes bandeiras da França, com símbolos dourados e representações de Joana D’Arc. O objetivo da organização da campanha do FN era criar um sentimento de patriotismo na população e, ao mesmo tempo, atribuir um sentido à campanha de Marine Le Pen. A intenção da equipe de campanha da FN era tentar simbolizar Marine Le Pen como heroína, salvadora da pátria, assim como Joana D’Arc, personagem histórica da França, símbolo do nacionalismo, do amor à pátria, da entrega e devoção à nação, símbolo da libertação do país. Joana D’Arc é considerada uma heroína na História da França e também figura importantíssima para a Igreja Católica francesa, sendo considerada a santa padroeira da França. Joana D’Arc foi chefe militar durante a Guerra dos Cem Anos, entre França e Inglaterra. Capturada e executada em 1431, tornou-se uma mártir do naciona-lismo francês, especialmente por ter devotado sua vida à defesa do país. A tentativa de ligar a figura de Marine Le Pen à de Joana D’Arc é uma tentativa do FN de colocar

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Marine Le Pen no estandarte do nacionalismo, a representação da devoção e patriotismo que a candidata a presidente teria. Durante a campanha para a eleição presidencial em 2012, Marine Le Pen, em seu programa político do FN, coloca em pauta alguns projetos para recuperar a econômica francesa e principalmente como objeto de recuperação da soberania nacional e monetária da França. Em cada ponto especifico do programa citado e das áreas especificas que o projeto do FN aponta, o programa político do partido traz uma visão nacionalista, segregacionista e protecionista. Em sua página de abertura, podemos verificar o posicionamento radical do partido, quando expõe a necessidade de uma defesa à soberania nacional e a um Estado forte, mobilizador, protecionista e principalmente militar: Totalmente desarmada por trinta anos de inatividade e recuos face à globalização, a França deve voltar ao jogo das nações. O emprego, a reindustrialização do país, a igualdade entre os franceses, o planejamento do território e a vitalidade dos serviços públicos dependentes. Em razão da nossa história nacional, é, naturalmente o Estado que será a ponta de lança do rearmamento da França: Um Estado forte capaz de impor sua autoridade sobre o poder do dinheiro, as suas comunidades e a seus feudos locais.13 (FN, 2012, p. 5)

Nesse mesmo sentido, o FN, ainda na abertura do seu programa de governo, explora a temática da soberania nacional e o desejo de retorno da França como potência militar e política:

——————— 13

Em tradução livre : “Totalement désarmée par trente d’ans d’inaction et de reculades face à la mondialisation, la France doit revenir dans le jeu des Nations. L’emploi, la réindustrialisation du pays, l’égalité entre les Français, l’aménagement du territoire et la vitalité des services publics en dépendent. En raison de notre histoire nationale, c’est naturellement l’Etat qui sera le fer de lance de ce réarmement de la France : un Etat fort capable d’imposer son autorité aux puissances d’argent, aux communautarismes et aux féodalités locales".

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Uma defesa nacional ao serviço de uma ambição: proteger a França, defender a liberdade das nações [...]. A França é uma das cinco potências diplomáticas e militares do mundo. Ora, nossos governos não consideram a Defesa nacional a não ser pelo ângulo das economias orçamentárias, ou da participação nas intervenções multinacionais frequentemente arriscadas, e nas quais o interesse nacional não é evidente porque não pode haver uma grande Nação sem uma grande Forças Armadas, nossa política de Defesa deve estar à altura da nossa ambição nacional e internacional. 14 (FN, 2012, p. 3)

Podemos perceber que o discurso nacionalista do partido só aumentou com o passar dos anos, enquanto, no cenário político, à medida que as tensões internacionais diminuíam — o fim da Guerra Fria e da riva-lidade com as nações socialistas —, os outros partidos não viam mais necessidade de discutir as questões supostamente “saturadas”, como o nacionalismo e o anticomunismo. O Front National, ao contrário dos outros partidos, reforçava o discurso do nacionalismo e, mesmo que as bandeiras de luta tenham se alterado, o partido continuou defendendo o patriotismo e o amor à França.

Conclusão No que tange às questões centrais da Frente Nacional, como o nacionalismo, a imigração, o evidente racismo contra imigrantes africanos, a xenofobia e aversão a culturas orientais, a postura conservadora em relação

——————— 14

Em tradução livre: “Une défense nationale au service d’une ambition: protéger la France, défendre la liberté des nations [...]. La France est l’une des cinq premières puissances diplomatiques et militaires du monde. Or, nos gouvernements ne considèrent plus la Défense nationale que sous l’angle des économies budgétaires, ou bien de la participation à des interventions multinationales souvent hasardeuses, et dans lesquelles l’intérêt national n’est pas évident. Parce qu’il ne peut y avoir de grande Nation sans grande armée, notre politique de défense se doit d’être à la hauteur de notre ambition nationale et internationale.

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ao feminismo ou união homoafetiva, ou seja, na linha autoritária e fascista do partido, podemos afirmar, a partir das leituras dos programas políticos do FN e dos discursos Marine Le Pen e dos militantes do partido, que a suavização do discurso do FN e seu crescimento representa hoje são algo muito mais perigoso e radical. Na questão da imigração o partido não só se manteve um crítico fiel, como potencializou a questão. Ela se tornou o principal mecanismo político do partido e tem papel central na campanha de Marine Le Pen. A imigração, assim como a questão econômica, foi remodelada, ampliou-se o foco do debate para um grupo especifico de imigrantes, os imigrantes de origem muçulmana. Finalmente, a questão-chave que buscamos identificar durante nosso percurso de pesquisa, que norteava a problemática principal que procurávamos responder, era a suposta existência de uma transformação no partido através da liderança de Marine Le Pen. Ao que parece, existem, sim, diversas mudanças e adaptações feitas por Marine Le Pen no FN, conforme pudemos observar.

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Estrema destra i nuovo fascisti: Casa Pound e a crítica ao fascismo sob a perspectiva de Antonio Gramsci Jefferson Rodrigues Barbosa*1

“Destra non conforme” é a terminologia empregada pela Casa Pound, organização de direita extremada que busca se apresentar como uma alternativa às formas de política partidária tradicionais. Segundo a terminologia utilizada por pesquisadores em publicações relevantes na atualidade, este grupo pode ser compreendido no âmbito conceitual dos “novos fascismos” (CAMELLI, 2015). A problemática desta pesquisa visa à análise da organização e agenda política do referido grupo político, que tem obtido destaque na conjuntura política italiana contemporânea. As lideranças da Casa Pound identificam suas propostas como herdeiras do que denominam “fascismo social”. Os fundamentos teóricos de Antonio Gramsci sobre o fascismo serão utilizados como modelo analítico para a investigação proposta. ——————— * Jefferson Rodrigues Barbosa é professor de Teoria Política no Departamento de Ciências Políticas e Econômicas (DCPE) da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp). E-mail: jrb@marilia.unesp.br.


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O anticapitalismo e a crítica aos métodos da democracia representativa apresentam-se muitas vezes como pressupostos de organizações extremistas de direita, que camuflam em seus discursos uma crítica romântica ao capitalismo, baseada em mitos fundamentalistas e valores moralizantes, como nacionalismo exacerbado ou a preservação das identidades culturais. Fundada desde 2003, a organização se destaca como uma das mais expressivas organizações da direita radical, sendo seu líder Gianluca Iannone. A Casa Pound se destaca entre as organizações da estrema destra na Itália pela tentativa de resgate das chamadas “políticas sociais do fascismo”, enfatizando em sua agenda política propostas no campo da habitação, saúde, segurança e emprego, somente aos cidadãos italianos, com um forte discurso antimigratório (GATINARA; ALBANESE; FROIO, 2013). A Casa Pound foi articulada incialmente por ocasião da ocupação de prédio estatal em Roma, na região central da capital, no bairro de Esquilino, por ativistas chauvinistas. A ocupação foi chamada de Scopo Abitativo, lá residindo famílias e, também, servindo como espaço social para promoção de cultura, como atividades recreativas, debates, reuniões, formando espaços de aglutinação baseados em valores coletivos, como senso de comunidade, o europeísmo, projetando a organização através de um dis-curso crítico à União Europeia e pela defesa do regionalismo. A organização se estruturou em Roma e tem fortes representações em muitas cidades ao norte, inicialmente; consolidou-se, na atualidade, firmando presença em grandes e médias cidades também ao sul do país. As ocupações que se sucederam na capital foram bem-sucedidas, denominadas Occupazioni no Conformi, e impulsionaram espaços de sociabilidades emergentes de caráter regressivo, bem como para produção cultural voltada a estreitar laços ideológicos e processos pedagógicos de educação política de reação, com fortes aspectos autocráticos, xenofóbicos,

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projetando-se na proposição de preservação e divulgação das ideias de Mussolini (CAMELLI, 2015). A cooptação juvenil, entretanto, também voltada a outras faixas etárias, é estimulada por espaços de propaganda relegado por muitos intelectuais e organizações tributárias do fascismo clássico. A cena musical, por exemplo, tem como destaque a banda ZetaZeroAlfa (ZZA), o vocalista da banda é Gianluca Iannone, liderança carismática da organização e com relações próximas a lideranças da direita radical que aterrorizou a Itália na década de 1970. Através de ocupações em prédios públicos (okupas), desenvolvimento de trabalhos sociais e defendendo em sua propaganda política questões relacionadas aos “direitos sociais dos trabalhadores brancos italianos”, destaca-se também o projeto Mutuo Sociale, que propõe novas leis de direito à habitação aos segmentos sociais mais pobres não migrantes. A defesa do que denominam “hipoteca social” está assentada na defesa do direito de cada cidadão italiano adquirir sua propriedade privada a preço de custo; esta nova política de habitação é um dos principais motes que têm dado visibilidade à referida organização (DI NUNZIO & TOSCANO, 2011). A crítica ao aumento do custo de vida, a defesa da família tradicional e a crítica às políticas migratórias são também pontos de sua agenda. Principalmente, por não estar circunscrita aos modelos partidários de organização e mobilização, o grupo em questão, atrai e inova ao surrupiar modelos e temáticas até então utilizados por agrupamentos de esquerda, como centros comunitários, trabalhos sociais, discursos em defesa dos trabalha-dores e de tônica antiburguesa. A retórica anticapitalista tem o potencial de ludibriar segmentos sociais frágeis diante da recessão europeia e encontra nos discursos dos militantes da organização fundamento para contradições da cotidianidade.

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A Casa Pound tem forte atuação, inclusive no meio estudantil, através do chamado “Bloco Studentesco”, influenciando também adolescentes e jovens em idade escolar. A organização tem iniciativas no campo da mobilização juvenil através de okupas, organização de shows e festivais de música e de outras iniciativas no campo da cultura, através da formação de quadros de militantes, destacando-se em manifestações públicas e criando novos vocábulos para a defesa de antigas ideias (GATINARA et al. 2013). Com pontos de agenda aparentemente progressistas, a Casa Pound exerce influência entre italianos desacreditados dos modelos políticos institucionalizados da disputa entre partidos na esfera eleitoral. Superando modelos de atuação de organizações herdeiras da cultura chauvinista italiana como a Alleanza Nazionale (NA), ou a Lega Nord, a organização investigada nesta pesquisa busca resgatar elementos do direito social fascista presentes em suas propostas. A referida organização é importante pela sua inserção no cenário político italiano nas últimas décadas, mas, sobretudo, porque articula novas táticas, agendas políticas e vocabulários para a proposição de uma inserção no campo da política e da cultura. Atuando como uma das mais articuladas organizações não partidárias na Europa, define-se como “fascista do terceiro milênio”, sublinhando uma continuidade ideal com o passado e, ao mesmo tempo, sinalizando sua capacidade de interpretar e intervir no pre-sente, em um universo discursivo e categorial fundamentado na suposta defesa do território, da identidade e da comunidade (GATINARA et al., 2014). O estudo de intelectuais e aparelhos privados de hegemonia, na sociedade civil, e as dinâmicas e configurações institucionais da sociedade política, serão privilegiados como objetivos centrais no campo de análise crítica proposto, através do mapeamento das atividades da Casa Pound, buscando a interpretação de táticas e estratégias de atuação.

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O jornal The Guardian, em edição de 6 de novembro de 2011, na reportagem “Fascistas da Itália permanecem fiéis a ideologia de Mussolini”, publicou entrevista com a liderança da organização Simone di Stefano que ressaltou a identidade entre “a visão de Estado, economia e modelo de sacrifício” de Benito Mussolini e a agenda defendida pela Casa Pound. Segundo a então vice-presidente da organização na entrevista referenciada, setores como transporte, energia, habitação e saúde deveriam ser regulados por um Estado de direito social; neste sentido, evidencia-se a proposição contrária à imigração sob o argumento do desemprego e dos baixos salários gerados pela concorrência de seus antípodas.1 O movimento se tornou partido político em 2009 e orienta tanto sua agenda política como seu programa com temas como o direito à moradia, o direito ao trabalho para todos os cidadãos e a repulsa à imigração. Com atualmente 99 sedes e 11 vereadores nos Poderes municipais, atualizando e recuperando temas da propaganda política do fascismo, sob nova configuração, a Casa Pound recupera, na interpretação defendida nesta proposta de pesquisa, os temas da política social dos fascistas — fator de influência sobre uma população carente de políticas públicas no contexto de desmonte das políticas de bem-estar social. A imagem de um partido com propostas de defesa da “comunidade nacional” tem surtido efeitos no crescimento de seus militantes (cerca de 20 mil em 2017). É o movimento europeu deste tipo que mais cresce, segundo dados apresentados em publicações recentes.2 ——————— 1

TOM, Kington. Ital's fascists sta true to Mussolini's ideology. The Guardian, 06/11/2011. Disponível em: <http://www.theguardian.com/world/2011/nov/06/italy-fascists-true-mussoliniideology>. Acesso em: 07/04/2016. 2

VERDÙ, Daniel. Fascismo renovado assume nova força na Itália. El País, 20/09/2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/17/internacional/1505669165_912633.html>. Acesso em: 22/01/2018.

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A origem de resgate do fascismo social e da necessidade de reatualizar o programa fascista é apontado em pesquisas sobre o tema: CasaPound Italia descreve-se como um "movimento fascista". A sua identidade está enraizada na tradição fascista italiana, da qual o grupo deriva seu estilo "revolucionário". Os objetivos e as ações do grupo são abertamente inspiradas pela ideologia fascista italiana: o CPI reivindica seu legado na "doutrina social" fascista e interpreta seu autoestilo neofascismo com base em uma parte cuidadosamente selecionada da legislação social produzida pelo regime fascista (GATINARA et al., 2013, p. 236)

O site oficial da Casa Pound Itália, na luta pela retomada de políticas inspiradas no fascismo social, divulga os temas do que denomina “batalhas políticas”. O apelo a temas ligados à defesa de políticas sociais tem destaque em sua propaganda e agenda: Batalha contra a imigração, contra a instalação de centros de acolhimento nos bairros, pela preferência nacional nos rankings para habitação social. Batalhas para a propriedade da casa ("Mutuo Sociale"), para acesso ao trabalho das mulheres em condições de maternidade ("Time for Be Mothers"), contra os abusos das agências de cobrança estatais que intimidam os cidadãos com demandas injustas.31

Gramsci e o fascismo pretérito: fundamentos para pesquisa As primeiras análises sobre a gênese e o desenvolvimento do fascismo na Itália foram realizadas por Antonio Gramsci. A pesquisa sustenta que muitos dos critérios analíticos e formulações conceituais de Gramsci continuam pertinentes para investigações de expressões de extremismo político, sobretudo nos aspectos de investigação das condições de gênese e função social desempenhada por concepções políticas chauvinistas, como o fascismo clássico e as manifestações contemporâneas, denomina-das de “novos fascismos” (GARCIA & JIMENEZ, 2001). ——————— 3

Disponível em: <http:// casapounditalia.org/p/le-faq-di-cpi.html>. Acesso em: 22/01/2018.

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Os escritos de Antonio Gramsci sobre o fascismo são o fundamento teórico que norteia esta investigação fundamentada no campo da Teoria Política, através da análise de fontes primarias e secundárias que focalizam o tema das manifestações de extremismo político na atualidade. As formulações sobre as condições da gênese do fascismo e a construção de proposições sobre estratégias e táticas para a compreensão e oposição ao fenômeno do fascismo. As reflexões e proposições de Gramsci foram-se sofisticando do contexto inicial de atuação de milícias em áreas rurais e urbanas da Itália até a articulação e estruturação dos fascio de conbattimento, organizados por Mussolini, como suporte paramilitar para o combate dos setores organizados da classe operária. Suas apreensões acerca da transformação do fascismo, de movimento político a partido de massas, acompanharam a dinâmica da conquista fascista da sociedade política e da sociedade civil. A análise de Gramsci como intérprete do fascismo é possível através do exercício de análise de sua ampla produção, em suas atividades como jornalista da imprensa operária e em sua produção investigativa durante os anos de prisão. Gramsci se destacou como ativista e dirigente antifascista e elaborador de uma interpretação da concepção sobre o fascismo original e distinta, nas primeiras décadas do século XX, da interpretação defendida pela Internacional Comunista. O aprofundamento da compreensão das transformações do fascismo de movimento político para partido político em hegemonia, assim como as proposições táticas e estratégicas para a contraposição ao fascismo podem ser abordados sob a análise da produção de textos de análise de conjuntura e de formulações teóricas elaborados pelo autor em questão. Em sua gênese como movimento, oriundo da insatisfação dos setores da pequena burguesia urbana e rural, sob as esquadras, foi instrumentalizado para a controle da sociedade política e da sociedade civil na Itália.

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Gramsci, nestes escritos, revela a compreensão da dimensão da necessidade de formulações e proposições direcionadas para a organiza-ção da ação direta, sugerindo a necessidade de articulação e formação de uma frente política de intelectuais e organizações políticas voltadas para o objetivo de reconstrução da democracia na Itália, sob a perspectiva de Frente Única antifascista. Gramsci compreendeu também que estes processos de configuração de Estados de Exceção, de regimes ditatoriais fundamentados em ideologias nacionalistas exacerbadas, poderiam ocorrer também em outros países, compreendendo a dimensão internacional desta nova fase das conflitos na Europa, através de formas particulares de manifestações de extremismo político e valores chauvinistas. Assim, muitas de suas reflexões sobre a gênese e características do fascismo italiano são pertinentes para a investigação das novas formações políticas de organizações tributarias ao fascismo, como a Casa Pound. Amadurecendo sua análise sobre o fascismo, após a primeira metade da década de 1920, com a hegemonia do regime, Gramsci observou gradualmente os resultados da própria modificação do regime autocrático, que efetivava o domínio sobre a sociedade civil e as instituições do Estado. Compreendendo a inviabilidade e a impotência da luta parlamentar contra o regime ditatorial, propôs a estratégia da guerra de movimento defendendo iniciativas para táticas organizativas de ação direta contra os fascistas. Estes elementos foram delineados no artigo “La crisis de la pequeña burguesia”, publicado em julho de 1924, no L’Unità.41

——————— 4

GRAMSCI, A. “La crisis de la pequeña burguesía”, L’Unità, 02/07/1924. In: SANTARELLI, E. Sobre el fascismo, 1979, pp. 151-153.

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No mesmo sentido, da tática de guerra de movimento de ação direta, Gramsci defende a organização do aspecto combativo dos antagonistas, que deveriam ampliar seu apoio entre os setores populares (FROSINI, 2014). Propõe uma fase preparatória de transição para a luta pelo poder, através de um trabalho de organização tática, agitação e propaganda orientado pela perspectiva de uma sublevação popular. Estes elementos foram explicitados no relatório enviado ao Comitê Central do PCI em agosto de 1924 e foi publicado no L’Ordino Nuovo em setembro de 1924 e no L’Unitá em agosto do mesmo ano sob o título “La crisis italiana”.51 Em 1925, contexto em que destacou em seus escritos a necessidade tática de organização e capacitação de células, da aquisição de armamentos e preparação de homens para a utilização de armamentos, Gramsci explicita proposição de elementos necessários para uma estratégia de organização do que ele denominou “insurreição”, a organização de oposição civil organizada contra os fascistas.62 Para Santarelli, Gramsci passou a concentrar-se, a partir da década de 1920, na dinâmica do fascismo como regime e nas características do novo bloco histórico de sistema de poder, opondo-se a interpretação das possibilidades das condições de uma insurgência imediata, em curto prazo, pois, para ele o fascismo representava “uma tática coordenada de luta” (SANTARELLI, 1979, pp. 21-22).

——————— 5

Ibidem, p. 165.

6

GRAMSCI, A. Después del discurso del 3 de enero. Situación política. Acta de la relación al Comitê Central del Partido Comunista del 6 de febrero de 1925 (título do editor). In: SANTARELLI, E. Sobre el fascismo, 1979, pp. 178-179.

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A elevação do nível analítico de Antonio Gramsci sobre a função social do Estado do fascista, em suas dimensões estruturais e superestruturais, foi apresentada em sua produção de maturidade, no período carcerário, em “Americanismo e Fordismo”.71 O entendimento de que a propaganda fascista se apresentava como tributária de um projeto de modernização, como saída para a reorganização da economia do Estado italiano, foi apreendido de forma pioneira por Gramsci, que apontou em 1934 o caráter plutocrático de segmentos apoiadores do regime. Estes elementos são apontados nos textos de Gramsci produzidos no período de seu aprisionamento pelo regime fascista; foram escritos nos denominados Cadernos do cárcere, o caderno 22, “Americanismo e Fordismo”.82 Para Gramsci, o regime fascista configurou-se como uma “via” de desenvolvimento para a modernização capitalista da Itália, através de uma “revolução passiva”, como já apontado. Para Coutinho (1989), mediante “restaurações” que acolheram certa parcela das exigências provenientes dos subalternos, o fascismo aprofundou o desenvolvimento do capitalismo na Itália; trata-se, portanto, de uma restauração do ordenamento social classista em detrimento dos trabalhadores, executado, entretanto, acolhen-dose como estratégia de obtenção de consenso reivindicações dos próprios trabalhadores, mas articulando também a pequena burguesia numa articulação de controle conduzida pela burguesia nacionalista e belicista. Segundo Coutinho (ibidem), o caso italiano é marcado por “restaurações com elementos progressistas”.

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GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, v. 4. Americanismo e Fordismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 276-277. 8

Ibidem, p. 278.

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O amadurecimento teórico de Gramsci direcionou-se no horizonte de organização de condições para o confronto com os fascistas numa lógica de guerra de movimento (FROSINI, 2014), de proposições de ações diretas contra o adversário, porém, não desvinculada da estratégia da política de Frente Única. Estas perspectivas foram explicitadas no encontro clandestino das lideranças comunistas italianas, após o regresso de Gramsci de Moscou e Viena, denominadas “Teses de Lyon”, nas quais foi defendida a interpretação do fascismo como um instrumento novo de domínio autocrático, de potencial internacional, realizando a unidade orgânica de todas as forças de reação chauvinista, controlando o Estado, sob bases autocráticas. Nesse sentido, as fontes documentais sobre o fascismo sob a perspectiva de um importante intelectual italiano são relevantes para o estudo do pensamento político contemporâneo e para investigações comparativas sobre as condições de gênese e a função social de ideologias segregadoras e antidemocráticas marcadas por concepções políticas extremadas, como o fascismo e os denominados “novos fascismos”, a exemplo da organização italiana contemporânea Casa Pound. A análise das propostas e formas de organização da Casa Pound, comparada às características do fascismo clássico, analisadas por Gramsci, é tema de relevância, principalmente no que concerne ao debate sobre a extrema direita na atualidade. A partir da análise da produção bibliográfica e jornalística de Antonio Gramsci, disponível para a investigação como fontes primarias disponíveis no acervo da Fondazione Intituto Gramsci, localizada em Roma, os arquivos do Fundi Antonio Gramsci Periodici possibilitam o acesso a artigos jornalísticos dos autores, ampliando o escopo de análise de fontes documentais não publicadas e de acesso limitado, em específico, os jornais: Avanti!, L’Unitá e Il Grido Del Popolo.

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Enzo Santarelli organizou, em 1974,91uma coletânea sobre escritos gramscianos que abordaram a temática do fascismo, intitulada “Sobre el fascismo”, publicada em Roma e tendo sua segunda edição no México, em 1979. A obra proporciona aos estudiosos do tema uma importante compilação dos principais textos — de caráter fragmentário — publicados nos jornais que resultam de embates políticos explícitos. Sistematizados, estes escritos oferecem compreensão mais articulada revelando o caráter ativo dos militantes antifascistas nos anos de consolidação do regime. Assim como evidenciam o desenvolvimento da percepção do amadurecimento intelectual de Gramsci e seu entendimento sobre o caráter internacional das novas formas de ideologias e regimes autocráticos chauvinistas como reação/restauração do capitalismo, sob a égide do espectro da crise societal que marcou as primeiras décadas do século XX. As dimensões analíticas dos textos gramscianos sobre o fascismo são divididas em três momentos de refinamento da compreensão de seus escritos sobre o fenômeno em questão (SANTARELLI, 1974). A investigação das fontes secundárias, articulada com a investigação de fontes primarias disponíveis no acervo da Fondazione Intituto Gramsci, amplia o acesso e a obtenção de materiais, muitos deles ainda inéditos em pesquisas nacionais, para um maior aprofundamento nos estudos sobre a contribuição de Gramsci, na análise e crítica ao fascismo. Como já mencionado, a pesquisa visa articular a análise gramsciana sobre o fascismo e, de forma comparativa, refletir sobre os elementos constitutivos desta ideologia com as políticas propostas pela organização contemporânea Casa Pound. Em específico: suas propostas políticas na área social como organização de caráter chauvinista na atualidade. Para isso, estão sendo

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SANTARELLI, Enzo. Sobre el fascismo. Roma: Editori Riuniti, 1974.

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mapeados documentos, discursos e propostas de lideranças da organização, através de dados disponibilizados em seu site102e publicações. O estudo contribuirá para uma análise, nos marcos das teoria política contemporânea, sobre as formas de organização propostas pela Casa Pound, frente às características do fascismo clássico estudado por Gramsci. Neste sentido, a análise da referida organização contemporânea pode ser problematizada como objeto de estudo dentro do debate sobre os “novos fascismos” na contemporaneidade (GARCIA & JIMINEZ, 2001; DI NUNZIO & TOSCANO, 2011).

Considerações: Gramsci e suas contribuições para a análise e combate do fascismo pretérito e contemporâneo No contexto de repercussão midiática e de pesquisas acadêmicas sobre movimentos e partidos portadores de ideologias chauvinistas na Itália generalizadamente denominados de extrema direita, recentes investigações (FASANELA, 2009; DI NUNZIO & TOSCANO, 2011) ressaltam a permanência de valores xenófobos, fundamentados em nacionalismos radicalizados, ou de matriz racialista, que continuam presentes como pilares dos valores antidemocráticos propagados por organizações políticas radicais, num contexto de crise política e econômica. Estes discursos de extremismo político estão articulados a um contexto de desemprego e problemas migratórios, adquirindo a propaganda política da Casa Pound receptividade e influência ao explorar temas como imigração, habitação e desemprego (CAMELLI, 2015). Destacam-se também o sentimento e os comportamentos defensivos, em linguagens e práticas que se apropriam de significados culturalistas enviesados, que forjam concepções de uma suposta “defesa da cultura”, da “identidade étnica” e da “comunidade nacional, ameaçada pelos imigrantes” (DI NUNZIO & TOSCANO, 2011). ——————— 10

Casa Pound Itália. Disponível em: <http://www.casapounditalia.org>. Acesso em: 23/01/2018.

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Dados e contextos são instrumentalizados pelas retóricas que inflamam o apregoado “desastre da política migratória europeia” que precisa ser reconfigurada, segundo o discurso de políticos e organizações congêneres, a exemplo, na Itália, das organizações políticas de extrema direita, como o partido Forza Nuova, ou das organizações radicais em seu discurso nacionalista, como a Liga Norte e Casa Pound. Ou, como no notório caso francês, do partido fundado por Jean Marie Le Pen, a Frente Nacional francesa (FN). Manoel Florentim (1994) destaca que os valores racialistas, que outrora sustentavam a corrida colonial e o racismo, no contexto contemporâneo são expressos através de discursos de “defesa das comunidades nacionais”. A noção schimittiana de “inimigo externo” tem também como variantes outros espectros, como o da ameaça da presença de estrangeiros, que muitas vezes não são estrangeiros, senão filhos e netos de imigrantes, nascidos muitas vezes em países da Europa e de regiões da América do Norte, tornando-se, entretanto, persona non grata, não considerados parte da comunidade nacional. Ressaltam lideranças políticas de destaque na atualidade, como a Casa Pound, que a questão não é de ordem racial, mas de “perda das identidades culturais”, dos custos dos serviços públicos, para aqueles que não são originários da comunidade nacional (DI TULLIO, 2006). Embora se constitua em um dos temas mais importantes da história contemporânea, com uma extensa e controvertida bibliografia nacional e internacional, o fascismo, como objeto de estudo acadêmico, recebeu nova retomada de interesse por parte de historiadores, filósofos e cientistas sociais nas últimas décadas do século XX, contando com novas perspectivas analíticas.

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No cenário internacional, com a atuação de movimentos genericamente denominados de extremistas de direita e com as vitórias eleitorais ou votos representativos em proporção numérica de políticos ligados a plataformas políticas chauvinistas e xenófobas, há grande repercussão nos meios midiáticos e isso leva pesquisadores a reverem as análises do conceito de fascismo, que eram antes relacionadas diretamente com o contexto do pósPrimeira Guerra Mundial (GATINARA et al. 2014).

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O populismo de direita e suas estratégias de sobrevivência na Alemanha: o Alternativ für Deutschland (AfD) Vinícius Liebel*1

Introdução Em 17 de janeiro de 2017, o Tribunal Superior Alemão (Bundesverfassungsgericht) decidiu pela não proibição do NPD (Nationaldemokratische Partei Deutschlands), julgando que o partido, declaradamente de ideologia racista e herdeiro do NSDAP, não constituiria uma ameaça real ao sistema democrático. A decisão, baseada principalmente na parca representatividade eleitoral do NPD, desconsiderou traços fundamentais que circundam o partido, como sua ação constante no fomento de ações violentas e discriminatórias ou mesmo elementos marcantes de sua ideologia, como a ideia de que a democracia deve coincidir com a comunidade do povo — Volksgemeinschaft —, o que excluiria os “racialmente não conformes” do sistema, uma expressão da unidade entre povo e Estado (Einheit von Volk und Staat). ——————— * Vinícius Liebel é historiador, doutor em Ciência Política pela Freie Universität Berlin (FU-Berlin), com bolsa integral do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD). Professor adjunto de História Contemporânea da UFRJ. Pesquisador associado ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos NIEJ-UFRJ e do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC-UFF).


VINÍCIUS LIEBEL

A decisão foi criticada por analistas alemães, sobretudo por dar salvo-conduto a discursos de ódio e preconceituosos no campo político alemão. Esse juízo não encontra apenas no NPD seu efeito, mas também em uma série de movimentos e partidos de caráter populista de direita que têm subido o tom de suas falas nos últimos anos. Ainda que o cenário não seja o de domínio da opinião pública por esse tipo de discurso, não há dúvidas de que ele vem-se tornando cada vez mais comum, naturalizando algumas posições que possibilitam o crescimento desses movimentos e partidos. De fato, uma das argumentações mais utilizadas é a de que esse tipo de decisão jurídica, somado a uma série de espaços que vêm sendo abertos aos defensores de discursos tidos como problemáticos à democracia, torna naturais e aceitas as práticas e ideias racistas, autoritárias e preconceituosas. A publicação do livro de Thilo Sarrazin, Deutschland schafft sich ab: Wie wir unser Land aufs Spiel setzen (2010), pode ser apontada como o ponto de virada para essa conjuntura no passado mais recente da Alemanha. Preocupado com o que chama de “conquista da Alemanha através da fertilidade”, o autor denuncia um crescimento desproporcional entre as camadas alemã e turca em seu país, o que, aliado a fatores “hereditários e de herança cultural”, promoveriam uma desgermanização cultural e racial da Alemanha. O livro é um panfleto pela contenção da imigração em direção à Alemanha, e um apelo pela assimilação por parte dos imigrantes legalizados dos valores, língua e legislação alemães. A linguagem implícita promove a diminuição dos imigrantes, e não são raros os elementos francamente eugenistas utilizados no desenvolvimento da argumentação. O lançamento do livro causou grande alvoroço, trazendo, de forma bastante contundente, o debate sobre a assimilação dos imigrantes na sociedade alemã, em particular os de origem árabe e turca.

O POPULISMO DE DIREITA E SUAS ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA NA ALEMANHA... | 106


VINÍCIUS LIEBEL

Os efeitos práticos foram o de uma bola de neve. A população passou a falar mais abertamente sobre o tema, e não raras vezes o preconceito era tomado como uma opinião válida. Pequenos e inexpressivos grupos extremistas, nacionalistas e etnopluralistas não eram uma novidade na cena alemã, mas o Sarrazinismo (BUTTERWEGGE, 2013) iniciou um novo processo de naturalização desses discursos, abrindo espaço para movimentos organizados que contestavam a possibilidade dos imigrantes de manterem suas heranças culturais e religiosas em solo alemão. O principal deles, o Pegida, nasceu em Dresden, em 2014. Sigla para “Patriotas Europeus Contra a Islamização do Ocidente” (Patriotische Europäer gegen die Islamisierung des Abendlandes), o movimento surgiu na internet e deve muito de sua rápida ascensão à rede. Já em dezembro de 2014, o Pegida alcançou seus maiores resultados, conseguindo angariar mais de 10 mil apoiadores em algumas de suas manifestações na cidade de Dresden, onde em janeiro daquele ano reuniu cerca de 25 mil em uma única ocasião, na ressaca dos ataques à redação do jornal satírico Charlie Hebdo.1 A relação com movimentos e grupos de extrema direita é sempre negada pelos organizadores, mas a presença de indivíduos ligados a eles nas fileiras do Pegida é frequentemente levantada.2 Além do Pegida, outros grupos da extrema direita e pautados pela islamofobia e por ideais de pureza racial e/ou cultural surgem e ganham força no país como reflexo do “Movimento Sarrazin”, como são os casos do Hooligans gegen Salafisten (HoGeSa), o German Defense League (GDF) e o Identitäre Bewegung (Identitäre). ——————— 1

Ver: <http://www.sueddeutsche.de/politik/zulauf-fuer-pegida-protestieren-in-dresden-gegenueberfremdung-1.2301366>. 2

Por exemplo, em HUESMANN (2015). Disponível em: <http://blog.zeit.de/stoerungsmelder/2015/01/13/pegida-in-duesseldorf-nazis-hools-und-rechtspopulisten_18174>. E também em EICHSTÄDT (2015). Disponível em: <https://www.welt.de/politik/deutschland/article136047773/Das-Nazi-Vokabular-der-Pegida-Wutbuerger.html>.

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Entretanto, ainda que esses grupos e movimentos tenham ganhado projeção e, principalmente, atenção midiática nos últimos anos, suas ideologias e ações flertam demais com o extremismo e o radicalismo para arrebanhar seguidores de forma massiva. A opinião pública alemã, ainda que aberta a mostrar, debater e estudar esses fenômenos, não lhes imputa, em sua maioria ao menos, a importância atribuída a atores relevantes na arena pública. Além disso, sem um verniz institucional que lhes garanta uma representatividade “oficial” e uma presença permanente no campo público, esses movimentos perdem peso e espaço políticos, sendo percebidos como grupos ativistas extremistas de relevância efêmera. Diante desse cenário, um vácuo parecia ter surgido no campo político alemão. Parcelas significativas da população que simpatizavam ou que buscavam soluções e amparo diante das ideias propagadas por esses movimentos perceberam-se sem representação. Uma resposta a seus medos e anseios não era oferecida pelos partidos de cunho liberal e/ou conservador, como o FDP (Freie Demokratische Partei), a CDU (Christlich Demokratische Union), e muito menos por partidos programáticos, como o Partido Verde (Die Grünen). Indivíduos que se sentiam traídos pela política, amedrontados pelo crescimento no número de imigrantes, vulneráveis pelas crises econômicas que atingiram a Zona do Euro, enfim, deslocados e isolados em uma sociedade em mutação, formavam um grupo à deriva no espectro político alemão. Mas não só esses indivíduos, os “ameaçados”, compõem esse grupo disforme de potenciais eleitores populistas (PRIESTER, 2012). A eles se juntam também indivíduos que podem ser denominados de “inconformados”, ou seja, que não se encontram representados na sociedade ou que não compreendem a incapacidade de outros indivíduos de conquistar, por méritos próprios, uma melhor posição na sociedade, ou ainda que se sentem insatisfeitos com a forma de aplicação das verbas provenientes dos

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impostos, que se posicionam contra qualquer forma de coletivismo, enfim, indivíduos de diferentes visões, mas que se veem sub-representados no campo político. Em sua grande maioria, esses indivíduos se reportam a uma mentalidade (ou estilo de pensamento, em termos mannheimianos) conservadora (MANNHEIM, 1984), o que não implica necessariamente sua participação na arena pública no campo da extrema direita ou da direita radical, mas os torna seu alvo mais evidente. Em 2013, diante desse contexto, é fundada a Alternative für Deutschland (AfD), um partido que se apresentava como uma opção que fugia à política tradicional da Alemanha e que se propunha conservador, liberal e nacionalista, colocando-se à direita da CDU e visando aos eleitores que sentiam que o partido da chanceler Angela Merkel havia perdido sua vocação conservadora, especialmente em alguns temas-chave, como a imigração e a economia doméstica e europeia.

Fundação, consolidação e guinada à radicalização Com uma conferência realizada no Hotel Intercontinental em Berlim, no dia 14 de abril de 2013, nascia o Alternative für Deutschland, um partido que se apresenta como diferente, fora da estrutura da velha política e de seus vícios. Em suma, como todo o espectro da Nova Direita, busca uma imagem de rompimento com a política tradicional. No momento de sua fundação, entretanto, a AfD parecia seguir um rumo e um discurso diferentes. Aproveitando-se da onda levantada pela polêmica do livro Deutschland schafft sich ab!, um grupo de pessoas reunidas em torno de um círculo de professores universitários se propôs a “ouvir” a voz das ruas e formar um partido que desse representatividade aos que concordavam com Sarrazin em suas colocações. Em uma pesquisa setembro

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de 2010,3 no auge da polêmica em torno de seu livro, um total de 18% da população alemã se declarava disposta a seguir um partido fundado por ou que se pautasse pelas ideias de Sarrazin. No espectro ideológico, isso significava um partido que estivesse à direita da CDU e à esquerda do NPD. Essa situação possibilitou a descrição da AfD tanto em termos de uma CDU “conservadora de verdade” quanto de um NPD light, um trunfo retórico que logo traria resultados eleitorais. A primeira formação da AfD, entretanto, prometia um partido muito mais próximo da CDU, direcionado antes à discussão dos rumos econômicos da Alemanha do que de sua identidade ou da questão dos imigrantes no país. Não estava muito longe de Sarrazin, que havia lançado poucos meses antes seu segundo livro de controvérsias, Europa braucht den Euro nicht (2012), no qual imputava a culpa da crise financeira europeia à busca irrefletida pela salvação do Euro. A conferência de fundação da AfD se centrou precisamente na política macroeconômica da zona do Euro, e elevou o professor de Macroeconomia da Universidade de Hamburgo, Bernd Lucke, à posição de liderança central do partido. Na primeira eleição interna, um triunvirato se ergue na condução do partido: o próprio Bernd Lucke, Frauke Petry (acadêmica e empresária) e Konrad Adam (reconhecido jornalista no país). Já nas eleições nacionais de 2013, a AfD conseguiu um número expressivo de votos, levando-se em consideração que se tratava de um partido recém-fundado, mas não o suficiente para alcançar uma cadeira no Bundestag. No ano seguinte, na Eleição Europeia, os resultados foram melhores, e o partido atinge os votos necessários para exercer representação no Parlamento Europeu.

——————— 3

Disponível em: <http://www.faz.net/aktuell/politik/inland/meinungsforschung-umfrage-sieht18-prozent-fuer-sarrazin-partei-11040003.html>.

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O ano de 2015 marca uma virada na direção da AfD, determinada pela política interna e os resultados das escolhas de sua nova cúpula dirigente. Nesse processo, o partido passa de um populismo de direita moderado com foco na economia para um populismo de direita nacionalista radical, com alguns de seus principais membros desempenhando um papel de agitação política (FUNKE, 2016, p. 73 et seq.). É importante aqui deixar clara a definição de Sven Schönfelder, que, ao abordar o populismo de direita e sua ação na arena pública, argumenta que

“Direita” não significa aqui (no termo Populismo de Direita) necessariamente “extremista de direita”, no sentido do termo usado pelo Departamento de Proteção à Constituição do país e dos estados, o qual evoca ações e esforços que se voltam contra a livre e democrática ordem fundamental da República e que se pautam por um pensamento nacionalista, racista e voltado a uma “comunidade do povo” (volksgemeinschaftlich). Pelo contrário: partidos populistas de direita, como regra, não são classificados como antidemocráticos — i.e. contrários ao sistema — ao menos não do ponto de vista normativo. Os muitos exemplos de partidos populistas de direita que tiveram sucesso mostram que esse grupo não elimina as estruturas democráticas, mas procuram se servir delas para controlá-las de forma quase autoritária. (SCHÖNFELD, 2013, pp. 99-100)

Nesse sentido, é possível caracterizar a AfD, em seus primeiros dois anos, como um partido populista moderado, voltado à legalidade e pautado por valores democráticos. Entretanto, a eleição interna que deu a Frauke Petry e Jörg Meuthen a liderança do partido e retirou Bernd Lucke de cena, levando-o a fundar um novo partido dissidente,4 é reflexo de alterações mais ——————— 4

Em julho de 2015, Lucke e outros dissidentes fundaram o ALFA (Allianz für Fortschritt und Aufbruch), que meses mais tarde, por questões legais de nomenclatura, mudou seu nome para LKR (Liberal-Konservative Reformer).

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profundas na dinâmica partidária, uma dinâmica que tem na “Resolução de Erfurt” sua base programática. O intento fundamental da resolução foi eliminar os obstáculos que se apresentavam à ascensão de discursos e ações mais radicais no interior da AfD, retirando os moderados e neoliberais de suas fileiras e dando voz a atores mais ligados ao (etno)nacionalismo e às visões völkish. No documento, a Resolução de Erfurt deixa clara a guinada proposta: O projeto Alternativ für Deutschland está em perigo. Os cidadãos nos escolheram porque esperam que sejamos diferentes dos partidos estabelecidos: mais democráticos, mais patriotas, mais corajosos. [...] Um sem número de nossos membros ainda compreende a AfD, contra toda tendência de estreitamento, como alternativa fundamental, patriótica e democrática aos partidos estabelecidos, como um movimento de nosso povo contra os experimentos sociais das últimas décadas (mainstream de Gênero, Multiculturalismo, arbitrariedade na Educação, etc.), como movimento de resistência ao esvaziamento da soberania e da identidade da Alemanha, como um partido que tem a coragem de se posicionar pela verdade e pela livre expressão. (ERFURTER RESOLUTION, apud FUNKE, 2016, p. 74)

A resolução foi uma iniciativa dos principais conselhos estaduais do partido, tendo a assinatura maciça de atores de relevância na estrutura partidária e em sua representação público-midiática. Alguns desses líderes passam a agir de forma mais radical também em suas declarações, demarcando posição na arena pública. Alexander Gauland, de Brandenburg, por exemplo, falou contra o Islã, contra a memória que se criou do Nazismo e a favor do Pegida e de uma militarização da Alemanha.5 O político desencadeou também uma breve controvérsia sobre racismo e a desconfiança dos alemães frente aos imi-

——————— 5

Disponível em: <http://www.zeit.de/2016/17/alexander-gauland-afd-cdu-konservatismus>.

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grantes, citando como exemplo o jogador da seleção nacional Jérôme Boateng, que tem pai ganês. Para Gauland, “as pessoas o acham um bom jogador de futebol. Mas não querem ter um Boateng como vizinho”.6 Outro membro do AfD que passou a frequentar as manchetes dos jornais com suas ações e declarações foi o líder do partido em SachsenAnhalt, André Poggenburg. Ao utilizar abertamente vocabulário e retórica que remetem ao período nazista,7 Poggenburg se situa em um campo minado da arena pública alemã, deliberadamente se projetando como representante de uma parcela da população que flutua entre o revisionismo histórico, o negacionismo e a apologia do Nacional-socialismo. Da mesma forma — e até mais contundente —, o político da Turíngia, Björn Höcke, utiliza slogans que remetem ao Terceiro Reich (uma Alemanha de mil anos) e critica os memoriais em homenagem às vítimas do Holocausto, alegando que “Nós alemães, o nosso povo é o único povo do mundo que erigiu um memorial da vergonha no coração de sua capital”. 8 As mudanças discursivas pareciam ter surtido um efeito positivo, ao menos em termos eleitorais. O maior sucesso da AfD 9 nesse campo ocorre já em março de 2016, nas eleições regionais de Sachsen-Anhalt, onde atinge ——————— 6

Disponível em:<http://www.zeit.de/politik/deutschland/2016-05/alexander-gauland-afd-vorabmeldung>. 7

Por exemplo, ao classificar os militantes esquerdistas radicais como “excrecências no corpo da nação”, uma retórica de metáforas médico-biológicas que é intimamente ligada ao discurso nazista. Disponível em: <http://www.faz.net/aktuell/politik/inland/sachsen-anhalt-afd-landeschef-poggenburg-nutzt-ns-vokabular-14835065.html>. 8

Disponível em: <http://www.stern.de/politik/deutschland/bjoern-hoecke--seine-fuenf-provozierendsten-auftritte-7325160.html>. 9

Até abril de 2017. Este texto foi redigido antes das eleições nacionais de 2017, não contando, portanto, com o desempenho da AfD neste pleito. Pesquisas de março de 2017, entretanto, davam conta de que a AfD, que já havia chegado a ocupar a segunda colocação nas pesquisas, encontrava-se com cerca de 7% das intenções de voto, atrás de CDU, SPD, Esquerda e Verdes. Disponível em: <http://www.zeit.de/politik/deutschland/2017-03/afdwahlumfrage-niedrigster-stand-fluechtlingskrise-frauke-petry>.

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24% dos votos. Uma pesquisa com os eleitores da Alternative (apud FUNKE, 2016, pp. 80-81) mostrou que as motivações para esses eleitores que escolheram a AfD variaram de desapontamento com os partidos tradicionais (64%), sentimento de exclusão do crescimento econômico (73%) e a percepção de perda individual no desenvolvimento social (47%). Em síntese, o que moveu o sucesso do partido foram o ressentimento e a frustração de parcela do eleitorado. O discurso mais incisivo, a ligação com movimentos de massa de direita e a tática da agitação alteraram o caráter do partido, que passou a investir na retórica vazia e nas manchetes sensacionalistas em detrimento de um programa partidário. O que transparece dessa ala do AfD que ascende e se torna hegemônica em 2015 (e que, é necessário frisar, já existia antes, mas era eclipsada por discussões econômicas e políticas) é que as estratégias expressivas que são por ela empregada promovem um enquadramento discursivo e metafórico que visa, a um só tempo, a propagação de um discurso de ódio camuflado de um verniz político respeitável, a diminuição da vigilância contra esse discurso através do meio (partido político) pelo qual é propagado, e a transformação desses pontos controversos em temas de debate aceitáveis na arena pública.

Estratégias discursivas e visuais O grande ponto de sustentação dessa estratégia não se encontra em uma ideologia formulada ou em uma ação pragmática, mas em uma aglutinação de temas não relacionados que se vinculam mais no âmbito subjetivo do que no racional. Trata-se de grandes temas que formam uma rede de preocupações do “homem comum” alemão, moldados por uma retórica populista e emocional que apresenta, em geral, soluções de cunho autoritário ou mesmo violento.

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O primeiro e maior aglutinador desses temas é a islamofobia, ponto central de toda a retórica da AfD pós-Erfurt. Seguindo a tendência demarcada pela Nova Direita francesa, esse ponto é fundamentado em um discurso pela manutenção de uma hegemonia cultural no país, pela salvação de uma cultura que deveria ser defendida a todo custo e que proclamaria uma suposta pureza do povo, com base na tradição, na história e na memória. Esses pontos, entretanto, na composição da teia discursiva que se tece, estão intimamente ligados à “raça” e à nacionalidade dos indivíduos, fundamentando uma retórica sutilmente manipulada para promover valores essencialmente racistas e antimigratórios, transformando-os em discursos politicamente aceitos. Na prática, os objetivos se expressam no domínio intentado de campos metapolíticos, na promoção do discurso de defesa cultural e arregimentação de simpatizantes em diferentes campos da sociedade, na formatação de uma mentalidade dominante que, se não aceita completamente esse discurso, ao menos o compreende como não racista e apoia seu direito de expressão. Em suma, incutem-se elementos culturais à essência dos indivíduos para, em seguida, negar a mesma essência em indivíduos externos a essa “comunidade do povo”. Esse processo pode ser caracterizado como [...] a troca do conceito de raça, o qual era característico da velha Direita, por aquele de Kultur (cultura). A Substancialização da cultura (história, língua...) é uma característica essencial das novas Direitas. No conceito de cultura etnocentricamente definido sobrevive o paradigma da velha Direita. Cultura passa a ser entendida como uma definição autoritária de esboços de sentido totalizantes que representam o destino coletivo de um povo. (RENSMAN et al., 2011, p. 175)

Estruturas discursivas como aquela apresentada por Sarrazin e sua defesa da Alemanha contra a islamização se mostram, dessa forma, uma ponta de lança na conquista desses espaços metapolíticos. Ganham representatividade no campo público e espaço nos grandes veículos de comunicação, disseminando valores e narrativas. Nesse processo, a mídia tem um

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papel ativo e fundamental para o sucesso dessa estratégia. Isso porque os meios de comunicação de massas, como salienta Thomas Meyer (2003, pp. 263-264), impõem dois sistemas reguladores ao campo do político. Em primeiro lugar, o sistema regulador da lógica seletiva, que determina o que tem importância suficiente para ser selecionado e mostrado ao público. Essa lógica, ainda que seja pretensamente pautada pela relevância da manchete, frequentemente é guiada por fatores econômico e/ou de audiência. O segundo sistema é o da regulação da apresentação das notícias, que rege a forma como a notícia será passada ao público receptor. Essa lógica é determinada pela clareza e eficácia na transmissão, mas também pela atratividade e pela criação de um moto-contínuo, que se direciona à procura eterna por mais informações sobre o tópico e que, de certa forma, cria uma fidelização do leitor/espectador. É aqui que a utilização de imagens e linguagem sensacionalistas, por exemplo, garantem a continuidade da audiência e o seu retorno em busca de mais informações que alimentem a paranoia, o ódio e/ou a ansiedade que determinadas notícias criam. É também o fator que estimula a simpatia e o interesse em determinado tópico, personagem ou ideia. O olhar que o meio impõe tem, é claro, influência sobre a recepção. Isso é demonstrado por Fabian Virchow (2013) através de uma análise do caso da cobertura sobre a publicação do primeiro livro de Sarrazin pelo jornal Bild, de Berlim: Com a popularização do panfleto político propagandístico de um Thilo Sarrazin, contendo uma quantidade de afirmações seletivas sobre o mundo e coligando definições biológicas com expressões racistas-culturais e uma visão elitista sobre as ‘classes baixas’, o jornal Bild colaborou particularmente para a disseminação massiva de modelos interpretativos social-racistas. O sucesso do livro (Deutschland schafft sich ab) não pode ser explicado sem a representação de Sarrazin como um ‘destruidor de tabus’ nas páginas do diário, e remete a estruturas de preconceito e disposições discriminatórias largamente difundidas na sociedade. (VIRCHOW, 2013, p. 233)

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A imprensa, dessa forma, tem a capacidade de expor um tema e torná-lo social e politicamente aceito, em particular com a reverberação de estruturas imaginárias e culturais anteriormente silenciadas ou adormecidas. Outros elementos da sociedade podem ainda ajudar a promover essa ocupação dos espaços meta-políticos, como produtos ou agentes culturais. No caso da Alemanha, por exemplo, figuras como o cantor Xavier Naidoo ou a ex-jornalista Eva Herman ajudam a difundir ideias e imagens “racistas, homofóbicas, antifeministas e conspiracionistas”, transformando essa retórica em um artigo socialmente aceitável e tornando-os multiplicadores do discurso da nova direita (BRUNS et al., 2015, p. 32). A utilização do poder disseminador das mídias se dá, assim, através da intercalação de declarações polêmicas e problemas percebidos como reais, próximos e urgentes pelos indivíduos que são alvo dos políticos populistas, ou seja, aqueles que se percebem como excluídos ou desassistidos pelo Estado e que não se veem representados pelos partidos políticos tradicionais, os “excluídos” e os “inconformados”. Com essa intercalação, temse uma exposição constante da marca do partido e de seus afiliados conjugada a um apelo a seus possíveis eleitores. Se a islamofobia ocupa, portanto, um lugar central na estrutura discursiva da AfD e de outros grupos de extrema direita, ela se apresenta ao público tanto na forma de argumentações simplistas e alarmistas, apontando, por exemplo, o crescimento do número de muçulmanos e de imigrantes em comparação com os de alemães nativos,10 quanto na forma de palavras de ordem e expressões radicais e autoritárias, como no caso da controvérsia em torno de Beatrix von Storch e Frauke Petry no auge da crise dos refugiados. Na ocasião, Frauke Petry defendeu o uso de armas de fogo pelo ——————— 10

Por exemplo, em: <https://www.welt.de/newsticker/dpa_nt/infoline_nt/brennpunkte_nt/article156393161/Muslimische-Einwanderung-bedroht-Europa.html>.

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controle de fronteiras, e sua colega, membra do Parlamento Europeu, teria concordado com o uso das armas inclusive contra mulheres e crianças. Diante da imensa repercussão negativa, Storch se viu obrigada a se retratar, colocando a culpa em um “problema técnico” com sua internet.11 Mesmo com a retratação, não há dúvidas de que as falas, ainda que demonstrem um descaso com os direitos humanos, reverbera entre uma camada específica da população, preocupada e alarmada com a situação e com os noticiários. Mensagens simples, simplistas e diretas, buscando soluções rápidas, mesmo que praticamente impossíveis de serem implementadas, são parte da estratégia de retórica populista da AfD. Visualmente, nos materiais de campanha e de propaganda do partido, o elemento islâmico é frequentemente representado como suspeito e potencialmente perigoso, e a burca é elemento de destaque nessa iconografia, como o material abaixo mostra:

Figura 1. AfD. Der Islam Gehört nicht zu Deutschland. Panfleto, 2016.

——————— 11

Disponível em: <http://www.spiegel.de/politik/deutschland/afd-beatrix-von-storch-wird-imnetz-verspottet-a-1076209.html>.

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A imagem conjugada apresenta, sob o fundo azul típico da AfD e com seu logo da seta indicando a direita na parte inferior, duas fotografias que retratam muçulmanos. A da esquerda, em formato de cabeçalho, mostra um homem de barbas longas e óculos escuros com um sorriso nos lábios e vestindo uma taqiyah (ou kufi). À sua frente, uma mulher completamente coberta por uma burca e com apenas seus olhos aparentes. A composição performativa das expressões do homem indica uma tendência interpretativa ligada ao preconceito com os imigrantes e grupos “alheios” à sociedade “tradicional”, uma estrutura imaginária que remete à iconografia antissemita da primeira metade do século XX. O sorriso lascivo, os óculos escuros que esconderiam as falhas de caráter, a barba mal aparada que denota desleixo: tudo isso faz referência a um suposto elemento nocivo no interior da sociedade, um corpo estranho a ela. No caso da mulher, os olhos, a única parte evidente, mostram um olhar duro e firme, que pode também ser interpretado como raivoso. A imagem da direita, apesar de não mostrar as feições do muçulmano retratado, apresenta-o em uma mesquita, isolado e em oração. A ideia que se passa é de uma sociedade dentro da sociedade, um Estado (islâmico) isolado e encalacrado no Estado alemão. Na iconografia racista, detalhes como esses apresentam sentidos bastante diretos, que respondem ao preconceito e ao medo de forma eficaz.12 Assim, o possível eleitores da AfD podem ser atingidos por essas imagens em seu racismo (pessoal ou estrutural), seu preconceito, seu medo ——————— 12

O medo e o preconceito com os quais essas imagens dialogam têm sido produzidos e difundidos pela imprensa por anos, de forma sistemática, ao reportarem “o perigo islâmico”, o terrorismo e o “choque de civilizações”. Monika Schwarz-Friesel (2014), em artigo que analisa mais de 100.000 reportagens da imprensa alemã sobre o fenômeno do Terrorismo entre os anos de 1993 e 2011, aponta a composição imaginária que é utilizada em sua descrição, de carga fortemente emocional, que vão desde a alegoria da Hidra até a metáfora do câncer. Esse substrato de medo e de insegurança é que sustenta parte da retórica da AfD e de outros grupos de extrema direita na temática da islamofobia.

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ou seu desconhecimento. E se acaso as imagens não forem suficientes para transmitir a mensagem, o slogan que as acompanha é claro e direto: o Islã não pertence à Alemanha (Islam gehört nicht zu Deutschland). Se a iconografia racista voltada aos muçulmanos tem uma grande correspondência com aquela empregada por grupos e partidos antissemitas na primeira metade do século passado, é natural que o antissemitismo também seja um elemento presente na base da AfD. Isso é denunciado com certa regularidade por analistas e pesquisadores da extrema direita, mas frequentemente negado, como era de se esperar, por membros da cúpula do partido. A ginástica retórica para desviar as atenções sobre essas acusações são várias, desde a negativa pura e simples até a ideia de que a AfD é na verdade “uma das poucas garantidoras da vida judaica, em um tempo de imigração ilegal antissemita para a Alemanha”. Aqui, Frauke Petry (2017) efetua uma relação direta entre o imigrante (normalmente de origem árabe ou turca) com o antissemitismo.13 Em sua islamofobia (também nunca admitida abertamente), o partido estaria defendendo a vida dos judeus na Alemanha, tentando evitar que elementos potencialmente nocivos e perigosos aos judeus entrassem no país. Em uma argumentação ilógica, a defesa do fim da imigração de árabes muçulmanos se transforma em atestado de defesa dos judeus, isentando o partido de acusações de antissemitismo, como se a islamofobia excluísse automaticamente o antissemitismo. Exemplos de expressões de partidários e de estratégias discursivas e visuais atestam que o antissemitismo também se faz presente na base do partido. Um exemplo claro é a propaganda contra o social-democrata Martin Schulz, quando de seu anúncio de candidatura à chancelaria, em 2017:

——————— 13

Disponível em: <https://www.welt.de/politik/deutschland/article163446354/AfD-ist-einer-derwenigen-Garanten-juedischen-Lebens.html>.

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Figura 2. AfD. Fakenews auf zwei Beinen. Panfleto, 2017.

No panfleto, lê-se: “Hype encenada, conteúdo encenado, candidato encenado”. E em destaque: “Fakenews sobre duas pernas”. No balão de diálogos, o social-democrata fala: “Ligue já! Ligue Martin!”, o que produz a sentido de um anúncio comercial. O fundo, como na imagem anterior, é preenchido com o azul do partido, com o logo localizado na parte inferior à direita. O que faz desse panfleto uma peça antissemita, entretanto, não são os elementos textuais ou sua configuração de anúncio comercial, mas sim tudo isso conjugado à adulteração da imagem do socialdemocrata produzida, como a comparação da imagem original com a utilizada deixa claro:

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Figura 3. Imagem original.

A imagem original foi retirada da página da Wikipedia referente ao candidato do SPD, e a adulteração foi amplamente denunciada na internet.14 No processo de mascaramento, alguns elementos são particularmente pertinentes, como a diminuição drástica da boca e dos dentes (produzindo o que é conhecido como “dentes de lebre”), uma leve diminuição da testa e do queixo e, em especial, o afunilamento do nariz, criando o efeito de um nariz adunco ou em “forma de gancho”. Todos esses pontos são listados na produção de representações francamente antissemitas, muito difundidas no período nazista e em sua imprensa (LIEBEL, 2011; 2014). Esses elementos, em particular o nariz semita, tornam-se um signo que reúne em si, nas representações racistas, valores e características pejorativas, conduzindo o sentido da imagem para aqueles que compartilham aquela visão. O antissemitismo fica evidente na manipulação da fotografia para que ela se conformasse ao reconhecimento desses sinais e a essa visão de mundo, compartilhada por parte dos eleitores da AfD. ——————— 14

A imagem está disponível em: <http://uebermedien.de/14394/die-afd-hat-ein-naeschen-fuerantisemitismus>.

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Outro ponto constantemente levantado pelos políticos da AfD e que lhes garante um espaço midiático desproporcional em relação ao tamanho e representatividade do partido é a questão da memória do Holocausto, por exemplo, da Shoah. Dois episódios se tornaram emblemáticos: o discurso do líder do partido na Turíngia, Björn Höcke, em Dresden no início de 2017, e o episódio que ficou conhecido como “as teses de Gedeon”, envolvendo Wolfgang Gedeon, do estado de Baden-Württenberg. No primeiro caso, Björn Höcke discursou15 sobre a política da memória da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto para um público de cerca de 500 pessoas no dia 17 de janeiro, na cidade de Dresden. Na ocasião, reclamou que os alemães ainda não tiveram a chance de chorar e de honrar seus mortos por conta de uma política da memória culpabilizadora, e defendeu uma guinada de 180 graus nesse tema. Uma frase, entretanto, ganhou as manchetes do país inteiro nos dias seguintes: “Nós alemães— e eu falo aqui não de vocês, patriotas, que se reúnem aqui hoje – nós alemães, quer dizer, nosso povo é o único povo do mundo que planta um memorial da vergonha (o Denkmal für die ermordeten Juden Europas, em Berlim) no coração de sua capital”. Questões como a responsabilidade pelo passado, a memória dos genocídios e a lembrança da violência política e do terror do totalitarismo são relativizadas em nome de uma memória patriótica e nacionalista. Poucos expedientes se mostram mais populistas do que a desculpabilização por crimes de guerra e a injeção de orgulho patriótico vazio em um grupo carente de motivações e que se vê desamparado pelas políticas oficiais. O segundo caso em evidência é a controvérsia em torno das obras O Comunismo Verde e a Ditadura das Minorias (Der grüne Kommunismus

——————— 15

Ver: <http://www.tagesspiegel.de/politik/hoecke-rede-im-wortlaut-gemuetszustand-einestotal-besiegten-volkes/19273518.html>.

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und die Diktatur der Mindheiten) e A Cultura Europeia-cristã: o Desafio da Europa através do Secularismo, Sionismo e Islã (Christlich-europäische Leitkultur. Die Herausforderung Europas durch Säkularismus, Zionismus und Islam), de autoria de Wolfgang Gedeon. Nos livros, Gedeon argumenta pela defesa dos valores cristãos tradicionais do Ocidente, apontando como principais inimigos as minorias, em particular os judeus e os muçulmanos. Central em sua abordagem é a imagem do Judaísmo como inimigo interno (com elementos de retórica nazista, desde a imagem do Estado dentro do Estado até a ideia do Judaísmo internacional como uma estrutura organizada para sugar e destruir o Ocidente) e o Islamismo como inimigo externo, que infiltra seus agentes através da imigração massiva na Europa. Na análise de Marcus Funck: O Estado secular, a sociedade aberta, desprezados pelos “irmãos gêmeos” Islamismo e Sionismo, assumem, de acordo com Gedeon, o papel de “idiotas úteis”, enfraquecidos pelo feminismo, pela sexualização, pelo “culto gay”, bem como pelo multiculturalismo e pelo lobby da imigração. Culpados por isso seriam as “ideias de 1789” bem como o Sionismo global defendido pelos Estados Unidos, o qual, a serviço do Sionismo israelense, impõe à Alemanha a “religião civil” da memória do Holocausto. (FUNCK, 2016)16

Apesar do absurdo que essa imagem evoca, a fantasia de Gedeon tem um ponto argumentativo que fortalece suas posições na mente da grande maioria dos conservadores: a ideia de que a sociedade se enfraquece com a defesa e o fortalecimento político das “minorias”. Aqui a fantasia conspiracionista ganha asas e a retórica dos privilegiados ameaçados mostra sua aderência: o grande perseguido dessa realidade é o homem branco heterossexual de classe média, justamente o centro-motor dessa visão de ——————— 16

Disponível em: <http://www.zeit.de/2016/34/wolfgang-gedeon-antisemitismus-afd>.

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mundo. Um ataque ao núcleo dessa estrutura imaginária é um ataque ao mundo como conhecemos, uma ameaça à sociedade cristã europeia, à tradição e à família. Para aquele social e politicamente desamparado, a ruína de seu mundo está inteiramente ligada à ascensão de movimentos, atores e entidades relacionados à defesa desses grupos. Na idealização do passado, injustiças e violências históricas são eclipsadas em favor de um mito: o da idade de ouro centrada no homem virtuoso e sua família tradicional cristã. Dessa forma, direitos humanos, feminismo, movimento LGBT e similares se tornam inimigos a serem combatidos. Não há espaço para diálogo quando esses grupos estão, na percepção do desamparado, oprimindo e tomando espaços que seriam dele por direito. As “armas dos inimigos”, desde políticas afirmativas e/ou inclusivas até o uso de linguagem politicamente correta, são denunciadas como ativos opressivos contra o indivíduo “médio”. Essa situação, que beira à paranoia, revela um elemento constituinte frequentemente esquecido do populismo: a ânsia pela solidariedade do grupo. Indivíduos atomizados convertidos em massa estão naturalmente à deriva, em busca não necessariamente de uma identidade unificada ou de uma ideologia que os una, mas sempre de suporte e de compreensão do próximo. O medo e a opressão que são percebidos respondem às palavras de ordem e às denúncias feitas em meio a um ambiente populista, e é esse sentimento de conforto, muito mais do que ideias ou ações, que prende parcela dos eleitores a esse discurso.17 Floresce, assim, a solidariedade entre os que pensam da mesma forma e que entendem o mesmo sofrimento, a ——————— 17

Jan-Werner Müller (2016, p. 20) defende que a análise do populismo não deve se centrar nos sentimentos e nas subjetividades, sob o risco de cairmos em um psicologismo raso. Entretanto, abandonar completamente esse ponto nos parece também um caminho para o reducionismo, em particular na análise de um fenômeno que, como demonstramos aqui, faz constante referência e se utiliza de uma retórica bastante violenta e emotiva. O Populismo não é um fenômeno estritamente emocional, mas também não deixa de sê-lo.

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mesma angústia. Mesmo pertencendo a classes sociais diferentes, a gerações distintas, com trajetórias de vida próprias, compondo um grupo altamente heterogêneo, enfim, um dos princípios do populismo é a solidariedade entre os que se sentem excluídos, desamparados, inconformados e prejudicados. É muito pouco para se constituir em um traço identitário — que, no caso, seria o de “eleitores da AfD” —, mas é o suficiente para criar um elo de empatia e gerar a solidariedade. Mas ainda no campo das sensibilidades, o princípio da solidariedade anda também lado a lado com o inconformismo e com ódio à sociedade que exclui ou prejudica o indivíduo desse grupo. Esse ódio, no caso dos eleitores da AfD, costuma se voltar ao imigrante muçulmano, ao judeu ou ainda a outras minorias percebidas como inimigas e protegidas (ou privilegiadas, a seus olhos) por leis, incentivos ou pela “ditadura do politicamente correto”. Nas fileiras da AfD, que tem um programa voltado à defesa da família tradicional,18 o embate contra as feministas e o protagonismo que as mulheres vêm conquistando na sociedade é bastante habitual. As ações contra o feminismo, em particular, têm suas origens mais frequentes na ala jovem do partido, a AfD-Jugend. Duas ações particularmente eficazes entre os conservadores — mas que, mais uma vez, colocaram o partido em meio a controvérsias na mídia, garantindo espaço na arena pública — utilizaram a internet e as redes sociais para divulgar a visão dos militantes sobre o tema. A primeira, de alcance pontual, foi a divulgação em sua página no Facebook de uma fotomontagem com cinco mulheres na praia, com a legenda: “Igualdade de Direitos em vez de Uniformidade” (Gleichberechtigung statt Gleichmacherei).

——————— 18

O programa está disponível em: <http://www.berliner-zeitung.de/familie/zurueck-in-die-50erdiese-familienpolitik-meint-die-afd-wirklich-ernst-23724138>.

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Figura 4. Jungle Alternative. Gleichberechtigung statt Gleichmacherei. Panfleto, abril de 2014.

Claramente voltado ao público masculino que se sente oprimido pela ação feminista, a imagem defende a ideia de que a igualdade de direitos entre os sexos já está plenamente estabelecida na Alemanha, e que as desigualdades que ainda existem seriam frutos das diferenças inatas aos gêneros — daí a luta contra a uniformidade que as feministas tentariam impor. Isso é ainda reforçado pela diversidade dos biótipos das mulheres apresentadas na fotografia e a legenda: “A favor da diversidade na Europa!”. A frase, entretanto, contém um trocadilho na palavra “pro” (a favor). Ao colocar um parêntesis ao redor do “r”, a propaganda forma a palavra “Po”, ou seja, “bunda” em alemão. O resultado é a mensagem “Diversidade de bundas na

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Europa!”. Para além da imagem, também a legenda aponta para a misoginia da mensagem. O antifeminismo, de forma estratégica, é uma bandeira empunhada prioritariamente pela ala jovem do partido, e a luta contra a teoria e a diversidade de gêneros (chamada de Genderwahn pelos militantes, ou de loucura de gênero) representa, para eles, uma luta contra uma ideologia latentemente totalitária. A campanha, obviamente, gerou comentários e muita oposição. 19 Para além da discussão em torno do feminismo e do conservadorismo na Alemanha, a utilização de imagens de modelos em biquínis gerou um debate intenso sobre a objetificação da mulher e sobre o uso de imagens “de mau gosto” na arena de discussões políticas. A resposta da AfD, mais uma vez, veio em tons machistas, em uma invocação da luta contra o discurso dominante do politicamente correto:

Figura 5. Jungle Alternative. Gegen Political Correctness. Panfleto, abril de 2014.

——————— 19

Ver, por exemplo: <http://www.taz.de/!5043854>.

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Essa ação pontual da Junge Alternative faz parte de uma campanha maior e permanente intitulada “Entendimento em vez de Ideologia” (Verstand statt Ideologie), na qual, por óbvio, a razão se encontra na argumentação da JA e a ideologia é o Feminismo e a Teoria de Gênero. No âmbito dessa campanha, uma ação constante é a divulgação de variantes para a frase “não sou feminista porque...” (Ich bin kein Feminist, weil...). Voltada à interação com o público em suas redes sociais, a campanha registrou algumas manifestações, como “Não sou feminista porque a família é mais importante que a carreira, e eu quero acabar com a loucura de gênero”, ou “Não sou feminista porque uma mãe vale tanto quanto uma executiva”.20 A lógica dominante nas frases dessa campanha é sempre a mesma: priorizar a atuação das mulheres no espaço privado do lar, legando aos homens a primazia no espaço público. Hierarquizar o masculino frente ao feminino. Combater qualquer forma de diversidade sexual e de papeis sociais que contradigam aquele da família tradicional e da dominação masculina. O combate aberto e direcionado prioritariamente ao feminismo e à teoria queer torna-se a bandeira dos jovens militantes da AfD, o que daria um verniz de credibilidade a esse combate, uma vez que não seria levado à cabo pelos “aposentados e velhos conservadores” do núcleo duro do partido. Forma-se um campo de batalha discursivo cerrado em uma mesma geração, sem a possibilidade do escapismo de uma “guerra de gerações”. São jovens combatendo jovens e, na medida do possível, são mulheres combatendo mulheres. A estratégia da AfD, dessa forma, baseia-se em uma equivalência de atores, em um equilíbrio de campos. A questão geracional, que pesa bastante em outros fenômenos populistas e da Nova Direita pelo mundo, é, assim, diluída no expediente discursivo e visual da AfD. ——————— 20

Ver, por exemplo: <http://www.tagesspiegel.de/politik/afd-jugend-gegen-feminismus-fuerhausfrauen-und-gegen-vorstandschefinnen/9634926.html>.

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Conclusão O que apresentamos acima demonstra que a AfD se transformou, particularmente após a Resolução de Erfurt, em um braço partidário de um movimento populista maior, composto de diferentes grupos e de diferentes olhares, com variadas escolhas de ação e de representação. Entretanto, pensar esse populismo em um quadro maior implica também pensar em seu princípio de ação e de mobilização. Isso porque o populismo, apesar de apresentar uma ideologia-base, frequentemente prescinde dessa para se voltar à retórica aglutinadora e propulsora. Por não ser primariamente voltado à ação conjunta e intersubjetiva nem às ideias e ideologias, e sendo orientado por uma gama de imagens, palavras de ordem e sentimentos, o populismo é constantemente identificado como a não política. O populismo, dado seu caráter multifacetário e híbrido, aceitando diferentes matizes de todos os espectros da política, configura-se, ao final, não em uma ideologia, mas em uma retórica que serve a um fundo ideológico. Esse fundo ideológico, normalmente fragmentado e disforme, se configura, normalmente, em momentos de crise ou de grandes alterações estruturais na economia e na sociedade. Entretanto, configurar o populismo enquanto retórica acarreta também em esvaziar o seu sentido político, relegando-o a um campo estético. Nesse sentido, o populismo pode ser caracterizado como não-política, como um “vazio ideológico” que foi muitas vezes levantado por pesquisadores como sua característica central. A estética e a performatividade, entretanto, estão também no cerne da caracterização desse grupo que se autodenomina populista ou que se reconhece ou ainda que com ele simpatiza. Mais ainda, a retórica, as representações, a performatividade, enfim, a exterioridade populista segue uma linha própria, ligada, inevitavelmente, a uma linha ideológica subterrânea. Sua percepção como vazio ideológico, assim, resulta em sua lógica própria, na forma de apresentar essa ideologia, estando, portanto, a ela intrinsecamente vinculado. Ernesto Laclau deixa isso claro quando afirma que:

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[...] se através de operações retóricas eles conseguiram constituir identidades populares amplas que interseccionam vários setores da população, eles, na verdade, constituíram sujeitos populistas, e não há qualquer ponto em descartar isso como mera retórica. Longe de ser um parasita da ideologia, a retórica seria na realidade a anatomia do mundo ideológico. (LACLAU, 2005, p. 12-3)

Essa ideologia que permeia o fenômeno do populismo — de direita e de esquerda —, como argumenta Jan-Werner Müller, é a do choque maniqueísta, do “nós contra os outros”, e, nesse espectro, o “nós” se torna “o povo”, o “verdadeiro povo”, e apenas esse grupo teria a legitimidade de o representar (MÜLLER, 2016, pp. 18-19). Nós, o povo, contra o establishment; nós, o povo, contra os estrangeiros; nós, o povo, contra as minorias privilegiadas. O princípio de ação e de pensamento do populismo se apresenta de forma peremptória, mesmo autoritária, o que faz com que “populistas tenham ao menos uma tendência antidemocrática” (MÜLLER, 2016, p. 19). Percebe-se que a guinada da AfD pós-Erfurt a um populismo mais radical responde a um chamado muito mais profundo de parte da sociedade alemã, vinculada a uma cultura subterrânea que possibilita a constituição de sujeitos populistas de direita. As estratégias de sobrevivência e de visualidade na arena pública aqui exemplificadas correspondem a esse esforço de buscar, em primeiro lugar, falar a esses sujeitos e, em segundo lugar, tornar sua exposição política e socialmente mais aceitáveis. Na Alemanha esse processo é particularmente difícil pelo peso que a memória do Nazismo e do Holocausto impõe sobre a sociedade, cobrando — corretamente — uma responsabilidade histórica constante. Mas é nessa cobrança, que tem na tolerância e no respeito à diversidade sua pedra fundamental, que as frustrações de parte dos alemães se concentram ao assistirem às modificações políticas e sociais pelas quais o país vem passando. Daí o tripé do conservadorismo, chauvinismo e tradicionalismo se tornar a base do movimento populista. Daí o perigo histórico que um eventual sucesso da AfD representaria.

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Pode a Frente Nacional ao poder chegar? O terceiro excluído da vida política*1 Jean-Yves Camus**2

Fundado em 1972 e confinado até meados dos anos 1980 no estreito espaço que possuía a extrema direita francesa desde 1945, a Frente Nacional (FN) é, após as eleições presidenciais de 23 de abril e 7 de maio de 2017, seguidas pelas eleições legislativas do mês de junho subsequente, a segunda ou terceira força política do país, de acordo com a referida contagem. Sua presidente, Marine Le Pen, qualificou-se para o segundo turno da Presidência, como Jean-Marie Le Pen em 2002, porém, com uma pontuação muito superior: 21,3% dos votos no primeiro turno e 33,9% no segundo, respectivamente 7.678.491 e 10.638.475 de votos.

——————— * Termo usado por Piero Ignazi, para descrever o lugar do Movimento Social Italiano (MSI) : Il polo escluso: profilo del Movimento Sociale Italiano, Il Mulino, 1989. 1

** Jean-Yves Camus é diretor do Observatoire des Radicalités Politiques (Observatório das Radicalidades Políticas) da Fundação Jean-Jaurès, em Paris — ORAP.


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Por mais impressionante que seja esse resultado, que leva o partido a níveis sem precedentes para qualquer tipo de eleição, 1 trata-se de um resultado ambíguo. De fato, Marine Le Pen foi bastante derrotada no segundo turno por Emmanuel Macron (66% dos votos). Não chegou a 40% julgados alcançáveis segundo uma pesquisa da IPSOS cinco dias antes do escrutínio,2 padecendo seu fraco desempenho durante o debate televisionado em 3 de maio entre os dois candidatos, durante o qual mostrou uma carência frente às problemáticas econômicas e uma ausência clara de estatura presidencial. Ela nem confirmou no primeiro turno o nível das intenções de voto que previam as pesquisas até o primeiro debate televisionado em 4 de abril entre os onze candidatos e até o qual lhe foi creditado entre 24% e 25,5%. Suas hesitações entre a saída da União Europeia e do Euro, por um lado, que é a doutrina tradicional da FN, e a transformação da moeda única em moeda comum, por outro lado, obscureceram sua imagem de “separatista integral” sem tranquilizar os eleitores da direita tradicional, que, desorientados com a derrota de François Fillon, poderiam ter aceitado sua candidatura, pelo menos no segundo turno. Finalmente, o pacto entre Nicolas Dupont-Aignan e Marine Le Pen, concluído em 28 de abril e pelo qual o presidente do Debout la France (DLF, “França de pé”, em tradução livre) concordou em se tornar o primeiroministro da líder frontista, se fosse eleita, não permaneceu: em 15 de maio, o líder do DLF anunciou que seu movimento se canditava em toda parte nas eleições legislativas, incluindo candidatos da FN que estavam em disputa.

——————— 1

Nas eleições presidenciais de 2012, Marine Le Pen tinha conseguido 6,421 milhões de votos.

2

Esta pesquisa IPSOS-Steria para Radio France, do dia 2 de maio de 2017, lhe atribuia entre 37% e 43% dos votos.

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A FN permanece, portanto, em julho de 2017, um partido sem perspectiva de integrar uma coalizão de governo ao lado de partidos tradicionais conservadores, começando pelos Republicanos (LR). Estes, que limitaram a importância de fracasso no primeiro turno das eleições presidenciais (20,01%), ultrapassaram no primeiro turno das eleições legislativas a FN em percentual (15,77% contra 13,20%) e especialmente em número de cadeiras (112 contra 8). Os candidatos mais direitistas de LR, incluindo os poucos que declararam aceitar negociações com uma parte da FN, foram derrotados: assim Thierry Mariani ou Nicolas Dhuicq, derrotado na única triangular deste escrutínio, tendo a FN mantido o seu candidato na disputa apesar de suas declarações. Além disso, mesmo que uma provável fragmentação de LR comece antes de seu congresso programado para dezembro de 2017, é muito improvável que haja uma maioria a favor de uma “união das direitas”, incluindo a FN. Sem dúvida, o ex-ministro Laurent Wauquiez, atual presidente da região Rhône-Alpes, favorito para assumir a direção de LR, é o porta-bandeira de uma direita resolutamente conservadora, que aceitou, durante a campanha presidencial, dar visibilidade e peso aos católicos tradicionalistas do movimento Sens Commun. Sem dúvida ainda, Wauquiez é a favor de uma linha intransigente sobre a imigração, enfatizando a questão da identidade tanto quanto — senão mais que — a questão econômica e social. Sem dúvida, por fim, Marion Maréchal Le Pen disse na revista semanal Valeurs actuelles de 17 de maio de 2017 que “O que está certo é que no cenário político atual à direita, ele (Laurent Wauquiez) está entre aqueles cujas declarações sugerem que nós teríamos coisas para conversar e fazer juntos”. No entanto, o interessado respondeu imediatamente: “Minha posição nunca mudou: nenhuma aliança com a esquerda e a FN. Uma bússola: os valores da

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direita e do centro”.3 Dessa forma, o espaço de recomposição da direita parece fechado à FN, que é, ao mesmo tempo, poderosa em número de votos e paralisada pela ausência de aliados, por sua incapacidade de formar um grupo parlamentar (mínimo de 15 deputados) e pela falta de proporcionalidade nas eleições legislativas. Este último ponto poderia mudar: O presidente Macron anunciou frente às duas Câmaras reunidas no Congresso, em 3 de julho de 2017, sua intenção de “introduzir uma dose de proporcionalidade”, como parte da reforma institucional, a qual pretende fazer o mais tardar em 2018.

Uma força política populista e contestatária, mas não só Não obstante, confirma-se um fato: por não ter conseguido romper a bipolarização da vida política francesa, o que acaba de ser alcançado por Emmanuel Macron e seu movimento La Republique en Marche, e por ser, como afirmou após as eleições europeias de 2014, “o primeiro partido na França”, a FN atrai um grande número de eleitores que encontram nele a encarnação de sua rejeição do “sistema” e das “elites”. A FN, que nunca participou de nenhum governo de coalizão, seja em nível nacional ou regional, representa nos eleitores a contestação geral dos partidos que partilham o poder desde 1981, o Partido Socialista e os Republicanos. Ele veste desde a década de 1990 a famosa “função tribunícia” que Georges Lavau atribuiu ao Partido Comunista (LAVAU, 1968, pp. 445-466). A única novidade é que agora compartilha essa função com a esquerda radical re-presentada pela France Insoumise, o movimento de Jean-Luc Mélenchon, cujo sucesso eleitoral (19,58% na eleição presidencial, e depois 11,03% e 17 cadeiras nas legilativas) atingiu um nível recorde que testemunha a emer-gência de outra ——————— 3

Tweet de L. Wauquiez em 17 de maio de 2017.

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forma poderosa de contestação do liberalismo e do “sistema”, mas com base em valores intrinsecamente diferentes dos temas frontistas.4 Portanto, é necessário determinar exatamente quais são os deter-minantes do voto frontista em 2017 e qual é a sociologia dos eleitores de Marine Le Pen. Sociologicamente,5 Marine Le Pen vence entre a classe trabalhadora e a classe média baixa, obtendo 32% dos votos dos assalariados e 37% dos operários. Também atrai fortemente os desempregados (26%) e os funcionários públicos (27%). Contudo, o nível de escolaridade é determinante no voto para a Frente Nacional: aqueles menos graduados (ensino médio incompleto) escolheram Marine Le Pen (30%), enquanto os mais diplomados (com ao menos 3 anos de ensino superior) preferiram Macron (30%), Fillon (24%) e Mélanchon (20%). Por idade, Marine Le Pen lidera com 29% nos leitores de 35 a 49 anos e obtém 27% na faixa dos 50-59 anos de idade. Não é ela que conquistou a juventude já que 21% do eleitorado de 18 a 24 anos vota nela, resultado de fato maior que para Macron (18%) porém menor que para Mélenchon (30%). No eleitorado de 25 a 34 anos, com 24% dos votos, ela somente empata com Mélenchon, perdendo por Macron (28%). Dessa forma, a FN não é o partido preferido dos jovens, em primeiro lugar porque 34% dos jovens de 18 a 24 anos se abstiveram; em segundo lugar, porque o voto

——————— 4

De acordo com uma pesquisa da Ipsos-Steria, realizada entre 4 de maio e 6 de maio, apenas 7% dos eleitores de Mélenchon optaram para sobre Marine Le Pen. 24% se abstiveram no segundo turno. Outra pesquisa realizada pela Harris Interactive em 6 de abril de 2017 mostra que aqueles que pretendiam votar em Mélenchon foram motivados principalmente pela luta contra as desigualdades (66%), o emprego (48%) e o meio ambiente (41%), ao passo que os de Le Pen davam mais importância à imigração (80%), à luta contra o terrorismo (64%) e à segurança das pessoas e dos bens (44%). 5

Os dados seguintes foram retirados da pesquisa IPSOS-Sopra Steria para a France Télévisions, Radio France LCP-Public Sénat, RFI-France 24, Le Point et Le Monde, publicada em 24 de abril.

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frontista deve ser cruzado com duas variáveis: o fato de votar e o baixo nível de escolaridade. Por último, o eleitorado de maior idade, aquele com a maior taxa de participação, é um limite importante para a FN, segundo o qual a candidata obteve 19% dos votos nos eleitores de 60 a 69 anos, bem atrás de Fillon (27%) e Macron (26%). Esta rejeição da FN ainda aumenta no caso dos eleitores de mais de 70 anos, dos quais 49% votaram em Fillon, 27% em Macron e apenas 10% na presidente da FN. Finalmente, é necessário localizar geograficamente as áreas onde domina o voto frontista. Fica claro que moradores de grandes cidades votam muito pouco em favor da FN (menos de 5% em Paris, 7,39% em Bordeaux, 8,86% em Lyon), exceto em Marselha (23,66%). A regra de que “quanto mais se afasta das grandes cidades, mais o voto fronstista aumenta” continua válida, e certos territórios rurais ou suburbanos colocam Marine Le Pen no topo dos votos no segundo turno (assim foi no Aisne com 52,91%), ou muito perto da maioria (Haute-Marne: 49,52%, Córsega do Sul: 49,41%, Ardenas: 49,27%, Meuse: 48,38%, Haute-Saône: 48,29%). Comparando com 2012, Le Pen vê sua pontuação crescer em quase toda parte; porém, mais do que a média no norte (+ 9% no Pas de Calais), no nordeste da França e no Var. Esta observação parece confirmar a ideia de uma presença local que está se expandindo em áreas onde a FN tem responsabilidades municipais desde 2014 e onde há um trabalho de campo de longa data por líderes locais bem estabelecidos, oriundos da região ou pelo menos “conquistando-a" com constância. Isto foi confirmado nas eleições legislativas em que a FN obteve 5 cadeiras em 8, nos dois departamentos do Nord e do Pas de Calais, incluindo o de Marine Le Pen, eleita com 58,6%, enquanto o partido venceu 2 cadeiras no Hérault e no Gard onde a FN gerencia as cidades de Beziers e Beaucaire, a última cadeira pertencendo por pouco a Louis Aliot, vice-

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presidente da Frente Nacional e companheiro de Marine Le Pen, eleito em Perpignan, onde está muito presente, com 50,56%. Essa função de reprensentar o “povo”, que aparece claramente na porcentagem (em torno de 40%) dos eleitores frontistas que expressam sua rejeição geral do sistema político (o que também é evidenciado pelo aumento estrutural da abstenção, que atingiu 25,3% no segundo turno das eleições presidenciais e 56,83% no segundo turno das eleições legislativas).6 No emtanto, não deve levar a considerar o voto frontista como puramente contestatário. Também se tornou um voto de adesão. Por um lado, é um eleitorado que se estrutura cedo: em 11 de abril de 2017, 84% dos eleitores de Le Pen consideram-se certos de sua escolha. Por outro lado, é um voto unânime para a candidata Le Pen (96% dos eleitores declarados), pela vontade de realmente ver-la chegar à presidência (62%, ou seja apenas 4% menos do que os eleitores declarados de Macron) e a sensação (66%) de uma proximidade entre a candidata e as aspirações do seu eleitorado. No que diz respeito aos valores, a rejeição à imigração, fundamental para 62% dos eleitores de Le Pen em 2012, aumenta para 80% e forma, como vimos acima, com a questão do terrorismo e da segurança, o tríptico vencedor dos temas frontistas, muito à frente da melhoria do poder aquisitivo (43% em 2012, 29% em 2017) e até do emprego (34%). A questão da identidade continua a ser o ponto central da ideologia frontista ainda mais com os ataques de 2015 e do 14 de julho de 2016, bem como o número de ataques terroristas evitados na França em 2017. Destaca-se, ainda, que o que mais distingue a FN dos outros partidos de direita, é a sua proposta de introduzir um regime jurídico que reservasse benefícios sociais apenas para os cidadões nacionais e que desse aos mesmos uma prioridade no emprego e na moradia (é a preferência nacional). ——————— 6

Ou seja, o mais alto nível registrado desde o início da Quinta República, em 1958.

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Perspectivas de crescimento, mas improvável acesso ao poder O objetivo da FN é chegar ao poder, se possível sozinha, com uma vitória nas eleições presidenciais (as próximas acontecerão em 2022), que, para permitir que o partido governe, deveriam ser seguidas pela obtenção de uma maioria parlamentar. Este objetivo parece inalcançável, especialmente porque a pontuação esmagadora de Emmanuel Macron demonstra a persistência de um cordão sanitário ao redor da FN: se 31% dos eleitores de François Fillon consideravam votar em Le Pen antes do debate televisivo entre os dois turnos, apenas 17% o fizeram no dia da votação e apenas 41% dos eleitores de Dupont-Aignan pensavam votar na FN, apesar do acordo entre os dois líderes.7 O fator decisivo desse fracasso em atrair a maioria dos eleitores da direita tradicional contra a esquerda parece ter duas causas. Por um lado, a existência de uma “onda Macron”, fenômeno que ainda precisa ser explicado, mas que parece ter consquistado os eleitores com a promessa de renovação total dos atores e métodos do poder, com a vontade de quebrar a separação entre direita e esquerda, que só a FN tinha até então como objetivo através da estratégia chamada “Nem direita, nem esquerda”, dirigida por Marine Le Pen e Florian Philippot. Por outro lado, a FN sofre de uma falta de credibilidade ligada à falta de experiência governamental, agravada pelo desastroso debate televisivo já citado. Marine Le Pen, que admitiu ter falhado nesse exercício, parece ter entendido que essa falta de credibilidade tem causas que vão muito além. Por conseguinte, lançou, após as legislativas, uma reconsideração completa do movimento, uma "refundação", cuja mudança de nome do partido poderia ser uma conseqüência. Foi pedido aos membros que eles comunicassem para a direção do partido suas

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Pesquisa BVA, de 7 de maio de 2017.

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queixas e críticas sobre a linha do partido. Um seminário executivo da FN está programado para os 21 e os 22 de julho de 2017 para definir o esboço do que será discutido no congresso a ser realizado em janeiro ou fevereiro de 2018. A preparação deste é feita em uma atmosfera de crise. O primeiro passo foi a decisão, tomada em 9 de maio por Marion Maréchal-Le Pen, deputada do Vaucluse, de não se candidatar e afastar-se da política para ir trabalhar no setor privado, sem renunciar a uma volta, porém desta vez assumindo a liderança de um partido refundado em bases ideológicas diferentes. O segundo passo foi a fundação, em 15 de maio, por Florian Philippot, de uma associação chamada Les Patriotes, que foi interpretada como um sinal de que ele poderia deixar a FN se Marine Le Pen desaprovasse suas opções ideológicas. Os termos do debate são simples. Por um lado, Philippot continua na linha "nem direita, nem esquerda" e reivindica uma soberania integral que defenda a saída da União Europeia e do Euro, como pré-requisitos para qualquer recuperação pela França de sua soberania jurídica, econômica e sobre as questões de imigração. Por outro lado, Marion Maréchal argumenta que as questões de identidade nacional e imigração se tornam o coração do projeto frontista, a saída do Euro, segundo ela, é um assunto secundário. Ela avalia que é na questão identitária que pontes podem ser construídas com parte das direitas alheias. Marine Le Pen disse no início de julho, que ela entendia a “ansiedade” que representa a saída do Euro para os eleitores. Por outro lado, Sophie Montel, muito próxima de Philippot, estimou em 22 de junho que era o programa frontista sobre a imigração que era “provocador de ansiedade”, porque foi interpretado como significando a expulsão imediata de todos os estrangeiros. No momento, a Marine Le Pen permanece sem posição definitiva entre esses dois tópicos essenciais. Além disso, mesmo que ainda pareça possível que a FN tenha uma margem de progressão

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eleitoral quando seu posicionamento será esclarecido (será que isso acontecerá?), o partido permanece em uma fase de turbulência interna que o enfraquece. Talvez seja um partido destinado a representar de maneira constante uma força entre 15% e 20% do eleitorado, mas que permanecerá para sempre na oposição.

Populismos e nacionalismos em ascensão no mundo: coincidência ou patologia global? A eleição de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos reacendeu, a partir de 8 de novembro, o medo de uma contaminação do fenômeno populista, em sua forma direitista e identitária, em nível do mundo ocidental todo. Em particular, foi dito que o sucesso do candidato republicano, vencedor contra seu adversário, mas também contra o aparato de seu próprio partido, deveria ser interpretado como sendo de natureza, se não idêntica, pelo menos próxima ao voto do povo britânico em favor do Brexit e na sucessão lógica dos êxitos eleitorais conquistados desde a década de 1980, na Europa, pelos partidos nacional-populistas. Isto já se trata de uma afirmação que deve ser atenuada. Na verdade, o fenômeno Trump marca o apogeu de um movimento ideológico peculiar à direita americana, iniciado logo na campanha de 1964 de Barry Goldwater, e que viu o Compassionate Conservatism, representado na época pelo George W. Bush e as elites sociais republicanas, ser derrotado por uma forma de populismo nativista,8 anti-intervencionista e fundamentalmente antiliberal.9 ——————— 8

O Compassionate Conservatism, caracterizado em parte pela fé religiosa cristã de seus seguidores, admite tanto a necessidade de uma política fiscal e orçamentária classicamente conservadora quanto a de um dever de ajudar os mais pobres. Seu declínio a partir do surgimento do Tea Party pode vir precisamente porque constituía um tipo de condescendência de caridade, enquanto a classe trabalhadora e a média já rejeitavam o livre comércio e da globalização. 9

Sobre esta evolução do Partido Republicano, cf. Dionne Jr. (2016).

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Frente ao trabalho imenso de elaborar o quadro dos populismos e nacionalismos no mundo em tão poucas páginas, a modéstia nos obriga a nos referirmos a obras clássicas sobre o assunto 10 e a nos concentrarmos na Europa no sentido geográfico do termo, a Rússia constituindo um espaço ideológico distinto. A progressão das direitas radicais é real em nosso continente, mais marginal no resto do espaço ocidental se excluirmos o retorno, em 2016, ao Parlamento australiano do partido One Nation liderado por Pauline Hanson. O partido sul-africano Freedom Front (4 deputados), que representa os interesses da minoria afrikaner, aceita de fato o Estado multirracial e New Zealand First (12 eleitos), conhecido por sua forte oposição à imigração e por seu conservadorismo de valores, é um populismo bastante clássico que nada tem a ver com a extrema direita. Quanto à tradição perene da direita católica em Quebec, impregnada pela Action Française, esta declinou com a “Revolução Silenciosa” dos anos 60-70. Populismo e nacionalismo são, de qualquer forma, termos que precisam ser usados com muito cuidado. O primeiro é muito mais um estilo do que uma ideologia. É a crença em uma oposição irredutível entre “o povo”, considerado como uma entidade orgânica dotada da presciência natural do bem comum e das elites naturalmente desonestas, monopolizadoras e desconectadas do fato nacional. Os populistas, portanto, defendem a democracia direta em vez da democracia representativa, pelo uso de referendos em todos os níveis (local e nacional) para contornar as organizações intermediárias, para estabelecer um vínculo direto entre um líder absolutista e o povo. Podem ser de direita ou de esquerda (“Syriza” na Grécia, “Podemos”

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Particularmente, o livro de Guy Hermet, Les populismes dans le monde (2001), ou de Juan J. Linz, Régimes totalitaires et autoritaires (2000).

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na Espanha) ou de tipo agrário, isto é mobilizar a ira do campesinato contra a modernização e industrialização.11 Alguns são objetos políticos híbridos, como o Movimento Cinco Estrelas na Itália e, assim que deixamos o mundo ocidental, o populismo aparece como um modo de governo que quase necessariamente acompanha o surgimento da nação (mundo árabe, África) como sua declaração contra o unilateralismo americano (América Central e América Latina, Filipinas desde a eleição em 2016 de Rodrigo Duterte), do século XIX até os dias atuais. O vínculo direto que o “pai da independência”, o caudilho ou mesmo o líder eloquente construido com o povo contra a oligarquia e o "imperialismo", são mais freqüentemente relacionados ao nacionalismo. Mas este termo deve ser definido com um pouco de precisão, para ser algo diferente de um qualificador pejorativo. Se o patriotismo é o apego natural de um cidadão à nação a que ele pertence, o nacionalismo é a exaltação quase mística deste sentimento, com uma dimensão de superioridade em relação a tudo o que é "distinto", podendo chegar, no estágio final desse então nacionalismo xenofobista, à exclusão política de tudo o que é estrangeiro. É este último ponto que torna muito importante a equivalência de populismos esquerdistas como “Syriza” e “Podemos”, para não mencionar o Partido da Esquerda Francesa, e os populismos de extrema direita nos mesmos países: a diferença está na “preferência nacional” tanto quanto no anticapitalismo.12

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Como Les chemises vertes do deputado nacionalista Henri Dorgères, na França dos anos 1930. 12

Paradoxalmente, há pelo menos um caso extremo proclamando-se social-democrata, o partido Smer, do primeiro-ministro eslovaco Robert Fico, cujas declarações e práticas, tanto xenófobas como nacionalistas e jogando sobre a oposição entre o povo e as elites, são claramente nacional-populistas.

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Focalizando-se nos populismos europeus da direita extrema ou radical, os únicos que trataremos aqui, traços comuns são óbvios: por exemplo, a oposição a qualquer forma de soberania supranacional, o nacionalismo e a vontade de limitar ou proibir a imigração não europeia, a atração exercida sobre a classe trabalhadora e a classe média inferior por um programa de proteção social melhorada que beneficie unicamente os cidadãos nacionais.13 A ideologia sozinha não provocou o avanço eleitoral destes partidos: esse avanço depende muito do sistema de votação em vigor e matematicamente, o sistema proporcional lhes dá uma posição de árbitro do jogo governamental e/ou parlamentar que o sistema britânico “first-past-the post” limita, bem como os limiares da representação parlamentar. Por fim, tão importante quanto os resultados eleitorais dos populistas do tipo identitárionacionalista, é o impacto destes sobre o conteúdo ideológico das direitas conservadoras e liberais, perpetuamente divididas entre a oposição frontal aos populismos e a acomodação com eles; entre o ostracismo e a coalizão, entre os exageros e as distinções. Uma vez que essas precauções tenham sido tomadas, que panorama pode ser feito da família nacional-populista na Europa? Um marco geral para avaliar o impacto dessa família é a eleição do Parlamento Europeu em maio de 2014. Depois, várias eleições legislativas nacionais refinaram os contornos. Nas eleições europeias, o eleitorado das formações nacionais-populistas, incluindo a Frente Nacional, votou mais que aquele das formações sociais-democratas, liberais ou conservadoras, especialmente por causa da questão específica, a Europa que concentra nela o ——————— 13

Os números mais recentes disponíveis atribuem 58% dos votos para Trump entre os trabalhadores brancos, enquanto o voto frontista teria atingido 43% entre os trabalhadores franceses em 2015 e 71% entre os trabalhadores austríacos para o candidato FPÖ, na eleição presidencial de maio de 2016.

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ressentimento dos partidos em questão. Resultou em uma assembleia em que os principais partidos retêm uma grande maioria, já que das 751 cadeiras, os grupos PSE; ALDE e PPE têm 479 representantes eleitos, mas onde a Frente Nacional conseguiu formar um grupo parlamentar de 39 membros, do qual é a espinha dorsal, apoiado pelo Partido para a Liberdade (PVV) do Holandês Geert Wilders; a Liga do Norte da Itália, o FPÖ austríaco liderado por Heinz-Christian Strache; os separatistas flamengos de Vlaams Belang; dois membros eleitos poloneses do Congresso da Nova Direita (KNP), uma formação socialmente ultraconservadora, mas economicamente libertária14 e de um nacionalista romeno. O desenvolvimento mais importan-te dentro deste grupo, “Europa das Nações e da Liberdade” (ENL), é a adesão em abril de 2016 do alemão Markus Pretzell, líder da Alternative für Deutschland, o partido eurocético e nacional-conservador alemão que, sob a liderança de Frauke Petry, se radicalizou em termos de imigração, identidade e oposição ao islamismo, graças à crise dos refugiados. O sucesso da AfD nas eleições regionais de 4 Länder em 2016 e a perspectiva de sua entrada no Bundestag nas eleições parlamentares de 2017, aumentam a influência da rede europeia que Marine Le Pen lidera, assim como seja qual for o resultado da eleição presidencial austríaca de 4 de dezembro de 2016, a consagração do FPÖ como segunda força política do país. As eleições legislativas holandesas, planejadas para 15 de março de 2017, serão um importante indicador da força dessa família política: em novembro de 2016, a maioria das pesquisas deu ao PVV cerca de 28-29% ——————— 14

A referência à escola de Rothbard, Murray e Nozick, e além deles a Frédéric Bastiat, é frequente nos partidos populistas de direita, mas também liberais, da Europa do Leste (o KNP Polaco mas também seu concorrente a lista KORWIN, o Partido dos Cidadãos Livres na República Tcheca, o Partido da Reforma da Estônia). Não é um indicador de extremismo político.

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dos votos (contra 15% em 2012), ou seja, compartilhando o primeiro lugar com os liberais. Sendo assim, os membros do grupo ENL são apenas o núcleo duro da família nacional-populista. A este respeito, é necessário alertar contra o estabelecimento de uma equivalência dos rótulos “popu-listas”, “soberanistas”, “eurocépticos”, até “neofascistas” e “neonazistas”, que caracterizam uma “extrema direita” muito ampla: a acusação desqualifi-cante que, desde 1945, atribui a tudo o que evoca movimentos assimilados ao fascismo ou ao nazismo, torna necessária uma grande cautela semântica. Assim, o conservadorismo social, a oposição resoluta à União Europeia, uma forma de patriotismo frenético e exclusivo aproximando-se da xenofobia, caracteriza, por exemplo, os populismos de direita escandinavos (Partido do Povo Dinamarquês, Partido do Progresso Norueguês, Verdadeiros Finlandeses) e UKIP. O pensamento ideológico da União Democrática do Centro na Suíça é quase idêntico. No entanto, esses partidos não vêm da matriz da extrema direita histórica e as conseqüências desse fato são essenciais: a questão da "desdiabolização" não lhes diz respeito, sua imagem não é maculada por uma ligação com a extrema direita histórica, os outros partidos de direita podem considerá-los mais facilmente como parceiros da coalizão, o que, de fato, são na Suíça (desde 1971), na Noruega (desde 2013) e na Finlândia (desde 2015 15 ), enquanto na Dinamarca, o Dansk Folkeparti, sem entrar no governo, apoiou de 2001 à 2011 a maioria do centro-direita no parlamento. Essas experiências de governo são ricas em lições. A primeira é que nenhuma delas levou ao estabelecimento de um regime autoritário ou mesmo a uma grande reviravolta no sistema de liberdades públicas, mesmo quando a direita conservadora confiou a essas

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O partido agrário SMP, de onde vêm “Os Verdadeiros Finlandeses”, tinha chegado ao governo pela primeira vez em 1983.

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formações responsabiliades regalianas como este foi o caso na Áustria (em 2000-2006), na Itália (com a participação da Aliança Nacional e da Liga Norte nos governos Berlusconi a partir de 1994) e ainda como este é hoje (Timo Soini é Ministro das Relações Exteriores da Finlândia, Anders Anunsen, Ministro da Justiça da Noruega e Guy Parmelin, Ministro da Justiça da Suíça). O impacto dos partidos nacional-populistas está em primeiro lugar na orientação do debate público, como em 2009, quando o povo suíço votou com 59% na iniciativa popular introduzida pelo SVP que visava proibir os minaretes. Essas experiências podem levar, através da negociação política, à adoção de uma medida particularmente dura e controversa no campo da imigração, dessa forma foi quando, em janeiro de 2016, a Dinamarca decidiu confiscar os valores detidos pelos requerentes de asilo entrando no país. Além disso, essas experiências contribuem de maneira geral para uma polarização mais intensa da sociedade sobre as questões da identidade e do multiculturalismo, fenômeno ainda reforçado pela crise dos migrantes e pelos atentados terroristas cometidos pelo islamismo radical. A inclusão nas coalizões é, às vezes, também para o populismo nacional, um teste com efeitos negativos. Primeiro, porque as restrições políticas e legais dos tratados internacionais limitam por natureza sua capacidade de cumprir suas promessas eleitorais, especialmente porque eles nunca estão no poder sozinhos. Assim, o Partido dos Verdadeiros Finlandeses, que conquistaram 17,7% dos votos nas eleições de 2015, recuaram nas pesquisas do verão de 2016 para o nível mais baixo desde 2010, com 7,6%, como resultado do aceite do plano de resgate da Grécia, da política de austeridade social instaurada pelo governo e de um sentimento de que Timo Soini, que esteve à frente do partido por 20 anos, tinha-se tornado um privilegiado, o que não combina com função antissistema.

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Além disso, as mudanças socioeconômicas que os nacional-populistas conseguiram implementar nunca estão de acordo com as expectativas, especialmente daqueles conhecidos como os "perdedores da globalização": por um lado, porque permanecem em primeiro lugar, cidadãos de um Estado que faz cortes drásticos em seu orçamento, inclusive no campo dos benefícios sociais, exceto pelas funções de soberania; por outro lado, porque sua oposição à globalização do comércio se depara com a realidade da crescente interdependência das economias. Mas enquanto todos argumentam que o protecionismo fronteiriço deve ser introduzido, deixando, contudo, que as regras do mercado sejam aplicadas internamente, nenhum deles conseguiu explicar como sair da globalização. No outro extremo do conjunto das direitas extremas, existem os partidos neofascistas. Desde setembro de 2014, esse movimento foi estruturado dentro da Aliança pela Paz e Liberdade (APF), liderada pelo empresário italiano Roberto Fiore, que lidera o partido fundamentalista fascista/católico Forza Nuova. Um dos fatos surpreendentes dos últimos anos é que essas formações ganharam presença em alguns parlamentos nacionais. A exemplo da Hungria, onde o partido Jobbik alcançou em 2014, mais de 20% dos votos, podendo, assim, derrotar a reforma constitucional proposta por Viktor Orban após o referendo sobre os migrantes, de 2 de outubro de 2016. Ou ainda como na Grécia, onde o governo, para conter a ascensão da Aurora Dourada (7% dos votos e 18 eleitos), teve que acusar 69 executivos do partido por pertencer a uma organização criminosa. Além do Partido Nacional Democrático da Alemanha (NPD), cujo único deputado europeu foi eleito com 1% dos votos, por efeito do voto proporcional, podemos ainda apontar nesta categoria de movimentos abertamente racistas, antissemitas e antiddemocráticos, os cipriotas do ELAM (Frente Popular Nacional) que entraram no Parlamento em maio de 2016

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(3,71%), assim como o partido popular Nossa Eslováquia (LSNS), cujo líder, Marian Kotleb, é governador da região Banka Bystrica desde 2013 e que, desde março de 2016, tem 14 cadeiras com 8% dos votos, mesmo que esteja em concorrência com o partido nacional eslovaco (8,6% e 15 eleitos), uma formação nacional-populista mais antiga e mais clássica. É muito cedo para avaliar o vigor do fenômeno, mas não deixa de ser notável que, mesmo se considerarmos que esses partidos cativam um voto de protesto e não de adesão, formas bastante explícitas do fascismo reaparecem após o sumiço considerado definitivo desde 1945. Há consonâncias mínimas entre esses movimentos muito distintos: nacionalismo em oposição à União Europeia; a recusa da OTAN e do alinhamento da Europa com os Estados Unidos, bem como o desejo explícito de construir um mundo multipolar no qual a Rússia seria um parceiro estratégico e um modelo de valores sociais; o etnocentrismo, que não preza mais a hierarquia das raças, mas que prestigia intensamente as diferenças culturais; a necessidade de cada povo alcançar seu desenvolvimento em seu próprio território; e, finalmente, uma capacidade muito real de aproveitar a profunda crise de representação política que se apoderou da Europa desde o desaparecimento das grandes ideologias mobilizadoras e do suposto esgotamento da história. Não obstante, há dúvidas de que os partidos nacional-populistas serão os únicos a se valerem desse pensamento ideológico no futuro. A hipótese é até plausível de que a democracia iliberal teorizada por Fareed Zakaria (1997) domine o lado liberal-conservador da grande família das direitas, do qual se distingue em particular pela oposição à primazia dos direitos individuais, pela concepção organicista da sociedade e pela refutação ao princípio da separação de poderes. Temos que raciocinar como se a fronteira entre a direita dominante e a extrema direita já tivesse se tornado

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tão confusa que o modelo do FIDESZ húngaro ou o partido polonês nacionalconservador Lei e Justiça pudessem inspirar as chamadas direitas “de governo” da Europa Ocidental. Jaroslaw Kaczynski assumiu o slogan “crie Budapeste em Varsóvia” na campanha eleitoral de 2015, inspirando-se assim na ideologia de Viktor Orbán. Em virtude da crise de refugiados, mas também duma evolução a longo prazo na qual os países da Europa Central vem reavaliando o custo/benefício da entrada na União Europeia, o conservadorismo nacional está aumentando no Grupo Visegrad (fundado em 2011). Portanto, este desenvolvimento diz respeito, para além da Polônia e da Hungria, à Eslováquia (com o Smer, o Partido Nacional Eslovaco-SNS, os neofascistas do LSNS e os conservadores contestatários do OLANO-NOVA) e, em menor escala, à República Checa, onde os conservadores eurocéticos do ODS16 e o partido Liberdade e Democracia Direta de Tomio Okamura, ao mesmo tempo populistas, eurocépticos e xenófobos, ganham juntos cerca de 15% dos votos. Em termos geopolíticos, vemos assim, nas margens orientais da União Europeia, uma espécie de bastião nacionalista e eurofóbica que perturba os equilíbrios políticos europeus.

Referências HERMET, G. Les populismes dans le monde. Paris: Fayard Ed., 2001. LAVAU, G. À la recherche d’un cadre théorique pour l’étude du PCF. Revue Française de Science Politique, 18-3, 1968, pp. 445-466. LINZ, Juan J. Régimes totalitaires et autoritaires. Paris: Armand Collin, 2000. ZAKARIA, F. The rise of illiberal democracy. Foreign Affairs, v. 6, n. 6, nov.-dez. 1997.

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Cujo antigo presidente, Vaclav Klaus, foi o fundador.

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Ausência de consenso: os partidos de extrema direita como família partidária* João Carvalho**1

O principal objetivo desta investigação consiste em explorar a definição e a conceptualização dos partidos de extrema direita (PED) como uma família partidária distinta das suas congéneres. Portanto, a questão de investigação explorada neste estudo consiste em identificar qual é a proposta mais objetiva para definir, categorizar e distinguir os PED doutras famílias partidárias. Neste intuito, este estudo apresenta uma revisão da literatura desenvolvida sobre as tipologias disponíveis na literatura para caracterizar a diversidade de partidos que podem ser incluídos nesta família partidária singular. Após um longo período de marginalização política no período após a Segunda guerra mundial, os PED ressurgiram nos sistemas políticos dos Estados europeus durante a década de 1970.

——————— * Optou-se pela manutenção do português de Portugal como ortografia oficial do texto. ** João Carvalho é professor do Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE/IUL).


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Este crescimento eleitoral despertou um forte interesse por parte dos cientistas políticos, e os PED são atualmente a família partidária mais referenciada nas investigações na disciplina da ciência política (MUDDE, 2016). No entanto, a expansão dos estudos sobre os PED foi acompanhada pela ausência de um consenso entre os investigadores sobre a denominação mais adequada para definir esta família partidária. As divergências incidem ainda sobre as características que permitem a identificação destes partidos como uma família partidária distinta das restantes. Como veremos adiante, a elaboração de uma definição de PED é inerentemente problemática uma vez que estes partidos adotaram diversas denominações e diferentes modelos de organização interna. As divergências entre cientistas políticos refletem-se na diversidade de designações de PED existentes na literatura, incluindo denominações como: a nova direita, direita radical, direita populista, direita populista radical, e PED. Neste contexto, a primeira parte deste texto explora os motivos pelos quais a terminologia de extrema direita consiste na designação mais adequada para referir esta família partidária relativamente a outras propostas. A designação de extrema direita sugere uma ligeira mas importante continuidade com o passado, ao invés de uma descontinuidade radical, uma vez que os PED continuam a representar um desafio radical para o princípio da igualdade humana (DOWNS, 2001). A segunda parte deste estudo explora os métodos disponíveis para agregar os PED numa família partidária distinta das restantes. A investigação explora, assim, duas propostas distintas concebidas por para proceder à identificação das características que distinguem os PED dos restantes partidos (IGNAZI, 2006; MUDDE, 2007). Como proposto por Ignazi, esta investigação sugere que a análise espacial do posicionamento dos PED na escala esquerda-direita consiste no primeiro passo para proceder à sua identifi-

AUSÊNCIA DE CONSENSO: OS PARTIDOS DE EXTREMA DIREITA COMO FAMÍLIA PARTIDÁRIA | 154


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cação. Numa segunda fase, o investigador deve proceder à examinação das características ideológicas consideradas como antissistema através da análise com base em critérios ideológicos. Porém, estes dois critérios são ainda insuficientes para proceder a uma análise exaustiva das diferentes articulações ideológicas dos PED dada a diversidade de membros desta família partidária. Desta forma, a terceira e última parte deste estudo explora as diferentes tipologias disponíveis na literatura para categorizar os PED e examina-as em função das condições de exaustividade e exclusividade mútua que devem sustentar essas propostas.

Diferentes terminologias para designar partidos de extrema direita Apesar do crescimento eleitoral dos PED nas últimas décadas nos sistemas políticos europeus e do aumento exponencial de estudos académicos sobre esta família partidária, as divergências entre cientistas políticos sobre a terminologia adequada para definir estes partidos permanecem intensas (Carter, 2005). Esta secção explora a denominação mais adequada para referir os PED através da análise de algumas das propostas disponíveis na literatura. Alguns autores preferem rotular estes partidos simplesmente como partidos racistas ou “grupos anti-imigrantes” (HUSBANDS, 1981; MESSINA, 2007). Porém, estas denominações retratam estes partidos como partidos de “questão-única” (os que apenas politizam uma única clivagem política) incentivando uma análise reducionista e imprecisa destas organizações políticas (KITSCHELT, 1995). Outra proposta refere-se a partidos da “nova direita”, um conceito inicialmente introduzido para descrever movimentos culturais (FRASER, 2000). O mais proeminente destes grupos, conhecido como Nouvelle Droite (Nova Direita), foi formada em França na década de 1980 (TAGUIEFF & TRIBALAT, 1998). Portanto, esta terminologia

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deve ser descartada devido à sua ambiguidade derivada da sua aplicação inicial a movimentos culturais em vez do seu âmbito ser restrito a partidos políticos, (IGNAZI, 2002; 2006). Uma designação recorrentemente utilizada para descrever os partidos extremistas de direita consiste em “direita radical” (BETZ, 1994; KITSCHELT, 1995; MINKENBERG, 2002; SCHAIN et al., 2002). Este termo foi introduzido por Daniel Bell no início da década de 1960 para classificar a ascensão dos neoconservadores nos EUA e no Reino Unido (EATWELL, 2000). Consequentemente, esta designação também detém um caracter ambíguo por ter sido inicialmente aplicada a movimentos sociais conservadores americanos como o Macarthismo em vez de se restringir a partidos políticos (HAINSWORTH, 2008). A expressão “direita radical” também tem sido amplamente empregue na Alemanha pelo Gabinete Federal para a Proteção da Constituição (Bundesamt für Verfassungsschutz), que estabeleceu uma distinção formal entre a direita radical e os PED desde 1974 (EATWELL, 2000). Os primeiros partidos exibem uma crítica extremista da ordem constitucional mas são desprovidos de características ideológicas antidemocráticas. Por sua vez, os PED adotam uma ideologia antidemocrática, antiliberal e anticonstitucional (IGNAZI, 2006). Desde então, os PED distinguem-se pela posse de características antissistema que não são observadas em partidos radicais, sendo este um motivo adicional para não aplicar a designação “radical” aos PED. Uma outra designação frequentemente utilizada nos media e em investigações científicas consiste em partidos “populistas” (HEINISCH, 2003). Segundo Betz, estes partidos são: [...] populistas no seu uso inescrupuloso e na instrumentalização de sentimentos públicos difusos de ansiedade e desencanto e no seu apelo ao homem comum e ao seu bom senso alegadamente superior. (BETZ, 1994, p. 4)

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Recentemente, Mudde adotou o termo “direita populista radical”, argumentando que populismo se refere a uma ideologia baseada na simples dicotomia “o povo puro” vs. “a elite corrupta” (MUDDE, 2007, p. 23). No entanto, o conceito de populismo está associado a um estilo de política específico caraterizado por liderança carismática e retórica com contornos antissistema, em vez de se referir a uma ideologia política distinta (EATWELL, 2000). Este estilo de postura política pode ser identificado em partidos de centro-direita como a Forza Italia de Sílvio Berlusconi em Itália, em figuras políticas como o ex-presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, tendo também sido aplicado a partidos de esquerda, em vez de ser uma propriedade exclusiva dos partidos direitistas (TARCHI, 2003; ZIZEK, 2006). Portanto, populismo não se refere a características exclusivamente observadas nos PED, ao passo que o potencial enfoque no estilo dos líderes partidários, na sua organização interna ou em estratégias eleitorais inibe a identificação das idiossincrasias ideológicas desta família partidária (EATWELL, 2000; HUSBANDS, 2002). Após este breve resumo das lacunas detetadas noutras designações alternativas para os partidos direitistas, este estudo realça que a utilização do termo extrema direita possui diversas vantagens, sendo recorrentemente aplicado em investigações de ciência política (ver, por exemplo, IGNAZI; 2002; HAINSWORTH, 2008; PERRINEAU, 2009; CARVALHO, 2014, 2016). Este termo pressupõe ligeira continuidade como o desafio representado por estes partidos no passado ao princípio fundamental da igualdade humana, em vez de uma descontinuidade radical com o passado (DOWNS, 2001). No entanto, reduzir os PED na atualidade a meras forças fascistas não reconstituídas do período entre as duas guerras mundiais constituiria reducionismo analítico drástico e desaconselhável (HAINSWORTH, 2008). A referência ao posicionamento no polo direito no espectro político-ideológico

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não é interpretada como sendo definida pela dimensão socioeconómica — mercado vs. Estado —, mas em função da dimensão da igualdade-desigualdade (MUDDE, 2007). Tal como Bobbio (1996) sugere, os partidos de esquerda procuram superar a desigualdade social através da ação política, enquanto os partidos de direita defendem as disparidades sociais como sendo um fenómeno natural e desejável. Portanto, a referência ao extremismo dos PED reflete o seu posicionamento no polo da direita no espectro político-ideológico bem como a oposição destes partidos a valores democráticos e pluralistas. Os PED podem ser, de uma forma geral, identificados pelo seu posicionamento no espectro político simultaneamente à direita dos partidos moderados e mais próximo do limite à direita (IGNAZI, 2002; 2006). Em paralelo, a conceção de extremismo está relacionada com as características “antissistema” observadas nas ideologias destes partidos (CARTER, 2005). Como veremos adiante, esta conceção deriva da proposta de Sartori (1976), que assim classifica os partidos que desafiam os princípios fundamentais da democracia liberal. Em suma, o termo ‘extrema direita’ é considerado mais consistente que outras denominações para PED e indica a que categorização desta família partidária de acordo com critérios ideológicos, tal como é explorado na secção seguinte.

Critérios para identificar partidos de extrema direita Antes de enquadrar os PED como uma família partidária distinta, o conceito de família partidária deve ser desenvolvido em vez de ser utilizado como uma “categoria autoevidente”, uma vez que a sua definição é complexa (MAIR & MUDDE, 1998). Os três principais obstáculos relacionados com a classificação de partidos políticos em famílias partidas distintas derivam

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da dificuldades observadas em: 1) selecionar os critérios empregues na construção da tipologia; 2) definir categorias parcimoniosas (EATWELL, 1998); e 3) englobar a ação dos atores políticos e as subsequentes variações dentro de famílias partidárias individuais. Em paralelo, a tipologia das famílias partidárias também deve ser suficientemente flexível para permitir que a classificação dos partidos possa alternar entre as categorias propostas, em vez de se realizar uma compartimentação estática (MUDDE, 2007). Tal como é proposto por Mair e Mudde (1998), este estudo sugere a análise com base em critérios ideológicos consiste no melhor método para delinear a família de PED. Em vez de focarem nas ações políticas dos partidos, os cientistas políticos devem definir critérios ideológicos para classificar as identidades dos partidos selecionados e para delimitar as fronteiras entre as diferentes famílias partidárias. Através deste método, os cientistas políticos devem conceder primazia à ideologia e, em menor medida, à origem dos partidos, em detrimento doutros fatores contingentes. A centralidade da ideologia na esfera política é inegável na medida em que a natureza social é privada de um significado inerente (ZIZEK, 1989; WARE, 1996). No entanto, a ideologia partidária deve ser interpretada de uma perspetiva competitiva, em vez de partir de uma abordagem institucional. Portanto, os partidos políticos são organizações que detêm flexibilidade suficiente para adaptar suas propostas ideológicas conforme as mudanças observadas no eleitorado, em lugar de estas serem determinadas por seu percurso institucional (DOWNS, 1956). Este método permite a reclassificação dos partidos que alterem a sua base ideológica, conforme observado com o New Labour do Reino Unido ou a Alleanza Nationale na Itália (MUDDE, 2007). Depois desta introdução ao conceito geral de famílias partidárias, será agora analisada o método mais objetivo para proceder à definição da família de PED como categoria distinta.

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O debate em torno da designação mais apropriada para denominar os partidos extremistas de direita é acompanhado por intensos desacordos sobre as principais características desta família partidária. A diversidade de propostas reflete pelo menos três problemas: a existência de diferentes fórmulas ideológicas entre estes partidos apesar do consenso sobre a existência de uma doutrina ideológica comum a esses mesmos, a observação de intensa variação nos níveis de extremismo dos partidos selecionados, e as dificuldades em traçar uma divisão clara entre partidos de centro-direita e os PED. Para ultrapassar estas dificuldades, Mudde (2007) propôs um mínimo denominador comum para fundamentar a sua designação de “partidos populistas radicais de direita” salientando que o “nacionalismo nativista” consiste na característica fundamental das ideologias destes partidos. Considerado uma combinação de nacionalismo e xenofobia, o conceito de “nacionalismo nativista” é concebido como: [...] uma ideologia que defende que estados devem ser habitados por membros do grupo nativo (a nação) e que elementos não-nativos (pessoas e ideias) constituem, fundamentalmente, uma ameaça à homogeneidade do Estadonação. (MUDDE, 2007, p. 19)

No entanto, uma das potenciais lacunas desta definição consiste na dificuldade em interpretar o “nacionalismo nativista” como sendo radicalmente distinto de conceções gerais de xenofobia. Além disso, o suposto nativismo deve incluir “argumentos racistas e não racistas (incluindo ou excluindo com base em cultura e religião)”, indicando uma conceção restrita de racismo. Por outro lado, esta proposta tem as vantagens de não reduzir os partidos selecionados a meros partidos anti-imigração e de permitir que o conceito seja aplicado ao contexto da Europa Ocidental e de Leste (MUDDE, 2007, p. 19).

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Após a apresentação da definição restrita de partidos populistas radicais de direita, uma definição mais abrangente desta família partidária foi então proposta com base em três traços ideológicos: “populismo, nacionalismo nativista e autoritarismo” (ibidem, p. 23). Autoritarismo é interpretado como a crença numa sociedade estritamente ordenada e na completa submissão à autoridade (MUDDE, 2007). Apesar do consenso observado relativamente à primazia da xenofobia ao invés do nativismo, o populismo e o autoritarismo não devem ser considerados critérios ideológicos suficientemente objetivos para a construção de uma família partidária distinta. Conforme observa Kitschelt (2007), alguns PED aceitam um certo grau de pluralismo de regras, enquanto outros procuram reduzir a autoridade do Estado central. Por fim, a utilização de uma definição restrita e outra alargada para delimitar uma família partidária composta por partidos extremistas de direita terá menor utilidade que uma definição singular, mais abrangente e inclusiva dos diversos membros dessa categoria. Uma proposta alternativa para definir a família de PED sugere a utilização de critérios espaciais e ideológicos (IGNAZI, 2002; 2006). O primeiro parâmetro reflete a validade do espectro político esquerda-direita, que teve origem na Revolução Francesa e fundamentou as principais clivagens observadas nos sistemas partidários da Europeu Ocidental (ibidem). Este espectro político ordena os partidos políticos num espaço horizontal unidimensional e avalia a distância ideológica entre partidos em um sistema partidário particular (DOWNS, 1956; SARTORI, 1976). Consequentemente, os PED localizam-se à direita dos partidos conservadores e moderados, indicando a distância ideológica entre eles (CAPOCCIA, 2002). Porém, esta proposta assume que os PED não ocupam uma posição idêntica e estática no espectro político de diferentes sistemas partidários, uma vez que a sua localização depende da sua interação com os restantes competidores políticos

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(CARTER, 2005). A utilização deste critério espacial apenas permite uma seleção geral de PED, sendo a sua objetividade bastante reduzida. Portanto, deve ser complementada com uma análise aprofundada da identidade do partido segundo critérios ideológicos (KITSCHELT, 2007). Um método preliminar para examinar as ideologias de PED consiste em explorar se o partido realiza referências em público a um legado fascista e, na sequência disso, a sua oposição a valores democráticos. Porém, esta definição restringiria excessivamente a composição da família de PED aos partidos neofascistas, uma vez que cada vez menos partidos questionam abertamente a legitimidade da democracia ou procuram associar-se ao fascismo (HAINSWORTH, 1992; BETZ, 1994). Portanto, os critérios ideológicos devem ser refinados para permitir uma classificação mais abrangente dos PED. Na realidade, existe um amplo consenso de que os PED são ideologicamente distintos dos restantes adversários políticos (KITSCHELT, 1995; HUSBANDS, 2002). Uma revisão da literatura identificou a existência de cinco características ideológicas que são recorrentemente mencionadas em investigações sobre esta família partidária: nacionalismo, racismo, xenofobia, antidemocracia, e um Estado forte (MUDDE, 2000). Curiosamente, a antidemocracia é uma conceção mais ampla que os outros quatro traços ideológicos, mas é, simultaneamente, considerada uma condição necessária dos PED (EATWELL, 2004). Portanto, a aplicação da categoria de extrema direita exige a avaliação das propriedades antissistema dos partidos selecionados (IGNAZI, 2002, 2006; CARTER, 2005). O conceito de partidos “antissistema” restringe-se aos partidos políticos que exibem uma “oposição de princípio” ou uma oposição radical aos principais axiomas do regime democrático, além de terem o objetivo de transformar radicalmente o sistema de governo (SARTORI, 1976, p.118). A conceção restrita de partido antissistema implica, assim, que:

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[...] para isolar o cerne do conceito, nota-se que uma oposição antissistema obedece a uma ideologia que não partilha dos valores da ordem política dentro da qual opera. De acordo com a definição restrita, os partidos antissistema representam uma ideologia estranha ao meio, cuja existência num sistema partidário particular indica um regime confrontado com distância ideológica máxima. (SARTORI, 1976, p. 118)

Esta definição salienta a distância ideológica entre partidos bem como o efeito de deslegitimação da democracia das suas atividades partidárias nos diferentes contextos políticos. Os partidos antissistema não necessitam de se opor a todos os princípios fundamentais do sistema democrático para obterem esta classificação, sendo que oposição a apenas um desses é considerada suficiente (CAPOCCIA, 2002, p. 20). Características ideológicas antissistema também podem ser identificadas nas famílias de partidos de extrema esquerda, mas este grupo de partidos distingue-se dos PED em função da sua concordância com o princípio da igualdade humana (BOBBIO, 1996). Enquanto os partidos de extrema esquerda baseiam-se em princípios igualitários radicais, os PED são profundamente anti-igualitários e enfatizam a necessidade de promover desigualdade social e política ao nível institucional. A negação do princípio da igualdade humana por parte dos PED deve ser considerada uma propriedade antissistema, na medida em que este princípio é considerado um princípio fundamental da democracia liberal (JOPPKE, 1998; CAPOCCIA, 2002). Tal como Carter (2005, p. 17) sugere, elementos anticonstitucionais do extremismo de direita referem-se “a uma rejeição dos valores fundamentais, procedimentos e instituições do Estado democrático de direito”, bem como a “rejeição do princípio fundamental da igualdade humana”. Em suma, os PED podem ser classificados, de uma forma geral, pelo seu posicionamento no espectro político, e de forma objetiva com base em

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critérios ideológicos, através da avaliação das propriedades antissistema das ideologias destes partidos (IGNAZI, 2002; 2003). Estas propriedades antissistema podem ser uma ligação declarada a um legado fascista ou a defesa de valores anticonstitucionais ou antidemocráticos, tais como a negação do princípio da igualdade humana (KITSCHELT, 2007). Assim, as fronteiras da família de PED podem ser determinadas com precisão pelo critério ideológico, visto que os partidos de centro-direita não incorporam características “antissistema” nas suas ideologias. A distinção entre famílias partidárias de extrema esquerda e direita pode também ser feita com base na clivagem igualitária. A próxima seção examina diferentes tipologias de PED.

Tipologia da família de partidos de extrema direita Conforme visto anteriormente, a definição proposta por Ignazi (2003) com base em critérios espaciais e ideológicos permite uma delimitação objetiva das fronteiras da família dos PED relativamente às restantes categorias de famílias de partidos políticos. Porém, esta proposta não é exaustiva o suficiente para explorar a diversidade de PED que podem ser incluídos numa categoria singular (EATWELL, 2004). A questão agora consiste em saber se a intensa variedade de PED pode ser eblobada numa tipologia singular (MUDDE, 2007). O ressurgimento dos PED nos sistemas políticos Europeus foi acompanhado pela proposta de diversas tipologias para classificar os membros desta família partidária. Contudo, diversas dessas propostas não satisfazem as condições de exaustividade e exclusividade mútua indispensáveis para a formulação de tipologias objetivas (CARTER, 2005). Estes dois requisitos são preenchidos pela proposta formulada por Ignazi (2002, 2006), que sugere a divisão da família de PED em duas grandes categorias: PED tradicionais e PED pós-industriais.

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O primeiro tipo de partidos exibem abertamente uma ligação a legados fascistas ou nazis, como o Partido Nacional Renovador em Portugal na década de 2000, o British National Party no Reino Unido durante a década de 1990 ou o antigo Movimento Sociale Italiano em Itália durante a década de 1980 (IGNAZI, 2002; 2003, p. 33). Por sua vez, os PED pós-industriais são interpretados como um subproduto das novas clivagens políticas inerentes à sociedade pós-industrial e defendem uma “mistura, muitas vezes deslumbrante e falaciosa, da livre iniciativa e da proteção social (exclusiva para nativos), de propostas modernizadoras e reminiscências tradicionais”, como a Front National na França (INGLEHART, 1977; IGNAZI, 2002; 2003, p. 34). Os PED pós-industriais disfrutam de uma taxa de sucesso eleitoral incomparavelmente mais elevada que os PED tradicionais, os quais desapareceram quase totalmente dos sistemas partidários europeus (IGNAZI, 2002; 2003). Apesar da sua objetividade, esta tipologia permite ainda elevados índices de variação nas duas categorias propostas, enquanto sua aplicação parece ser pouco atraente dada a ausência de PED tradicionais nos sistemas partidários da Europa Ocidental. Uma tipologia recentemente aplicada a estudos de imigração designa os PED como partidos anti-imigração agregando partidos políticos e grupos sociais (MESSINA, 2007). Segundo esta propota, todos os grupos antiimigração criados desde meados da década de 1970 partilham três características: hostilidade pública contra os imigrantes; completa oposição a novos fluxos de imigração; e uma grande parte, senão todo o seu sucesso político, deriva da exploração das tensões sociais derivadas de imigração. Inspirado pela investigação de Kitschelt (1995), Messina (2007, p. 64-73) identifica cinco tipos de grupos anti-imigração:

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1. Grupos anti-imigração puros, que carecem de organização formal, uma vez que se organizam unicamente com base no seu antagonismo à imigração; 2. Partidos neofascistas/neonazis, que são inspirados pela ideologia fascista e possuem uma estrutura partidária bem-organizada; 3. Partidos de direita oportunistas, cuja postura anti-imigração depende da estratégia eleitoral adotada. A sua oposição à imigração varia de acordo com a estrutura de oportunidades políticas ao nível doméstico em vez de ser guiada por xenofobia. O seu posicionamento no espectro político oscila entre a extrema direita e o centro-direita; 4. Novos partidos de direita radical, considerados singulares pelo modo como combinam um “compromisso com o neoliberalismo e a liberdade económica individual com uma hostilidade a imigrantes, imigração, materialismo e democracia contemporânea”; 5. Partidos de direita etnonacionalistas, cujas atitudes em relação à imigração dependem do contexto político. Partidos etnonacionalistas são oportunistas, de questão-única, formados com base numa clivagem territorial/étnica. No entanto, esta tipologia padece de diversas lacunas. Primeiro, esta proposta não satisfaz a condição de exclusividade mútua, existindo uma sobreposição óbvia entre as categorias de partidos de direita oportunistas e partidos etnonacionalistas. Outra das lacunas identificadas consiste na avaliação das ações dos partidos em vez de se focar nos traços ideológicos dos partidos (MAIR e MUDDE, 1998; Ignazi, 2006). Terceiro, o enfoque na questão da imigração significa que esta tipologia é orientada por uma política pública, tornando a caracterização de PED fortemente contingente. Quarto,

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a denominação de partidos “anti-imigração” sugere erroneamente que estas organizações políticas são exclusivamente dedicadas a uma única clivagem política (single-issue parties) (KITSCHELT, 1995). Por estas razões, esta tipologia apresenta um elevado nível de fragilidade. Uma tipologia alternativa proposta por Elizabeth Carter (2005, p. 28) distingue os PED com base em três critérios objetivos: “1) importância atribuída pelos partidos à questão da imigração; 2) a natureza das atitudes racistas do partido; 3) atitudes do partido em relação à democracia, parlamentarismo e pluralismo”. O primeiro critério refere-se à importância da xenofobia e da preocupação do partido com a “homogeneização” da sociedade, permitindo a classificação dos PED em função da saliência que atribuem à imigração nas suas estratégias politicas. Doravante, tais partidos direitistas podem ser divididos entre partidos “radicalmente xenófobos” e aqueles que não atribuem qualquer importância a esta questão (CARTER, 2005, p. 29). O segundo critério proposto por Carter (2005, p. 35) identifica os PED conforme a sua adoção de racismo tradicional, racismo cultural ou a ausência total de qualquer ideologia racista. Partidos com ideologia racista defendem conceções biológicas e eugénicas de raça que são características do nazismo, enquanto os racistas culturais adotam a versão “etnopluralista” da Nouvelle Droite francesa da década de 1970 (TAGUIEFF & TRIBALAT, 1998). A principal inovação ideológica da Nouvelle Droite consistiu no abandono do racismo biológico a favor de uma conceção de “etnopluralismo”, que enfatiza a necessidade de preservar o caráter único e a pureza das identidades culturais dos diferentes grupos étnicos. Esta vertente ideológica pressupõe a existência de diferenças culturais irreconciliáveis que poderiam ser dissolvidas através da miscigenação de diferentes grupos étnicos (RYDGREN, 2005). A tese “etnopluralismo” está subjacente à corrente

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de islamofobia observada na Europa e à teoria do “choque de civilizações” que interpreta os conflitos modernos como consequência das diferenças culturais incomensuráveis entre nações de civilizações irreconciliáveis, particularmente entre a civilização “Ocidental” e a “Islâmica” (HUNTINGTON, 1996). Um tipo de xenofobia pouco explorado por Carter (2005) refere-se à xenofobia no acesso aos direitos sociais ou ao estado social (welfare chauvinism) decorrente da interpretação da nação como uma comunidade definida etnicamente (etnocentrismo). Esta derivação de ideologia de PED apresenta o estado social como provedor de proteção somente àqueles que pertencem à comunidade nacional, enquanto os migrantes são representados como parasitas ilegítimos dos recursos sociais, tal como a Front National preconiza com as suas propostas de “preférence nationale” (KITSCHELT, 1995, p. 23). Finalmente, os PED podem ser identificados com base nas suas atitudes relativamente à democracia, parlamentarismo e pluralismo (CARTER, 2005). Este critério avalia se os PED rejeitam a democracia ou, pelo menos, reivindicam a sua reforma institucional através da expansão ou restrição de liberdades. Um primeiro grupo de PED rejeita os valores fundamentais que sustentam os sistemas democráticos liberais e defendem a sua substituição por regimes autoritários. Um segundo grupo exibe propriedades antissistema, mas propõem reformas particulares para promover um enfraquecimento da democracia, uma redução dos poderes parlamentares e menor pluralismo. Um terceiro grupo de partidos também propõe reformas consideráveis dos sistemas políticos em benefício da expansão radical da liberdade e direitos individuais (CARTER, 2005, p. 41). Restam dúvidas sobre a integração deste último grupo na família dos PED (KITSCHELT, 2007), apesar de ser um critério útil para distinguir movimentos anarquistas de extrema direita inspirados pelo trabalho de Robert Nozick (1975).

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Através da articulação dos últimos três critérios, cinco principais categorias de PED foram identificadas: 1. Partidos neonazis — considerados radicalmente xenófobos, marcados pela adoção de racismo tradicional e oposição a sistemas democráticos liberais; 2. Partidos neofascistas — rejeitam os sistemas democráticos liberais, sem adotarem uma ideologia xenófoba; 3. Partidos xenófobos autoritários — exibem elevada xenofobia e são defensores de racismo cultural e de reformas constitucionais significativas que promovam um Estado mais autoritário; 4. Partidos xenófobos neoliberais — exibem elevada xenofobia e promovem a vertente de racismo cultural, mas são proponentes de reformas neoliberais do Estado e de índices mais reduzidos de intervenção estatal; 5. Partidos populistas neoliberais — que não exibem quaisquer atitudes xenófobas ou racistas, mas cujos projetos de reforma do regime existente, a favor de uma versão minimal do Estado, contêm propriedades antidemocráticas (CARTER, 2005, p. 51). Esta tipologia de PED oferece diversas vantagens em comparação com as outras propostas revistas neste estudo: providencia uma definição única e flexível de PED, preenche as condições de exaustividade e exclusividade mútua, e delineia categorias precisas para classificar os diversos membros desta família partidária (KITSCHELT, 2007). Esta proposta também se foca nas identidades partidárias, em vez de se focar nas suas ações ou estratégias eleitorais, à luz de três critérios qualitativos (saliência da xenofobia, natureza de crenças racistas e atitudes em relação a democracia, parlamentarismo e pluralismo). Esta tipologia é, também, suficientemente flexí-

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vel para permitir variações no posicionamento de um PED dentro das categorias propostas ou para excluir um membro desta família partidária devido a alterações ao seu caráter ideológico. Este seria o caso da Front National Francesa, que durante a década de 1980 adotou uma fórmula ideológica que combinava a defesa de políticas neoliberais com intensa xenofobia cultural. Ao longo da década de 1990 e atualmente sob a liderança de Marine Le Pen, a Front National passou a preconizar políticas protecionistas e criticar o neoliberalismo em combinação com uma intensa Islamofobia (CARVALHO, 2014).

Conclusões Como vimos anteriormente, a expressão “extrema direita” apresentase como a denominação mais apropriada para os partidos direitistas porque indica os critérios selecionados para delimitar as fronteiras desta família partidária. Em paralelo, esta terminologia sugere uma continuidade com o passado ao invés de uma quebra radical. Os PED continuam a representar um desafio aos fundamentos da democracia liberal na atualidade tal como o fizeram no passado, apesar de não serem um mero reflexo das relíquias fascistas do período entre guerras mundiais. A segunda parte do capítulo explorou os métodos disponíveis para a construção de famílias partidárias e concluiu que o critério ideológico constitui a abordagem mais consistente. Desta forma, Mudde (2007) propôs uma conceção restrita e outra alargada para identificar partidos de direita populista radical, em que a conceção de “nacionalismo nativista” era considerada a propriedade ideológica fundamental. Apesar do mérito desta proposta, há motivos para questionar a conceção restrita de racismo, bem como a definição de populismo como uma ideologia, em vez de um estilo político.

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Em alternativa, a proposta de Ignazi (2002, 2006) apresentou maiores níveis de objetividade porque identifica os PED através de critérios espaciais relacionados com o posicionamento no espectro político esquerda-direita e ideológicos derivados da observação de características antissistemas. Estas propriedades antissistema podem ser uma associação declarada ao fascismo ou a negação de um princípio fundamental das democracias liberais, tal como a igualdade humana. Ao longo da terceira parte desta investigação foram exploradas diferentes tipologias de PED. Enquanto a desagregação dos PED entre partidos tradicionais e pós-industriais permitia uma excessiva pluralidade de partidos dentro dessas duas categorias, a tipologia de partidos “anti-imigração” encontrada em estudos de imigração apresentava demasiadas lacunas que limitam a sua objetividade. Por fim, a tipologia com maiores níveis de exaustividade e objetividade identifica os PED com base em três critérios ideológicos: saliência da xenofobia; natureza das crenças racistas; e atitudes em relação a democracia, parlamentarismo e pluralismo. Da articulação destes três princípios, cinco subcategorias principais de PED emergiram: partidos neonazis; partidos de neofascistas; partidos xenófobos autoritários radicais; partidos xenófobos neoliberais radicais; e partidos populistas neoliberais.

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