Campos de desabrigados

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110 Campos de Desabrigados – a continuidade do desastre

contato, um estar ajudando o outro... (Coordenador do abrigo Capela Cristo Rei, grifo nosso). Arendt (1989) afirma que a perda do que chamamos de “direito humano” envolve a perda da relevância da fala e a perda de todo relacionamento humano, coincidindo com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral – sem uma profissão, sem uma cidadania, sem uma opinião, sem uma ação pela qual se identifique e se especifique – e diferente em geral, representando nada além da sua individualidade absoluta e singular, que, privada da expressão e da ação sobre um mundo comum, perde todo o seu significado (ARENDT, 1989, p. 335-336). Desabrigados é uma categoria que sintetiza esse humano em geral, que parece estar destituído de uma profissão, de uma cidadania, de uma opinião, encarado como individualidade absoluta e singular, a quem não cabe direito de fala diante da preferência técnica de coordenadores de abrigos. A administração burocrática e técnica dos abrigos temporários analisados em Ilhota partia de um arcabouço autoritário sobre o modo pelo qual deveriam administrar “a massa”, sem quaisquer processos decisórios acerca de qual destino as famílias querem para si, isto é, trata-se de uma preferência de coordenadores de abrigos e não de decisões coletivas daqueles que estarão submetidos a tais condições, não só sob a intervenção constante do olhar do outro como também dos policiais. Em um território definido como uma área sob relações de poder, uma área em que todos estão expostos ao olhar dos outros, como o abrigo no Capela Cristo Rei, permite-se um controle de todos sobre todos, perde-se a dimensão de si e homogeneíza-se no meio de todos, perdendo-se paulatinamente a identidade, como a mulher que passa a perder as práticas espacializadas que lhe permitiam se reconhecer como mãe e esposa (cf. SIENA, 2009), mas também do pai para com os filhos. Isto é, vai se perdendo a dimensão da esfera privada. Valencio (2005), ao reportar-se a um abrigo temporário organizado para os afetados pelo rompimento da barragem de Camará (Paraíba), descreve como a rotina pública do abrigo acabava alterando a relação entre pai e filhos e o impacto adicional que um pai passou a sofrer quando se viu não só sem a casa, mas quando o filho deixou de lhe pedir a bênção antes de dormir. A rotina no abrigo imprimia outra lógica de convivência e de autoridade. Os filhos não estavam mais sob as regras dos pais construídas na rotina da esfera privada, mas sob o ordenamento de uma coletivização das rotinas imposta pelas regras do abrigo.


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