RIZOMA.NET - Anarquitextura

Page 177

177

Uma das críticas que se fez à arquitetura praticada por Flávio Império, Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre foi esta se restringir à encomenda de residências burguesas quando a sua preocupação fundamental encaminhava-se para as necessidades do povo. A abóbada era a resposta. Mais barata, sem o ferro das cascas niemeyerianas, mais simples tecnicamente para uma construção rápida por poucos operários, a abóbada representava ao mesmo tempo um protótipo de democratização da casa paulistana e uma poética para a casa popular. Protegendo os operários na obra, dispensava o desenho a priori e oferecia condições de livre desenvolvimento aos ofícios individuais. Na impossibilidade de a indústria atingir todas as classes, o canteiro participativo somar-se-ia às tentativas de racionalização das técnicas populares no confronto com o altíssimo déficit habitacional. Visto pelos olhos do presente, a solução parece bastante razoável. Contudo, a época levaria à troca da plataforma arquitetônica pelo fuzil. Ora, se o esquema, como notou o crítico Roberto Schwarz no posfácio, "talvez não distinguisse o bastante entre a divisão social do trabalho e a divisão da sociedade em classes", o livro tampouco nos remete ao processo de industrialização e massificação da produção habitacional naqueles anos. Diante da ausência de atores sociais capazes de transformar a política habitacional da ditadura -- que construiu cerca de 2,4 milhões de moradias entre 1964 e 86, com transformações importantes no mercado de terras e na cadeia produtiva da habitação -- as breves referências do autor ao BNH são pouco elucidativas. Do modo como surgem, não permitem apreciar adequadamente o campo de atuação e alternativas profissionais, nem mesmo os impasses do desenho industrial proposto por [Vilanova] Artigas para a produção de habitações populares pelo Estado. Resta-nos apenas o sonho de uma técnica capaz de re-humanizar o trabalho. O curioso é apanhar a história da arquitetura como trabalho, o que aliás é realizado com inesperada vocação de parcimônia no exame de projeto. O

próprio mestre Artigas herda respeito quando se trata de olhar a sua obra. Das casas paulistanas (Baeta, Viterito, Berquó, entre outras) aos grandes conjuntos do CECAP [Caixa Estadual de Casas para o Povo, SP], como o Zezinho Magalhães Prado, em Guarulhos, o livro sobre esta geração de irmãos dissidentes é também eloqüente quanto aos temas, partidos, propósitos e problemas colocados por seu pai totêmico. A sua reverência estende-se inclusive à hora da crítica ao desenho, tributária da idéia de afirmação da escola modernista como instauradora de uma nova relação de produção e não o contrário. Haveria por certo outras possibilidades historiográficas para a arquitetura moderna internacional, brasileira ou paulista, mas é este um ponto cego peculiar à sua empreitada: compreender o passado pré-modernista na chave da autonomia ou semi-autonomia operária ou artesã. É a sua própria bibliografia que reconhece a insuficiência da pesquisa sobre a história econômico-política da arquitetura, da divisão do trabalho na construção ou da sindicalização dos construtores no Brasil escravista e proto-republicano. Não haverá aí uma paradoxal reverência ao conceito clássico de projeto impondo-se sobre o fazer artesanal com o advento da arquitetura moderna? Não está aí uma contradição com princípios de história da arquitetura capazes de cancelar ou inverter hierarquias entre arte e ofício, mão e máquina, gênio e engenho, arquitetura e construção? Mutirões e direitos

De partida, uma das coisas que intrigam a leitura é a pressa em estabelecer continuidade entre os representantes da Arquitetura Nova e os novos assessores populares dos movimentos de moradia em São Paulo -arquitetos, urbanistas, engenheiros, advogados, sociólogos, assistentes sociais etc, sem vínculos com o Estado e as empreiteiras, contratados pelos movimentos, cujo trabalho vem sendo objeto de inúmeras teses acadêmicas


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.