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Carlos Nelson Coutinho traduziu dois dos livros seminais de Antonio Gramsci: Literatura e Vida Nacional e Os Intelectuais e a Organização da Cultura, publicados pela Civilização Brasileira; na coleção Fontes do Pensamento Político, organizada pela L&PM, de Porto Alegre, lançou Gramsci, contendo uma exposição de suas principais concepções sobre democracia, Estado e estratégia de luta partidária. Desse período é também o texto “Cultura e democracia no Brasil”, datado originalmente de 19771979 e colocado em obra de 1980, A Democracia como Valor Universal e Outros Ensaios. O estudo aparece no quadro do temário geral do livro, que se volta à discussão das relações entre o pensamento marxista e a prática democrática. Antes da derrocada do bloco socialista no Leste europeu, mas dentro da moldura representada pela ascensão do eurocomunismo em países como a Itália, o autor está procurando refletir sobre as possibilidades de articular a tendência totalizante proposta pelo Estado comunista com o funcionamento democrático da sociedade, que não pode ser descrita desde uma ótica uniforme, massificante e homogeneizadora. O “caso brasileiro”, como o autor o chama, apresenta algumas particularidades, especialmente se pensado a partir das ligações entre cultura e democracia. Primeiramente pelo que não afirma diretamente, mas deixa inferir: se a sociedade não é democrática, a cultura também carece dessa qualidade; depois, pela propriedade mais evidente e dolorosa da cultura brasileira: ela é produto da importação de componentes estrangeiros, adaptados aos interesses da classe social que os adota. Incorporada por uma camada dominante para quem a cultura tem tãosomente valor ornamental, ela assume essa condição e torna-se tão elitista, quanto supérflua. Revela-se mais interessante “quando ‘transplantada’ para o Brasil por uma classe progressista e anticolonial”; nesse caso, “uma

corrente cultural avançada contribui para formar em nosso País uma consciência social efetivamente nacional-popular, contrária ao espírito da dependência.” (11) Por aí entra o “nacional-popular”: ele quebra “o distanciamento entre os intelectuais e o povo, distanciamento que está na raiz do florescimento da cultura ‘intimista’ ou do elitismo cultural e que, no mais das vezes, não resulta de uma escolha voluntária do intelectual.” (12) Identifica-se aí a bem-comportada aplicação de um princípio exposto por Gramsci, que critica a Inteligentsia italiana do passado por não ter sabido “satisfazer as exigências intelectuais do povo”, mais precisamente, por não ter sido capaz “de se difundir até as camadas mais toscas e incultas, como era necessário do ponto de vista nacional” e ter-se “mantido ligada a um mundo antiquado, mesquinho, abstrato, demasiadamente individualista e de casta”.(13) Construir, pois, uma “literatura popular”, título do capítulo em que aparece o citado trecho de Gramsci, significa empregar linguagem que aproxime intelectual e povo, as camadas populares que, no caso brasileiro, conforme Coutinho, “são freqüentemente ‘decapitadas’ e lutam com grandes dificuldades para dar uma figura sistemática à sua autoconsciência ideológica.” (14) O apelo ao nacional-popular patenteia o alinhamento dos intelectuais ao povo, ao lado de quem se revelam “‘intelectuais orgânicos’ das correntes populares”(15), emprego peculiar da noção ainda de origem gramsciana, já que o intelectual orgânico responde ao chamado da classe dominante, e não ao dos segmentos subalternos. De todo modo, o nacional-popular resolveria vários dilemas da cultura brasileira: — mesmo que nascido de uma proposta suscitada por um conceito


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