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Entre calabouços e chefões

Para além das fronteiras do lazer, jogos interpretativos exercitam criatividade de universitários

Todos aguardavam ansiosamente o fim da campanha de Dungeons & Dragons. Contavam as horas daquela quinta-feira, incansavelmente. Afinal, o confronto contra Tiamut, o dragão dourado, é um evento imperdível. Foram horas tensas e recheadas de batalhas contra inimigos poderosos. O mestre foi impiedoso: nos conflitos, três aventureiros padeceram e só restou a corajosa paladina. Ela enfrentaria a besta sem ajuda dos companheiros. Respirou fundo, lidou com a tensão como pôde, mesmo assim, o sentimento corroía suas entranhas. Incerta, pegou o dado de 20 lados, fechou os olhos e rolou o objeto na mesa.

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A vivência universitária não é tão diferente de uma sessão de RPG - Jogo de Interpretação de Papéis, em tradução livre. Embora os obstáculos no jogo sejam duendes e dragões, o aluno enfrenta problemáticas tão desafiadoras quanto. A pressão gerada pelo dia a dia acadêmico impacta discentes em qualquer instituição de ensino e, no meio desse embate, as atividades pesam na vida pessoal. “Às vezes a gente se pega vivendo no automático para evitar se sentir desconfortável consigo mesmo”, relata Maria Eduarda Bento, estudante de Artes Visuais na UFU. Assim como ela, alunos são pegos pelo acúmulo de estresse, fator que pode levar ao adoecimento mental e, em casos mais graves, ao suicídio.

Segundo dados do “Global Student Survey”, pesquisa realizada no meio universitário em todo o mundo, 76% dos estudantes de ensino superior no Brasil relataram impactos na saúde mental em 2020 e 2021, durante a pandemia da Covid-19. Contudo, o problema não é recente: desde 2002, o Brasil ocupa a primeira posição do número de suicídios entre alunos universitários, de acordo com estatísticas do Centro de Valorização da Vida.

Michele Falco, psicóloga da Divisão de Saúde da UFU, também acredita que um dos fatores que contribuem para o estresse desse grupo possa ser a própria adaptação à vivência na Universidade. “A própria adaptação à vida universitária, com suas demandas e responsabilidades, pode ser desencadeadora de estresse para os universitários, sobretudo no início da vida acadêmica".

Para além da aventura

Presente de diversas maneiras na rotina dos estudantes, o estresse é capaz de desorganizar cronogramas e dificultar o planejamento futuro. Dificuldades na convivência cotidiana também são apresentadas, inimigos tão poderosos quanto as criaturas do jogo. Uma das magias eficientes contra o chefão invisível é o lazer: “As vivências nos âmbitos pessoal e profissional podem gerar uma sobrecarga e, assim, uma necessidade de autocuidado, a fim de vivenciar outros momentos e se dedicar a outras experiências que lhe fazem sentido, que dão prazer e são, assim, saudáveis”, diz Michele.

Nos caminhos desses calabouços do alívio está o RPG, forma de entretenimento conhecida por seus aspectos interativos. O jogo consiste na interpretação de personagens em uma história narrada pelo mestre, figura capaz de ditar o tom da aventura. Para definir os rumos e ações dos personagens, são utilizados os dados como elemento de incerteza.

Para muitos, o RPG vai além de uma simples atividade de la- zer. Jefferson Ribeiro, programador e mestre desde 2002, explica como o jogo ajudou nos aspectos pessoais e profissionais de sua vida: “Por seu caráter coletivo, a prática desenvolve no jogador habilidades de comunicação, leitura, criatividade e até mesmo matemáticas". Durante a vivência na Universidade, Jefferson, assim como muitos estudantes, sofreu de consequências negativas em relação à sua saúde mental. Contudo, encontrou no RPG um refúgio da realidade e um alívio para o estresse acumulado: “Quando jogo, sinto que me desligo do mundo atual. O mesmo acontece com outros jogadores”.

“É uma sensação de explorar o que não foi explorado, pensar como alguém que não eu mesma”, aponta Maria Eduarda, também jogadora de RPG. Devido à vida universitária, ela diminuiu a frequência das sessões, mas mantém alta as expectativas.

A natureza coletiva do RPG permite aos jogadores desenvolverem capacidades empáticas sem deixar de lado suas convicções e as características de seus personagens. Cada individualidade forma o coletivo e vice-versa, sem um protagonista fixo na história contada. A abstração também é parte essencial do jogo: desde a criação do personagem utilizado até o fim da campanha, jogadores e mestres são postos à prova, desafiados a usar o máximo de seu potencial criativo. O improviso é incentivado nos tes- tes, auxiliando na desenvoltura do raciocínio lógico, principalmente do mestre, pego de surpresa pelos rumos da aventura.

Todo calabouço possui armadilhas, e com o RPG não é diferente. As capacidades de absorção no mundo fictício podem levar ao vício neste sentimento de fuga da realidade. “O jogo é uma imersão que leva o jogador para outro mundo e, quando isso acontece, sentimentos fortes podem ser gerados, podendo levar essa sensação para fora daquele momento ”.

Tão nervosa quanto um universitário em dia de prova, ela evitou ao máximo encarar o resultado do dado até ouvir os berros eufóricos dos amigos ao redor da mesa. Criou coragem, respirou fundo e deixou a ansiedade no escanteio. Quando notou o número máximo exposto no dado, abriu um sorriso de orelha a orelha. Para ela, nenhum chefão é imbatível, mesmo dragões dourados ou o pior dos sentimentos. 