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Volume 3 - NĂşmero 3 - 2Âş Semestre 2009


Expediente Publicação semestral - Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo Reitor José Pio Martins Vice-Reitor e Pró-Reitor Administração Arno Antonio Gnoatto Pró-Reitor de Graduação Renato Casagrande Pró-Reitor de Planejamento e Avalição Institucional Cosmi Damião Massi Pró-Reitora da Pós-Graduação e Pesquisa Bruno Henrique Rocha Fernandes Diretor Acadêmico dos Núcleos de Ciências Exatas e Tecnológicas, Humanas e Sociais Aplicadas, e Biológicas e da Saúde Marcos José Tozzi Coordenador do Curso de Comunicação Social - Jornalismo Alexandre Castro Coordenador do Curso de Comunicação Social - Publicidade e Propaganda André Tezza Consentino Coordenador Adjunto do Curso de Comunicação Social - Publicidade e Propaganda Ricardo Pedrosa Macedo

Conselho Editorial Integrantes externos Adolpho Queiroz João Carrascoza Jorge Pedro Souza José Marques de Mello Maria José Baldassar Mônica Cristine Fort Integrantes da UP Alexandre Bastos Alexsandro Eugenio Ferreira André Tezza Consentino Celso Rogério Klammer Dario Luiz Paixão Eduardo Túlio Baggio Fábio de Paula Xavier Marchioro Gilmar Andrade Hilton A. Marques Castelo Ipojucan Calixto Fraiz Marcelo Fernando de Lima Marcos Araújo

Coordenação Editorial Alexandre Castro André Tezza Consentino Ricardo Pedrosa Macedo www.up.edu.br/comunicacao Projeto Gráfico e Diagramação Cristiane Pedrosa Macedo Ricardo Pedrosa Macedo

www.ricardomacedo.com.br

Dados internacionais de catalogação na Publicição (CIP) - Biblioteca da Universidade Positivo COMUNICAÇÃO : reflexões, experiências, ensino ; Revista dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda / Universidade Positivo. v. 3 - n. 3 - 2º semestre 2009 - Curitiba : Universidade Positivo, 2009 Periodicidade semestral ISSN 2175-5132 1. Jornalismo - Periódicos. Publicidade - Periódicos. I. Universidade Positivo. CDU 070:659 Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Sumário ADocudrama na telenovela: qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é mera coincidência?

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Alexandre Tadeu dos Santos

AO VIVO: TELEVISÃO E PUBLICIDADE NOS ANOS 50. LIVE: TELEVISION AND ADVERTISING IN THE 50’S

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Hilton Castelo

IMPRESSOS ALTERNATIVOS: EXPRESSÕES E IMPRESSÕES DA CONTRACULTURA BRASILEIRA

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Patrícia Marcondes de Barros

Vestindo a camiseta amarela. A campanha das Diretas apresentada por Exclam Propaganda.

47

Hilton Castelo

APÓS CEM ANOS - A ATUALIDADE DE JOAQUIM NABUCO O PATRONO DA RAÇA NEGRA.

65

Pedro Elói Rech

MEMÓRIA, HISTÓRIA E COTIDIANO

79

Marialva Carlos Barbosa

Nacionalismo e futebol: a cobertura do sorteio dos grupos da Copa do Mundo de 2010 nos jornais Le Figaro e Folha de S. Paulo Lennita Oliveira Ruggi Elza Aparecida de Oliveira Filha

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Nacionalismo e futebol: a cobertura do sorteio dos grupos da Copa do Mundo de 2010 nos jornais Le Figaro e Folha de S. Paulo

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Lennita Oliveira Ruggi Elza Aparecida de Oliveira Filha

Telejornalismo e Fait Divers: uma nova maneira de narrar a notícia?

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Adriana Pierre Coca

Rádio Teia Uma prática que começa na universidade Luiz Witiuk

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Apresentação Este terceiro volume da coleção Comunicação – Reflexões, Experiências, Ensino evidencia, mais uma vez, o vigor e a constância da produção científica dos professores dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo. Oferece-se aqui à comunidade acadêmica – e mesmo ao público em geral – uma nova rodada de contribuições para os debates e o entendimento do complexo mundo interligado por tecnologias de comunicação cada vez mais amplas, velozes e de consequências sociais, culturais, políticas e econômicas tão imprevisíveis quanto fascinantes. O objetivo desta coleção – o de estimular a produção do conhecimento na universidade, de tal modo que se sobreponha à mera reprodução do conhecimento – é plenamente atingido neste volume. Em seus artigos, os professores, por exemplo, revisitam e jogam novas luzes sobre momentos históricos da comunicação social brasileira – como os primórdios da publicidade televisiva nos anos 1950, as sementes plantadas pelo jornalismo contracultural dos anos de chumbo da ditadura militar, e a notável contribuição paranaense na unificação da linguagem do sonho das diretas já. Há trabalhos que estimulam as análises sobre temas ainda pouco explorados no País, como o docudrama nas telenovelas e o fenômeno dos fait divers no telejornalismo, e um estudo internacional sobre relações de nacionalismo e futebol em grandes jornais. Agregam-se, ainda, reflexões sobre questões tão encobertas quanto críticas da sociedade brasileira – como as que envolvem a raça negra – e indagações sobre memória, história e cotidiano. Sem contar, com os pés absolutamente no chão, do relato concreto de muito bem-sucedida experiência de ensino de radiojornalismo. Comunicação – Reflexões, Experiências, Ensino, Volume 3 vem se somar à notável, senão ímpar, produção dos professores dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo que, sempre com o decidido apoio da Administração Superior da instituição, lançaram nos últimos oito anos mais de 20 livros, vários deles produzidos em conjunto com seus alunos. São obras que não apenas abordam temas da área específica da comunicação social, como passeiam pelo romance, por registros históricos e fotográficos, e coroam-se com parcerias com outros cursos da instituição – como Direito, Medicina e Design – e até com universidade européia. Desejamos, organizadores e articulistas desta obra, que a abrangência de temas aqui tratados possa estimular novas produções acadêmicas e inspirar novas óticas profissionais. E prometemos, desde já e para breve, o quarto volume desta nova e promissora coleção.

Alexandre Castro, André Tezza, Ricardo Macedo Organizadores


Docudrama na telenovela: qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é mera coincidência?1 Alexandre Tadeu dos Santos2 RESUMO Esta pesquisa baseia-se numa investigação preliminar sobre a telenovela brasileira- enquanto formato híbrido - que permite diversas combinações de linguagem e de gêneros. Dentre estas combinações, destacamos a simbiose entre o “real” ou factual e a ficção. Neste sentido, esta proposta busca refletir sobre a aparição de pessoas “reais” numa obra tradicionalmente de ficção, a exemplo do estilo dramatúrgico de Glória Perez e de Manoel Carlos. Com efeito, uma hipótese se impõe: a de que a telenovela brasileira se aproxima do gênero docudrama, bastante comum na televisão chilena e britânica, ao fundir elementos formais do documentário com o melodrama. PALAVRAS-CHAVE: Telenovela; Docudrama; Ficção; Melodrama.

Abstract This research is based on a preliminary investigation on the Brazilian telenovela, while hybrid format - which allows various combinations of language and gender. Among these combinations, we highlight the symbiosis between the “real” or factual and fiction. Therefore, this proposal seeks to reflect upon the appearance of real people in a traditional work of fiction, such as the dramaturgical style of Gloria Perez and Manoel Carlos. Indeed, one hypothesis is required: that the Brazilian telenovela nears the docudrama genre, quite common in the Chilean and British television, merging formal elements of documentary with melodrama. Keywords: telenovela, docudrama, fiction, melodrama

1 Trabalho apresentado na NP Ficção seriada do XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Graduado em Rádio e TV pela Universidade Estadual Paulista, Mestre em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná e Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Atualmente é docente das disciplinas Produção Publicitária em TV III, Comunicação Comparada e Projeto Experimental na Universidade Positivo - Curitiba - PR.


Docudrama na telenovela: qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é mera coincidência?

A intervenção do “real” na telenovela. Este trabalho se propõe a refletir sobre a combinação entre a ficção e a não-ficção no contexto televisual. Isto porque é recurso comum dos autores brasileiros, a exemplo dos novelistas Manoel Carlos e Glória Perez, abrirem espaço para pessoas “reais” darem seus depoimentos de vida dentro da trama. Tal reflexão implica formular uma questão nos seguintes termos: é admissível afirmar que a telenovela brasileira, neste sentido, aproxima-se do gênero documentário? Em que medida? Não pretendemos com este artigo dar conta de toda complexidade que a resposta exige, até porque este assunto não se esgotaria em poucas páginas. Almejamos, contudo, contribuir para levantar uma questão tão pouco estudada pelos pesquisadores da área. No cinema há todo um arsenal conceitual-teórico que constitui, por assim dizer, o capital científico do campo cinematográfico já consagrado e consolidado. Por outro lado, não é possível afirmar o mesmo da televisão, veículo no qual questões de ordem técnica ou mesmo de linguagem são representadas por poucos estudos científicos se comparadas com seu antecessor: o cinema. Por preconceito herdado da escola crítica? Talvez. Pelo forte apelo popular da televisão? Quiçá. Fato é que, para tentar elucidar o problema levantado no início desta escrita, ou seja, como classificar ou compreender a aparição de pessoas “reais” ou naturais nas tramas de telenovela é necessário recorrermos ao campo cinematográfico, em que questões desta ordem já são discutidas há tempos. Por exemplo, o termo cinema verdade, alcunhado por Edgar Morim, já suscitava e admitia a intervenção do “real” na obra cinematográfica. E no campo da televisão, é possível falarmos em uma televisão verdade? Em que proporção? Buonanno(1993) nos chama a atenção para a existência de uma reality syndrome ou de uma TV Truth – Televisão verdade - na televisão dos Estados Unidos na década de 70 onde havia uma tendência em abordar escândalos sensacionalistas e reconstituições de históricos de vida, enquanto na Inglaterra da década de 60 buscava reconstituir investigações políticas e sociais. Chronique d`um Été (Crônica de um verão), filme dirigido por Jean Rouch em parceria com Edgar Morin, apresentava uma nova forma interativa do documentário. Assumindo a recente técnica do som direto, esta obra enfatizava a palavra através de diálogos e entrevistas entre realizadores e “atores sociais”. Com esta obra, Edgar Morin rememora o termo “Cinema-Verdade”, alcunhado por ele alguns anos antes do filme. (Da-Rin, 1995 p.114). Vale lembrar que alguns pesquisadores entendem cinema direto e cinema verdade como sinônimos, já outros autores preferem a utilização do termo Cinema-direto para as realizações com pouca intervenção dos realizadores e Cinema-verdade, quando o diretor interage com o fato:

O documentarista do cinema direto levava sua câmera para uma situação de tensão e torcia por uma crise; a versão de Rouch do cinema-verdade tentava precipitar uma. O artista do cinema direto aspirava a invisibilidade; o artista do cinema-verdade de Rouch era frequentemente um participante assumido. O artista do cinema direto desempenhava o papel de um observador neutro;

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o artista do cinema verdade assumia o de provocador. (Ruspoli apud Da-Rin, 1995: 116)

Tecnicamente, ao contrário do cinema, a televisão já nasceu direta. Dada a impossibilidade de gravação de sons e imagens na década de 50, a programação de televisão era transmitida ao vivo, ou seja, sons e imagens eram simultâneos e transmitidos no mesmo momento da capitação. Na América Latina, a ficção é a marca registrada do início das transmissões televisuais, representada principalmente pelas telenovelas. Num primeiro momento, quando podemos observar o início da televisão no Brasil na década de 50, as primeiras novelas importavam textos dos países latino-americanos e eram financiadas por companhias produtoras de bens higiênicos como a Colgate Palmolive e Gessy-Lever. Tal tendência irá perdurar até o final dos anos 60, período no qual a TV Globo criou um departamento próprio de produção de telenovela iniciando ,assim, uma nova fase da telenovela brasileira. Entretanto, no início desta fase até 1969, as produções de telenovela estiveram sob a responsabilidade da cubana Glória Magadan que manteve os cenários e nomes estrangeiros nos personagens. Segundo Fernandes (1994, p.60): Nas primeiras telenovelas diárias, os dramas mostram príncipes europeus do fim do século passado, aristocratas mexicanos, milionários que empobrecem, mas que, em compensação, obtêm a felicidade, que decorre das coisas simples, crianças desamparadas (na verdade, herdeiras de fortunas incalculáveis) e justiceiros mascarados. A função da trama é colocar, ao seu final, as coisas nos seus devidos eixos, no lugar em que se encontravam antes de os primeiros capítulos irem ao ar. /.../ A cada final de capítulo resta ao proprietário de um aparelho receptor ficar na expectativa do que irá acontecer em seguida, quando o herói com certeza enfrentará novas armadilhas que se interpõem entre ele e a justiça definitiva. Igualzinho ao seriado cinematográfico, a mesma estrutura do folhetim de Eugène Sue ou da novela radiofônica. Sem novidades

Esta primeira fase da telenovela, pré-1968, é classifica por Hamburger (2005) como uma fase “fantasia”, que traziam novelas calcadas predominantemente na ficção com histórias de sheiks, príncipes e contos de fadas. A partir da saída de Magadan, as telenovelas passaram a abordar um conteúdo mais “realista” absorvendo representações do cotidiano do Brasil. Segundo Hamburger (2005: 85) “Referências à cultura nacional foram expandindo e se tornaram explícitas com o uso das cores da bandeira, entre outros símbolos nacionais”.

A telenovela brasileira entre a ficção e a realidade. A telenovela é considerada uma obra de ficção, na qual atores profissionais interpretam personagens com características criadas e imaginadas por um autor. Até

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Docudrama na telenovela: qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é mera coincidência?

aproximadamente o início dos anos 90, era comum a principal emissora de televisão do país, representada pela TV Globo, incluir nos créditos finais da obra a seguinte advertência “esta é uma obra de pura ficção, qualquer semelhança, com lugares, fatos e pessoas conhecidas terá sido mera coincidência”. Este esclarecimento já sinalizava na época a complexidade conceitual desta obra que se assumia como ficcional, mas que admitia semelhanças e referências com o “mundo real” ou não-ficcional. Por corolário, a combinação entre ficção e não-ficção pode trazer pontos de vista que não permitem pensar a telenovela como uma obra exclusivamente ficcional. Se admitíssemos que houvesse uma fronteira rígida entre a ficção e não-ficção, o que dizer dos depoimentos de pessoas “reais” que apareciam no final de cada capítulo da novela “Páginas da vida” comentando, com exemplos próprios, fatos que a obra abordou naquele dia como homossexualidade, bulimia e alcoolismo, entre outros? Para Laura Mattos3, colunista da Folha de São Paulo, Manoel Carlos, autor da novela Páginas da Vida “leva ao limite sua estratégia de atrair a audiência por meio da identificação do público com suas histórias. Se, por si só, o telespectador não for capaz de relacionar a sua vida com a de Helena (personagem interpretada por Regina Duarte, grifo meu) e cia, lá está alguém para realçar todas as possíveis conexões entre ficção e realidade”. Alguns desses depoimentos geraram polêmica, como o caso de uma senhora de 68 anos relatando seu primeiro orgasmo aos 45 anos. Segundo artigo do jornal Folha de São Paulo, publicado em 17/07/2006, a própria TV Globo admitiu que houve excesso e prometeu controlar o conteúdo dos depoimentos. O referido depoimento entrou na seqüência de uma cena onde a atriz Ana Paula Arósio fazia Striaptease. “Botei a vitrola a música Côncavo e Convexo e fui dormir. E simplesmente, gente, quando eu acordei, eu estava com a perna suspensa, a calcinha na mão, e toda babada.” Neste mesmo artigo, o autor de Paginas da Vida, Manoel Carlos, defende-se: “Lamento e peço desculpas se ofendi e choquei algumas pessoas. Não era minha intenção. Todo o valor dos depoimentos está exatamente no espontâneo. Na sinceridade”. Sempre em primeira pessoa, o entrevistado dá o depoimento de sua vida olhando diretamente para a câmera. Os depoimentos são selecionados de acordo com a trama. Portadores de síndrome de down, homossexuais assumidos, filhos de pais alcoólatras, país que perderam seus filhos choram diante da câmera relatando seus dramas. Sempre em locação, avistamos ao fundo o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro e com os ruídos característicos da cidade capturados de maneira direta. Tal procedimento narrativo, em certa proporção, assemelha-se com a técnica do cinema direto, na medida em que “ao se colocar disponível para uma experiência desta natureza – querer-se filmado, saber-se filmado, atuar diante da câmera sem um plano preestabelecido, liberar a memória e a imaginação – cada um dos “atores” embarcava efetivamente na aventura do cinema direto” (Da-Rin, 2004: 120) A técnica do cinema direto só foi possível com o desenvolvimento de equipamentos de captação audiovisual na década de 1960 que possibilitaram jornalistas estadunidenses a agilizarem seus trabalhos de reportagens. Segundo Da-Rin (1995, 3

In “Novela impõe moral da história”, publicado em 18/07/2006. 10 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 07-20| 2° Semestre 2009


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p. 114), o representante a ser destacado na técnica do cinema direto, conforme já apontamos, é Jean Rouch, com seu filme Chronique dún Été (Crônica de um Verão) em 1960, realizado em conjunto com Edgar Morin. Destaca-se a voz off do início do referido filme: “este filme não foi representado por atores, mas vivido pelos homens e mulheres que dedicaram momentos de suas vidas a uma experiência nova de cinema verdade” (Rouch e Morin apud Da-Rin (1995 p. 115). Com o filme Jaguar (1954/1967), Rouch iniciou seu interesse pela ficção como ferramenta de compreensão da realidade: “todo o filme é pura ficção, nenhum desses personagens nunca foi na vida o que ele é na história: é ficção, mas ficção em que as pessoas desempenham seus próprios papéis numa situação dada (...)” (Rouch apud Da-Rin, 1995, p. 123). Para esse tipo de filmagem, Rouch não utilizava roteiros préestabelecidos, procedimento básico para qualquer filme de ficção, o que havia eram esboços das situações. “Eu introduzia as pessoas em uma situação, a câmera era o pretexto, e o resto corria solto, acontecia um pouco qualquer coisa...” (Rouch apud Da-Rin, 1995, p. 124). De maneira análoga, Glória Perez, em O Clone (Globo, 2001) colocou pessoas “reais” (cantores, atores, atrizes) vivendo seus próprios papéis e contracenando com personagens da ficção da novela. As cenas do bar da personagem Jurema, interpretada por Solange Couto, traziam diversas personalidades do campo da música, futebol e televisão: Na verdade, na hora do bar da Jura, eu dava indicações de por onde a cena devia ir. Por exemplo, a frase com que a Jura recebia a pessoa dava a indicação mais ou menos pra onde eles deviam ir. Por exemplo, vai o Benito (de Paula) lá e aí, quando sai, o outro disco ‘que saudade de você’. Relembrem as músicas dele, coisas assim. Mas você tem que dar uma abertura, um espaço de improviso ali que depois na edição se resolve. Mas tem que dar um espaço de improviso porque você não pode escrever pro convidado4.

Documentário ou Docudrama? Observamos que a imprensa especializada, sobretudo os jornais impressos, tem publicado constantemente críticas à telenovela brasileira destacando a interferência do “real” em suas tramas. Dentre elas, destacamos: “Dos Jornais para os folhetins – autores se inspiram em fatos reais para a elaboração das tramas na teledramaturgia”.5 Neste Artigo, o jornalista faz referências ao último capítulo da novela Paraíso Tropical de Gilberto Braga comparando a personagem Bebel, interpretada por Camila Pitanga, com Mônica Velozo fazendo alusão aos últimos escândalos envolvendo políticos em Brasília. Neste mesmo artigo, há uma referência a atual novela Duas Caras de Aguinaldo Silva, que admite que o personagem interpretado por Dalton Vight foi inspirado em José Dirceu, ex-chefe da Casa Civil que viveu um tempo exilado em Cuba e fez cirurgia plástica passando a viver na clandestinidade com outro nome. 4 PEREZ, Glória. Entrevista concedida ao autor. Curitiba. 30 junho, 2003, grifo nosso 5

Publicado no caderno de televisão – Jornal Gazeta do Povo – Curitiba 07/10/2007. COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 07-20| 2° Semestre 2009 | 11


Docudrama na telenovela: qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é mera coincidência?

É notável como a telenovela brasileira contemporânea tem se sofisticado não só em qualidade de produção técnica, mas como também de narrativa, na medida em que propõe múltiplas temáticas numa mesma obra, aumento de número de personagens e, sobretudo, combinações com outros gêneros e linguagens que nos permitem pensar a telenovela como gênero híbrido. Com efeito, esta investigação parte de uma hipótese central onde é possível aproximar estas relações entre o factual e o ficcional na telenovela brasileira com o gênero híbrido conhecido como docudrama. Rosenthal (1999) aponta o Docudrama como sendo um gênero híbrido resultante da fusão entre documentário e drama, mais especificamente melodrama, onde questões éticas e morais ganham destaque. Segundo o autor, foi nos anos 30 que ocorreu um real desenvolvimento e expansão do gênero, o qual pode ser dividido em quatro áreas de estudo: a. “fact-fiction epic” dos estúdios de Hollywood. b. Experimentos com a escola inglesa de documentário nos anos trinta e quarenta. c. O docudrama na televisão britânica dos anos 60. d. O docudrama na televisão americana nos anos 70. Um dos antecedentes do gênero Docudrama, tal como conhecemos hoje, é representado, segundo Corner6, pelos dramatized documentaries, uma espécie de documentário produzido exclusivamente para a televisão britânica, através da BBC, nos anos 50. A temática eram as mais diversas passando por histórias de vandalismos, drogas, problemas da juventude, casamentos na terceira idade e prostituição, entre outros. Do início dos anos 60 até meados dos 70, a BBC produziu dramatized documentaries que retratavam os problemas políticos e sociais da época. Dentre estas produções, destacamos Cathy Come Home7, que se propôs a discutir a carência de moradia na sociedade britânica dos anos 60. Eram histórias baseadas em fatos reais e encenadas de maneira dramática. A direção de Cathy Come Home utilizou diversos recursos convencionais do documentário, como o uso de testemunhais de pessoas que vivenciaram os fatos, uso da estratégia do “povo fala”, imitando os recursos das reportagens de tevê. Para imprimir mais “realismo” às cenas, o diretor optou por utilizar, na direção, close-ups e longas seqüências sem cortes. De modo semelhante, Glória Perez em O Clone (2001) utilizou enquadramentos mais fechados (close-up) para preservar a identidade das pessoas “reais” que apareciam na trama. Na novela Páginas da Vida (2006) , Manoel Carlos exibiu em todos os finais de capítulo testemunhais de pessoas anônimas e comuns mostrando os dramas e dilemas de suas vidas. Como podemos observar nesta fase preliminar desta investigação, esta estratégia dos autores de misturar pessoas “reais” com elementos da ficção já era utilizada nos dramatized documentaries na televisão britância dos anos 60. Unir fatos da realidade na ficção tem sido uma constante na produção de ficção no país. Fatos do cotidiano entram como se fosse uma extensão do jornal nacionalprincipal telejornal em termos de audiência - na trama da telenovela. Esta fusão entre a ficção e o factual pode ser até mesmo observada nos créditos finais do programa 6 CORNER, John, British TV Dramadocumentary: Origins and Developments. In: ROSENTHAL, Alan. Why Docudrama Fact fiction on film and TV.United States: Suthern Illinois University Press,1999. p. 41. 7 Dirigido por Ken Loach. (Reino Unido em 1966). Neste filme,Loach fez história no Reino Unido mudando as políticas governamentais para as pessoas sem moradia.

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Linha Direta nos quais podemos observar que o referido programa é uma realização da Central Globo de Jornalismo em conjunto com a Central Globo de Produção, uma clara fusão entre departamentos de produção de notícias factuais e ficção. Esta tendência abrange não só a televisão brasileira, mas também a televisão mundial: “As television´s generic system shows as increasing tendency toward hibridization and reflexiveness, this blurring is likely to continue, but so is public debate about programs that combine dramatic with journalistic values in relation to sensitive political and social themes.” (Rosenthal, 1999, p. 45). Rosenthal8 acentua que o docudrama atualmente é o gênero mais popular das televisões estadunidense e britânica: “Whether you call them docudramas, dramadocs, fact-fiction dramas, or something even more exotic, one thing is clear: reality-based stories, taken from topical journalism, are the most popular drama genre on U.S. and British television today”. (Rosenthal, 1999: xiii) O autor ressalta, ainda, a dificuldade de se nomear o gênero: “ what is this hybrid form that floats uneasily between documentary and fiction? What is docudrama? There is, before all else, the difficulty of the name and the bewildering labeling. Docudrama. dramatic reconstruction. Faction. Reality-basead film. Murdofact. Factbased drama. Biopic. (Rosenthal, 1999: XIV). Todavia, Rosenthal reconhece que o maior problema não reside em nomear o gênero, mas, sobretudo, em definir os parâmetros característicos do docudrama. Em contraste, Javier Maqua9 aponta o docudrama enquanto gênero como um conceito controvertido: No se va hablar aqui de esa combinación de gêneros – documental y drama – porque, entre otras cosas, documental e drama son gêneros que pertenecen a clasificaciones genéricas cerradas, completas y tan disímiles que ni siquiera se tocan”. (...) Lo que en las práticas televisivas vemos casi siempre bautizado con el nombre de “docudrama” no es más que una mezcla, una reunión más o menos chapucera de gêneros diversos sin posible conjunción alguna y que 9 en su momento nos detendremos en ello) amenaza con granguenar no solo el discurso televisivo, sino todos los discursos audiovisuales afines.. (MAQUA, 1992, p.08)

Maqua prefere nomear o docudrama de “Fronteras de la ficción”, uma vez que para o autor o termo “Frontera” dá uma noção mais adequada do fenômeno porque supõe a existência de um território, de geografias distintas e convergentes. Com efeito, para este autor, o documentário pertence a um campo conceitual fechado já consolidado do mesmo modo que o drama pertence a outro território. Todavia, nada impede que haja uma mistura entre estas fronteiras conceituais. Este embate entre Rosenthal (1999) e Maqua (1992) aponta uma dificuldade 8 Alan Rosenthal é professor, autor dos livros Why Docudrama? Fact-fiction on film and TV e Writing, directing, and producing documentary films and vídeos. É documentarista ativo em Israel, Inglaterra e Estados Unidos. Seus filmes são exibidos com freqüência no Channel 4 UK na Inglaterra, na televisão israelita e na ABC nos Estados Unidos. 9 Javier Maqua é escritor e crítico cinematográfico na Espanha.

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Docudrama na telenovela: qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é mera coincidência?

conceitual e territorial que o termo docudrama encontra na medida em que, ao combinar elementos convencionais do documentário com o melodrama, funde características de duas instâncias já delimitadas que, muitas vezes, não comunicam de forma clara e objetiva as fronteiras e as diferenças entre o documentário e docudrama. Entretanto, Rosenthal sinaliza uma pontual diferença entre os dois gêneros ao acentuar que o docudrama, fundamentalmente, assim como o melodrama, sugere uma moral da história com a conseqüente punição do mal (vilão) e exaltação do bem (herói). No Brasil, o programa de televisão que mais representava o formato do docudrama é o programa Linha Direta10 da TV Globo. Era exibido semanalmente às quintas-feiras no prime-time da emissora e com forte apelo popular, o programa reconstituía cenas de crimes não desvendados pelas autoridades e apela para o público o reconhecimento dos assassinos fornecendo um telefone para denúncia. Linha direta esteve no ar desde maio de 1999 e divulga em seu site que já foram capturados 412 criminosos11, cujos delitos, supostamente cometidos, foram reconstituídos através das informações presentes nos processos movidos judicialmente pelo Ministério Público. Em cada reconstituição o apresentador reforçava a idéia de que o roteiro apresentado foi baseado nas informações das autoridades oficiais. Com efeito, “nos filmes documentários de reconstituição, os créditos nos convidam a não considerar como enunciadores reais os atores de fato, mas o responsável pelo discurso, aquele que garante a autenticidade dos eventos relatados e das palavras pronunciadas” 12 De fato, em Linha Direta somos convidados a torcer para que os criminosos sejam punidos e a ordem seja restabelecida. Esta é uma clássica forma do melodrama e, assim como os tradicionais documentários cinematográficos, cumpre uma função social e política no mundo histórico, ajudando a estampar na tela de tevê rostos de criminosos que devem prestar contas à sociedade. De outra parte, enquanto Linha Direta enfoca o vilão a ser punido, Por Toda Minha Vida, docudrama produzido pela Globo em 2007, enaltece a trajetória do herói ao reconstituir histórias de vida de artistas populares na música brasileira. Por Toda Minha vida, com a dramatização biográfica de alguns momentos marcantes na vida destes artistas, somada a depoimentos de amigos e familiares, imagens de arquivo e fotografias, acabou por reproduzir na tela as características consagradas do gênero: reconstituição baseada em fatos reais e dramatizada por atores desconhecidos do grande público.

Uma leitura documentarizante da telenovela brasileira Observamos neste trabalho duas situações distintas: a primeira delas é a reapresentação do “real” na ficção através das encenações e a segunda é a inclusão de pessoas naturais e não profissionais nas tramas das telenovelas. Podemos Linha Direta saiu do ar em 2008. Fonte: site www.globo.com/linhadireta , acessado em 12/10/2007. 12 In “leitura documentarisante, tradução de Samuel Paiva, de ODIN Roger. Film documentaire, lecture documentarisante, in: ODIN, R e LYANT, J.C. (ed): Cinemas et réalites. SaintEtienne: Universidade de Saint-Etienne, 1984, p 263-277, texto para seminário do curso Documentário: Fronteiras e Tradições, prof Henri gervaiseau, ECA_USP, 2001 10 11

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exemplificar esta segunda situação enfocando a novela Explode Coração (1995), onde mães de crianças desaparecidas fazem apelo diante das câmeras para que seus filhos sejam reencontrados. Em O Clone (2001), parentes ou vítimas das drogas dão seus depoimentos diante das câmeras e em “Páginas da Vida”, Manoel Carlos abre espaço para pessoas “reais” retratarem os dramas de suas vidas. Neste três exemplos é possível atribuir uma leitura documentarisante13, identificando no nível da imagem uma estrutura estilística típica dos documentários: “(...) direcionamento para o cameraman (as pessoas filmadas olham para o câmera, interpelam-no) (...) A função desse conjunto de figuras é clara: marcar na própria estrutura do filme a existência real do cameraman; fazer o espectador saber que o cameran é tomado como enunciador real”. Neste sentido, é possível aproximar a telenovela do documentário. Entretanto, acreditamos ser mais adequado aproximar do gênero docudrama na medida em que este combina estes dois conceitos: o documentário e o melodrama, considerado a estrutura matriz da telenovela. Em O Clone, ficção e não ficção combinam-se em prol de uma campanha de utilidade pública. Parentes e pessoas, vítimas das drogas, entram em cena para registrar seus depoimentos. Para resguardar suas imagens e para diferenciá-los dos personagens ficcionais, a autora, Glória Perez, optou por enquadramentos fechados em superclose ou planos de detalhe para não identificar os entrevistados, que tinham medo de se mostrar em função do preconceito da sociedade. “Geralmente eu buscava escolher trechos que tinham a ver com as situações que os personagens estavam vivendo no momento e criava também as situações evidentemente a partir dos relatos”. 14 É interessante notar os enquadramentos dos não atores da novela o clone. Conforme já dito, eles apareciam em planos fechados. Em Páginas da Vida, os depoentes olhavam diretamente para a câmera. Com efeito, é possível atribuir uma leitura documentarizante, identificando no nível da imagem estruturas estilísticas típicas dos documentários. A leitura documentarizante propõe figuras estilísticas que estimulam o leitor a construir e perceber a presença real de um enunciador como: foco embaçado, imagens trêmulas, golpes de zoom, longos planos-sequência e iluminação deficiente, entre outros. No nível do som, timbre específico do som direto, e o olhar das pessoas diretamente para a câmera. A referida leitura pressupõe um leitor/receptor ativo que “constrói as imagem do enunciador, pressupondo a realidade desse enunciador (...) assim, o que estabelece a leitura documentarizante é a realidade pressuposta do enunciador” e propõe um sistema de oposições entre a leitura fictivisante e documentarisante: Leitura fictivizante

Leitura documentarizante

O leitor recusa a construção de um “eu origem”

O leitor constrói um enunciador real

13 14

Idem. p. 6 Entrevista realizada com Glória Perez em 30/06/2003 COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 07-20| 2° Semestre 2009 | 15


Docudrama na telenovela: qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é mera coincidência?

Na leitura fictivizante, parece haver uma recusa, por parte do receptor, de construir um “eu-origem” real. Desta forma, é plausível afirmar que na ficção, podemos pontuar características que lhe são próprias, contrárias à leitura documentarizante: como imagens enquadradas em planos padronizados, sem tremulações, cortes secos, poucos planos seqüência, sons limpos e sem interferências próprias do som direto e uma regra básica: o ator jamais olha para câmera. De fato, os atores na novela O Clone interpretam, assim como na maioria das obras de ficção, como se não houvesse a intervenção de enunciadores, como autores, diretores e do cameraman. Entretanto, nesta mesma obra, Glória Perez, no último capítulo, coloca a personagem Mel (Débora Falabela), uma personagem da ficção, no mesmo ângulo e enquadramento dos personagens não ficcionais. “Isso ai foi um opção minha de fazer que no último capítulo a Mel aparecesse como um deles, realmente como eles apareceram durante a trama inteira, dando seus depoimentos, isto estava escrito que teria que ser gravado assim, porque é um movimento duplo, a realidade entrou na ficção com eles e depois a personagem da ficção entra de certa forma na realidade”. 15 Nicholls (2005, p. 26) sustenta que todo filme é um documentário e que “mesmo as mais extravagantes das ficções evidencia a cultura que a produz e reproduz a aparência das pessoas que fazem parte dela”. 16 Para o autor, há dois tipos de documentários: o de satisfação de desejos e os de representação social. No primeiro caso, há predominância de elementos da ficção que nos provocam a sensação dos sonhos e desejos. No segundo caso, os documentários expressam e nos provocam uma compreensão da realidade. Tal posicionamento é corroborado por ODIN, R e LYANT, J. C.17 quando afirmam que “todo filme de ficção pode então ser considerado, sob um certo ponto de vista, como um filme documentário”. É evidente que a telenovela, como um todo, não pode ser considerada como uma obra documentária ou gênero docudrama. Contudo, através dos exemplos citados, é possível operar leituras documentarisantes em determinadas telenovelas. Assim como “o filme tem, com feito, o poder de interditar certos níveis; é assim que a exibição, nos créditos, da participação dos atores bloqueia a possibilidade de se construir personagens omo enunciadores reais”18, a telenovela tem como construir e utilizar estratégias para que o telespectador reconheça um enunciador pressupostamente real. Páginas da vida: a representação histórica do 11 de Setembro Manoel Carlos em o Páginas da Vida optou por realizar a transição de cinco anos da trama (de 2001 a 2006), citando os principais assuntos factuais mais relevantes de cada ano. Destaca-se o ataque ao World Trade Center ocorrido no ano de 2001. Idem. Entrevista realizada por mim com Glória Perez. In Nichols, Bill. “Introdução ao documentário”. Campinas: Papirus, 2005. 17 In “leitura documentarisante, tradução de Samuel Paiva, de ODIN Roger. Film documentaire, lecture documentarizante, in: ODIN, R e LYANT, J.C. (ed): Cinemas et réalites. Saint-Etienne: Universidade de Saint-Etienne, 1984, p 263-277, texto para seminário do curso Documentário: Fronteiras e Tradições, prof Henri gervaiseau, ECA_USP, 2001 15 16

18 Idem

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O capítulo inicia em Nova York, 11 de setembro de 2001. Simulação da cidade de Nova York, momentos antes da colisão. Letreiro aponta o horário. Uma câmera sobrevoa a cidade de Nova York. Temos a simulação do ponto de vista (Câmera subjetiva) do primeiro avião que colidiu com uma das torres. Com efeitos de computador, observamos a simulação do avião indo ao encontro do WTC. Tonia (Sonia Braga) está numa lanchonete com um amigo. Nota-se o reflexo do avião sobre o vidro. Reação da personagem diante do ataque. Nesta edição de imagens, notamos, de fato, a fusão entre imagens com valor de documento histórico misturadas com reconstruções ficcionais. Após a simulação do ataque. Há um corte para uma cena na qual Helena (Regina Duarte) está no hospital com Clara, bebê que tem síndrome de Down. Após a morte de sua mãe Fernanda (Fernanda Vasconcelos), Clara é abandonada pela avó materna Martha (Lilia Cabral). O grande desejo de Helena é conseguir a adoção da menina. Esta cena resolve a principal pendência da narrativa para que o autor Manoel Carlos inicie a transição para segunda fase da novela, saltando a trama de 2001 para 2006. Desta forma, temos na cena seguinte: Na casa de Tide (Tarcísio Meira) os familiares estão reunidos em torno da televisão, perplexos com as imagens do ataque às torres gêmeas. Ouvimos em off a narração de um repórter: 11 de setembro de 2001. A cidade de Nova York foi despertada pelo som de uma tragédia. Um avião acaba de bater em uma das torres do World Trade Center às 08:46hs desta manhã, horário local. Logo o prédio começou a pegar fogo. Centenas de milhares de pessoas estavam dentro dos escritórios e se preparavam para começar mais um dia de trabalho. A paisagem da cidade foi alterada com a presença do que parecia ser uma gigantesca chaminé. Cerca de quinze minutos depois um novo estrondo. Um outro avião colidiu com a torre sul do prédio. Mais fogo. Tide (Tarcísio Meira) ao lado das filhas: Carmen (Natália do Vale) e Márcia (Helena Ranaldi) acompanham pela televisão as primeiras transmissões dos ataques de 11 de setembro de 2001. Numa espécie de metalinguagem (televisão mostra a televisão), o espectador na novela revive o drama da tragédia com as imagens reais das torres gêmeas. A cena enfatiza Tide e Constância (Walderez de Barros), sua empregada fiel, atônitos com as imagens da tragédia. Locutor/off: Os aviões, lotados de combustível, se transformaram em bombas voadoras. Em seguida, o primeiro prédio desabou. O pânico tomou conta da cidade de Nova York. Muita fumaça. Correria e destroços. Os bombeiros foram acionados. Ainda não se tem idéia do número de vítimas. A cidade e o mundo estão perplexos tentando entender o que aconteceu. Outros personagens acompanham pela tevê as notícias da tragédia. Ao lado, o personagem Silvio, interpretado por Edson Celulari. Alex (Marcos Caruso) aproximase do aparelho detelevisão. Observa a o caos que tomou conta da cidade de Nova York. Enquanto isso, Helena , com Clara no colo, chega em casa com Salvador e é recebida pela empregada:

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Docudrama na telenovela: qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é mera coincidência?

Empregada- Gente está acontecendo uma coisa horrível nos Estados Unidos! Helena – A gente ouviu comentários na rua e agora também no rádio do carro. Salvador- É atentado terrorista. Helena- Vamos lá pra cima. Liga a televisão do meu quarto Salvador. Locutor/off: Até agora não se sabe quem são os responsáveis pela tragédia. Este, talvez, seja o maior ataque sofrido pelos Estados Unidos em seu próprio território. Outras informações a qualquer momento. Com efeitos digitais, a encenação da personagem Tonia (sonia Braga – no centro fugindo da fumaça) é inserida nas cenas reais da tragédia, provocando uma mistura da ficção com a não ficção. Helena e Salvador acompanhando as notícias dos ataques pela TV. Imagem de Tonia (Sonia Braga) dando entrevista na TV americana, estilo CNN. Momento em que Helena (Regina Duarte) reconhece sua prima. Helena: É a minha prima! É a Tonia. Salvador: Será mãe? Helena: Não tenho certeza. Meus Deus! Ela está lá, me lembrei. Salvador: Ah! Pelo menos ela está bem, ta dando entrevista tudo. É notável o uso dos letreiros indicando datas durante todo o capítulo. Eles servem não apenas para localizar o espectador no tempo e espaço da narrativa, mas como também provoca a sensação da passagem de um tempo histórico, na medida em que o leitor/receptor completa a informação e compreende que o tempo está avançando. É como que se até ali, tudo estivesse em flashback. A audiência sabe de antemão que o tempo avançará até o presente, período contemporâneo a do receptor, dando uma sensação de “páginas sendo viradas” deixando os fatos no passado. Por ora, em face de conclusão e através dos exemplos citados, é possível identificar a citação de fatos históricos contextualizados nas tramas das telenovelas brasileiras, estratégia que se aproxima, e muito, das convenções estéticas e formais do documentário. De outra parte, deve-se observar que, ao contrário das minisséries e do cinema, que assumem o fato histórico como um importante plot de suas tramas, a telenovela recupera os dados históricos e tende a atribuir mais espaço ao melodrama, função primeira do folhetim eletrônico.

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AO VIVO: TELEVISÃO E PUBLICIDADE NOS ANOS 501. LIVE: TELEVISION AND ADVERTISING IN THE 50’S. Hilton Castelo2 Resumo Este artigo analisa aspectos teóricos da televisão ao vivo, na perspectiva de Machado (2009), Eco (2006) e Priolli (1985), relacionando-os com a mensagem comercial ao vivo feita por meio de garotas-propaganda na década de 1950. O corpus de estudo é constituído de artigos e colunas escritas por publicitários e veiculados na revista Propaganda, em 1956, partindo-se da premissa de que a escolha pela publicidade ao vivo não se deu exclusivamente pela falta de recursos técnicos para a gravação, mas, também, por opção consciente do que se imaginava à época ser adequado à comunicação publicitária. Palavras-chave: Televisão ao vivo; publicidade ao vivo; garota-propaganda; revista Propaganda.

Abstract This article analyzes theoretical aspects of live television, in the perspective of Machado (2009), Eco (2006) and Priolli (1958), relating them to the message of live publicity and commercials starred by advertising girls models in the 50’s. The body of the study consists in articles and columns that explain why live publicity didn’t happen only by the shortage of technical resources, but also by a conscious choice of what and how live advertising should be. Those articles were published by Propaganda magazine in 1956. Key words: Live television; live advertising; advertising girls models; Propaganda magazine.

1 Artigo parte de dissertação de mestrado apresentada no Programa de Mestrado e Doutorado em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná. 2 Mestrando em Comunicação e Linguagens (Universidade Tuiuti do Paraná), especialista em Leituras de Múltiplas Linguagens (PUC-PR), graduado em Publicidade e Propaganda (UFPR). Professor de Publicidade e Propaganda (Universidade Positivo - PR).


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1. Inserção da publicidade na televisão brasileira Na televisão da década de 50, os anunciantes e agências publicitárias “eram senhores absolutos dos programas” (Priolli, 1985, p. 24), e que, de fato, definiam conteúdos e títulos, contratavam artistas, escreviam roteiros e transpunham antigos e novos sucessos da era do rádio. À emissora reservava-se a condição de vendedora de espaço e transmissora de conteúdo, conforme explica o publicitário Lindoval de Oliveira, funcionário da agência McCann-Erickson nos anos 50: A agência cuidava de tudo: escrevia, produzia, contratava elenco e até mesmo “completava” o salário do pessoal técnico da emissora, que se limitava a entrar com o parco equipamento existente e com o horário. (...) Cada um desses programas tinha seu “patrocinador”, que fazia os famosos “comerciais ao vivo” nos intervalos (Briefing, 1980, p. 8).

Cotti (1956a, pp. 37-38) via esse período de surgimento da televisão, de transposição da linguagem radiofônica para a televisiva, como um momento de incompreensão sobre a linguagem do veículo por parte de publicitários e anunciantes, e mostrava os tipos de comerciais existentes na televisão da época e as formas para ele equivocadas de apresentar a mensagem comercial3: São comuns entre nós duas espécies de comerciais de TV. A primeira consiste num locutor que não é visto, lendo um texto no “áudio” enquanto que no “vídeo” aparece uma figura humana, em silêncio, apresentando o produto ou realizando algum movimento com êle. Na segunda espécie, a figura humana que aparece no “vídeo” também fala. (...) os dois deixam de explorar a fôrça maior da TV, como veículo de propaganda. (...) Ela não é um aparelho de rádio com imagens. Tem sua linguagem própria e sua técnica específica. (...) ainda estão sendo cometidos erros que não apenas tornam a propaganda ineficiente, como a cobrem de ridículo. Um comercial de TV que é feito por uma voz fora do “video”, enquanto nêle aparece uma figura muda, sorrindo artificialmente e aproximando ridiculamente do seu rosto o produto, como uma ilustração de calendário de 1920, não é apenas um comercial de TV mal feito. E pior. Não é um comercial de TV (Cotti, 1956a, pp. 37-38).

Essa situação começa a mudar a partir da chegada do videotape (VT). Inventado em 1956 pela empresa norte-americana Ampex, o VT chegou ao Brasil em 1960, para ser utilizado pela primeira vez (Propaganda, 1961a, p. 8) na inauguração de Brasília. A partir do VT, a definição e a produção dos conteúdos foram passando gradualmente para as emissoras, que perceberam a necessidade estratégica de controlar a programação.

3 Manteve-se aqui, nas citações diretas, a acentuação das palavras conforme o original, de acordo com as normas ortográficas vigentes em 1956.

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A evolução do comercial no meio televisual Segundo o publicitário Roberto Duailibi (Briefing, 1980, p. 18), a forma evolutiva de se fazer publicidade televisual pode ser divida em oito estágios: 1) cartões pintados e colados lado a lado nas paredes dos estúdios, mostrados sem corte de câmera de um cartão para outro; 2) comercial por meio de slides com controle de tempo; 3) comerciais ao vivo; 4) projeção de slides com sincronismo de som e imagem; 5) gravação em VT ou em película da projeção de slides; 6) gravação externa em filme, com roteiros explicativos, utilização de linguagem mais apropriada ao meio televisivo e influência da estética cinematográfica; 7) “filme-gesto”, no qual a ação e o gestual são teoricamente mais relevantes, valorizando a trilha sonora e caracterizados pelo over-acting4; 8) VT com linguagem de VT: abandono da produção amadora em película e do uso profissional do videotape. Duailibi (Briefing, 1980, p. 18) sugere também um nono estágio, que, nos anos 80, época em declaração, estaria ainda por vir: “VT com linguagem de filme”, ou seja, videotape usado com qualidade técnica e linguagem estética de cinema, em produções de alta qualidade, fase na qual os comerciais publicitários tornam-se cada vez mais parecidos com produções cinematográficas de curtíssima duração. Hoje, esse estágio encontra-se plenamente consolidado em produções publicitárias audiovisuais. É importante salientar que tais estágios de criação e produção, corretamente percebidos por Duailibi, não podem ser vistos de modo estanque, ou, em palavras diferentes, que cada uma delas diga respeito a um período histórico específico do fazer publicitário. Ao contrário: são formas que existiram conjuntamente ou, em alguns casos, que existem até hoje.

2. Concepções sobre a televisão ao vivo Para Eco (2006, pp. 325-331), a televisão encontrou na transmissão direta as características pelas quais a distingue de outras formas de comunicação ou espetáculo, impondo “uma gramática e uma sintaxe particulares”, num ritmo diverso de montagem e textura diferenciada de imagem. Na mesma linha de pensamento, Machado (2009, p. 139) diz ser preciso “considerar que a transmissão direta constitui verdadeiramente um gênero televisual, talvez o primeiro desse meio”. Há duas formas de transmissão direta. A primeira é a transmissão direta ao vivo, aquela que se dá no momento exato da ocorrência do evento transmitido, como a transmissão ao vivo de uma partida de futebol ou como eram feitos os comerciais pelas garotas-propaganda nos anos 50; a segunda, a transmissão direta pré-gravada com características de transmissão ao vivo, ou seja, aquelas transmissões televisuais que, de acordo com Machado (2009, p. 126), incorporam “em sua matéria uma boa parte dos traços da transmissão ao vivo”, a exemplo de determinados programas de auditório e de entrevistas. O presente artigo, ao falar de transmissão direta ou 4 Exagero das expressões faciais e corporais na interpretação dos atores e atrizes.

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transmissão ao vivo, estará se referindo à primeira modalidade. Na transmissão direta, seguindo a opinião de Machado (2009, p. 129-131), qualquer forma de controle do material veiculado será executada no ato da emissão. Se a transmissão é concomitante ao evento, não há como pensar em controle pleno do que é transmitido, tornando-se a transmissão direta “um pensamento vivo e em ação”, com um controle relativo exercido diante do telespectador, já com o programa no ar. Muitas dessas características tendem a ir ao de encontro de expectativas do sujeito telespectador em relação ao que deva ser uma obra audiovisual. Se, conforme Eco (2006), a televisão é antes um serviço do que um gênero artístico, estabelecendo diálogos com linguagens compreendidas em suas especificidades pelo repertório do destinatário, é evidente que os mecanismos discursivos adotados para o processo de construção de significados serão os da linguagem primeiramente referida; no caso específico da televisão, a linguagem cinematográfica. Em outras palavras, há uma tendência do telespectador em compreender o conteúdo televisual como se fosse linguagem cinematográfica. Antes da televisão, o cinema, em suas formas mais tradicionais, habituara seus espectadores a uma espécie de narrativa influenciada pela literatura: [...] como o romance oitocentista e como a tragédia clássica, o filme estruturavase segundo um início, um desenvolvimento e um fim, momentos esses durante os quais cada elemento da ação surgia necessitado por uma espécie de lei de economia do relato, tudo conspirando para a “catástrofe” final, num alinhamento narrativo do essencial, com a exclusão de tudo quanto resultasse casual para os fins do desenvolvimento da ação (Eco, 2006, p. 326).

Além disso, segundo pensamento de Machado (2009), o cinema habituou o espectador a rechaçar marcas da execução de trabalho advindas do processo de produção do filme – a exemplo de ruídos alheios à narrativa, presença de microfones e do cameraman em cena, imagens ligeiramente fora de foco, as aberturas e fechamentos de zoom, certos tipos de enquadramento, a duração de cada tomada, reação não programada de atores e atrizes, todas elas marcas de uma transmissão direta ao vivo – e a vê-las como “erros” de produção. Por isso, a edição cinematográfica ou o trabalho de pós-produção elimina tais marcas da película, de modo que “o produto final assistido pelo espectador apareça como um material asséptico, destilado de todas as suas impurezas não significantes” (Machado, 2009, p. 131). Após seis décadas de exposição ao público, de 1950 até hoje, não se vê mais a televisão, é obvio, como nos primeiros anos. Há uma compreensão mais pacífica do telespectador em relação às particularidades da comunicação televisual. Na televisão ao vivo, o que antes era considerado exagero ou sobra, converteu-se, explica Machado (2009, p. 132), em elemento formador, trazendo ao produto final marcas “da indomesticabilidade e, num certo sentido, da bruteza, que constituem algumas de suas características mais interessantes”. Essas concepções teóricas acerca da televisão ao vivo eram pertinentes ao fazer publicitário nas produções comerciais dos anos 50? É o que se verá a seguir. 10 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 21-30| 2° Semestre 2009


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-3. Publicidade ao vivo na televisão brasileira Não havia na década de 50 uma compreensão plena do que deveria ser a mensagem publicitária televisual. A falta de profissionais especializados e a mera transposição de um estilo comunicacional radiofônico para um meio audiovisual originavam mensagens ineficientes e cansativas para o público. Tateava-se à procura de caminhos mais adequados. A revista Propaganda procurava orientar o anunciante e as agências a obter eficiência nas mensagens de venda pela televisão. De acordo com o publicitário Cotti (1956c), havia duas formas de mensagem comercial pela televisão: ao vivo e em filme. O filme, para Cotti (ibidem), era uma “espécie de propaganda pela TV”, devendo ser usada em casos específicos, como em desenho animado, um estilo de comunicação publicitária comum nos anos 50 e 60, e em situações demonstrativas inviáveis de serem feitas ao vivo. E, por isso, não convinha espelhar-se na publicidade norte-americana, que na época melhor realizava filmes publicitários: Realizar um filme nos Estados Unidos não oferece problemas técnicos sob o ângulo de produção cinematográfica. (...) Quando é mau, é como mensagem comercial e não como cinema. [no Brasil] (...) falecem recursos às vezes para torná-las [as produções publicitárias feitas em película] realidade como cinema. (...) a TV americana já está em centenas de cidades enquanto que entre nós ela chegou apenas para três cidades (Cotti, 1956d, p. 26)

Apesar de apontar a eliminação de certas deficiências de produção e a possibilidade de ter uma mensagem publicitária uniforme em todas as praças como vantagens indiscutíveis do comercial filmado, ainda assim Cotti manifestava preferência pelo comercial ao vivo: “Parece-nos que ele [o telespectador] apenas olha um filme, ao passo que realmente vê quando a tela lhe traz uma imagem viva”. O ponto de vista é que o público da televisão – “inconscientemente”, segundo o publicitário – preferiria a imagem ao vivo à imagem reproduzida, porque aquela teria a capacidade de refletir a presença imediata e total de uma determinada situação comunicacional. É esta, de fato, a natureza específica da televisão. Não estamos vendo o que aconteceu. Vemos o que está acontecendo. O filme de um jôgo de futebol é visto com tranqüilidade; [enquanto] a transmissão [ao vivo] pela televisão do mesmo jôgo (...) [é] vista numa tremenda tensão nervosa, vivendo-se cada minuto, com os olhos fascinados pela tela. No filme, vimos apenas o que já tinha acontecido (Cotti, 1956d, p. 26).

Sendo, portanto, lógico concluir que o telespectador veria com maior interesse o testemunho comercial ao vivo de uma garota-propaganda do que a demonstração já acontecida registrada em filme. O publicitário Lage (1956, p. 44) explicava que o chamado comercial ao vivo brasileiro era adaptação do live commercial, estilo publicitário norte-americano de se

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fazer mensagens televisuais: “É humano. É a experiência em si mesma. Ver para crer. O telespectador toma parte no que está acontecendo na tela (...). É a própria vida que se desenrola diante dele”. O comercial ao vivo acontecia de duas formas, de acordo com o lugar da fala do apresentador ou atores: narrado (em narração de fundo de uma ação ilustrativa qualquer) ou falado (em cena, falando diretamente ao público ou por meio de diálogos encenados). Segundo Lage, o comercial narrado tinha a função de dar maior dinamismo e dramaticidade à cena, e, por isso, mais recomendado para peças publicitárias longas e casos de demonstração realista de um produto em uso. Outra função: introduzir uma cena ou apresentar personagens que falariam ao público. Lage também considerava essa estrutura publicitária adequada para abordar valores sentimentais, em situações de natureza familiar que envolvessem, por exemplo, crianças: “Um bom narrador, acompanhando uma boa imagem, toca fàcilmente o coração do telespectador”. E também servia para despertar o apetite, pôr água à boca do telespectador: “Uma torta fumegante e uma exclamação do narrador traduzem, em segundos, o que um narrador ao vivo levaria um minuto para explicar”. O comercial falado, por sua vez, explicava Lage, baseava-se na palavra, que não precisava, necessariamente, acompanhar uma ação específica. Mostrava-se útil para testemunhais de famosos ou de especialistas em determinados assuntos e para construir cenas íntimas que pretendessem transmitir “o calor de um ambiente, de uma situação”. Na opinião de Lage, o comercial ao vivo mais difícil de ser produzido era o do tipo falado com diálogos encenados. A dificuldade estava em encontrar bons atores, ter cenários realistas e diálogos bem ensaiados, pouco comuns na publicidade televisual brasileira dos anos 50. Sem tais atributos, pensava Lage, a mensagem comercial perdia o vínculo com o telespectador e, portanto, o efeito positivo: “Nada mais falso e de menos efeito do que um comercial falado sem personalidade, sem ambiente, sem realismo”. Lage defendia a importância dos comerciais ao vivo obedecerem a quatro regras, segundo o publicitário, “provadas e comprovadas pela experiência, pesquisas e estatísticas”: naturalidade e intimidade; simplificação, autoridade e verdade. Ou seja, Lage imaginava a publicidade ideal aquela que fosse feita com maior naturalidade em ambientes que parecessem confortáveis e expressassem esta idéia, poucos personagens para criar maior intimidade com o telespectador, com intérpretes cuidadosamente selecionados para o papel, capazes de expressar o sentimento da verdade em suas falas e expressões. Nada, por exemplo, de atores conhecidos representando médicos, dentistas: “Em diversas ocasiões os comerciais são tão falsos que causam a impressão de que o produto é também uma falsificação”. Ainda na mesma linha de pensamento, Lage recomendava também a escolha correta da modelo para os anúncios de produtos de utilidade doméstica:

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Quem tem autoridade mesmo em produtos caseiros é a dona de casa de 40 anos. A “mocinha” não convence. E, em geral, a beleza do modêlo distrai a atenção. O telespectador se deixa absorver pela demonstradora e passa a não se interessar pela mensagem ou pelo produto (Lage, 1956, p. 44).

Essa preocupação na escolha do apresentador ou garota-propaganda adequada às características do produto era à época também corroborada por Cotti (1956b, p. 31), de modo prenhe de marcas culturais da sociedade dos anos 50: “Evite (...) figuras femininas bonitas demais ou vestidas de maneira provocante”, porque elas “distraem, òbviamente, a atenção do produto que está sendo vendido”. Ou então: “Não pode haver sinceridade numa moça vendendo um óleo lubrificante ou num homem recomendando um perfume” (ibidem). Ambas as observações na contramão da publicidade contemporânea, que dita o uso do corpo midiático em estratégias de espelhamentos, ou, em outros termos, da representação na tela daquilo que o espectador deve desejar ser. Cotti acrescentou também outros aspectos às regras propostas por Lage. De acordo com Cotti (1956b) era preciso demonstrar o produto, provar como e por que é o melhor; um estilo comunicacional que, nas décadas seguintes, dariam origem a clichês publicitários que permanecem até hoje: o do sabão em pó que deixa a roupa “muito mais branca” e o “creme dental que clareia o dente”. Outro aspecto abordado por Cotti para tornar a mensagem mais eficiente era relacionar áudio e vídeo, defendendo a idéia de uma dupla carga informativa, de um “apêlo simultâneo através dos olhos e do ouvido (...). Vender só com imagens é para surdos; vender só com palavras é positivamente para cegos”. Sugeria, além disso, a simplificação visual: “O telespectador se surpreende e se espanta [com efeitos visuais considerados diferentes, imprevistos, originais], mas, no final, êle guarda uma impressão confusa da mensagem”, aspecto contrário ao que se vê na comunicação publicitária televisiva contemporânea, em busca contínua de surpreender visualmente o telespectador. O uso de testemunhais foi o modelo padrão de comunicação publicitária televisual brasileira no período entre a inauguração da TV e a utilização em larga escala de comerciais previamente gravados. Portanto, a escolha correta de quem daria o testemunho apropriado era questão primordial em 1956: “É falso e ineficiente mostrar uma artista fascinante fazendo o papel de uma dona de casa. Para representar gente comum, escolha de fato gente comum” (Cotti, 1956b, p. 31). Por isso, a definição da garota-propaganda tornou-se tão importante na história da comunicação publicitária brasileira. O surgimento da profissão de garota-propaganda derivou do processo de formação da televisão a partir da estrutura técnica e artística existente no meio radiofônico brasileiro. Ao colocar os canais de televisão no ar, as emissoras constataram que a maioria dos astros e estrelas, absolutos nos microfones e auditórios das rádios, não eram fotogênicos na televisão e, portanto, limitados para a atividade publicitária (PN, 1953). Para tentar atingir com maior eficácia os telespectadores, emissoras, anunciantes e agências procuravam maneiras mais eficientes de transmitir mensagens comerciais. O paradigma garota-propaganda foi estabelecido no começo da década

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de 50, quando a empresa Marcel Modas contratou e colocou no ar a jovem Rosa Maria para apresentação exclusiva e ao vivo de um artigo diário no programa “Tentação do Dia” (Ramos, 1985, p. 71). O bordão que encerrava o texto – “Minha amiga, não é mesmo uma tentação?” – foi rapidamente assimilado pelo público e trouxe resultados positivos ao anunciante. Nascia, assim, uma nova forma de publicidade bastante comum na TV brasileira até meados dos anos 60. O perfil do que era essa profissional da comunicação publicitária pode ser definido a partir do “Decálogo da Garota-Propaganda”, publicado em reportagem de capa da revista Fatos & Fotos5: (...) para futuras candidatas que pretendem mostrar-se na TV como anunciadoras: 1. Esperar a oportunidade com boa vontade; 2. Ter boa aparência e ser fotogênica; 3. Ter instrução; 4. Acreditar no que faz; 5. Ser vaidosa ou, melhor, mulher o máximo possível; 6. Ter boa dicção; 7. Grande capacidade de trabalho; 8. Ser dedicada; 9. Possuir condições de sustento pessoal para os primeiros meses; 10. Ter veia artística para convencer, mesmo a quem não quer comprar.

4. Considerações finais É possível estabelecer um paralelo entre a idéia de Eco (2006) sobre a televisão direta e a visão empírica de publicitários brasileiros da década de 1950 a respeito dos comerciais ao vivo. Se para o pensador italiano a transmissão direta constitui-se em elemento distintivo do veículo televisão em relação a outras formas de comunicação, para Cotti (1956c) havia distinção marcante entre a publicidade filmada e ao vivo: aquela caracterizava, para o publicitário brasileiro, o já conhecido, o encerrado; esta, o frescor da novidade, a vida em água corrente. Priolli, ao destacar que a TV norte-americana ergueu-se sobre a base da indústria cinematográfica, em contraponto à descendência radiofônica da televisão nacional, possibilita, na opinião deste artigo, um entendimento da valorização de mensagens comerciais ao vivo. Levar em consideração a organização da TV brasileira por meio da linguagem radiofônica, do tempo do rádio ao vivo, dos programas de auditório lotados da rádio Nacional e de centenas de outras emissoras em todo o país, é compreender que não havia possibilidade de um rompimento imediato com raízes culturais. Da mesma forma que técnicos e atores faziam a televisão como se fosse rádio, a audiência, pelo menos nos 50, também assistia aos programas como se fosse rádio. A imagem era acessória. Daí a empatia do público – até meados dos anos 60 – 5 Fatos & Fotos, Rio de Janeiro, edição de 31 de julho de 1965.

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com a garota-propaganda, que, sem romper com a publicidade de valorização de texto feita na Era do Rádio, apresenta o encanto de uma imagem bela, porém secundária. Quando o telespectador entendeu o que era TV, a garota-propaganda, em sua forma clássica, perdeu sentido e eficiência comercial. Machado (2009) mostra que o cinema habituou o espectador a oferecer resistência às marcas de produção cinematográfica. A publicidade, mesmo ao vivo, também sempre tentou rechaçar tais marcas, da década de 50 até hoje. Talvez aí esteja um ponto importante de diferenciação entre a TV de entretenimento ao vivo e a TV comercial. O “erro” na publicidade sempre foi visto de modo negativo, daí a preocupação dos publicitários analisados neste artigo em sugerir regras de conduta, dos mais variados tipos, para a produção de comerciais. Mas a procura pela humanização do produto permaneceu intacta. Defendia-se, como se viu, uma publicidade ao vivo e humanizada, porém tecnicamente asséptica, e, por isso, ensaiada à exaustão para evitar problemas ao anunciante. O que, na opinião deste artigo, também ajuda a explicar o abandono da televisão comercial ao vivo, a partir da profissionalização do VT e do desenvolvimento técnico da produção publicitária em filme. A humanização do produto foi e continua sendo de extrema importância no fazer publicitário; porém, os publicitários aprenderam com o tempo outras formas de passagem do ao vivo para o parecer ao vivo. Que fique para leitor, para encerrar o artigo, uma idéia importante no estudo da produção de mensagens comerciais durante os anos 50 e 60: a mensagem comercial ao vivo foi, é claro, essencialmente motivada por questões técnicas, pela falta de recursos de gravação de qualidade a custos acessíveis. Mas foi, também, uma opção de linguagem, da compreensão eficaz do que deva ser uma mensagem de publicitária.

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Referências bibliográficas BRIEFING. 30 anos de televisão no Brasil. São Paulo: Logos, n. 25, set./1980. Especial. COTTI, Edmur de Castro (1956a). Rádio e Televisão. Propaganda. São Paulo, ano 1, n. 1, p. 37-38, mar. 1956. ___ (1956b). ___. Propaganda. São Paulo, ano 1, n. 2, p. 30-31, abr. 1956. ___ (1956c). ___. Propaganda. São Paulo, ano 1, n. 4, p. 26-27, jun. 1956. ___ (1956d). ___. Propaganda. São Paulo, ano 1, n. 9, p. 40-41, nov. 1956. DUAILIBI, Roberto. Os perigos da propaganda ao vivo. Jornal da Memória. São Paulo, ano 1, n. 1, p. 8, out. 1995 ECO, Umberto. Apocalípiticos e integrados. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. GOMES, Nelson. A evolução do comercial em VT. Jornal da Memória. São Paulo, ano 1, n. 1, p. 6-7, out. 1995 LAGE, Carlos. Comercial ao vivo: um problema de televisão. Propaganda. São Paulo, ano 1, n. 5, p. 44-45, jul. 1956. MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. 5. ed. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2009. PN – Revista de Publicidade e Negócios. Rio de Janeiro, Ano XIV, n. 196, 5 de nov. 1953, p. 41. PRIOLLI, Gabriel. A tela pequena no Brasil Grande. In: LIMA, F. B.; PRIOLLI, G.; MACHADO, A. Televisão & Vídeo. Jorge Zahar, 1985. PROPAGANDA (1961a). São Paulo, ano 5, n. 62, mai. 1961. ___ (1961b). São Paulo, ano 5, n. 63, jun. 1961. RAMOS, Ricardo. Do reclame à comunicação: pequena história da propaganda no Brasil. 3 ed. São Paulo: Atual, 1985.

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IMPRESSOS ALTERNATIVOS: EXPRESSÕES E IMPRESSÕES DA CONTRACULTURA BRASILEIRA 1

Patrícia Marcondes de Barros

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RESUMO O presente artigo visa analisar o movimento contracultural brasileiro do período de 1969 a 1973, através de algumas publicações da chamada “imprensa alternativa”, editadas no Rio de Janeiro por Luiz Carlos Maciel. Através do estudo dessas fontes, houve o mapeamento e a caracterização da contracultura no Brasil, seus caminhos e descaminhos, em um período de recrudescimento do regime militar, que cerceava qualquer manifestação de oposição ao sistema vigente. Palavras-Chave: Luiz Carlos Maciel, Imprensa (Brasil), Contracultura, Regime Militar(1964), História do Brasil.

ABSTRACT The present article analyzes the countercultural movement in Brazil from 1969 to 1973, through investigation of publications by the alternative press, edited in Rio de Janeiro by Luiz Carlos Ferreira Maciel. Through the study of these sources, Brazilian counterculture was mapped and characterized, in a period when the military regime was increasing its power, cornering any oppositional manifestation to the ruling system. Keywords: Luiz Carlos Maciel, Brazilian Press, Counterculture, Military Regime of 1964, History of Brazil.

1 Artigo resultante da tese de Doutorado intitulada: “PROVOCAÇÕES BRASILEIRAS”: A IMPRENSA CONTRACULTURAL MADE IN BRAZIL –COLUNA UNDERGROUND (1969-1971), FLOR DO MAL (1971) & a ROLLING STONE BRASILEIRA (1972-1973), defendida na Universidade Estadual Paulista- Assis (UNESP), no 2º Semestre de 2007. 2 Doutora em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade) pela Universidade Estadual Paulista (UNESP-Assis). É autora do livro “Panis et Circenses”: A idéia de nacionalidade no Movimento Tropicalista (EDUEL, 2000) e leciona na área de Comunicação Social, no curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo – Curitiba – Paraná.


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1 “A Morte da Cultura Ocidental”: o nascimento da contracultura Julien Beck, dramaturgo do Living Theater - um dos primeiros grupos teatrais norte-americanos a viver no estilo hippie - , proclamava que o ano de 1968 foi o da morte da cultura na sociedade ocidental com o nascimento da contracultura. O termo “contracultura” surgiu na imprensa norte-americana em meados dos anos 60 para designar o conjunto de manifestações culturais e políticas (como o movimento hippie, o rock, a busca por filosofias orientais, a negação da lógica industrial, entre outras manifestações) que floresceram, não só nos Estados Unidos, mas em diversos países europeus. (PEREIRA,1981, p.13) Assim, os músicos, os poetas beats, e os “drop outs” em geral do período do pósguerra, eram comumente apontados como sendo os precursores da contracultura, pois os mesmos associavam o capitalismo e a tecnocracia norte-americana à “Moloch” - divindade fenícia e cartaginesa para quem eram feitos sacrifícios humanos – que, neste contexto, representava a modernidade, a mecanização, a desumanização (dos indivíduos e do espaço público), a alienação e o poder (PEÇANHA,1988, p.42). A panacéia para os males de “Moloch” foi à criação de uma cultura marginal, engendrada em seu seio, numa busca pela reintegração da totalidade humana. Os Estados Unidos da década de 50 viviam dias de grande prosperidade econômica gerada no pós-guerra, configurando um cenário de euforia consumista que marcou este período. Ao lado de novas promessas - “segurança e estabilidade” - caminharam as ameaças nucleares, resultantes da pretensão de um domínio efetivo da natureza, “da vida e da morte”. Para a manutenção efetiva do sistema, criaram-se formas cada vez mais sutis de dominação da massa. Não se utilizavam mais da força bruta dos exércitos para a manutenção da ordem. Criavam-se outras estratégias - como a do conforto, segurança, ordem e proteção, instilando, em todos os meios sociais, uma atitude conformista em uma nação que tinha provado ao mundo ser o sistema econômico, político, social e cultural mais eficaz e estável do planeta. Havia, também, um clima de histeria anticomunista, comandado pelo senador Joseph Macarthy - de onde se originou o termo “macarthismo” - que gerou um período de perseguições aos intelectuais que discordavam do sistema ideológico então vigente. Foi no seio de uma sociedade modernizada, como a dos Estados Unidos, país onde a tecnocracia desenvolveu-se de forma incisiva, que surgiu o movimento contracultural, de caráter “místico-político”, que tinha por objetivo rebelar-se contra os valores instituídos pela sociedade norte-americana. Theodore Roszak considera a tecnocracia como uma forma social, na qual uma sociedade industrializada atinge o máximo de sua integração organizacional, proporcionando uma racionalização humana que compete em precisão com a organização mecânica. Com a tecnocracia, o aparelho produtivo da sociedade tende a se tornar totalitário a partir do momento que determina, não apenas as oscilações, habilidades e atitudes socialmente necessárias, mas também as necessidades e aspirações individuais, instituindo, assim, novas formas eficazes de controle social, sob a aparente máscara de neutralidade, apresentando-se como um fenômeno apolítico, não ideológico, que 18 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 31-46| 2° Semestre 2009


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seduz as mais diversas tendências da política tradicional. (ROSZAK,1972, p.18) Foi contra esse caráter racional, desenvolvido pela tecnocracia - que assemelha indivíduos a “peças bem ajustadas de uma máquina”, a fim de funcionarem com perfeição para aumentar a eficiência da produtividade – que os jovens se rebelaram, através de uma postura de descondicionamento, mola propulsora da contracultura, com a colocação do lado inconsciente e dionisíaco da existência. Buscou-se, assim, uma resposta crítica frente a gama de condicionamentos que levavam o ser humano àquilo que o existencialismo sartriano denunciou como existência inautêntica. O conceito sartriano de existência inautêntica foi criado e avivado pelas ilusões do capitalismo e pelo rigoroso sistema tecnocrático, que racionalizou, ordenadamente, toda a estrutura social, forjando uma natureza humana de acordo com as conveniências do sistema. Os comportamentos adequados à funcionalidade do mesmo são padronizados e normatizados através de uma violência implícita que promove a vigilância e uma política de exclusão de todos os “desobedientes”, taxados, geralmente, de “loucos e criminosos”. O sistema aviva no indivíduo, necessidades para o consumo, para tentar distraí-lo de sua verdade existencial: a morte, a falta de sentido e o nada. É o que Marcuse (1978) chama de dessublimação repressiva, quando se estimulam necessidades através do grande aparato da publicidade e da propaganda, sem nunca as satisfazer: nisto consiste a dinâmica do capitalismo. O orientalismo zen budista com sua proposta de “aniquilamento do ego” foi uma das formas de transcender e, assim, descondicionar o indivíduo impotente frente a um mundo rápido, moderno e incompreensível. Através do descondicionamento, chegarse-ia à existência autêntica, embasada pela formação de uma “nova consciência”, caracterizada pelo ideário da contracultura expresso através do movimento hippie, pela “Nova Esquerda”, por novas formas educacionais (surgiam os programas das antiuniversidades na Europa e Universidades Livres nos Estados Unidos), pela antipsiquiatria, pela revolução sexual e, também, por uma simpatia a manifestações anteriores aos anos 60, como o surrealismo, o romantismo Sturm und Drung (“Tempestade e Ímpeto”), a Geração Beat, entre outras posturas e pensamentos que encontraram eco na geração da década de 60. A travessia das ideias contraculturais no Brasil, devido ao contexto político/ cultural vivido, propiciou o desenvolvimento de matrizes e construções bem específicas, alcançando uma minoria juvenil que tentava articular um discurso diferente do propagado pelos esquerdistas ortodoxos e pela direita militar, dando respostas diferenciadas e irreverentes, principalmente, à questão da nacionalidade, geradora de ferrenhos embates na época. O ideário da contracultura ganhou visibilidade com a Tropicália, movimento artístico apreendido como algo exótico, um “enlatado americano”, uma moda burguesa, considerada um verdadeiro perigo para a sociedade, devido às suas ideias desagregadoras da família e do sistema. Tanto a direita militar quanto a esquerda ortodoxa consideravam o “desbunde tropical” como um movimento “imaturo”, subjetivo e individualista. Seus participantes eram rotulados de “malucos e alienados” por causa da valorização dos processos intuitivos, sensórios e imaginativos. As críticas, contudo, não impediram as manifestações da

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contracultura brasileira, que obteve visibilidade através da improvisação de shows, espetáculos teatrais, filmes e publicações alternativas (que raramente chegavam a uma grande circulação e tinham uma existência efêmera). O mote para tais manifestações era a vivência do aspecto experimental.

2 IMPRESSOS E IMPRESSÕES DA CONTRACULTURA “Alô, alô, todo mundo: a imprensa de underground acaba de nascer no Brasil. Presença, mensal, está nas bancas há quinze dias; Flor do Mal, semanal, há uma semana; e Rolling Stones do Brasil pintará dentro de poucos dias, ainda na primeira quinzena de novembro. Essa imprensa nova surgiu assim de estalo. Por mágica. Por feitiço da sempre imprevisível realidade. Sementes secretas. Flores bruscas na Terra do Sol. Luzeiros. Alô, Alô, cidades brasileiras, do Norte ao Sul, do Leste ao Oeste. Espero notícias, quero saber de novas publicações, do que vocês estiverem fazendo. Vamos trocar jornais? O primeiro passo é o intercâmbio, para a criação de um estilo de vida mais bonito e mais feliz. Que esse jardim providencial cresça e se multiplique. Como Ele quis que fosse – e disse às crianças. Alô, alô, Alvinho Guimarães, em Salvador, Bahia. Já soube do lançamento de O Verbo, jornal das crianças baianas. Não posso mandar colaboração agora – falta tempo – mas, mesmo assim, quero ver o primeiro número. Intercâmbio. Você fala. Alô, alô, bairros, escolas, comunidades, qualquer núcleo em que um jornalzinho possa nascer e crescer. Que, mais uma vez, no princípio seja o verbo. Flores bruscas. Luzeiros. Alô,alô, Rubinho Gomes, inventor da Presença. O primeiro número está lindo, muito legal e tudo. A batalha é dura mas, por isso mesmo, capaz de encher de alegria o coração. Em frente.”(PASQUIM, no. 121 – 26/10 a 1/11/1971)

Entre os meios encontrados para a expressão das idéias contraculturais, estava a chamada imprensa alternativa também designada, genericamente, de “underground”, “pós-tropicalista”, “marginal”, “nanica”, “não-alinhada”, “emergente”, “poesia jovem”, entre outros vocábulos com suas múltiplas conotações e contradições, usados como sinônimos perfeitos de produção literária independente. (MICCOLIS apud MELLO,1986, p.61). Uma grande parte dessas produções permaneceu no anonimato, sendo divulgadas no Brasil em círculos restritos, oriundos da juventude classe média, que se identificava com a utopia hippie de caráter internacional, vivida em vários pontos do planeta. Cada impresso produzido neste contexto revelava horizontes de possibilidades, resultando em diversas matrizes contraculturais. Contudo, apesar da especificidade dessas produções, pode-se dizer que havia um objetivo comum a todas elas: sua desvinculação dos esquemas comerciais e institucionais, através de novas formas de linguagem, o que já consistia em um aspecto de luta ideológica relacionada à filosofia da contracultura.

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Esse tipo de jornalismo alternativo do final dos anos 60 e início dos 70 recebeu influências do New Journalism, ao abordar questões comportamentais e sociais com um “novo foco”, aberto às transformações ocorridas no mundo em todas as instâncias. Surgem, então, novos conteúdos advindos de um “novo olhar” imerso na subjetividade; novos formatos com uma estética própria, que negava os padrões de objetividade do jornalismo tradicional americano, permitindo a vivência das situações durante a reportagem. Nos Estados Unidos, a disseminação do método offset (de impressão a frio) facilitou o surgimento da imprensa underground dos anos 50 e 60, permitindo pequenas tiragens a baixo custo, nas próprias gráficas dos grandes jornais, que passaram a oferecer o tempo ocioso de impressão para terceiros. Um exemplo de impresso underground que se beneficiou desse método foi a famosa revista norte-americana Oracle. No número 1535 da Haight Street, funcionava um dos pontos de encontro dos hippies de Hashbury: a Psychedelic Shop, loja que vendia jornais, revistas, discos e livros, além de ali também funcionarem um café, uma sala de meditação sempre na penumbra e outra para se fazer amor. Neste shopping psicodélico, funcionava a redação do precursor da imprensa underground. Oracle foi o porta-voz da tribo, chegando às ruas, perfumado de jasmim, contando os eventos relacionados à vida em comunidade (que era uma nova proposta de família em contraponto a existente). As edições esgotavam-se em pouco tempo. Quando fechou as portas, estava com uma tiragem de 100 mil exemplares e distribuição em toda a Califórnia, sendo que algumas das edições alcançaram tiragens de 120 mil exemplares. Apesar do sucesso, ninguém lucrou com o impresso. Os colaboradores podiam somente, em caso de emergência, tirar “um vale” para o aluguel. O espaço vazio deixado por essa produção foi ocupado por aqueles que seriam os mais bem-sucedidos e poderosos jornais alternativos - a Rolling Stone e o Village Voice. No Brasil dos anos 70, o método offset foi implantado pela Editora Abril, que oferecia um sistema nacional de distribuição, estimulando o surgimento de jornais alternativos, portadores de projetos nacionais, a partir de uma tiragem de 25 mil exemplares. O objetivo não era o de abrir concorrência, ou o de obter grandes vendagens, mas sim, o de reduzir seus próprios custos operacionais, apontando para a natureza política e não mercantil dos jornais alternativos. O modelo ético-político da imprensa alternativa consistia numa assistemática produção cujo foco não era a administração, organização e comercialização, mas sim, o caráter ideológico. A insistência numa distribuição nacional antieconômica, a incapacidade de formar grandes bases de leitores-assinantes e um certo triunfalismo em relação aos efeitos da censura contribuíram para fazer da imprensa alternativa, não uma formação permanente, mas algo provisório, frágil e vulnerável, não só aos ataques de fora, como às suas próprias contradições. (Cf. KUCINSKI, 1991) Um dos trabalhos pioneiros de divulgação das idéias contraculturais foi a coluna Underground (1969-1971), editada por Luiz Carlos Maciel e veiculada no semanário alternativo Pasquim, no Rio de Janeiro. O Pasquim foi fundado por Sérgio Cabral, Jaguar e Tarso de Castro, seis meses

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após o governo militar decretar o Ato Institucional n.º5, acabando, assim, com a chamada liberdade de imprensa. Seu primeiro número chegou às bancas no dia 26 de junho de 1969. Era, primeiramente, considerado um jornal de bairro, no caso, de Ipanema, denominado, por muitos, como um “jornal de costumes”, que conseguiu, em poucas semanas, emplacar 200 mil exemplares e alcançar, rapidamente, leitores de vários pontos do país, por sua linha editorial irônica. O caráter humorado e informal do Pasquim atingiu os leitores brasileiros, vendendo muitos exemplares, oferecendo resistência em situações nas quais esta não parecia ser possível. Surgiu como resposta a uma necessidade social que se manifestava na época, tornando-se um dos ícones da imprensa alternativa no Brasil, tendo uma circulação de âmbito nacional (o que não ocorria com a maior parte dos jornais alternativos da época). A coluna Underground (1969-1971) foi inserida na fase inicial do Pasquim, idealizada e intitulada por Tarso de Castro, que ciente do interesse de Luiz Carlos Maciel pelas idéias contraculturais, abriu o espaço dentro do semanário por acreditar ser uma área jornalística nova, que poucas pessoas conheciam (inclusive as que formavam o grupo). Na referida coluna, Maciel apresentava textos, informações, sugestões e teorias, estreitamente vinculadas ao ideário da contracultura e pelos ecos deste no Brasil. Wilhelm Reich, Herbert Marcuse, Norman O. Brown e Norman Mailer foram contemplados na coluna Underground, com artigos intitulados de A Esquerda Pornográfica. Ao contrário do título, o conteúdo nada tinha de pornográfico, ao contrário, pregava o sexo sadio, não distorcido pelos labirintos entre o consciente (princípio de realidade) e o inconsciente (o princípio de prazer), pois acreditava que só através de uma sexualidade sadia (de uma organização genital) poder-se-ia mudar a sociedade, aniquilando as dualidades que o sistema impõe que geram os conflitos e, conseqüentemente, as neuroses. Outra questão comumente levantada na coluna foi quanto à utilização de drogas e sua influência no processo de descondicionamento do indivíduo. A apresentação e discussão, através dos artigos de sua coluna acerca dos temas/tabus para uma sociedade conservadora, levou Maciel à prisão. Após a experiência com a coluna Underground, Maciel aventurou-se a editar um jornal de cunho independente e marginal, intitulado a Flor do Mal, fundado em 1971, com os poetas Tito de Lemos, Torquato Mendonça e Rogério Duarte. Quem escrevia em Flor do Mal eram os próprios Tite de Lemos, Torquato Mendonça, Rogério Duarte e Luiz Carlos Maciel, assim como pessoas que eles conheciam, “antenadas” com as idéias contraculturais, tais como: Antônio Bivar, Joel Macedo, Waly Salomão, José Simão, Antônio Capinam, Célia Maria, Moleque Pereira e amigos da clínica psiquiátrica, que Rogério tinha conhecido quando de sua internação. A redação localizava-se na Rua Clarisse Índio do Brasil, 32, na capital do Rio de Janeiro. O principal interesse desse jornal era dar voz aos artistas jovens, de vanguarda, contraculturais, “malucos” que não eram aceitos por nenhum órgão de imprensa.

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Maciel conta que o psiquiatra que leu a Flor do Mal disse assim: “Lindo, parece aquele jornalzinho que os meus pacientes fazem no hospício”.3 Era intencional a idéia de se fazer uma publicação nada convencional. Rogério Duarte afirmava que os textos tinham que ser escritos à mão, e, para tanto, deveriam contar com uma equipe de calígrafos, como os da Idade Média. O Pasquim era imprensa alternativa tradicional, feita por jornalistas, contudo, a Flor do Mal não o era e tinha um caráter totalmente poético, cultivado pelos seus proponentes. A fotografia, que ilustra o primeiro número, foi encontrada, por Torquato Neto, no chão da redação do jornal Última Hora, pisoteada. Era a foto de uma menina negra sorrindo, despida do peito para cima, representando a pureza espiritual que ansiavam. Esta iniciativa durou apenas cinco números, contudo, sua tiragem foi de 40 mil exemplares, dos quais, vendeu-se a metade.

IMAGEM 1 Qual o pólem da Flor? “Abra a Flor do Mal: pétalas, corola, insetos maravilhosos, escaravelhos incríveis, beija-flores, algumas fadas voltejantes, serafins, gnomos, sílfides, ogros, ondinas, nereidas, etc” 4. Maciel conta que o jornal de publicação semanal não atingiu índices de aceitação para um público amplo, Sérgio Cabral chamou-o e disse: “Pô Maciel, eu falei que ia investir no jornal, fiz, mas não dá! Não vende!” O jornal Flor do Mal, apesar do curto período de circulação, obteve grandes considerações no meio underground brasileiro. Segundo Maciel, o artista plástico Hélio Oiticica considerava-o como o único jornal não machista da imprensa brasileira. Esta idéia de desrepressão desenvolvida pelo discurso da imprensa contracultural ampliava o conceito de política, estendendo-a ao corpo, ao comportamento das 3 Entrevista concedida por Luiz Carlos Maciel, no dia 07 de setembro de 2005, Leblon, Rio de Janeiro. 4 MACIEL, Luiz Carlos. Flor do Mal. O Pasquim, Rio de Janeiro, nº 121. 26/10 a 01/11/1971.

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pessoas, à questão sexual. Segundo Maciel, a força motriz desses impressos era o sentimento de grupo que havia entre os excluídos por opção. A fraternidade, gerada neste denominado grupo em fusão, delineou o surgimento de outras iniciativas efêmeras a exemplo da Flor, que desabrochou e não resistiu frente às vicissitudes financeiras e à incompreensão dos temas por ela tratados. Maciel continuou “desafinando o coro dos contentes” em um novo projeto o qual foi convidado: a revista Rolling Stones, versão brasileira. A revista Rolling Stone surgiu em novembro de 1967, em São Francisco, por Jahn Wenner (que ainda é editor da revista) e Ralph J. Gleason. Sua origem se deu pelo interesse de Jahn Wenner, na época com 21 anos, que dizia ter mudado radicalmente sua vida depois de ter assistido “Os Reis do Iê-Iê-Iê”, com os Beatles. Produziu a revista com 7.500 dólares coletados junto a amigos e, logo a iniciativa passou a se tornar lucrativa, atingindo seu ápice de vendas, depois da fase do rockismo e hippismo, ao abordar assuntos como arte e política, tornando-se muito famosa nas décadas de 60 e 70. Já nos anos 80, a sua sede transfere-se para Nova Iorque, cidade situada mais próxima às agências de propaganda, e muitos afirmam que sua mudança de proposta começou a partir disso, o que lhe imprimiu um caráter comercial. A revista de música e comportamento Rolling Stone, em sua versão brasileira, lançada por Luiz Carlos Maciel, em 1972, com o mesmo título da matriz americana teve como intuito, não apenas divulgar informações acerca dos grandes astros da música pop internacional e nacional, como também, discutir literatura, cinema, filosofia, comportamento, sexualidade, drogas, entre outros assuntos em voga. Era uma publicação, inicialmente mensal, voltada para o contexto da contracultura, com sua rebelião juvenil, que passou, depois, a uma periodicidade semanal, persistindo até o trigésimo sexto número (a revista durou um ano), podendo-se afirmar que foi uma das precursoras do gênero no país. Maciel foi procurado pelo inglês Mick Killingbeck, que veio ao Brasil em 1971 para trabalhar como físico nuclear, mas que cultivava intimamente um amor pelo rock’n´roll. Conseguiu, assim, os direitos da revista Rolling Stone, que já era um grande sucesso nos Estados Unidos, para editá-la no Brasil. A redação ficava localizada na Rua Visconde de Caravelas, 73, Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. Inicialmente, a revista brasileira teve como administradores o inglês Michael Killinbeck e o norte-americano Theodore George, que firmaram contrato e dispuseram-se a pagar pelas matérias. Contudo, o pagamento não teria ocorrido e, depois de dois meses, o material não chegava mais. A opção, neste contexto, foi a de escolher as matérias que interessavam na Rolling Stone norte-americana, como também, em outras revistas de rock, traduzi-las e recortar as fotos. A Rolling Stone foi pirata desde os primeiros números, começando com uma periodicidade quinzenal (a mesma da matriz norte-americana) e tendo como público-alvo os fãs de rock, antenados com o movimento de contracultura e que não eram tantos assim para

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tirar a revista das oscilações financeiras. A iniciativa de fazer uma edição, a de número zero, para atrair anunciantes (principalmente as gravadoras) não funcionou.

IMAGEM 2 Mesmo frente às adversidades financeiras, a revista número zero saiu em 1972, contendo uma longa matéria escrita por Maciel sobre a vinda do grupo de rock Santana ao Brasil, uma crítica de Mick ao show FA-TAL de Gal Costa, uma saudação à volta de Caetano ao Rio de Janeiro, através de uma poesia de Maciel, e entrevistas com o próprio Caetano e Jorge Mautner. No mesmo número, matérias sobre astros internacionais e nacionais da música, como Alice Cooper, Edgard Winter, Carole King, Bob Dylan, Pink Floyd; uma matéria sobre a apresentação conjunta de João Gilberto, Gal Costa e Caetano Veloso, em um programa especial gravado pela TV Tupi em São Paulo; outra matéria assinada por Jorge Mautner, sobre “cabelos”, um símbolo muito forte de rebelião juvenil; e, finalmente, duas matérias a respeito de teatro: a primeira comentando sobre o trabalho de José Celso Martinez Correia, e a outra sobre o grupo Living Theater. A edição zero da revista, já na época, tornara-se raridade, tanto que não havia nem possibilidade de negociação a custo baixo: “Vendo o no. zero do Rolling Stone em perfeitíssimo estado por 100,00 sem contra oferta”.5 Luiz Carlos Maciel associou o fracasso de vendas da revista a não aparição constante nas bancas, resolvendo, então, que a periodicidade seria, ao invés de quinzenal, semanal, estratégia esta ineficaz, pois não aumentou as vendas da mesma. Apesar da crise econômica, a revista foi ganhando notoriedade e tinha já assinaturas, oferecidas em promoções tentadoras para os leitores: “Assine e ganhe um LP”. Podia ser o Barra 69, de Caetano e Gil, ou Schools Out, de Alice Cooper, ou, ainda, Exile On Main Street, dos Rolling Stones. 5 SCIARRETTI, Carlos Antônio. Classificados de Graça. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 19, 05/09/1972, p. 23.

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A seção “Correspondências & Consultório Sentimental” (até a edição de número nove, quando se torna a seção “Cartas”) traduz-se como um termômetro da aceitação da proposta do jornal. A maioria que escrevia à redação era favorável, contudo, havia aqueles que se referiam à publicação ou como sendo um ataque norte-americano (por se tratar de rock) ou como a de “grupo fechado”, de patota: Sr. Editor: Muito bonitinho esse jornal, mas receio que não esteja em boas mãos. Basta de imperialismo no terceiro mundo. Necessitamos de uma imprensa autenticamente brasileira. Precisamos voltar às raízes.6 Sr. Editor Sabemos de grupos de pessoas que têm escrito cartas e artigos para a RS, sendo os mesmos sistematicamente preteridos em função de matérias absolutamente inofensivas, que não têm nada a ver com nada. Sabemos que o underground brasileiro é, basicamente, um underground de patota, de afirmação de egos. Será que além disso, o RS vai se firmar como jornal “meramente musical”, alienando ainda mais essa já tão contraditória, triste e confusa contracultura nacional?7 Sr. Editor Inicialmente eu deveria dizer maravilhas sobre o jornal, e depois atacaria para me valorizar e depreciá-los. Eu, porém, em contrário, gostaria de estimulálos, mesmo sabendo que são os mesmos calhordas da turma do Pasquim, Flor, Bondinho e Presença, que dão uns rasgos de inteligência na mediocridade da sociedade Maia-Maia.8

Apesar da polêmica se voltar à questão nacionalista, a maioria das cartas enviadas eram favoráveis à proposta da revista, que sempre trazia novidades sobre música. Ezequiel Neves assinava as colunas “Toque”, falando essencialmente sobre música, e “Notas Ligadas” que informava em forma de notinhas, sobre o show bizz e temas diversos. Como o jornal (também chamado, por muitos, de “revista”, causando polêmica até na sua denominação), tratava de rock, havia também a seção “Discos”. Nesta seção, inicialmente, foram traduzidas resenhas norte-americanas em alternância com as nacionais. Podia-se contemplar críticas ao Lester Bangs, a Alice Cooper, como, também, texto de Maurício Kubrusly sobre um álbum do Zimbo-Trio.

6 Correspondências & Consultório Sentimental. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 03, 29 de fevereiro de 1972, p.03. 7 Cartas. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 11. 27/06/1972, p.21. 8 Cartas. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 11. 27/06/1972, p.20.

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Contudo, com o passar das edições, os editores resolveram democratizar mais o espaço, solicitando a contribuição de resenhas de discos aos próprios leitores, que começaram a participar efetivamente: (...) O fato de você estar lendo este jornal mostra que você é diferente dos outros. Um pouco mais inteligente talvez? Mais esquisito? Mais perigoso? Bem, essa é a nossa viagem, mas agora é tempo de você fazer a sua. Envie-nos material sobre a música que você gosta, sobre as coisas que estão acontecendo ao seu redor. Você manda e nós publicamos.(sic)9

Havia, também, espaço para a discussão de livros cujos temas variavam entre Budismo, Teatro, Cinema, Ecologia, e outros, vinculados aos movimentos da contracultura. A exemplo, citamos “Tarântula” de Bob Dylan, “A História do Esquadrão de Assalto” de Charles Mason e “A Contracultura” de Theodore Roszak. Os lançamentos de discos, livros, peças teatrais, entre outras manifestações artísticas compunham a página “Serviço”. Nessa seção, havia roteiros de viagens para os drop outs, anúncios de serviços de artesanato, de colchões d´água, de restaurantes macrobióticos, dentre outros: (...) Nós sabemos que tem muita gente por aí amarrada em viajar, mas que não pode gastar 5 dólares por dia para sobreviver nos Estados Unidos. Por isso resolvemos dar uma mãozinha, dando algumas dicas para viajar sem gastar um tostão. Primeiro o amizade resolve o problema da passagem – como chegar lá. A partir daí deixa com a gente. Estamos iniciando uma série de artigos feitos especialmente para informar ao viajante duro como se virar na terra do tio Sam – usando os mesmos expedientes que a turma que mora lá usa. Procuramos abarcar primeiro as coisas mais importantes: transporte, moradia, assistência médica e moedas úteis. Comida é o mais fácil – sempre se descola, depende de sua inventividade.10

Este artigo contemplava a possibilidade de viver a filosofia da contracultura em sua matriz norte-americana. Algumas dicas para se viajar até a terra do tio Sam foram selecionadas a partir do livro “Steal this book” de Abbie Hoffman, que era, na época, um best seller nos Estados Unidos; um manual de sobrevivência para quem quisesse se aventurar: transporte (carona), moradia (em comunidades, igrejas, entre outros lugares), entre outras dicas pertinentes aos “viajantes”. Na seção, “Classificados de Graça”, classificados inusitados, alguns até mesmo de cunho metafísico: (...) Sou um verdadeiro gênio renegado. Escrevo peças, poemas, trechos tétricos, eróticos e paranóicos. Adivinho o futuro de qualquer pessoa que já pisou a avareza maldita da terra. Eu sou o Profeta do Além e moro num beco confortável da Rua Augusta pegado ao Center 3 – SP.11 9 SERVIÇO. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 03, 29/02/1972, p.27. 10 SERVIÇO. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 04, 21/03/1972, p.34. 11 SERVIÇO. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 10, 13/06/1972, p.27.

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Na seção “Som”, discutia-se sobre a tecnologização, configurada pelos saudosos headphones, pelas “vitrolas” (com duas rotações!) de última geração e pelas “fitascassetes”: (...) Simples, leve, portátil e de fácil manejo, o mini-cassete pegou fogo. Nada de tira rolo, bota rolo, ajusta de cá, ajusta de lá. Era só pegar aquela pequena caixinha de plástico onde ficava a fita, tacar lá dentro e ligar. Era aquela tranqüilidade...12

Joel Macedo era o jornalista correspondente da revista que, através da seção “Estrada”, informava aos leitores sobre os movimentos e festivais que eclodiam no contexto contracultural, nos Estados Unidos: (...)Eu estou escrevendo da grama do Beach Park e tentando fazer a minha cabeça para o papel, em português e numa certa ordem, o que está me custando um grande esforço. Tudo é tão simples. Todas essas pessoas passando, com suas mochilas, com suas guitarras, suas tatuagens. Tudo é tão fantástico! (...)de New Jersey até Nebrasca eu vim encontrando freaks pela estrada, todo mundo heading up to Boulder para o encontro das tribos.13

Jefferson “Dropê” participou da Rolling Stone na qualidade de distribuidor alternativo da revista. Ele a distribuía nas praias, especificamente no Posto 9 de Ipanema (conhecido também como “as dunas da Gal”), em shows, entre outros pontos de encontro dos jovens. Com o passar do tempo, aumentou o número de pessoas para a distribuição do jornal, fazendo-se o trabalho no chamado “corpo-a-corpo”. Na edição de número 20, é lançada a coluna “Free Press” que contemplava informações de outros jornais alternativos brasileiros: (...) Essa é uma coluna aberta ao contato, noticiário e publicações de todo el pueblo libre del universo. Piratas, freaks, loucos, poetas menores da literatura marginal, cantantes e desafiantes, todos juntos.14

O caráter místico também encontrava, literalmente, seu espaço na revista na seção estreada a partir da edição no 12, intitulada “Horóscopo”, assinada por Sheila Shalders e Telmo de Jesus. Para se ter uma idéia do teor empenhado nessa seção, abaixo consta uma previsão para o signo de virgem: (...)No dia 28 vão pintar transas espirituais que devem ser aproveitadas e curtidas. Ligue-se nelas. Ligue-se nelas. Dia 29 terá bastante energia para qualquer atividade. Dia 03 sua tendência a auto-destruição provocará grilos fortes em seu casamento(...)15

12 SOM. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 07, 02/05/1972,p.26. 13 MACEDO, Joel. Estrada. Rolling Stone,Rio de Janeiro, no 17, 22/08/1972, p. 17. 14 TOMASSI, Jefferson “Drope”. Free Press. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 20, 12/07/1972, p.8. 15 Shalders, Sheila, JESUS, Telmo de. HORÓSCOPO. Rolling Stones, Rio de Janeiro, no 12, 04/07/1972, p.22.

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Na edição de no 33, estreou a coluna “Flomps”, com poemas de Chacal e Hélio Oiticica, entretanto, o projeto gráfico da revista, que foi idealizado por Lapi, não seguia um padrão e, assim como as colunas, era variável. A tiragem inicial da revista foi de 25 mil exemplares e com as edições seguintes foi baixando até chegar a 10 mil. Embora tivesse um pequeno, mas fiel, público, a Rolling Stone brasileira foi diminuindo nas edições seguintes. Assim, teve uma vida efêmera, e acabou devido ao caráter assistemático de sua produção e de seus produtores, assim como aconteceu com inúmeras outras iniciativas da imprensa alternativa. Tais impressos tornaram-se um grande happening dentro do cenário da arte e da cultura brasileira, cujo empenho pela produção e difusão independente das informações desvinculadas dos esquemas oficiais, através de novas formas de linguagem, por si só constituíram um aspecto da luta ideológica: “Pedras que rolaram no Brasil nos anos de chumbo”. *** A coluna underground, veiculada no Pasquim, foi de extrema importância na divulgação da contracultura no Brasil, dando origem a outras iniciativas, como a Flor do Mal, impresso de caráter poético, psicanalítico e místico, e a Rolling Stone, de cunho musical (especialmente o rock) e comportamental. Apesar da especificidade de cada produção, têm em comum: a busca da prática existencial (pois a prática política não era possível, devido a ditadura vivida na época; o questionamento não programático, não partidário da “verdade”, em suas diversas instâncias (política, econômica, cultural, social, religiosa, entre outras); a busca da transcendência através do misticismo e das drogas; e a linguagem fragmentária, anárquica, lúdica e experimental, totalmente distantes do que era então produzido pela imprensa convencional.

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REFERÊNCIAS CARDOSO, Tom. 75kg de músculos e fúria: Tarso de Castro – a vida de um dos mais polêmicos jornalistas brasileiros. Editora Planeta do Brasil, 2005. FARO, José Salvador. Revista Realidade 1966-1968: Tempo de Reportagem na Imprensa Brasileira. Editora AGE/Ulbra,1999. KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários – nos tempos da imprensa alternativa. Editora Página Aberta Ltda. São Paulo, 1991. MACIEL, Luís Carlos. Sartre: vida e obra. 2a Edição. Rio de Janeiro, José Álvaro Editor, 1970. __________________. Negócio Seguinte. 2a Ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1982. Coleção Edições do Pasquim, v.101. ___________________. Geração em transe: memórias do tempo do Tropicalismo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996. ___________________. As Quatro Estações. Rio de Janeiro, Editora Record, 2001. MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 7a Ed., 1978. MELLO, Maria Amélia (organização). Vinte anos de resistência: Alternativas da Cultura no Regime Militar. Espaço e Tempo, Rio de Janeiro, 1986. PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é Contracultura. 6a ed. Editora Brasiliense, 1988. ROSZAK, Theodore. A Contracultura. São Paulo, Vozes, 1972.

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FONTES Entrevista concedida por Luiz Carlos Maciel, no dia 07 de setembro de 2005, Leblon, Rio de Janeiro. MACIEL, Luiz Carlos. Flor do Mal. O Pasquim, Rio de Janeiro, nº 121. 26/10 a 01/11/1971. SCIARRETTI, Carlos Antônio. Classificados de Graça. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 19, 05/09/1972, p. 23. Correspondências & Consultório Sentimental. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 03, 29 de fevereiro de 1972, p.03. Cartas. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 11. 27/06/1972, p.21. Cartas. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 11. 27/06/1972, p.20. SERVIÇO. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 03, 29/02/1972, p.27 SERVIÇO. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 04, 21/03/1972, p.34. SERVIÇO. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 10, 13/06/1972, p.27. SOM. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 07, 02/05/1972, p.26. MACEDO, Joel. Estrada. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 17, 22/08/1972, p. 17. TOMASSI, Jefferson “Drope”. Free Press. Rolling Stone, Rio de Janeiro, no 20, 12/07/1972, p.8. Shalders, Sheila, JESUS, Telmo de. HORÓSCOPO. Rolling Stones, Rio de Janeiro, no 12, 04/07/1972, p.22.

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Vestindo a camiseta amarela. A campanha das Diretas apresentada por Exclam Propaganda. Hilton Castelo1

Universidade Positivo/Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba (PR).

Resumo O artigo apresenta e discute a campanha pelas Diretas feita na agência publicitária curitibana Exclam Propaganda para a Executiva Nacional do PMDB, considerando aspectos de planejamento e criação publicitária. Investiga-se aqui documento inédito em estudos acadêmicas, escrito em dezembro de 1983 pelo publicitário Antonio Freitas, no qual o autor analisa o contexto político, estabelece diretrizes de marketing e de comunicação para a campanha, cita as estratégias necessárias para alcançar os objetivos e apresenta as peças criadas por publicitários da agência a partir do frase-síntese “Eu quero votar pra Presidente”. Utiliza-se aqui como base de pesquisa os autores Bertoncelo (2007), Leonelli & Domingos (2004), Rodrigues (2003), além de materiais colhidos em fontes primárias. Palavras-chave: Campanha pelas Diretas; Exclam Propaganda; propaganda política.

Abstract This article presents and discusses the campaign for the direct election, made by the Curitiba’s agency Exclam Propaganda to the brazilian political party’s PMDB. The body of the study is a unpublished document about academic analyses of the subject, written December 1983, by Antonio Freitas, who analyses the political context of the time, establishes the objectives of the marketing and the communication for the Directs campaign and also quotes the strategic needs to reach those objectives, presenting the ads of the advertisers of the agency using the key-phrase “Eu quero votar para presidente” (I want to vote for president). The theorical base are from the authors Bertoncelo (2007), Leonelli & Domingos (2004) and Rodrigues (2003) and also primary sources from the data bank of the Exclam agency. Keywords: Campaign for the direct election; Exclam Propaganda;

political propaganda.

1 Mestrando em Comunicação e Linguagens (Universidade Tuiuti do Paraná), especialista em Leituras de Múltiplas Linguagens (PUC-PR), graduado em Publicidade e Propaganda (UFPR). Professor de Publicidade e Propaganda (Universidade Positivo - PR).


Vestindo a camiseta amarela. A campanha das Diretas apresentada por Exclam Propaganda.

1. Sociedade civil brasileira volta à cena política Entre janeiro e abril de 1984 em torno de cinco milhões de pessoas foram às praças e ruas manifestar o desejo de escolher o presidente da República pelo voto direto. De acordo com Rodrigues (2003, p. 11-12), “uma palavra de ordem simples e contundente” que propunha “a ruptura com um dos principais mecanismos da estratégia de liberalização adotada pelo regime militar, isto é, a eleição indireta do presidente da República, por meio de um Colégio Eleitoral com maioria controlada pelo governo” e que “desafiou a ditadura e amedrontou a oposição consentida”. Mais do que figura linguagem, fato concreto: o país vestiu-se de amarelo e gritou “Eu quero votar pra presidente”. Vestiu o uniforme da cidadania – criado pela agência Exclam Propaganda de Curitiba – e foi às ruas defender seus direitos, naquele que pode ser considerado, pelos números citados e abrangência espacial, o primeiro sucesso de marketing político moderno na história da propaganda brasileira. A emenda Dante de Oliveira, proposta constitucional que restabelecia as eleições diretas para presidente da República, apresentada ao Congresso Nacional em março de 1983 pelo político mato-grossense Dante Martins de Oliveira, deputado federal do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) que havia sido eleito para primeira legislatura na Câmara dos Deputados de 1982, serviu como catalisador para a mobilização popular. O primeiro documento prevendo estrutura de campanha, elaborado por uma comissão interna do PMDB, em março de 1983, sugeria lançamento da campanha em ato público no Congresso, a criação de órgão nacional de coordenação, comitês suprapartidários em todo o país e a “produção profissional do material de divulgação da campanha, em linguagem popular, para servir de estímulo ao trabalho das bases partidárias” (Leonelli & Oliveira, 2004 p. 88-89). Em abril do mesmo ano, a Executiva Nacional do PMDB, a partir das considerações feitas pela comissão peemedebista, explicita em documento público orientações para a promoção da campanha:

[...] referente à mobilização da sociedade, permitimo-nos apresentar (...) sugestões gerais que orientariam um plano de campanha mais detalhado: A) Tratamento moderno à comunicação social do PMDB nesta campanha, aproveitando, inclusive, a grande experiência publicitária que acumulamos nas últimas eleições. Convocando, também, os excelentes quadros oposicionistas no mundo da propaganda e do marketing. B) Sistemas de fornecimento do material produzido aos diretórios estaduais, municipais e distritais, bem como às bancadas parlamentares dos estados e municípios, em uma linguagem nacional, única. (...) E) Orientação no sentido de vincular os problemas concretos do cotidiano com o tema geral da campanha (Leonelli & Oliveira, 2004 p. 113114).

Em 1983 foram realizadas pelo menos três manifestações significativas: em Goiânia, Teresina e São Paulo. Porém, o engajamento popular estava muito distante

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do esperado, por conta, principalmente, de divisão interna do PMDB. Bertoncelo explica (2007, p. 99-103) que, durante 1983, esboçaram-se duas orientações políticas no PMDB. A primeira, a “corrente ulyssista”, liderada por Ulysses Guimarães, deputado federal por São Paulo, e bastante influente na Executiva Nacional do partido, apoiava a campanha suprapartidária pelo restabelecimento das eleições diretas e via a pressão popular como estratégia eficiente para abertura de espaço político às oposições. A segunda, a “Unidade”, liderada pelo governador mineiro Tancredo Neves – e apoiada pela maioria dos deputados federais do PMDB, senadores e governadores do partido – temia que a deflagração da campanha culminasse em recrudescimento político-militar. A “Unidade” apostava então na incapacidade política do presidente Figueiredo para articular um nome de consenso no partido do governo – o Partido Democrático Social (PDS) – às eleições presidenciais indiretas agendadas para 1985. E, além disso, via o crescimento da candidatura de Paulo Maluf, deputado federal pelo Estado de São Paulo, como oportunidade para unir forças com alas dissidentes do PDS em torno de um candidato moderado. As condições para aumento do apoio popular às Diretas foram estabelecidas a partir da união dos governadores do PMDB, em outubro de 1983, na cidade de Foz do Iguaçu. Nesse encontro, o grupo “Unidade” passou a apoiar o movimento pelas Diretas como estratégia para enfraquecer politicamente Ulysses Guimarães e viabilizar o surgimento de um candidato moderado de consenso entre as oposições – e com apoio popular advindo pelas manifestações pró-Diretas – nas eleições indiretas, via Colégio Eleitoral. Outro fato importante, este para o envolvimento da Exclam na campanha, foi a eleição de Affonso Camargo – político que já havia sido assessorado por Antonio Freitas, um dos donos da agência – para o cargo de Secretário Geral do PMDB, em 1983. Affonso Camargo Neto, senador biônico situacionista em 1975, com o fim do bipartidarismo filiou-se ao Partido Popular (PP), presidido por Tancredo Neves. Após o PP ser incorporado pelo PMDB, em 1981, Camargo acompanhou o governador mineiro, tornando-se um dos nomes de destaque do grupo “Unidade”, a facção ideologicamente mais conservadora do PMDB.

2. Marketing político de Exclam Propaganda A Exclam Propaganda surgiu em Curitiba em 1965, gerenciada por Rody Frederico Janz, a partir de um departamento de publicidade de Lojas Prosdócimo. Ex-auxiliar de desenhista e vitrinista de Prosdócimo, Janz, entretanto, montou uma estrutura que – apesar do status de house agency2 de Prosdocimo, que continuou como principal cliente da Exclam – possibilitava à nova agência atender outras contas, como, por exemplo, Refrigerações Paraná. Em 1982, Hiram Silva de Souza, Rubens França, Antonio2 Freitas e Ernani Buchmann, então funcionários do Grupo Prosdócimo, compraram o comando acionário da agência. No mesmo ano, a empresa de comunicação foi contratada para criar a campanha de vinte candidatos nas eleições de 1982, inclusive a do então 2 Departamento de comunicação publicitária pertencente à própria empresa.

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Vestindo a camiseta amarela. A campanha das Diretas apresentada por Exclam Propaganda.

senador José Richa para o governo do Estado do Paraná pelo PMDB. O vínculo com a política não era recente a dois sócios da Exclam: Antonio Freitas, diretor de operações, trabalhara como assessor de Affonso Camargo e Parigot de Souza, além de haver sido secretário de imprensa do governador Jayme Canet Júnior; e Ernani Buchmann, diretor de criação, estava ligado ao (P)MDB desde as eleições as eleições de 1976. O vínculo com o PMDB estreitou-se ainda mais quando a agência indicou três publicitários em regime de dedicação praticamente integral ao Comitê de Propaganda do PMDB para a campanha de 82: Antonio Freitas, o redator Almir Feijó e o diretor de arte Manoel Ubirajara Menezes da Silva (Bira Menezes). Em 1983, por causa dessa experiência, Exclam tornou-se uma das poucas empresas de comunicação do Brasil realmente especializadas em propaganda política e garantiu à agência contas do governo José Richa, o vencedor das eleições de 82.

Envolvimento de Exclam na campanha das Diretas Antes da campanha feita pela Exclam para a campanha das Diretas, houve peças isoladas sem temática unificadora e com slogans variados: “Presidente quem escolhe é a gente”, “Brasil urgente, diretas pra presidente”, “Diretas Livres Já”, “Diretas Já”

Figura 1. Peças sem.unidade de campanha. Fonte: RODRIGUES, 2003, p. 53.

É improvável que se consiga resgatar todos os materiais publicitários feitos em defesa das Diretas. Foram criadas e produzidas inúmeras peças pelo PMDB, PT, PDT e por comitês suprapartidários. Na verdade, a campanha feita pela Exclam era, também, para ser apenas de apoio regional, mas que ganhou repercussão e amplitude nacional graças à visão publicitária de Antonio Freitas3: 3 Entrevista concedida por Antonio Freitas ao autor do artigo.

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Affonso Camargo solicitou-me que preparasse algum material para o primeiro evento programado pela oposição – um comício na Boca Maldita, em Curitiba, espécie de pré-teste e precursor do comício maior que seria realizado depois na Praça da Sé. Argumentei que o assunto era muito maior do que um simples material de convocação do evento. Estudando a conjuntura política da época, através dos (poucos) dados de pesquisa existentes e de conversas com algumas lideranças políticas da oposição – José Richa, Euclides Scalco, Franco Montoro, lideranças que representavam a ala moderada da oposição –, preparei um documento para discussão a partir do que parecia óbvio: qual o maior desejo, a maior expectativa da população brasileira naquele momento? Resposta: eleger um presidente da República, votar em uma eleição que não acontecia há vinte anos. Conforme bem salienta Marcondes (1984, p. 1), fazer a campanha das Diretas, do ponto de vista político, era, naquele momento, interessante para qualquer agência publicitária: “As eleições diretas são um ‘produto’ aceito por noventa por cento da população brasileira, e, dentro dessa ótica, não há agência do país que não sonhe em ser solicitada para lançá-lo nacionalmente”. Idéia repetida por Freitas e corroborada por Buchmann, ao afirmarem a Marcondes (1984, p. 9-10), respectivamente, que o sucesso inicial da campanha das Diretas estava ligado à “aceitação e ao sucesso do próprio produto em si”, e que, naquele momento, não havia nada mais “necessário neste país hoje do que as diretas para Presidente”. Após elaborar documento sobre o momento político e estratégias possíveis de comunicação (retornaremos ao documento), Antonio Freitas reuniu a equipe que entraria para a história da propaganda como os criadores da campanha pelas Diretas. Além do próprio Freitas, participou também Ernani Buchmann e uma dupla de criação, formada pelo redator Sérgio Mercer e o diretor de arte Bira Menezes.

Figura 2. Criadores da campanha das diretas, em fotografia de 1983. Da esquerda para direita: Ernani Buchmann, Sérgio Mercer, Antonio Freitas e Bira Menezes. Em cima da mesa, pranchas com peças que seriam apresentadas. Fonte: acervo pessoal de Bira Menezes.

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Vestindo a camiseta amarela. A campanha das Diretas apresentada por Exclam Propaganda.

No encontrou teria surgido a frase-síntese Eu quero votar pra Presidente. “Não me lembro exatamente”, diz Freitas, “mas creio que foi o Mercer (já falecido) quem sugeriu a frase”4. Há controvérsias sobre a autoria da frase-síntese da campanha. Em edição publicada antes da apresentação de Exclam, a revista Veja, em reportagem sobre o avanço da mobilização popular em favor das Diretas, traz foto do vidro lateral de um carro, tirada pelo fotógrafo Ricardo Chaves, onde se vê um adesivo com a frase

Figura 3) Adesivo com frase-síntese da campanha. Fonte: Veja, 9 de novembro de 1983.

A explicação talvez esteja em uma declaração concedida por Mercer cinco anos depois (Espaço de Comunicação, 1988): “Affonso Camargo (...) queria um ‘mote’, um símbolo para esse movimento. Nós perguntamos ‘o que é que o povo está dizendo?’. Ele disse que as pessoas diziam que queriam votar para presidente”. Pela declaração do publicitário é possível inferir que a frase talvez tenha sido a utilização ipsis litteris de uma frase dita pelo senador Affonso Camargo. De qualquer forma, como declarou Freitas, citado por Marcondes (1984), a frase era bem explícita e não deixava nenhuma dúvida sobre o que se pretendia. O tema então foi graficamente concebido de forma a parecer com pichações de rua, guardando semelhança com imagens de protesto contra a ditadura militar e, ao mesmo tempo, fazer referência à cédula eleitoral 4 Entrevista concedida por Antonio Freitas ao autor do artigo.

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Figura 4. Assinatura das diretas remete a pichação de palavras de ordem contra a ditadura e a cédula eleitoral. Fontes: NOSSO SÉCULO. 1960/1980, vol. 2. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 15 (fotografia); e acervo de Exclam (logomarca).

A partir daí, conforme Bira Menezes (Espaço de Comunicação, 1988), surgiu idéia de utilizar a frase – feita em letra cursiva do próprio diretor de arte – com um quadrado marcado com a letra xis ao lado da palavra Presidente. A logomarca da campanha das Diretas utilizou as cores da bandeira nacional. De acordo com Bira Menezes (Espaço de Comunicação, 1988), o uso do amarelo buscava resgatar o sentimento patriótico. É preciso, no entanto, acrescentar outra perspectiva. O uso das cores da bandeira, de certo modo, devolvia aos brasileiros o seu próprio país – ou, em outras palavras, o imaginário de ser brasileiro. Mais do que resgatar o sentimento patriótico, a marca da campanha pelas Diretas, criada por Menezes, resgatava o simbolismo de pertencimento à nação. Na mesma linha de pensamento, o redator Sérgio Mercer ponderou que

O importante é a analogia entre o símbolo e o simbolizado. A comunicação tem que casar o produto, se integrar nele. Nós somos publicitários e pensamos publicitariamente, sempre em cima de um conceito. Tratamos uma campanha política como tratamos uma campanha publicitária. A mídia opera milagres, mas não fica na memória. Há diferença entre propaganda lembrada e propaganda memorável, que é a que se fixa, e que permanece. E essa tem que ser a verdadeira intenção da propaganda. (Espaço de Comunicação, 1988, p. 1).

O resultado foi um país “pintado de amarelo” e o movimento pelas Diretas jamais será desvinculado dessa cor: “Uma das coisas que mais me emocionaram”, diz Bira Menezes, “foi quando a Rede Globo, naquela retrospectiva de fim do ano, disse que o Brasil foi pintado de amarelo. Aquilo nasceu na minha prancheta. É muito gratificante. Sinal que estávamos certos”. (Espaço de Comunicação, 1988). Os layouts originais de Menezes para campanha, imagens ainda inéditas em livros, refletem a valorização da cor amarela na criação publicitária da campanha.

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Vestindo a camiseta amarela. A campanha das Diretas apresentada por Exclam Propaganda.

Figura 5. Valorização do uso da car amarela em estudos de Bira Menezes para a campanha das diretas. Fonte: acervo pessoal de Bira Menezes.

3. Planejamento de Exclam para a campanha das Diretas O material feito por Antonio Freitas, que serviu de base para a criação da campanha e para a defesa desta junto à Executiva Nacional do PMDB, intitulado “Campanha Pelas Eleições Diretas”, é um documento de treze páginas de texto e seis lâminas com layouts criados pelo diretor de arte Bira Menezes. O texto divide-se em duas partes: Apoio de Comunicação e Campanha.

Apoio de comunicação Na primeira parte, Antonio Freitas faz breve análise da situação política do país, estabelece objetivos de marketing e de comunicação, sugere estratégias a serem adotadas e nomeia os instrumentos publicitários capazes de concretizá-los; e, em seguida, o documento traz as peças de apoio e de sustentação para a campanha. Analisando a situação política do país, Freitas destaca as eleições diretas para presidente da República como a questão política de maior importância na história recente do Brasil. Afirma que as eleições indiretas estão garantidas pela Constituição e que somente a aprovação de emenda constitucional mudaria a forma de escolha do próximo presidente, sem, entretanto, fazer nenhuma referência explícita à emenda Dante de Oliveira. Freitas salienta que a maioria da população, os partidos de oposição e uma facção dissidente do partido do governo são a favor do sistema direto, mas que o PDS desejava manter o status quo: “Evidentemente, o partido majoritário, opõe-se à mudança (...), o que lhe permite eleger um presidente saído de seus quadros”. Esta frase, do final de 1983, reflete a idéia que preponderava à época entre os parlamentares e governadores de oposição, ou seja, a impressão de que seria pouco provável derrotar o candidato do PDS nas eleições indiretas do Colégio Eleitoral. 40 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 47-64| 2° Semestre 2009


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São descritos três objetivos de marketing no documento. O primeiro, fala em obter a maioria do Congresso Nacional necessária para a aprovação da emenda constitucional. O segundo propõe-se a consolidar junto à opinião pública o sentimento nacional favorável à eleição direta, “de forma que, mesmo não sendo possível mudar desta vez, a eleição direta se torne irreversível no futuro”. Para entender essa frase de Freitas, aparentemente pessimista quanto à possibilidade de sucesso da campanha, é preciso resgatar e complementar questão já esboçada anteriormente. À época, o senador Affonso Camargo – o político que trouxe a Exclam para campanha das Diretas –, eleito havia pouco tempo ao cargo de Secretário Geral do PMDB, estava ligado ao grupo “Unidade”, facção mais moderada do partido liderada por Tancredo Neves; estava, portanto, mais próximo do então governador mineiro do que de Ulysses Guimarães, o principal defensor no partido da campanha das Diretas. Antes da reunião de Foz do Iguaçu, que uniu todos os governadores de oposição em prol das Diretas, a posição da “Unidade” era por uma candidatura civil, moderada e de oposição no Colégio Eleitoral, capaz de unificar os partidos de oposição e alas dissidentes do PDS contrários à candidatura de Paulo Maluf – perfil ajustado à perfeição ao nome de Tancredo Neves. Depois da decisão dos governadores, o espaço político de Ulysses Guimarães como o “Senhor Diretas”, expressão que ficou historicamente associada ao nome do deputado, diminuiu sensivelmente. No entanto, ainda permanecia como o candidato natural do PMDB à presidência da República caso as eleições diretas fossem aprovadas. Nos bastidores, a posição do grupo “Unidade” passou a ser outra: a de investir na campanha pelas Diretas – porém, apostando na pouca viabilidade de sua aprovação – como estratégia de pressão popular para tornar irreversível a vitória indireta de um político palatável à oposição e a alas dissidentes do PDS, como era Tancredo Neves. O que de fato acabou ocorrendo após a derrota da emenda Dante de Oliveira. Entrevistado pelo autor deste artigo, Antonio Freitas afirmou que Apesar do grande movimento nacional em favor das eleições diretas, sabíamos que o governo detinha maioria no congresso e dificilmente a emenda constitucional seria aprovada; assim, utilizamos a campanha pelas diretas para consolidar as teses da redemocratização junto à população brasileira – votar prá presidente significava a volta da democracia na cabeça das pessoas (...) mas sabíamos que Ulysses Guimarães encarnava o verdadeiro sentimento nacional contra os militares.

A frase aparentemente pessimista escrita por Freitas refletia, portanto, a divisão política interna do PMDB às vésperas da eleição presidencial de 1985. Retornando ao documento, o terceiro objetivo de marketing de Freitas fala da necessidade de colocar a oposição junto aos brasileiros, “respondendo aos seus maiores anseios, identificando-se com eles.

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O documento prevê como objetivos de comunicação a sensibilização dos membros do Congresso Nacional para restabelecer a eleição direta, a criação de um clima favorável à emenda, conscientizando segmentos sociais não aderidos à proposta das Diretas e reforçando a posição daqueles que já haviam optado por ela. Para tanto, o documento escrito por Freitas sugere – por estratégia – em primeiro lugar, potencializar o sentimento já existente na população. A premissa do publicitário era que a maioria do eleitorado já se mostrava favorável à eleição direta e que tal tendência havia sido potencializada pelas últimas eleições na Argentina�. Propõe, então, “Canalizar esse anseio. Abrir uma válvula para manifestação de uma opinião latente na população”. O segundo ponto da estratégia é “utilizar essa opinião pública amplificada para pressionar o segmento que mais nos interessa no momento”: os deputados e senadores que iriam votar a emenda. Como se verá daqui a pouco nas peças da propaganda, a pressão política foi tom marcante na campanha pelas Diretas por duas razões principais: 1) a indiscutível posição da maioria da população em favor da mudança constitucional para permitir as eleições diretas, o que colocava os deputados e senadores contrários em posição política bastante delicada perante seus eleitores; 2) a falta de unidade do PDS em torno de um único candidato, abrindo a possibilidade concreta de existência de dissidentes após a definição do candidato situacionista à presidência. O terceiro ponto da estratégia é o incentivo a campanhas setoriais em comitês de todo o país, ligados a partidos de oposição e grupo dissidente do PDS. O texto deixa claro que a função da Exclam era apenas a de tentar “dar direção, um estímulo organizado a todos os que lutam pelas eleições diretas” e “sem fixar limites de atuação”; item que reflete uma orientação da própria Executiva Nacional do PMDB, que já havia considerado antes a necessidade de uma campanha unificada, porém respeitando características específicas de estados, municípios e cidades. Posição, de certo modo, contraditória, na medida em que as especificidades regionais levariam, como se viu antes, a criação de inúmeras peças de propaganda pró-Diretas sem unidade de campanha; do ponto de vista publicitário, prejudiciais para o sucesso do movimento como um todo. Os instrumentos previstos no documento para realizar as estratégias eram, inicialmente, as concentrações públicas já programadas, com apoio de comunicação para divulgar e incrementar a participação popular, e – em paralelo – campanha promocional em meios de comunicação disponíveis.

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Campanha das Diretas A segunda parte está ancorada no mote “Eu quero votar pra presidente”, que, de acordo com o documento de Freitas, “É bem explícito e não deixa dúvidas quanto à certeza do desejo” da população. O documento explica aspectos gráficos da marca da campanha: a utilização das cores nacionais, o fundo amarelo, a caligrafia verde e o sinal em azul no quadrilátero branco. Destaca ainda a leitura fácil e a similitude com os grafites urbanos. A assinatura feita por Bira Menezes poderia, ainda, ser utilizada de vários modos, adequando-se a diferentes mídias e formatos, conforme estudo apresentado pelo diretor de arte

Figura 6. Diferentes formas de aplicação da assinatura. Fonte: acervo de Exclam Propaganda.

São citadas como peças de apoio: pôster, outdoor, camiseta, adesivo, viseira, balão, faixa, bottom, estandarte, lápis, copo, bolacha para copo (figura 7), além de textos para rádio, volantes e cartazetes. Como material de sustentação, a agência sugere: jingle, anúncio impresso, comercial para televisão, abaixo-assinado, apoio de relações públicas e de imprensa.

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Vestindo a camiseta amarela. A campanha das Diretas apresentada por Exclam Propaganda.

Figura 7. Material de uso geral par a campanha das Diretas. Fonte: acervo da agência.

O pôster serviria para convocar às concentrações populares, com informação de data, lugar e hora, devendo ser veiculado em locais de grande fluxo de pessoas. O adesivo destinar-se-ia para veiculação em automóveis e distribuição em grande quantidade. Balão, faixa e estandartes tinham por finalidade decorar palanques e dar caráter festivo às concentrações populares. A camiseta, que acabou sendo a peça emblemática da campanha, deveria ter dupla função: identificar personalidades que apoiavam o movimento, especialmente em entrevistas à imprensa, e, vendidas em comitês pró-Diretas, como forma de arrecadar fundos para a campanha.

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O outdoor (figura 8), segundo Freitas, serviria para dar “o aval das pessoas multiplicadoras de opinião com relação ao produto”, por meio de testemunhais de artistas ou pessoas de renome, em nível nacional ou local, identificadas com a causa.

Figura 8. Sugestão de outdoor com imagem de personalidades. Fonte: acervo de Exclam Propaganda.

O objetivo principal do comercial para a televisão e dos textos para rádio era chamar a população para as concentrações em favor do movimento. Os volantes (figura 9), por sua vez, deveriam convocar para as concentrações e reproduzir peças de propaganda que – conforme o texto de Freitas – servissem de “pressão [grifo do autor] sobre os congressistas”.

Figura 9. Chamada para o comício de Curitiba. Fonte: acervo da agência.

O cartazete, para locais de grande concentração pública, traria a fotografia e depoimento manuscrito de personalidades políticas e artísticas em favor das Diretas. O layout apresentado pela Exclam (figura 10) traz a imagem do compositor Chico Buarque, artista que, meses depois, gravaria duas músicas com referência à campanha pelas Diretas: “Vai Passar” e “Pelas Tabelas”, no disco “Chico Buarque”, de 1984.

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Figura 10. Chico Buarque em layout para cartazete feito pela Exclam e vestindo a camiseta das Diretas. Fonte: acervo da agência; e (fotografia) Leonelli; Oliveira, 2004.

Para sustentação ao movimento, além de entrevistas programadas para deixar a campanha em destaque na imprensa e a criação de eventos paralelos de interesse midiático, a Exclam sugeriu jingle, anúncio impresso, comercial para televisão e abaixo-assinado a ser encaminhado a congressistas. O “Frevo das Diretas”, com letra de Paulo Leminski e música de Moraes Moreira, não chegou a ser registrada em disco. A intenção da Exclam era que houvesse divulgação maciça nos comícios e em emissoras de rádio, principalmente no período de carnaval: Se a meta é democracia Se democracia é a meta Eleição é direta. Em matéria direta Todo mundo diz presente Agora sim esse povo vai pra frente Eu quero votar pra presidente. (“Frevo das Diretas” apud Leonelli & Oliveira, 2004)

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O anúncio impresso (figura 11) era o espaço previsto para o leitor escrever aos parlamentares. A sugestão da agência: 1) publicar em todo o Brasil a listagem dos congressistas com voto para mudar a Constituição, com nomes específicos dos representantes de cada unidade da federação; 2) incentivar o leitor a escrever no anúncio os motivos pelos quais desejava a eleição presidencial direta; 3) e pedir ao autor do texto para mandar a mensagem aos seus representantes no Congresso Nacional. A Exclam esperava, com o anúncio, grande volume de correspondências aos parlamentares, que, por sua vez, deveriam ler da tribuna as mensagens recebidas, estratégia, conforme o texto do planejamento escrito por Freitas, para “causar constrangimento aos parlamentares”.

Figura 11. Anúncio publicado no Paraná, em janeiro de 1984. Fonte: acervo da agência.

Ainda com objetivo de constranger os político contrários às Diretas, a Exclam sugeriu os seguintes termos no texto do anúncio: “Esses são os Congressistas do seu Estado que vão decidir se você vai votar direto para Presidente da República. Exija isso deles agora e nas próximas eleições. A mão que escreve hoje é a mesma que votará em 1986”. Outra peça de pressão aos congressistas era o abaixo-assinado, com texto padrão a ser enviado aos parlamentares.

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4. Considerações finais Em três de janeiro de 1984, em reunião preparatória para o comício de São Paulo, que reuniria 300 mil pessoas na Praça da Sé semanas depois, foi aprovado o slogan “Eu quero votar pra Presidente”, no plenário Tiradentes da Assembléia Legislativa de São Paulo.

Figura 12. Anúncio publicitário de Exclam Propaganda. Fonte: Correio de Notícias (1984).

No encontro, com o plenário lotado, estavam presentes representantes de partidos políticos, de entidades estudantis, da Ordem dos Advogados do Brasil, Central Única dos Trabalhadores, Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e alguns artistas. De acordo com Jorge Cunha, secretário de Comunicação de São Paulo, citado por Leonelli & Domingos (2004), cinco agências trabalhavam gratuitamente pelas Diretas: Denison, CBP, DPZ, Adag, todas de São Paulo, e a Exclam, do Paraná. Mas a agência de Curitiba seria contratada pelo Diretório Nacional do PMDB, poucos dias depois, para dar unidade visual à campanha.

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A aprovação da campanha da Exclam pela Executiva Nacional do PMDB representou, entretanto, o afastamento da agência. A campanha passou a ser dos brasileiros, de comitês suprapartidários espalhados em todo território nacional. Em declaração dada a Marcondes (1984), Freitas afirmou: “não estamos mais preocupados com o caminho que tomará nosso trabalho. (...) Temos certeza, contudo, que as sugestões que ele [o trabalho da agência] contém são altamente válidas e úteis”. Em entrevista ao autor deste artigo, Freitas explicou, completando o raciocínio, que foram distribuídos layouts para todos os diretórios estaduais do partido, mas que “a utilização era livre”. Em alguns casos, havia adaptações que desvirtuavam a direção de arte de Bira Menezes, como se pode ver em fotos de coberturas jornalísticas feitas por jornais e revistas da época. A frase “Eu quero votar pra Presidente”, no dia-a-dia da campanha, perdeu espaço para outra palavra de ordem: “Diretas Já!”, slogan presente desde 1983 em camisetas e bottons de comitês ligados ao Partido dos Trabalhadores. Mas popularizado por desenhos do cartunista Henfil na revista “Isto É” e, principalmente, nas animações de comícios do radialista Osmar Santos, quando a “Voz das Diretas”5 fazia milhares de pessoas complementarem a palavra “Diretas...” com a resposta, em coro uníssono, “...Já!”. Vale aqui, no entanto, paralelo com frase de Rodrigues (2003) sobre a derrota da emenda Dante de Oliveira por apenas 22 votos, na madrugada de 26 de abril de 1984: “derrotada em seu objetivo imediato, mesmo assim impôs à democratização brasileira uma nova pauta política”. Pode-se afirmar que a campanha criada pela Exclam Propaganda, a agência publicitária que “vestiu uma camisa amarela e saiu por aí” (figura 12), apesar de ter sido modificada em alguns momentos, foi a que entrou para a história da iconografia das Diretas e da propaganda política nacional. Foi, também, a que colocou para sempre em lugar de destaque na história da publicidade brasileira os publicitários Antonio Freitas, hoje sócio da agência Master Comunicação, Ernani Buchmann, hoje sócio da agência Get Propaganda, Bira Menezes, hoje assessorando o governador do Paraná Roberto Requião, e Sérgio Mercer, falecido em 1996.

5 Expressão concebida pela revista Veja na capa da edição de 14 de março de 1984.

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Vestindo a camiseta amarela. A campanha das Diretas apresentada por Exclam Propaganda.

REFERÊNCIAS BERTONCELO, Edison. A campanha das Diretas e a democratização. São Paulo: Humanitas/ FAPESP, 2007. CORREIO DE NOTÍCIAS. Quem é Quem no VIII Prêmios Colunistas Paraná. Encarte especial do jornal. Curitiba, 10 de março de 1984. ESPAÇO DE COMUNICAÇÃO. Parceria, a política do talento. Ano II, n. 16, dezembro de 1988. Curitiba: Editora O Estado do Paraná, 1988, p. 1. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 4. ed. São Paulo: Editora USP, 1996. LEONELLI, Domingos & OLIVEIRA, Dante. Diretas já: 15 meses que abalaram a ditadura. Rio de Janeiro: Record, 2004. MARCONDES, Pyr. Eleições diretas: um bom produto. In: MEIO&MENSAGEM, ano V, n. 123, 2ª quinzena, fevereiro/1984. São Paulo: Meio&Mensagem, 1984. Páginas 9 e 10. RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já: o grito preso na garganta. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003. SOUZA, Ney Alves de. História e histórias da propaganda no Paraná. Curitiba: Sinapro, 2001.

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APÓS CEM ANOS - A ATUALIDADE DE JOAQUIM NABUCO O PATRONO DA RAÇA NEGRA. Pedro Elói Rech1 “Não nos basta acabar com a escravidão; é preciso destruir com a obra da escravidão.” Joaquim Nabuco. “O negro prolonga, assim, o destino do escravo.” Florestan Fernandes.

RESUMO Este texto marca uma retomada do pensamento de Joaquim Nabuco por ocasião do centenário de sua morte. Monarquista e liberal, de formação europeia, Nabuco centra a sua ação teórica e política na abolição da escravidão. Considerava o sistema escravocrata como a fonte de corrupção de tudo e de todos, homens e instituições. Para a inserção do Brasil na modernidade afirmava que, além da abolição também seria necessário acabar com a obra da escravidão, com a integração dos ex-escravos no mercado de trabalho. O texto passa também por uma análise do Brasil pós-escravidão com o pensamento de Florestan Fernandes e de Francisco de Oliveira. PALAVRAS CHAVE: Escravidão, abolição, corrupção, inclusão, pensamento liberal.

ABSTRACT This text marks a recapture of Jaquim Nabuco’s thoughts in commemoration of his death. Monarchist and liberal with European education, Nabuco focuses his theoretical and political action in the abolition of slavery. He considered the slave system as the source of corruption of everything and everyone, both men and institutions. To place Brazil into modern times, Nabuco stated that beyond the abolition it would be necessary to destroy the work of slavery, by the integration of ex-slaves into the labor market. The text also deals with an analysis of the post-slavery period in Brazil, with the opinions of Florestan Fernandes and Francisco de Oliveira’s. KAYWORDS: Slavery, abolition, corruption, inclusion, liberal thinking 1 Possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição (1968) , especialização em Desenvolvimento econômico e social brasileiro pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Umuarama (1976) , especialização em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Estadual de Londrina (1981) e mestrado em Mestrado em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999) . Atualmente é Professor horista da Universidade Positivo. Tem experiência na área de Educação , com ênfase em HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO.


APÓS CEM ANOS - A ATUALIDADE DE JOAQUIM NABUCO - O PATRONO DA RAÇA NEGRA.

UMA PROPOSTA DE TRABALAHO Em 2009 retomamos um contato maior com o Brasil, ao ministrar a disciplina de Realidade Brasileira, no curso de Jornalismo da Universidade Positivo. Não nos ocupávamos especificamente do Brasil, em nossas atividades de sala de aula, pelo menos há uns dez anos. Nesta retomada nos chamou muita atenção um autor, ou um ator, protagonista em nossa história, que viveu a transição do Brasil monárquico para o republicano e, em conseqüência, a explosiva questão da abolição da escravidão. Envolveu-se profundamente nesta realidade que, moldou de forma ímpar, a nossa maneira de ser Brasil. Chamou-nos profunda atenção a frase contida em O abolicionismo: “Não nos basta acabar com a escravidão; é preciso destruir com a obra da escravidão”, e as decorrências da mesma, através da preocupação com a integração do negro na sociedade, especialmente a necessidade de sua absorção econômica, como forma de resgatar as instituições deste país, corrompidas estruturalmente com as marcas deixadas pela escravidão. Além de uma preocupação ética e humana, havia em seu pensamento e em sua ação, uma visão liberal que contrastava com o espírito conservador e xenófobo com relação ao negro, que lamentavelmente prevaleceu no processo abolicionista, ao não integrá-lo ao processo econômico subsequente. Pelo contrário, os atos políticos em torno da abolição foram como que um ato de vingança contra a pseudo emancipação, fato que fez Florestan Fernandes bradar, em A integração do negro na sociedade de classes, de que “o negro prolonga, assim, o destino do escravo” e que existe assim, a necessidade urgente de um novo processo de abolição. Para este novo processo bastaria retomar o próprio projeto de Nabuco, contido em O abolicionismo, publicado em 1884, uma vez que aí estão contidas as idéias para se acabar também, com a obra da escravidão. Em função da atualidade do tema e, ainda mais, por 2010 marcar o centenário da morte de Nabuco e da decretação como o Ano Nacional Joaquim Nabuco, optamos por trazer ao presente algumas de suas reflexões e projeções que possam nos ajudar na interpretação da complexa formação da realidade brasileira. Ocuparemo-nos com breves traços biográficos para situar Nabuco no processo histórico brasileiro, contextualizando o autor. Ma o objetivo maior é a análise de sua obra, e de modo especial O abolicionismo, não só no que ele tem de propaganda antiabolicionista, mas também na sua atualidade, na apresentação de soluções, uma vez que ainda estamos repletos de preconceitos e de problemas sociais não resolvidos. Cremos que se Nabuco tivesse tido, em sua época, uma voz mais ativa, muitos destes preconceitos e problemas não se apresentariam hoje, com tamanha intensidade. Existe uma interligação profunda com a não integração do negro na realidade agrária/rural da época, com a atual estrutura urbana, ou mais precisamente suburbana, nas favelas de nossas grandes cidades e de todas as suas conseqüências. Por estes caminhos pretendemos conduzir as análises deste nosso texto. 52 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 65-78| 2° Semestre 2009


Pedro Eloi Rech

UM PERNAMBUCANO, UM ABOLICIONISTA E UM LIBERAL Buscaremos no livro publicado pela Fundação Joaquim Nabuco, de autoria de Amaro Quintas, O sentido social da revolução Praieira uma primeira contextualização histórica de Joaquim Nabuco. No prefácio deste livro, escrito por Fernando Freyre, ele apresenta a dominação do estado de Pernambuco no início do século XIX pelas famílias Rego-Barros e dos Cavalcanti como a causa maior da deflagração da Praieira, uma das raízes históricas maiores da formação do espírito pernambucano. O próprio Nabuco destacava o caráter social desta revolução, que tinha à sua frente pensadores liberais e socialistas utópicos. Estes chegaram a lançar um “Manifesto ao Mundo”, no qual defendiam o voto livre e universal, a liberdade de imprensa, o direito ao trabalho, o comércio (dominado pelos portugueses) em mão de brasileiros, entre outras reivindicações. Para ilustrar o espírito da época reproduzimos a quadra de um poeta anônimo:

“Quem viver em Pernambuco

Deve estar desenganado,

Que ou há de ser Cavalcanti,

Ou há de ser cavalgado.” Freyre, in: Quintas 1982. P.10.

Fazemos esta introdução para dizer que Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo nasceu no dia 19 de agosto de 1849, na cidade de Recife, em plena Revolução Praieira, herdeiro, portanto de seu espírito. Não pertencia aos Rego-Barros, nem aos Cavalcanti, mas com certeza também não foi cavalgado, uma vez que nasceu dentro de uma das mais tradicionais famílias pernambucanas, ligadas à economia açucareira. O número de sobrenomes, dos quais nenhum podia ser suprimido, nos dá uma ideia de suas origens. Seu pai – José Tomás Nabuco de Araújo foi senador, conselheiro de Estado e ministro do Império. A mãe – Ana Benigna de Sá Barreto provinha da família Paes Barreto, família já com mais de duzentos anos de influência em Pernambuco. Os pais se transferiram para a Corte, no Rio de Janeiro e deixaram o menino com os padrinhos Joaquim Aurélio Pereira de Carvalho e Ana Rosa Falcão de Carvalho, proprietários do engenho Massangana. Ali passou seus primeiros oito anos de vida. Com o falecimento da madrinha, o menino é transferido para o Rio de Janeiro. Estes oito anos marcam profundamente a sua formação. Foram plantadas ali, no seu mais profundo íntimo, as sementes contra a escravidão, com a qual conviveu em proximidade. No Rio de Janeiro inicia a sua formação escolar em Friburgo, seguindo depois para a cidade do Rio de Janeiro. Conforme relatos de Jean Carvalho França, de quem tomamos a maioria dos apontamentos para estes traços biográficos (FRANÇA, 2000, p. 175-180). Nabuco segue o caminho dos bem nascidos no Brasil da época, ingressando no Colégio Pedro II. Não precisou trilhar os caminhos de outros não tão bem nascidos, a exemplo de Machado de Assis, autodidatas e sobreviventes com o exercício do funcionalismo público. COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 65-78| 2° Semestre 2009 | 53


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Do Rio segue para São Paulo, ingressando na faculdade de direito, curso que irá concluir em 1870, em Recife. Com um de seus primeiros atos como advogado escandaliza os recifenses de sua classe, assumindo a defesa de um escravo acusado de duplo homicídio. Nesta defesa antecipa as ideias que o acompanharão ao longo de sua vida política, e que se tornarão mais amadurecidas e explícitas em O Abolicionismo. São as ideias de que a escravidão deformava todas as instituições do país, e que degradava tanto aos brancos, quanto aos negros. Logo após formar-se retorna ao Rio de Janeiro, onde inicia a sua atividade literária. Viaja para a Europa, em busca de melhor formação, com o dinheiro da venda de uma propriedade rural que herdara. Sente-se mal distante do país, pois, de acordo com o espírito da época, como integrante da elite, julga-se incumbido de uma espécie de missão civilizatória para com o país. Romantismo e nacionalismo são sentimentos que cultivava na época. Não conseguia conciliar o permanecer na Europa, onde a cultura se constituía e onde queria permanecer, com o voltar para a terra, para aqui lançar os alicerces culturais da Nação em construção. Optou pela volta. A respeito desta sua dúvida, vejamos a observação de França: “De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país” (2000: 177). Em 1878 inicia a sua carreira política. Elege-se deputado geral por Pernambuco. Sua grande bandeira, como não poderia deixar de ser, em função de seus antecedentes, será a luta pela abolição. Passa a ser mal visto em sua classe e em seu partido (O liberal) e também pelos abolicionistas mais radicais, que defendiam uma abolição sem direitos indenizatórios aos proprietários de escravos. Sente-se mal em meio a este fogo cruzado e em razão destas posições assumidas, não consegue a sua reeleição. Desgostoso, parte para um exílio voluntário em Londres. Lá confortavelmente instalado e contando com a amizade das autoridades brasileiras escreve, em 1883, a sua obra prima – O abolicionismo, que será publicada no Brasil no ano seguinte, junto com o seu retorno. São reflexões amadurecidas e o alvo principal da nossa análise. Aqui, retoma a atividade política, elegendo-se deputado por três mandatos consecutivos, em 1885, 1887 e 1889. Nesta volta à atividade política, vê concretizado o seu sonho maior; a abolição da escravidão. Por outro lado também sofre uma de suas maiores decepções: a queda da monarquia e a implantação da – para ele, impossível República. Em função desta sua frustração resolve abandonar definitivamente a política. Com esta sua atitude, perde o Brasil uma de suas consciências mais lúcidas na implantação do processo constituinte do qual resultará a nossa primeira Constituição republicana, a de 1891. Distante da política volta para a literatura. Relata então os seus posicionamentos políticos em Por que sou monarquista. Escreve ainda uma espécie de autobiografia intelectual intitulada Minha Formação e o livro Um estadista do império: Nabuco de Araújo, em que relata as memórias relativas a seu pai. Estas duas obras são consideradas fundamentais e as melhores fontes historiográficas para se estudar o século XVIII brasileiro e que junto com O abolicionismo forma a sua grande trilogia. Em 1900 rompe com a sua decisão de abandono definitivo da política ao fazer as pazes com a República e assumir um cargo na embaixada brasileira em Londres. Esta 54 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 65-78| 2° Semestre 2009


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fase será marcada por sua participação nas negociações para o estabelecimento das fronteiras entre o Brasil e a Guiana Inglesa. Posteriormente segue para Washington, onde já combalido por doença, dedica-se a dois novos temas, os últimos em sua vida: a construção das bases do federalismo no Brasil para viabilizar o emergente sistema republicano e a busca de uma aproximação entre as diversas nações americanas com a doutrina do pan-americanismo. As doenças que o vitimaram foram a arteriosclerose e a policitemia. Participou ainda ativamente da fundação da Academia Brasileira de Letras, que teve em Machado de Assis o seu primeiro presidente e em Joaquim Nabuco o seu primeiro secretário. Ocupou a cadeira de número 27. Na academia a sua grande preocupação foi com a língua como instrumento da construção da unidade nacional e com a afirmação literária e política de uma nação que se constroi autônoma, a partir de seus próprios recursos e de seu próprio gênio.

O ABOLICIONISMO O ano de 2000, ano em que comemoramos os 500 anos do “descobrimento”, ou 500 anos de colonização, foi um ano muito rico em seu aspecto cultural. Queremos destacar duas iniciativas de grande importância na tentativa de se ter a possibilidade de uma compreensão maior da complexa formação deste país. Referimo-nos primeiramente a uma iniciativa da Folha de S.Paulo, que publicou uma série de livros (12 no total), agrupados sob o título de Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro. Esta iniciativa propiciou aos brasileiros um mais fácil acesso a interpretes do Brasil, como: José Bonifácio, Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha, Raimundo Faoro, Darcy Ribeiro, Oliveira Lima, Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e, Joaquim Nabuco. Deste autor foi publicado O Abolicionismo, livro cuja edição, utilizaremos para estas análises. A segunda iniciativa atendeu a uma convocação de Lourenço Dantas Mota, organizador de uma coletânea de textos, agrupados em dois livros, com o título de Introdução ao Brasil – Um Banquete no Trópico. Vol. 1 e 2 e publicados pela Editora do SENAC. Dantas Mota convocou os mais expressivos especialistas (geralmente sínteses de teses de doutoramento) para a análise das mais importantes obras sobre as nossas raízes históricas. Todos os autores acima referidos também estão contemplados nestas análises e a lista é engrossada por outros autores como: Padre Antônio Vieira, Antonil, Eduardo e Paulo Prado, Mauá, Vítor Nunes Leal, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, entre outros. No total são 36 obras analisadas, 17 no primeiro volume, e 19 no segundo, junto com uma introdução do organizador em cada um dos volumes. São duas referências preciosas e que também serão utilizadas em nossas análises. Especificamente sobre Joaquim Nabuco, no vol. 1 encontramos uma análise de Um estadista do império, feita por Luiz Felipe Alencastro e no vol. 2, Marco Aurélio Nogueira interpreta O Abolicionismo. Para situar bem O Abolicionismo relembramos, da trajetória política de Nabuco, o fato de sua não reeleição para deputado em 1881. A sua derrota encontra explicação na força que os escravocratas ainda possuíam. O Brasil também vivia o COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 65-78| 2° Semestre 2009 | 55


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marasmo provocado pela Lei do Ventre Livre (1871), da qual deveria brotar uma abolição natural e espontânea. Seria apenas uma questão de tempo. Este fenômeno já havia sido registrado em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico. O Abolicionismo é uma poderosa obra contra este marasmo e isto fica bem claro, já em seu prefácio. Neste prefácio afirma que a abolição representa uma “mancha de Caim” em nossa história, prevê que o seu livro não terá a devida acolhida e que terá toda a coragem necessária para aceitar todas as suas consequências. Acusa também os que não enxergam o custo ruinoso da escravidão e que desejam os efeitos de sua continuação indefinida. Reafirma ainda os seus compromissos de lançar sementes de liberdade, direito e justiça e a crença de que se sentirá recompensado “se este livro concorrer, unindo em uma só legião aos abolicionistas brasileiros, para apressar, ainda que seja de uma hora, o dia em que vejamos a independência completada pela abolição” (2000: XXII). Neste mesmo prefácio já aparece também a idéia central, que perpassa toda a obra, de que a escravidão degrada a natureza humana e em consequência, todas as instituições da sociedade. Para Nabuco o Brasil vivia um momento decisivo e sem postergação. Considerava a escravidão não apenas injusta, cruel e repulsiva, mas também, um entrave para o crescimento econômico e o desenvolvimento social. Além de um atentado à humanidade, uma ilegalidade flagrante aos padrões do mundo moderno, comparável a legislações sobre a aprovação do infanticídio, em países europeus. A escravidão, dizia, “pertence ao número das instituições fósseis, e só existe em nosso período social numa porção retardatária do globo” (IBIDEM: 79). Estávamos diante de um dilema: Ou nos candidataríamos à modernidade, seguindo os modelos liberais europeus, de sociedades de mercado abertas, alicerçadas nos direitos naturais individuais do jus-naturalismo, ou nos empedraríamos nas sociedades fechadas das instituições fósseis, fundadas no imobilismo social provocado pela escravidão. Segundo suas palavras: A escravidão, assim como arruína economicamente o país, impossibilita o seu progresso material, corrompe-lhe o caráter, desmoraliza-lhe os elementos constitutivos, tira-lhe a energia e a resolução, rebaixa a política, habituase ao servilismo, impede a imigração, desonra o trabalho manual, retarda a aparição das indústrias, promove a bancarrota, desvia os capitães (sic) do seu curso natural, afasta as máquinas, excita o ódio entre as classes, produz uma aparência ilusória de ordem, bem-estar e riqueza (IBIDEM: 81).

O livro é uma propaganda abolicionista, um chamado às elites brasileiras para as suas responsabilidades e, acima de tudo, uma profunda argumentação teórica em torno da necessidade urgente da erradicação da escravidão e de todas as suas funestas conseqüências. O livro é composto de 17 capítulos. Os primeiros são dedicados a explicitar e situar o movimento abolicionista, o seu partido e a enunciação do que seria o exercício de um mandato da raça negra. Passa depois, por uma análise histórica das leis que antecederam a emancipação e o seu caráter protelatório da emancipação total, até chegar 56 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 65-78| 2° Semestre 2009


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num dos mais belos, o de número XI, Fundamentos gerais do abolicionismo. Atinge porém o seu clímax com os três capítulos onde analisa as influências da escravidão sobre a nacionalidade (XIII), sobre o território e a população do interior (XIV) e as suas influências sociais e políticas (XV). O capítulo XVI é dedicado à necessidade da abolição e dos perigos da demora e termina com os receios e consequências, apresentando ainda suas conclusões. Nesta conclusão define e conclama a todos os abolicionistas: Abolicionistas são todos os que confiam num Brasil sem escravos; os que predizem os milagres de um trabalho livre, os que sofrem a escravidão como uma vassalagem odiosa imposta por alguns, e no interesse de alguns, à nação toda; os que já sufocam nesse ar mefítico, que escravos e senhores respiram livremente... Os que vão ao encontro dos supremos interesses da nossa pátria, da sua civilização, do futuro a que ela tem direito, da missão que a chama o seu lugar na América (Ibidem:172).

Nabuco assistiu e participou euforicamente da lei da emancipação, uma das mais lacônicas já vistas. Ela teve 85 votos favoráveis e 8 contrários na Câmara Geral e apenas um voto contrário no Senado do Império e a assinatura da Regente, princesa Isabel. Certamente que O Abolicionismo de Nabuco teve grande mérito para que este fato realmente acontecesse, embora tão tardiamente e de forma tão incompleta. Nada ainda fora feito para abolir os males estruturais da obra da escravidão. Permaneciam ainda as proibições do acesso à escola aos escravos, por força de dispositivo constitucional de 1824 e à terra, por força da Lei da Terra, de 1850, que definia a compra como a única possibilidade de acesso à terra, vetando-o assim aos escravos libertos. Com o advento da República, nenhuma lei em favor dos emancipados de 1888. A única preocupação foi a sua substituição com a força de trabalho de imigrantes europeus. Nabuco, na sua visão de totalidade já vislumbrava, em suas pregações políticas no Recife de 1884, visando retomar uma cadeira na Câmara Geral, que a questão da emancipação dos escravos estava intimamente interligada com a questão da terra: “Não separarei mais as duas questões – a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. Uma é complemento da outra. Acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão” (SILVA, In: NABUCO 2000: XVII). Também um programa de alfabetização geral fazia parte de seus projetos. Marco Aurélio Nogueira, em seu artigo sobre O Abolicionismo, contido em Introdução ao Brasil (MOTTA: 2002), divide a obra em três grandes temas, não em ordem de sequência: No primeiro seleciona os textos relativos à apresentação indignada dos estragos causados pela escravidão (páginas 172-176); no segundo os que sustentam os estragos causados por ela e que haviam despojado o país de povo e atrofiado a política (176-179); e no terceiro está a sustentação teórica do movimento abolicionista, com a definição de táticas e estratégias (179-184). No primeiro tema, Nogueira inclui os três capítulos (XIII, XIV e XV), em

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que Nabuco descreve os males da escravidão sobre a nacionalidade, o território, a população, a sociedade e a política, males que como já afirmamos, permeiam a obra em sua totalidade. Especialmente nestes capítulos é que aparecerá o liberal que vê, na escravidão, a causa maior do atraso do Brasil, com relação a outros países sulamericanos, fazendo também comparações explícitas com o Canadá e com a Austrália (XIII). Vê na escravidão uma influência negativa em todos os sentidos e que em vez de progresso e riqueza só nos trará devastação. Vejamos a sua afirmação: “Onde ela chega queima as florestas, minera e esgota o solo e quando levanta as suas tendas deixa após si um país devastado em que consegue vegetar uma população miserável de proletários nômades (2000: 105). O pensador liberal aparece explicitamente ao denunciar que o regime escravo sugava a energia e tolhia a iniciativa das forças vivas do país. Impedia-se qualquer avanço na cidadania e o Estado se tornaria o pai de todos, com os seus empregos, benesses e prebendas e oferecendo a falsa sensação de que tudo podia. Assim tudo ficaria comprometido: as eleições, os partidos e o parlamento. E, como tudo se esperava do Estado, as iniciativas eram tolhidas e as fortunas acumuladas com a escravidão eram desbaratadas e os arruinados se abrigavam no asilo comum do Estado. Este também era o destino das jovens inteligências. Na segunda parte os seus vitupérios se dirigem aos resultados da escravidão. Considera que um povo, por ela atrofiado, está impossibilitado de dar qualquer valor à liberdade, de alimentar qualquer utopia e, em conseqüência, deve abdicar de qualquer sonho de cidadania, uma vez que a escravidão se torna uma instituição mais poderosa do que o próprio Estado. A escravidão impediria qualquer constituição de sociedade civil a dialogar ou se contrapor ao Estado. Como resultado, teríamos a total apatia, a inanição, a passividade, a ignorância e a resignação. Nogueira nos apresenta a terceira parte, voltando para as duas primeiras, da seguinte forma: “reconstituída essa dupla face da escravidão – a de ter contaminado toda a sociedade e a de ter esvaziado a política de substância e ânimo reformador” (2002: 179) ele definirá as táticas e as estratégias para o movimento. Sustentava que a escravidão comprometia a própria Coroa e que a intimidava em sua ação, pois a sua sustentação política provinha do latifúndio escravocrata. Advogava a necessidade de que a Coroa deveria tomar a frente do movimento, uma vez que já não mais se poderia sustentar o insustentável. O trabalho escravo se veria cercado de inimigos por todos os lados, ou seja, o modelo de economia liberal, com o chamado trabalho livre, pressionaria por todos os lados, nacional e internacionalmente. A principal estratégia era por fim ao marasmo provocado pelas leis parciais (Lei do Ventre Livre – Lei dos sexagenários), em favor da libertação total. Essa libertação total receberá todas as energias de sua argumentação. Via, no entanto, na abolição apenas o primeiro passo. Como a instituição da escravidão representava uma radical organização estrutural da sociedade, a sua abolição necessariamente deveria vir acompanhada de uma ação radical e profunda para alicerçar a sociedade em novos fundamentos, em novos paradigmas. Aí o liberal se transforma num planejador, num direcionador, imputando ao Estado as

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forças que organizariam o futuro da nova sociedade. Não se poderia esperar que as coisas acontecessem espontaneamente. Nogueira, citando o próprio Nabuco, assim sintetizava as suas preocupações: “O abolicionismo precisava ser rigorosamente uma sucessão de empreendimentos e decisões concatenadas: um movimento ativo, determinado, sistemático, dedicado a acuar, sufocar e golpear de morte a escravidão (2002.: 186) sob pena de manter “um foco de infecção moral permanente no meio da sociedade, tornando endêmico o servilismo e a exploração do homem pelo homem (Nabuco. 2000: 164).

A OBRA DA ESCRAVIDÃO Nabuco procurou legar ao Brasil os fundamentos para a constituição de uma grande Nação. Mas a República, pouco ou nada fez para acabar com a obra da escravidão. Mudou-se para não mudar. Apenas um revezamento de mãos no poder. Inúmeros brasileiros depois de Joaquim Nabuco dedicarão à causa, o vigor de suas inteligências, mas cremos que ninguém, com tanta profundidade, perspicácia e rigor, como Florestan Fernandes, na obra A integração do negro a sociedade de classes. O livro, considerado como um dos mais profundos mergulhos em nossa história está dividido em dois volumes: o legado da “raça branca” e o “limiar de uma nova era”. Não vamos aqui fazer uma análise destes dois volumes de Florestan, tarefa que seria hercúlea. Apresentaremos apenas, de acordo com o objetivo deste texto (Nabuco – O abolicionismo – a obra da escravidão), algumas pinceladas que Gabriel Cohn fez sobre esta obra, contidas no livro organizado por Dantas Motta, Introdução ao Brasil – Um Banquete no Trópico, no volume 2. Cremos que assim fica fácil compreender a preocupação de Nabuco de que também, a obra da escravidão deveria ser abolida. Cohn considera o tema da análise de Florestan bastante problemática, uma vez que estamos diante de duas realidades extremamente complexas. O autor assim se expressa: “problemático é o legado que se examina que não é o do negro, mas o da ‘raça branca’; problemático é a constituição da sociedade de classes. Mas será também problemático o limiar de uma nova era” (COHN, In: MOTTA. 2002: 387-8). Considera extremas as dificuldades que foram postas para o negro, uma vez que esta nova era só alcançaria êxito com o entrelaçamento das duas trajetórias: -“a dos exescravos e a da formação de uma sociedade de classes – em que uma não tem como se completar sem o sucesso da outra” (IBIDEM: 388). A obra mostra que para a plena integração do negro na sociedade, havia apenas um caminho, o da classe social. E isso dependeria de duas coisas: a de termos espaços suficientes para uma plena sociedade de classes, competitiva, e a do negro organizar-se ao nível de afirmar-se como raça, construindo a sua identidade social. Cohn nos relata que houve uma Lei áurea, mas nunca uma via áurea, que pudesse harmonizar a condição de negros como ex-escravos, com as condições da sociedade, em que lhes foi dado viver. Foram assim empurrados para um beco, apanhados numa ratoeira, uma vez que a dupla condição para a sua plena integração nunca ocorreu. Este contexto lhes propiciou uma complexa situação e um péssimo ponto de partida,

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o de que não estavam mais, nem inteiramente excluídos, nem adequadamente e muito menos equipados para incluir-se plenamente. Ocupavam assim, uma posição vulnerável, tanto para si próprios como também, para toda a sociedade. Não resistimos de aqui transcrever a parte final do texto de Cohn, que nos põe diante de toda esta problemática situação da integração de um ex-escravo, com todos os seus estigmas, numa sociedade de classes, que por sua auto-definição é uma sociedade extremamente competitiva e que, portanto, exige inúmeros pré-requisitos. Vejamos: As conseqüências desse estado de coisas são muito fundas. Na consciência social do ‘branco’ o ‘preconceito de cor’ aparece ‘como se constituísse uma necessidade maldita’. E, na mais pungente frase do livro: ‘O negro prolonga, assim, o destino do escravo’. Seres humanos pela metade. Necessidade maldita. Prolongamento do destino do escravo. Conclusão: é tempo de se promover a Segunda Abolição (IBIDEM: 402).

Reservamos um último espaço para Francisco de Oliveira, não para o seu clássico, Crítica à razão dualista (OLIVEIRA. 2003), mas a uma fala sua, em Niterói e transcrita no livro organizado por Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta – Teoria e Educação no Labirinto do Capital. (2001). O artigo em questão recebe o título de: A nova hegemonia da burguesia no Brasil e os desafios de uma alternativa democrática. Antes de entrar na análise da construção desta hegemonia, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, Oliveira analisa as transformações ocorridas no Brasil, a partir do complexo abolição/imigração. Violência: com esta palavra Oliveira sintetiza este período, comandado pelos chamados barões do café que “aprisionavam a mãode-obra, o voto e criavam uma república – que não era uma res publica” (OLIVEIRA. In: FRIGOTTO. 2001:52). Continuando, a análise de nossa trajetória histórica chega ao período de 1930 – 1984. Faz cálculos: uma tentativa de golpe a cada três anos. Faz contas e rememora: 1930 – 1932 – 1934 -1935 – 1937 – 1945 – 1947. Em 1947 tivemos um golpe aplicado pelo Parlamento, que pôs na ilegalidade o Partido Comunista Brasileiro. E, continua rememorando: 1954 com o suicídio de Vargas, a tentativa de impedir a posse e JK., democraticamente eleito e duas tentativas de golpe ao longo de seu governo, tramadas, uma pela marinha e outra, pela aeronáutica. Depois houve a renúncia de Jânio Quadros e a tentativa de impedir a posse do vice, somado ao golpe da imposição do parlamentarismo. Tivemos ainda o golpe de 1964 e os golpes dentro do golpe de 1967 e 1968. Refaz seus cálculos e constata que não errou: uma tentativa de golpe a cada três anos, sem falar que este período foi entremeado por “duas longas ditaduras: a de Vargas (15 anos) e a ditadura militar (20 anos) (IBIDEM: 53). Oliveira emprega o termo hegemonia em seu sentido gramsciano, que ousamos sintetizar como mais consenso e menos força, e que Oliveira aplica desta forma à história brasileira: 60 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 65-78| 2° Semestre 2009


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Ditaduras querem dizer, sempre, impossibilidade de hegemonia. A ditadura se apresenta pelo seu oposto, como a capacidade de dominar. Mas a ditadura deve ser vista pelo seu contrário, como a incapacidade de hegemonizar. Quando a sociedade civil, as forças do mercado, a burguesia não conseguem que seu processo de classe social seja consensualmente admitido, recorrem à força (IBIDEM: 53).

Oliveira não está satisfeito com esta construção hegemônica no Brasil (não uso de violência – ao menos explícita) dos anos 90, como bem atesta a segunda parte do título de sua fala, os desafios de uma alternativa democrática. Tão pouco este pensador está satisfeito com a hegemonia sob o governo Lula, tanto assim que acrescentou ao seu clássico de 1972, Crítica à razão dualista, um novo capítulo, O Ornitorrinco, já em 2003. Mostrava assim a sua decepção com o governo Lula. Escrevemos a respeito em Ciência e Opinião (Rech: 2006). Estas análises, de Nabuco, de Fernandes e de Oliveira nos permitem algumas interrogações. Quem são verdadeiramente os abolicionistas e os anti-abolicionistas? Quem é realmente a elite brasileira? Qual é o seu ideário? Quais são os seus interesses? Tolera realmente a criação de condições para o estabelecimento de uma sociedade de classes, em que efetivas condições de competição fossem realmente dadas? O que faz com que nunca hesitassem em recorrer à força, quando minimamente viam uma ameaça a seus privilégios (uma priva Lex e não uma lei universal)? Ou, com o auxílio de Nabuco, o que é ser abolicionista, em sua segunda geração, ou cem anos após a mesma? Quais seriam as forças anti-abolicionistas hoje, quando ainda são recusadas as condições para o estabelecimento da igualdade? É realmente necessário um novo projeto abolicionista? T. H. Marshall é um dos clássicos da sociologia. Em seu livro Cidadania, classe social e status (Zahar. 1976) mostra a evolução dos direitos em três estágios progressivos: os direitos civis, ligados a integridade física, igualdade perante a lei e liberdade de pensamento e expressão; os direitos políticos, organizar partidos, votar e ser votado e os direitos sociais, como a saúde, a educação e trabalho, entre outros. Hoje, trinta ou quarenta anos depois, teríamos que acrescentar a estes os chamados direitos ligados à discriminação positiva, das políticas afirmativas e que são relativamente toleradas. Seriam estas medidas, no entanto, suficientes para promover a necessária integração? O próprio Oliveira, comentando a redemocratização brasileira ao longo dos anos 80, não esconde certo grau de satisfação. Constata que a maioria delas teve a sua origem nas classes dominadas. “A iniciativa política destes últimos trinta anos foi, portanto, toda das classes dominadas” OLIVEIRA In: FRIGOTTO 2001: 56). Assim foram os movimentos de luta pela anistia, pelas eleições diretas, pela constituinte e o novo movimento sindical. Já se vislumbra hoje a possibilidade de o Brasil satisfazer todos os índices que o apontariam como país desenvolvido. No entanto, persiste a interrogação: Isto é suficiente?

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Consideramos cumpridos os objetivos traçados para a produção deste texto - de por ocasião do centenário de morte de Joaquim Nabuco, analisar um pouco de sua vida e de sua obra. Nabuco viveu plenamente o seu período histórico e envolveuse profundamente com o mais polêmico tema da época: a abolição da escravidão. Engajou-se nesta luta com as reflexões teóricas, que dariam sustentação aos movimentos abolicionistas e pela determinação em sua atividade política. Sua visão de mundo se dá a partir de Londres, de uma cultura européia e dos avanços de uma sociedade liberal. De lá vislumbrava com toda a clareza a total contaminação das instituições pela convivência com a escravidão e não via qualquer possibilidade de futuro e de cidadania para uma nação sob seus ditames. Queria inserir o Brasil na modernidade, numa modernidade conservadora, que passaria pelos princípios liberais e pela sociedade do livre trabalho. A clarividência de Nabuco não se limitava ao ato abolicionista. Preconizou todo um planejamento para erradicar a “obra da escravidão”, que passava necessariamente pelo acesso à educação e pelo acesso à terra. Isto lamentavelmente não ocorreu. Complementamos o nosso texto com a pesquisa de Florestan Fernandes sobre A integração do negro na sociedade de classes, quando mais fortemente se percebe a sua não integração, visto que as possibilidades de acesso a uma sociedade competitiva lhe foram totalmente negados. Concluímos com o pensamento de Oliveira, de que na construção de uma das sociedades mais desiguais do mundo, as elites brasileiras nunca titubearam em recorrer ao autoritarismo político para manterem, pela força e pela violência, as suas posições privilegiadas. Três tópicos para encerrar refletindo em torno de algumas questões levantadas pelo texto: 1) . A revista Veja (Janeiro 2010) traz duas matérias distintas e não interligadas. Numa ela homenageia o herói do fim da escravidão (100 -109) e em outra, aborda um de seus temas permanentes e preferidos: a criminalização do MST (65 – 67). 2) . As declarações do Cônsul geral do Haiti no Brasil, George Samuel Antoine, para a rede de TV SBT – Brasil, não sabendo que já estava no ar: “A desgraça do Haiti está sendo uma boa”, porque assim o país “fica conhecido” e “acho que, de tanto mexer com macumba, não sei o que é aquilo. O africano em si tem uma maldição. Todo lugar que tem africano está fodido” (Folha de S.Paulo 16 de janeiro de 2010). 3) . A crônica de Luís Fernando Veríssimo (Gazeta do Povo – 17 de janeiro de 2010). Nesta crônica Veríssimo traz a opinião do evangélico Pat Robertson, um dos líderes da direita religiosa americana, sobre as desgraças do Haiti, de que este país estaria “pagando por um pacto que fez com o Diabo, em 1804, quando pediu sua ajuda para expulsar os colonizadores franceses e tornar-se uma república”. A lindíssima crônica de Veríssimo passa por alguns passos históricos do Haiti, que explicam a sua pobreza e termina com a contraposição do Deus vingativo de Pat Robertson ao Deus solidário da Dra. Zilda Arns.

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Pedro Eloi Rech

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MEMÓRIA, HISTÓRIA E COTIDIANO1 Marialva Carlos Barbosa2

(UTP)

A questão conceitual da memória inclui não apenas a percepção do conceito como algo abstrato e ligado à filiação teórica que se privilegia (algo do indivíduo, inscrito no seu corpo, invadido pela percepção de sua mente/espírito ou algo que inclui uma memória da sociedade), ou seja, como fenomenologia do espírito (Bérgson) ou como processo social (Halbwachs), mas também reflexões que constroem uma espécie de história da organização da memória, tal como faz Francis Yates (1975). No seu excepcional trabalho, Yates mostra como a organização da memória desde a Antiguidade faz da imagem o lócus privilegiado. Estudando as ferramentas mentais de cada época necessárias à perpetuação das idéias, conceitos e produções discursivas a serem armazenadas na memória, mostra a vasta arquitetura imaginária da arte memorável que chega ao mundo contemporâneo sob a forma de vestígios. São esses sistemas de memória que descreve, evidenciando a intensa associação entre memória e imagem. Neste artigo, vamos privilegiar tanto a distinção entre memória e história, como a importância da memória como conector fundamental para visualizar uma imagem do passado; como abertura fundamental em direção ao passado que permite a “operação historiográfica” (CERTEAU, 1982), em sua tripla dimensão: a fase documental, a explicativa/compreensiva e a escrita. E, por último, procuraremos refletir se os meios de comunicação ao dialogarem com o público não criariam uma espécie de memória do cotidiano deste público, acionada periodicamente pelos próprios meios. Essa memória do cotidiano seria, na longa duração, o que existiria no universo particular do público como memória duradoura, sendo uma espécie de contrapartida à memória histórica formulada como memória oficial do público (memória da Nação).

1 Este artigo foi publicado originalmente como capítulo intitulado “História e memória como processo de reflexão e aprendizado”, no livro Faces da Cultura e da Comunicação Organizacional, vol. III, organizado por Marlene Marchiori. Difusão Editorial, 2010. Em relação ao capítulo fizemos alguns acréscimos, sobretudo no que diz respeito à apresentação do que estamos chamando memória do cotidiano do público. 2 Marialva Carlos Barbosa é Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da UTP e Professora Titular (aposentada) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Diretora Científica da Intercom e Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (ALCAR). Pesquisadora do CNPq e da FAPERJ, é doutora em História (UFF), com pós-doutorado em Comunicação pelo LAIOS/CNRS – Paris, França.


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Memória e operação historiográfica: as fases documental, explicativa e a escrita A primeira operação historiográfica que se relaciona à questão memorável diz respeito à operação na qual o pesquisador busca nos documentos certa certificação de um passado que chega ao presente sempre sob a forma de rastros e vestígios. A segunda, quando ela lança um olhar e direciona perguntas fundamentais a esse passado, a partir da presunção de que algo aconteceu, já que deixou uma marca. Compreendese a inscrição que o passado deixou no presente e formula-se uma explicação, a partir de idéias que se correlacionam para este passado. E, finalmente, a escrita. O produto final da operação historiográfica é sempre uma escrita e, como tal, submetida aos parâmetros da representação. Como afirma Paul Ricouer (2000), representação é uma espécie de duplo na história: ao mesmo tempo em que os conectores históricos (tempo calendário, seqüência de gerações e rastros) operam a certificação de um passado que existiu, representando-o, também a escrita da história se coloca no lugar do passado que existiu, mas não faz mais parte do tempo que denominamos presente. Portanto, a história é representância, isto é, narrativa que possui a autoridade de trazer o passado, como realidade, e fazer dele objeto científico de conhecimento. A história não se confunde com memória. Enquanto a primeira é uma disciplina que usa inclusive a memória, transmutada em testemunhos, como possibilidade de acesso ao passado (o testemunho indica que houve uma experiência singular para alguém no passado), a memória é um trabalho, que coloca sempre em referência o esquecimento. A memória é dialética fundadora no espírito humano, em relação com a categoria imaginação e com a possibilidade do esquecimento. Memória é experiência vivida, configurada pela dialética lembrança e esquecimento, lugares de disputas, conflitos, na busca incessante por sentido. A história, por outro lado, é permanente desconstrução, operação intelectual que exige interpretações, análises, críticas, que aponta para as diferenças, tensões e interditos (NORA, 1993). Como enfatiza Chartier (2009), graças ao excepcional livro de Paul Ricoeur (2000), as diferenças entre memória e história podem ser tratadas com clareza. Em primeiro lugar, a memória produz a autenticidade do testemunho como algo vivido no passado. O testemunho dá ao portador daquela reminiscência a autoridade de ter presenciado algo que aconteceu e que pode trazer de volta. Mas para a história o passado chega, sobretudo, através do que está inscrito (documento), indicando a presença imortalizada do passado. O documento possui valor inquestionável. Além disso, o testemunho, diretamente vinculado às artes da memória, possui índices de um tempo em que o conhecimento se dava pela possibilidade de recordação. Já com o documento, a palavra decorrente dos trabalhos da memória é substituída pela inscrição, ou seja, pelo que foi gravado sob a forma de escritura e, portanto, construído para ser perpetuado. Submetidos pelo historiador ao exercício crítico, os documentos serão, a partir de uma série de postulados que se transformam em métodos, desconsiderados ou qualificados como verdadeiros ou falsos. Se o juízo crítico em contraposição à certificação na primeira ação da operação historiográfica é o que produz a distinção entre objeto memorável e objeto documental, 66 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 79-88| 2° Semestre 2009


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a questão da temporalidade particulariza a segunda distinção entre memória e história. Enquanto a reminiscência é imediata, a construção do juízo histórico se faz pela explicação das regularidades e causalidades ou pela explicação por razões. Portanto, no segundo nível da operação historiográfica – explicação/compreensão – está sob o foco a formulação argumentativa do pesquisador que estabelece correlações entre um antes e um depois, particulariza as causas ou procura explicar a singularidade do fato tomado como histórico. Em terceiro lugar é preciso considerar que enquanto a memória é reconhecimento do passado, história é representação desse mesmo passado, cuja intenção máxima é a verdade. Para isso se vale de documentos e de modelos teóricos e metodológicos. Para Ricoeur (2000) a questão da representação está indubitavelmente ligada à história em dois níveis: como objeto da história e como ferramenta da história. Ou seja, ao explicar/compreender busca-se uma dada representação do passado, cujo resultado final é uma escritura com a pretensão de representar o verdadeiro passado. A memória é a primeira abertura em direção ao passado. É pela memória que o passado se torna algo que pode ser representado pela escrita da história, ao mesmo tempo em que a memória torna-se uma espécie de “fiador da existência de um passado que foi e não é mais” (CHARTIER, 2009, p. 23). Enquanto a história é regida pela epistemologia da verdade, a memória é governada pela idéia de fidelidade. Enquanto a memória é fundamental para indicar a presença do passado no presente, construindo laços culturais fundadores entre comunidades, indivíduos e grupos, a história é antes de tudo um saber universalmente reconhecido como científico.

Tempo e Memória Para chegar até o passado ou presumir que os homens do passado passaram por aqui, ou seja, efetivamente produziram ações, é preciso que haja algumas aberturas fundamentais em relação a este passado: marcas duradouras que indicam que alguém passou por aqui e que deixou suas pegadas. Essas marcas são os rastros e os indícios que o pesquisador deve seguir. Mas cada um de nós possui como estrutura de imaginação imagens-lembrança de um tempo que passou. Essas imagens nos dão a certeza de que há uma temporalidade cambiante, móvel, indicando também a passagem do tempo. Um tempo vivido como progressão que, aprisionado pela narrativa histórica, se torna a primeira possibilidade de conecção com o passado. A rigor, a refiguração do tempo pela invenção de certos instrumentos de pensamento, como o calendário, cria uma espécie de terceiro tempo, situado entre o tempo fenomenológico e o tempo vivido, permitindo que se vá em direção ao passado. O tempo calendário é, pois, um instrumento de pensamento que se configura, ao lado da seqüência de gerações e do rastro, como conector histórico (RICOEUR, 1997). São elementos que possuem uma espécie de objetividade do passado e que nos permite ir à sua direção. Com o calendário há a invenção de um terceiro tempo, chamado por Beneviste (Apud RICOEUR, 1997, p. 180) de tempo “crônico” e instituído na língua histórica como tempo social. Guardando relação com o tempo cosmológico, no cômputo, o COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 79-88| 2° Semestre 2009 | 67


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tempo calendário inaugura um princípio – o da divisão – que foge inteiramente às concepções astronômicas e da física. Assim, se no primeiro aspecto (cômputo), é contínuo, uniforme, linear e segmentado, ou seja, figura um antes e depois, é mensurado e instaura a regularidade dos períodos (pelo movimento do sol e da lua estabelecese, por exemplo, o ciclo do dia de 24 horas), em relação ao segundo (princípio), a atribuição de qualificações a este tempo (presente, passado e futuro) o distingue inteiramente do tempo da física. Essas qualificações são constituídas pela idéia de que o presente é o hoje e a partir do qual haverá um amanhã, assim como houve um ontem. A partir desse ponto zero (presente) cria-se um percurso bi-direconal, do passado para o presente e do presente para o futuro, qualificando-se o próximo e o distante. Todos os acontecimentos recebem uma posição no tempo em relação a um momento instituído como axial. Essa distância é medida em anos, meses dias ou pela qualidade histórica do acontecimento fundador (500 anos da Descoberta do Brasil, por exemplo) (RICOEUR, 1997, p. 180-185). Todos os calendários possuem três características comuns que permitem a divisão do tempo: A referência a um acontecimento fundador que define o eixo do tempo, o “momento axial” a partir do qual todos os acontecimentos serão datados; a possibilidade de percorrer o tempo em duas direções (anterior ou posterior), em relação ao marco zero; e o estabelecimento de unidades de medidas que denominam os intervalos constantes (dia, mês, ano). A originalidade que o momento axial confere ao calendário permite-nos dizer que o tempo calendário é exterior tanto ao tempo físico quanto ao tempo vivido. Além disso, todos os instantes podem ser, em princípio, momentos axiais. Nada diz que um dia tomado no calendário seja passado, presente ou futuro. Para isso é preciso que alguém fale: “o presente é, então, assinalado pela coincidência entre um acontecimento e o discurso que o enuncia (...); é por isso que tal data, completa e explícita, não pode ser dita nem futura, nem passada, se ignorarmos a data da enunciação que a pronuncia” (p. 186). Portanto, é o ato enunciativo que designa o presente, o passado e o futuro e para alcançar o tempo vivido a partir do tempo calendário é preciso que alguém fale o tempo. O tempo é narrativa, também nesse, mas também em múltiplos outros aspectos: o tempo instaura a vida; inaugura a experiência; realiza-se pelo ato enunciativo; tornase palpável nas múltiplas configurações narrativas. O segundo conector ou mediação fundamental da história para alcançar passado é a seqüência de gerações, termo que Ricoeur toma emprestado de Alfred Schutz, mostrando o que denomina “esteio biológico do tempo”. Sentimos no corpo a passagem do tempo, nas marcas visíveis que figuram na face, no corpo, na certeza inelutável da morte. As marcas visíveis para nós e para todos os outros indicam que a vida passa. A seqüência de gerações estabelece também uma relação anônima entre os indivíduos numa dimensão temporal, que são assim nomeados e qualificados como contemporâneos, predecessores e sucessores, criando um encadeamento do tempo, 68 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 79-88| 2° Semestre 2009


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vivido não mais individualmente, mas de maneira anônima em sociedade. É a seqüência de gerações que produz a materialidade mais evidente do tempo social da história. O presente dos contemporâneos, o passado dos predecessores e o futuro dos sucessores não pertencem a ninguém individualmente, só existindo numa dimensão pública. O passado de meus predecessores existia antes de mim, foi herdado, não posso mudá-lo. O presente de nossos contemporâneos instaura a idéia de duração junta, de compartilhamento do mundo e o futuro dos nossos sucessores inaugura a idéia de um silêncio imaginado refigurado como expectativa. Em suma, o passado, o presente e o futuro tornam-se passíveis da ação humana, seja em termo de expectativa (futuro), de temor (presente) ou de espera (passado). O terceiro e último conector que permite a história acessar o passado é o rastro. O rastro indica a passagem de alguém que deixou uma marca e que pode, no caso da história, estar depositado num lugar físico construído para abrigar múltiplos rastros do passado: o arquivo. O trabalho do historiador é também selecionar a partir de perguntas que direciona a esse passado. É preciso, então, entre os múltiplos rastros, separar, reunir, transformar em documentos, coletar, analisar e produzir um texto. A questão central: porque preservamos determinados rastros e outros não? Instala-se também em relação aos rastros a problemática da memória. Os documentos preservados como memória duradoura para um futuro colocam em destaque a produção de alguma coisa para durar, tornando-se lembrança do passado no futuro. Estar de posse dessa possibilidade de transformar o presente em futuro é, em certa medida, ser guardião da temporalidade histórica. É nesse sentido, por exemplo, que os meios de comunicação não apenas informam a atualidade, mas produzem uma atualidade para ser usada como passado no futuro ou como futuro no presente (Matheus, 2010). Objeto usual da história, a noção de rastro, materializada pelos documentos e pelos arquivos, é essencial também para a reconfiguração do tempo. O rastro é, ao mesmo tempo, ambivalente e desestabilizador da ordem: alguma coisa que significa sem aparecer, ou seja, significa o passado sem ser o passado. O rastro está no presente e instaura uma significação sobre algo (o passado) que não está no presente (daí a ambivalência). O rastro é, portanto, indicial: indica uma suposição do passado, sendo fundamental para a operação e para a ambição historiográfica, pois materializa também a existência, a realidade do passado. É o rastro que permite explorar o enigma do passado (aquilo que Ricoeur chama passeidade), permitindo que seja descrito não como mera representação do passado, mas como algo que se transforma no próprio passado, tendo a ambição de valer pelo passado. Mas o que significa deixar um rastro? É considerar que algo fixa uma marca do passado em direção ao futuro, mostrando “o passado da passagem”. O paradoxo é que a passagem não existe mais, mas o rastro permanece. Portanto, é a ação humana que deixa as marcas indicando mais uma vez o tempo na narrativa. O rastro mostra o aqui no espaço e o agora no tempo, ou seja, a própria historicidade do homem, ser tempo e espaço. O rastro indica também a significância do passado, a intenção da história de ser abertura fundamental

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para explicação/compreensão do passado a partir da possibilidade de existência desse passado. Mesmo depois de ter passado, o passado continua passando pelas ações da “operação historiográfica”. Para isso, o historiador transfere o significado do passado enquanto passado (ter sido) para as coisas que subsistem, fazendo com que as coisas sejam substituídas pelos rastros. Os rastros valem pelas coisas. Sem esse valor não seriam rastros válidos para a história. Os rastros tornam-se espécies de utensílios do tempo passado, sendo portadores do significado do passado. A história instaura, portanto, um tempo híbrido, entre o tempo do rastro (que era do passado, mas que é transportado para o presente) e o tempo da vida (que possibilitou a permanência do rastro).

Síntese reveladora O que significa o passado real quando aplicado ao conhecimento histórico? O que estamos querendo dizer quando afirmamos que algo realmente aconteceu? Que o historiador, na sua operação historiográfica, se coloca na posição de reconstruir o passado, inaugurando uma espécie de dívida para com este passado. Para isso, a busca pelos conectores históricos remarca a diferença fundamental entre o historiador e o ficcionista. Assim, o rastro deixado pelo passado figura no lugar do passado, valendo por este, como já assinalamos. Ou seja, o modo referencial da história é este representar. É isso que torna a história diferente da ficção. Na história, o rastro é a garantia, a prova, para a explicação do passado. Portanto, duas formulações são indispensáveis ao pensamento da história, configurando uma narrativa dependente do terceiro tempo: o valor mimético do rastro e a noção de dívida para com o passado. Evidentemente há muitas formas de considerar a história e em função disso realizar a operação historiográfica. Podemos privilegiar uma história por razões, por repetições, por ações correlatas. Podemos também achar que o passado pode ser transposto para o presente ou que estamos apenas procedendo a um ato de refiguração desse passado, de reinscrição pela ação de narrá-lo. A história não é apenas o que aconteceu no passado, mas todas as interpretações subseqüentes desse mesmo passado ao infinito. A história é sempre a ação humana de contar, ao viver, sua própria história deixando inúmeros rastros. Como tudo isso pode ser pensado em relação à comunicação? Que tipos de aproximações podemos fazer? Certamente de múltiplas ordens. Só configuramos o tempo da história e da ficção pelo ato comunicacional. A história e a ficção não projetam o sentido de uma obra, mas o mundo que ela projeta é que constitui o seu horizonte. Assim, o ato narrativo da história é ato comunicacional. A história produz sempre um texto que indica o “tal qual” do passado, ou seja, a presunção de um passado com aquela particularidade, mas que só é lido pelo ato comunicacional a partir da maneira como chega ao presente. Também no processo comunicacional, essa história é acolhida pelo leitor que espera encontrar na operação historiográfica o “tal qual”, a verossimilhança do passado que é aprisionado como verdade, por que em relação à história há essa expectativa de verdade. 70 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 79-88| 2° Semestre 2009


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Além disso, o que o público recebe também nas obras históricas é o mundo e a temporalidade que só existem nos modos de comunicação. Há no processo comunicacional também uma “fusão de horizontes”, no qual o sentido, a referência de todo o discurso, projeta-se um mundo no mundo, pelo caráter dialógico do próprio discurso. O ato comunicacional que poder ser considerado, como afirma Ricouer, ao mesmo tempo um enigma e um milagre. Um enigma porque são pelos atos comunicacionais que transmitimos o que vivemos para outro que pode (ou não) compreender essa experiência. Vivida a experiência é a minha experiência. Comunicada a minha experiência torna-se algo partilhado. Comunicar é, nesse sentido, tornar público algo que seria privado. É assim que a comunicação é uma espécie de milagre: através dela se pode superar a solidão de cada ser humano (RICOEUR, 1987). A questão da referência é outro aspecto fundamental para a comunicação. A linguagem transcende a si mesma e se refere a um mundo que se apresenta como possível de ser percebido pelo ato de dizer. Trazemos para o mundo a linguagem e não a experiência, mas comunicamos o sentido da experiência e da linguagem. É também neste sentido que a comunicação é enigma. Claro que para que haja essa transcendência da linguagem em relação à referência é preciso o partilhamento de um mundo comum, ou seja, atos de cultura, pressumindo-se a existência de coisas semelhantes que são identificadas (por um processo de significação partilhada culturalmente, ou se quisermos empregar a noção de Geertz, por um sistema cultural). Há que haver a universalidade dos sentidos que só os atos culturais produzem. Mas a linguagem ao se transformar em texto não é apenas mera inscrição: passa a ser significado, no qual estão imersos o sentido e a referência, ou seja, o caráter dialógico do discurso, que torna possível a sua interpretação. Mas a interpretação é feita na ausência e não na presença. Cabe a outro interpretar, por exemplo, o eu que está no texto, a partir da proposição de que este texto é antes de tudo dirigido a outro. O texto contém as vozes dos múltiplos autores ali figurados, mas também a inscrição, o eu autoral e o outro a quem, não importa quando, irá se apropriar do mundo que está no texto. Compreender, portanto, não é repetir o evento do discurso, mas gerar novo acontecimento que começa exatamente no texto no qual esse evento inicialmente se objetivou. Como reflexão final gostaria de me referir aquilo que estou chamando memória cotidiana do público em contraposição a uma memória histórica oficial. Os meios de comunicação ao colocarem em cena novamente o passado – com todos os índices dessa passeidade, como por exemplo, as roupas de época, os utensilios, os objetos materiais, as formas de dizer, etc – acionam uma memória que figura na vida de cada um daqueles que viveram (até por ouvir dizer sobre aqueles tempos idos). Aciona-se nesse momento uma memória cotidiana do público que faz com que ele se lembre desse passado conectando fatos do seu cotidiano aquele momento histórico. Numa pesquisa que fizemos com o público sobre essas memórias duradouras foi

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significativo o resultado: cada um dos personagens lembrava do personagem principal a partir de aspectos que acionavam atos do seu cotidiano3. “Eu me lembro que era a programação o tempo todo interrompida pelos boletins médicos. Então a gente foi acompanhando o que era diverticulite; qual era o processo da doença; com todas as falas dos médicos. Agora já se tornou comum a gente ficar acompanhando diagnósticos, mas naquele momento foi uma coisa diferente na televisão”. (M. J, 69 anos) “O que muito me lembra a morte de Tancredo Neves é aquela repórter, a Glória Maria. A doença, isso é misterioso, viu. Eu não creio que foi doença, não. Acompanhei durante o período todinho. Lembro que eles falavam muitas coisas: infecções, complicações gerais. Mas até hoje, sinceramente, eu não acredito no que aconteceu”. (L. F, 71 anos) “Foi um episódio meio nebuloso da história do Brasil. Eu, várias vezes, o encontrava no Fórum. Ele, aparentemente, mesmo como político, parecia fisicamente bem. Depois veio (a campanha) aquele problema das Diretas Já; a qual ele comandou com o Ulysses Guimarães. O Lula, inclusive, participou. Vieram as eleições; ele é eleito; e sem mais, adquire uma doença esquisita; de repente; que o levou a morte. Foi algo rápido. E nada tinha ele que justificasse uma comoção assim”. (M. S, 73 anos) “Eu sou espírita, né. Eu acho que a morte dele foi um trabalho feito para ele. Eu lembro quando ele estava doente; quando ele subiu ao Planalto; subiu morto, né!? Todo mundo rezando por ele; torcendo por ele”. (M. J, 59 anos) “Eu acompanhei pela televisão, mas, para mim, foi como se fosse uma pessoa de minha família. Eu era muito ligada, porque eu sou de lá bem de perto. Eu fui criada em Ouro Preto, nasci em Mariana e vivia nessas duas cidades; perto da cidade dele”. (C.I, 74 anos)

Portanto, a uma memória duradoura historica poderíamos contrapor uma memória duradoura inscrita no cotidiano do público? Como essa pergunta que instiga ao mesmo tempo às múltiplas reflexões sobre a memória colocamos um ponto final neste texto.

3 Estamos nos referindo a pesquisa realizada com um universo de 300 pessoas sobre as lembranças duradouras em relação às chamadas cerimônias da televisão brasileira, dando-se ênfase não apenas aquilo que denominamos cerimônias festivas (Carnaval, Copa do Mundo, etc), mas também as que foram realizadas em torno das mortes midiáticas, como indica as falas dos entrevistados em relação à doença e morte do Presidente Tancredo Neves, em 21 de abril de 1985.

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Marialva Carlos Barbosa

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Nacionalismo e futebol: a cobertura do sorteio dos grupos da Copa do Mundo de 2010 nos jornais Le Figaro e Folha de S. Paulo1 Lennita Oliveira Ruggi2 Elza Aparecida de Oliveira Filha3 Resumo

Os jornais, ao mesmo tempo em que agendam a sociedade ao selecionarem e hierarquizarem os acontecimentos que serão transformados em notícia, também são pautados pelos interesses de seus leitores. Os valores-notícia identificados pelas teorias do jornalismo são comuns em praticamente todos os países, mas a imprensa apresenta características locais peculiares, em especial no que tange à edição das matérias. Este artigo busca identificar e discutir tais peculiaridades tomando por base a cobertura do sorteio dos grupos de países que disputarão a Copa do Mundo de 2010, realizada pelos diários de maior circulação no Brasil e na França, respectivamente, os jornais Folha de S. Paulo e Le Figaro. O evento aconteceu na África do Sul, em 4 de dezembro de 2009 e a análise é feita nas edições dos dias 3, 4 e 5 de dezembro. A escolha da temática justifica-se pela importância do futebol enquanto espaço privilegiado para produção de nacionalidade e pela preponderância simbólica, econômica, social, cultural, política e midiática que esta prática esportiva alcança na contemporaneidade. A avaliação das seis edições constata as diferenças de tratamento dado à temática nos dois países e reafirma o papel fundamental do jornalismo na configuração das representações “nacionalidentitárias”. Palavras-chave: jornalismo; imprensa diária; valores-notícia; futebol; nacionalidade

Résumé

Les journaux, en même temps qu’ils définissent l’agenda de la société quand ils sélectionnent et hiérarchisent les évènements qui seront transformés en nouvelles, sont aussi programmés par les intérêts de leurs lecteurs. Les valeurs-nouvelles identifiées par les théories du journalisme sont courantes dans pratiquement tous les pays, mais la presse présente des caractéristiques locales particulières, spécialement pour ce qui est de l’édition/la mise en page des nouvelles. Cet article cherche à identifier et discuter ces particularités en prenant comme base la couverture du tirage au sort des groupes de pays qui disputeront la Coupe du Monde de 2010, réalisée par les quotidiens à plus fort tirage au Brésil et en France, les journaux Folha de São Paulo et Le Figaro, respectivement. L’évènement a eu lieu en Afrique du Sud, le 4 décembre 2009 et l’analyse est faite à partir des éditions des 3, 4 et 5 décembre. Le choix de la thématique se justifie du fait de l’importance du football en tant qu’espace privilégié pour la production de nationalité et du fait de la prépondérance symbolique, économique, sociale, culturelle, politique et médiatique que cette pratique sportive a acquis dans la contemporanéité. L’évaluation des six éditions constate les différences dans le traitement donné à cette thématique dans les deux pays et réaffirme le rôle fondamental du journalisme dans la configuration des sociétés. Mots-clés : journalisme ; presse quotidienne ; valeurs- ; football ; nationalité

1 Trabalho apresentado no X Colóquio Brasil França, realizado entre os dias 23 e 24 de junho de 2010 em Dijon. 2 Cientista social formada pela Universidade Federal do Paraná, mestre m Sociologia pela UFPR (2005), mestre em Pós-colonialismos e Cidadania Global pela Universidade de Coimbra (2008), professora de Sociologia na rede pública de ensino do Paraná, Colégio Estadual Prof. João Loyola. 3 Jornalista formada pela Universidade Federal do Paraná, mestre em Sociologia pela UFPR (2002), doutora em Ciência da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2006), professora do curso de Jornalismo da Universidade Positivo, em Curitiba.


Nacionalismo e futebol: a cobertura do sorteio dos grupos da Copa do Mundo de 2010 nos jornais Le Figaro e Folha de S. Paulo

1. Introdução “Todos os torcedores de futebol se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Têm o mesmo comportamento e xingam, com a mesma exuberância e os mesmos nomes feios, o juiz, os bandeirinhas, os adversários e os jogadores do próprio time” (RODRIGUES, 2007: 116). Com esta frase, Nelson Rodrigues4 introduzia uma de suas crônicas para o jornal Manchete Esportiva publicada em 1956.

No dia 4 de dezembro de 2009 foi realizado na Cidade do Cabo, África do Sul, o sorteio dos oito grupos para a disputa da Copa do Mundo de 2010, cada um deles integrado por quatro países. O evento foi produzido como um espetáculo, contando com atrações artísticas e a transmissão, ao vivo, para televisões de todo o mundo (no Brasil, além de canais pagos especializados em esporte, as redes abertas Globo e Bandeirantes interromperam suas programações às 15 horas para mostrar o sorteio). O jogador inglês David Beckham e a atriz sul-africana Charlize Theron formaram o louro casal presente no palco, ao lado do secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke. Representantes das 32 seleções que disputam o mundial entre 11 de junho e 11 de julho estavam presentes, assim como o presidente da África do Sul, Jacob Zuma. Nelson Mandela, principal líder do país e símbolo da luta contra o apartheid, enviou uma mensagem que foi exibida em telões e muito aplaudida. O presente trabalho analisa a cobertura do evento realizada pelos diários de maior circulação no Brasil e na França, respectivamente, os jornais Folha de S. Paulo (FSP) e Le Figaro (LF), utilizando três edições de cada periódico: dos dias 3, 4 e 5 de dezembro. A opção por trabalhar com jornais generalistas, e não com publicações especializadas em esporte, é justificada pela intenção de identificar o interesse do público amplo pelo tema futebol. Parte-se do reconhecimento de que a imprensa, ao mesmo tempo em que agenda a sociedade ao selecionar os fatos que transforma em notícia, também é pautada pelos interesses de seus leitores. A decisão de avaliar uma cobertura ligada ao futebol foi motivada pela importância que este esporte tem na atualidade, por sua inserção na mídia, pela relevância econômica, cultural e social da modalidade e, sobretudo, pela capacidade das seleções futebolísticas canalizarem o sentimento de pertença e de nacionalidade – manifestado, evidentemente, de maneira diversa em cada país. As diferenças entre as coberturas de LF e FSP são expressivas e capazes de suscitar reflexões a respeito da prática jornalística nos dois países5. Nas três edições do jornal brasileiro, por exemplo, o assunto recebeu destaque na primeira página e foi a manchete do alto da capa no dia 5 de dezembro. Nesta edição o sorteio mereceu um caderno especial de dez páginas e o jornal publicou, inclusive, publicidades alusivas à Copa do Mundo. O francês LF usou em espaço de 12 por 10 centímetros na parte inferior da primeira página do dia 3 para uma matéria que citava o Mundial (e não o sorteio que seria realizado no dia seguinte), mas que se detinha a relatar uma visita feita por dirigentes da Fifa e integrantes de várias seleções nacionais a Robben Island, 4 Nelson Rodrigues (1912/1980), escritor e dramaturgo atuou durante décadas como cronista esportivo em diversos jornais do rio de Janeiro. 5 No item 3 do artigo há uma tabela comparando os dados das edições.

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local da antiga prisão na qual Mandela e outros ativistas anti-apartheid cumpriram pena. No dia 5, ao divulgar os resultados do sorteio, o jornal deu uma chamada de 3 por 4 centímetros, no final da coluna localizada à esquerda da primeira página e utilizada para pequenos destaques.

2. O discurso nacionalista do futebol A história do futebol é demonstrativa da preponderância que assumiu enquanto esfera para-política. Este esporte está dinamicamente implicado nos processos desiguais intra- e inter-nacionais. Por um lado, ele é fruto direto das relações colonialistas estabelecidas por países europeus e dos processos migratórios sentido Norte-Sul. Espaço privilegiado para a encenação/produção de nacionalidade, o jogo foi também arena de contestação à hegemonia europeia. Para Arno Vogel, “[d]e um modo geral, os latino-americanos são passionais quando se trata de futebol. Através dele, os uruguaios, argentinos e brasileiros conseguiram os seus primeiros momentos de afirmação diante dos europeus que lhes tinham ensinado o jogo” (Vogel, 1982:82). Neste sentido, países “periféricos” puderam (e podem) ser alçados pelo esporte a espaços de visibilidade mais amplos, inseridos na agenda midiática global por motivos outros que não desastres, desgraças ou guerras6. As relações de poder e visibilidade no futebol interagem com as desigualdades de classe, raça, gênero e nacionalidade, tanto na dimensão intra-nacional, entre clubes e regiões do país, quanto internacionalmente. Sem serem coincidentes, a hierarquia futebolística e as desigualdades sociais estão imersas em processos complexos de reprodução e/ou contestação de legitimidades e relações de poder. Esta questão também se expressa no plano econômico e financeiro, como identifica Joseph Maguire em sua obra sobre a globalização do esporte ao apontar que as fontes de rendimento tradicionais (como as receitas de bilheteria e a patronagem política) declinaram seu percentual de participação na arrecadação total das organizações desportivas. Ele denomina a inter-relação entre os meios de comunicação e o esporte de alto nível de “complexo global midiático-esportivo” e observa que esta é a origem de uma parcela substancial das novas fontes de recursos. “As organizações esportivas têm que garantir exposição suficiente para si mesmas a fim de estarem visíveis no mercado de patrocínios e promoções. A cobertura midiática assegura isso” (1999:150, tradução livre). Reconhecendo as relações desiguais de poder embutidas no complexo global midiático-esportivo, Maguire salienta que grande parte das organizações desportivas “têm pouco ou nenhum controle sobre a natureza e a forma como ‘seus’ esportes são televisionados, relatados ou noticiados” (1999:150, tradução livre). Neste sentido, a dependência com relação à mídia, que tem aumentado com o tempo, representa uma espécie de subordinação aos padrões de divulgação vigentes no meio do entretenimento. A transformação do futebol em grande negócio na era da globalização exacerba as desigualdades entre clubes tanto intra-países como na configuração internacional. 6 A dimensão simbólica do futebol é tão marcante que a principal competição entre clubes sul-americanos é a Taça Libertadores da América, em homenagem aos principais líderes dos movimentos de independência dos países da região. (Igualmente significativa é a denominação Liga dos Campeões para o campeonato entre agremiações europeias).

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Por outro lado, como afirma Maguire, a despeito da existência de agentes poderosos que visam controlar e regular o sistema esportivo global, ele “possui uma dinâmica relativamente autônoma que não é dominada por nenhum grupo específico” (1999: 151, tradução livre). Observação semelhante pode ser feita a respeito da(s) mídia(s) e este é um aspecto crucial para que a expressão esportiva/midiática de um espaço “periférico” não seja tomada como mero reflexo distorcido e diminuído das imagens hegemônicas provenientes do “centro”. Acatando a ressalva de Maguire, convém localizar tal perspectiva em meio às relações de poder esportivas, imersa como está em interesses e estratégias competitivas – não restritos ao campo de jogo. Trata-se, seguindo a terminologia de Boaventura de Sousa Santos (2001), de um “localismo globalizado” – ou a tentativa de tornar hegemônica uma distribuição geo-midiática do futebol que tem a Europa como centro difusor. De acordo com Marcelo Proni (2000), a formação de uma rede federativa de dimensões mundiais, com torneios e campeonatos transnacionais, a exemplo das Copas do Mundo, precede o contexto de mercantilização mais acentuada do futebol que se deu através de sua intersecção com a indústria do entretenimento. A despeito de toda a problemática que envolve, o futebol no Brasil é parte constitutiva da nacionalidade7. Sua importância simbólica, econômica, social, cultural, cotidiana, política e mídiatica é reiterada por discursos dos mais variados matizes, oriundos de fontes diversas. O futebol é uma moldura, por assim dizer, que se presta a um projeto de nação, supostamente possibilitando a convergência de interesses em meio à heterogeneidade brasileira. É pertinente questionar - embora o âmbito deste trabalho não permita aprofundar o tema - quem tal enquadramento inclui e quais são as ausências criadas em seu bojo. O fato “do Brasil” (ou antes, de um selecionado de jogadores nacionais) ter sido o time vitorioso em cinco das dezoito Copas do Mundo da Fifa realizadas até o presente, contribui sobremaneira para a construção da imagem do “país do futebol”. A reivindicação do futebol (e seus jogadores) como indicador de brasilidade é uma representação que ultrapassa a esfera política e que já estava em formação antes mesmo de uma seleção brasileira ter conquistado qualquer Copa do Mundo. Realizando uma investigação dos discursos sobre o estilo de jogo nacional, Lovisolo e Soares (2003:134) afirmam que “a narrativa sobre a cultura ou o tipo de civilização a ser construída confundia-se com as narrativas sobre o que é e o que deve ser o futebol, o Brasil e os brasileiros”. Segundo os autores, a metáfora do futebol para a idealização do país constituia-se a partir: “a) do mundo civilizado europeu, que deveria modelar a jovem nação; [e] b) da cultura singular que aqui havia se instalado e se estava construindo, como corresponde a uma nação original” (Lovisolo e Soares, 2003:134). Tornar o Brasil “o país do futebol” foi, e continua sendo, um projeto nacional comparável ao de modernização através da industrialização – e imensamente mais 7 E isso se estende para vários outros países. Pablo Alabarces, por exemplo, demostra em Fútbol y patria como este esporte foi ativado enquanto componente fundamental da nação argentina: “o futebol funcionou ao longo do século XX como um forte operador de nacionalidade, como construtor de narrativas nacionalistas fecundas e eficazes, em geral com um alto grau de coerência com as narrativas estatais de cada período” (Alabarces, 2002: 20, itálicos no original, tradução livre).

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bem sucedido. Neste sentido, destaca-se a atividade de um grupo de “jornalistas e intelectuais de alto capital social que militaram pelo futebol criativo dos jogadores de origem popular” no Rio de Janeiro durante as décadas de 30 e 40 (Lopes, 1999: 112). Tendo como interlocutores Mário Filho, Ari Barroso e José Lins do Rego, Nelson Rodrigues elaborou um conjunto de crônicas incomparável, tanto em sua insistente doutrinação sobre a superioridade brasileira no futebol quanto no valor literário de sua obra. Em 1956, dois anos antes do time brasileiro se sagrar campeão mundial pela primeira vez, ao comentar sobre um jogo amistoso realizado no Maracanã, Rodrigues afirmava: “Para mim, que me considero um objetivo, um isento, um imparcial, a batalha de ontem, contra os tchecos, demonstrou, precisamente, que nós somos os melhores do mundo, em futebol” (2007:119). Convém salientar esta vírgula, algo irônica, que separa “melhores do mundo” de “em futebol”. O time brasileiro perdeu o jogo por um gol. Para Rodrigues, isso não prova nada: “Com a nossa estreita e alvar objetividade, temos a mania do resultado. Tudo para nós é o resultado. Os tchecos marcaram um gol e os brasileiros zero, logo os tchecos são melhores. Mas semelhante raciocínio é de uma inenarrável estupidez” (2007:119). Descrevendo os lances do jogo e reivindicando, na esteira dos cronistas europeus, a importância do time tcheco (que acabara de vencer a consagrada seleção húngara com Puskas), Rodrigues conclui que “embora derrotados, jogamos mais do que os melhores do mundo. Portanto, somos os tais” (2007:120). Em sua narrativa, é manifesta a relação simbiótica entre pátria e futebol, construída a partir do discurso nacionalista clássico homogeneizante, portanto excludente e masculinista. “É o homem brasileiro que vence e se afirma, de maneira dramática, no esporte” (Rodrigues, 2007:111). O cronista, se não inaugura, exacerba o futebol como épico nacional. A representação do jogador de futebol brasileiro como “melhor do mundo” denota, a um só tempo, uma reivindicação de identidade compartilhada (nós “somos os tais”) e uma imagem a ser difundida para os outros, não-brasileiros. Um artigo do jornalista Paulo César Vasconcellos, intitulado O Brasil e a bola, é representativo de como o jogo é construído enquanto aspecto estrutural da sociabilidade nacional: “Dizem que no Brasil todos são técnicos de futebol. É errado. Além de técnicos, todos são jogadores, dirigentes e árbitros. Conhecem táticas, jogadas, formas de organizar um campeonato e regras de como arbitrar uma partida. A paixão é isso. Se um brasileiro não entra nessa discussão, está mal da cabeça ou doente do pé. Afinal de contas, o País – queiram ou não – é do futebol e nunca deixará de sê-lo. A cada momento nasce um craque, um dirigente, um técnico e um juiz. É uma paixão eterna” (s/d: s/p). Para além de seu conteúdo totalizante, importa ressaltar que a crônica de Vasconcellos seja divulgada pela Divisão de Operações de Difusão Cultural do Ministério das Relações Exteriores brasileiro8. Tais abordagens são reveladoras da densidade sócio-cultural que envolve e conforma o futebol no país. Multifacetado e heterogêneo, ele foi (e é) mobilizado por 8 São fartas as pesquisas que estabelecem vínculos entre o futebol e a política enfatizando o uso que regimes ditatoriais em vários períodos históricos, no Brasil e em outros países na América do Sul, fizeram do esporte. “De acordo com a terminologia de Gilberto Agostinho, durante a Ditadura Militar, a esfera futebolística foi mobilizada para suprir a ‘obsessão legitimadora’ do regime”(Ruggi, 2009:115)

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Nacionalismo e futebol: a cobertura do sorteio dos grupos da Copa do Mundo de 2010 nos jornais Le Figaro e Folha de S. Paulo

uma ampla gama de perspectivas e posições políticas, divergentes ou não. Mas há um importante ponto de convergência, que perpassa a maior parte das interpretações sobre o futebol brasileiro. Trata-se da continuidade do que poderia ser denominado como “ordem de discurso” rodriguesiana, na qual está implícita a existência de uma identidade dos futebolistas nacionais, compartilhada por todos os brasileiros. As colocações de pronomes possessivos que acompanham, quase que obrigatoriamente, as alusões feitas por brasileiros aos jogadores brasileiros são característica importante para vislumbrar esta relação de prevalência. Embora não assuma a ufanismo triunfalista do texto de Nelson Rodrigues, o jornal FSP adota como sinônimos na cobertura do sorteio dos grupos da Copa do Mundo, os termos “Brasil” e “seleção brasileira”: “Brasil estreia na Copa contra Coreia do Norte”, diz a manchete da edição de 5 de dezembro. Utilizar o nome do país em lugar de referenciar a equipe ou a seleção ocorre de maneira mais frequente quando trata-se do Brasil, mas a formulação está presente na estrutura discursiva do jornal também quando menciona outros participantes do Mundial. O pronome possessivo da primeira pessoa do plural também está presente no texto da Folha: “Se a Coreia do Norte está destinada a ser o saco de pancada do nosso grupo, Portugal e Costa do Marfim deverão ser pedras consideráveis nas chuteiras da seleção canarinho”, diz o artigo do José Geraldo Couto também na edição do dia 5 (itálico adicionado). No caso do diário LF a linguagem é diferenciada: “Mondial: tirage favorable pour les Bleus”9, é a chamada da primeira página da edição de mesma data. O texto do jornal usa sempre expressões como “equipe da França” ou “seleção francesa” (assim como se refere aos selecionados dos demais países), optando eventualmente pela formulação “azuis”, empregada na chamada de primeira página. Principal codinome da equipe francesa, “Azuis” faz referência ao uniforme utilizado pelos jogadores e está presente nas frases de incentivo entoadas pela torcida, como a famosa “Allez les bleus!”. Trata-se da denominação mais frequente nas reportagens de Le Figaro analisadas no presente artigo. Para o antropólogo Everardo Rocha, a “verdadeia magia do futebol brasileiro – o futebol no imaginário dos brasileiros, bem entendido – está principalmente no fato de que este é o jogo escolhido, o esporte preferencial para, através dele e de suas práticas, falarmos sobre nós mesmos” (2003:28, itálicos adicionados). As conquistas das seleções brasileiras são cercadas de uma aura de orgulho compartilhado, cuja inserção nas falas de jogadores, nas de torcedores, em produções midiáticas e acadêmicas constitui sinal de sua hegemonia. Num processo claro de invenção de tradições, os jogadores contemporâneos são representados como herdeiros diretos dos “craques” do passado, realimentando a mítica da predestinação e acentuando o nacionalismo. A polissemia de significados relacionados ao “país do futebol” permite problematizar o projeto de nação que foi construído ao redor e por meio do jogo.

3. A construção jornalística do futebol De acordo com Mauro Wolf (1995:170): “Noticiabilidade corresponde ao 9 “Mundial: sorteio favorável aos azuis” (tradução livre).

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conjunto de critérios, operações e instrumentos com os quais os órgãos de informação enfrentam a tarefa de escolher, quotidianamente, de entre um número imprevisível e indefinido de factos, uma quantidade finita e tendencialmente estável de notícias”. Os critérios de noticiabilidade englobam condicionantes de várias ordens que determinam se um acontecimento10 deve ocupar espaço nas páginas dos jornais e revistas, ou tempo nos noticiários de rádio e televisão. Borelli define o jornalismo como um dispositivo de produção de sentidos onde se constrói e se faz uma oferta da atualidade. De acordo com a autora, “cada jornal produz o seu próprio acontecimento, engendrando uma noção particular de realidade” (Borelli, 2005:7). Nesse sentido, a importância conferida pelos diferentes veículos ao acontecimento que transformam em notícia pode ser determinada por um conjunto de aspectos: a quantidade de profissionais mobilizados na cobertura, o espaço utilizado, a existência de manchete ou chamadas de primeira página, a presença de fotografias e infográficos11. Por qualquer destes critérios, percebe-se pelas tabelas abaixo que a FSP considerou, nas três edições pesquisadas, o sorteio dos grupos do Mundial de 2010 muito mais importante do que o jornal LF. Espaço ocupado pelo noticiário do sorteio nas edições de 3 de dezembro

Jornal

Editoria / espaço

Le Figaro

1º Página: texto 12 x 10 cm com foco na visita a Robben Island Página de esporte: espaço de 20 x 22 cm parte inferior da página Texto em 4 colunas; foto em duas colunas da ‘mão’ de Thierry Henry que gerou punição para a equipe France e infográfico em duas colunas com os nomes do países divididos em 4 potes para o sorteio

Folha de S. Paulo

1º Página: chamada com fundo colorido na segunda coluna da esquerda, 4 x 4 cm Página D1 (1º do caderno de esporte): ¾ do espaço contendo dois textos, uma foto de 4 x 10 cm do presidente da Fifa, outra foto de 8 x 7cm do estádio Green Point e um infográfico de 8x 22cm com as regras do sorteio Página D2: 3 colunas centrais com informações da Copa, contendo dois textos e duas fotos, uma de crianças jogando bola na Cidade do Cabo, com 16 x 24cm e outra do secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke com 10 x 9 cm. Página D4: texto de 6 colunas x 10 cm, no final da página apresentando a visita dos dirigentes da Fifa a Robben Island.

Espaço ocupado pelo noticiário do sorteio nas edições de 4 de dezembro

10 Rodrigues (1990:98) esclarece: “No discurso jornalístico, o acontecimento constitui o referente de que se fala, o efeito de realidade da cadeia dos signos, uma espécie de ponto zero da significação”. 11 No moderno planejamento visual, de acordo com Pereira Junior (2006:108) “a informação é tratada por um mosaico (não mais o predomínio do monolítico-texto) de elementos que se revezam – ora um texto se revela protagonista da informação, ora a foto ou o infográfico têm mais relevância informativa, e deveriam ter essa importância revelada na página”.

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Nacionalismo e futebol: a cobertura do sorteio dos grupos da Copa do Mundo de 2010 nos jornais Le Figaro e Folha de S. Paulo

Jornal

Editoria/espaço

Le Figaro

Página 2: seção “recto&verso” página inteira - texto em 3 colunas largas; foto em duas colunas x 24 cm do treinador Domenech e foto de 1 coluna x 8 cm de Robert Pires. Página 15, editoria de esporte: 3 textos ocupando a metade superior da página, foto 12 x 10 cm mostrando praça decorada com bolas de futebol na Cidade do Cabo. Página de abertura do caderno de economia: texto em 4 colunas x 5 cm tratando da transmissão da Copa do Mundo pela televisão, com tecnologia 3D

Folha de S.Paulo

1º Página: chamada em fundo colorido, 3 x 4 cm no centro da página Página B12 (editoria de economia): artigo de 5 colunas x 13 cm usa o sorteio da Copa como gancho para falar de política e eleições Página D1: meia página contendo texto de 4 colunas x 21 cm, foto de 8 x 18 cm e infográfico de 2 colunas x 14 cm sobre a seleção brasileira sob comando de Dunga Página D2: 2 colunas centrais em toda página com dois textos e uma foto (8 x 16cm) mostrando soldado patrulhando estádio na Cidade do Cabo Coluna “Painel FC”, nota inicial com 8 x 9 cm Página 3D: ¾ do espaço, sendo a metade superior da página com uma tabela para o leitor anotar os resultados do sorteio e, abaixo, texto de 3 colunas x 20cm com foto de uma equipe de TV em Robben Island

Espaço ocupado pelo noticiário do sorteio nas edições de 5 de dezembro

Jornal

Editoria / espaço

Le Figaro

1º Página: chamada de 3 x 4 cm, localizada na parte inferior da primeira coluna à esquerda, com ilustração da taça da Copa do Mundo Página 14, editoria de esporte: ¾ do espaço com noticiário da Copa. No alto uma tabela com os jogos da primeira fase, seguida de infográfico dos demais jogos. Texto de 3 colunas x 13 cm. Três infográficos de 7 x 5cm com informações das seleções adversárias da França na primeira fase Página 15, editoria de esporte: dois textos, um de cinco colunas x 14 cm contendo comentários do técnico francês e dos outros competidores do grupo A. Foto de 13 x 8 cm do técnico Domenech e texto de 4 colunas x 5 cm, entrevista com Michel Platini.

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Folha de S.Paulo

1º Página: manchete do alto em 6 colunas com texto de 1 coluna x 12 cm, chamadas de 1 coluna x 2 linhas para textos de comentaristas esportivos, 2 chamadas de 2 colunas x 2 linhas, infográfico de 12 x 9cm com os países dos 8 grupos, foto de 10 x12cm do sorteio Página A3: seção Tendências e Debates, nota na coluna “Erramos” com 4 x 3 cm reconhecendo erro na tabela publicada na edição anterior Página D1: tarja de 4 colunas na parte superior em fundo preto com chamada para o caderno especial sobre o sorteio do Mundial Página D2: coluna “Painel FC”, nota inicial com 8 x 9 cm Página D4: artigo no alto da página, com 5 colunas x 15cm. Na parte inferior da página, publicidade da Wolkswagem, patrocinadora da seleção brasileira Página D8: publicidade da Stela Barros, operadora de turismo com ¼ do espaço: “Temporada de caça ao hexa está oficialmente aberta” Caderno especial com 10 páginas sobre o sorteio, contendo meia página de publicidade na capa e uma página interna completa. Todos os jogos da Copa em um infográfico na página 2; tabela em meia página na 3; mapamúndi das seleções, divididas por continentes, nas páginas 6 e 7; previsões de seis comentaristas a respeito das seleções de cada grupo que passarão paras as oitavas de final na página 10. Ao todo, foram publicados 17 textos e 4 fotos no encarte especial

4. Valores-notícia: critérios de seleção no jornalismo Para buscar compreender as escolhas feitas pelos jornais LF e FSP na cobertura do sorteio dos grupos do Mundial 2010, é pertinente acionar os valores-notícias identificados nas reflexões de Wolf (1995) e Traquina (2002) como um conjunto de regras utilizadas pelos profissionais jornalistas para rotinizar sua atividade: Os critérios devem ser fácil e rapidamente aplicáveis, de forma que as escolhas possam ser feitas sem demasiada reflexão. (...) Por outro lado, os critérios devem ser flexíveis para poderem adaptar-se à infinita variedade de acontecimentos disponíveis; além disso, devem ser relacionáveis e comparáveis, dado que a oportunidade de uma notícia depende sempre das outras notícias igualmente disponíveis. (...) O resultado é um vasto número de critérios e cada notícia pode ser avaliada com base em muitos deles, alguns opondo-se entre si (Gans, citado por Wolf, 1995:177- grifos no original).

Os valores-notícia não seguem um rigor de classificação abstrata, coerente e organizada, mas resultam de uma tipificação que tem objetivos práticos, de tornar possível a repetição de certos procedimentos. Para o autor, “os valores-notícia derivam de pressupostos implícitos ou de considerações relativas: a) às características substantivas das notícias; ao seu conteúdo; b) à disponibilidade do material e aos critérios relativos ao produto informativo; c) ao público; d) à concorrência” (Wolf, 1995: 179- grifos no original). O primeiro conjunto de valores-notícia, de caráter substantivo, está relacionado

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Nacionalismo e futebol: a cobertura do sorteio dos grupos da Copa do Mundo de 2010 nos jornais Le Figaro e Folha de S. Paulo

ao acontecimento que se transformará em notícia. E se divide basicamente em dois fatores: importância e interesse. A importância, por sua vez, tem quatro variáveis: o grau ou nível hierárquico dos indivíduos envolvidos no acontecimento; o impacto sobre a nação e sobre o interesse nacional; a quantidade de pessoas que o acontecimento envolve, de fato ou potencialmente; e a relevância do acontecimento quanto à evolução futura de uma determinada situação. A relevância do sorteio realizado em 4 de dezembro na Cidade do Cabo estava na definição dos adversários das seleções nacionais na primeira fase do Mundial e os valores-notícia quantidade12 e impacto certamente foram mais considerados no Brasil dado o significado do futebol para a nacionalidade local. O valor-notícia proximidade é outro definidor largamente reconhecido. No noticiário a respeito do sorteio dos grupos da Copa do Mundo, a FSP ocupou a maior parte do espaço com informações relativas à seleção brasileira e aos adversários do país na primeira fase da competição. Na edição do dia 3 há uma matéria, com chamada na primeira página e abertura do caderno esporte, com ênfase nas seleções da França e da Inglaterra - a primeira foi prejudicada e a segunda beneficiada pelo critério adotado pela Fifa para definir os países cabeças de chave, levando em consideração um ranking no mês de outubro de 2009, e não o da data de realização do sorteio. O nível hierárquico dos dois países na geografia do futebol certamente contribuiu para o destaque da informação. No dia 5 a manchete do alto da primeira página refere-se à estreia do Brasil contra a Coreia do Norte e na abertura do caderno especial sobre o sorteio informa no título que “Brasil só festeja logística fácil”. Dois textos do encarte tratam exatamente a respeito da Coreia do Norte e outro mostra a seleção argentina, vizinha e histórica rival do Brasil (rivalidade, disputa e conflito são valores-notícias citados por Traquina, 2002). Das demais equipes, apenas a África do Sul mereceu uma matéria em separado, contendo uma entrevista do técnico sul africano, o treinador brasileiro Carlos Alberto Parreira13. Treinadores de outras seleções – como da Itália, México, Inglaterra, Holanda e Alemanha, países de alto nível hierárquico - aparecem com pequenas declarações em um texto que trata do equilíbrio dos grupos: “Sorteio não cria ‘Grupo da Morte’”. As 32 seleções participantes da Copa constam da tabela que informa sobre os jogos da primeira fase e do infográfico que ocupa as páginas centrais do encarte com um mapa-múndi das seleções, divididas por continentes. O infográfico estampa cinco fotografias de jogadores: do Brasil, Argentina, Portugal, Alemanha e Costa do Marfim – novamente a hierarquia e a proximidade regendo as escolhas. 12 O valor-notícia quantidade também é empregado na seleção de informações que envolvam grandes somas (de dinheiro ou outros bens). Foi o que fez a FSP em dois momentos nas edições avaliadas: no dia 4 deu destaque para matéria na qual informa que os valores pagos às seleções participantes aumentaram 61% da Copa deste ano em relação a 2006. O texto cita ainda os patrocínios da equipe nacional (US$ 15 milhões por ano do banco Itaú e US$10 milhões da AmBev) e informa que o clube cujo atleta for convocado para a Copa recebe US$1.600 por dia. Na edição de 5 de dezembro o prêmio de US$ 30 milhões para o vencedor da competição volta a ser citado no texto de abertura do caderno especial e há outra matéria tratando da venda de um milhão de ingressos para os jogos, que sobraram das duas primeiras fases de comercialização. LF não abordou aspectos monetários nos três dias pesquisados e faz uma única alusão a números no texto da editoria de economia sobre a transmissão de jogos em 3D. 13 A declaração inicial de Parreira no texto igualmente reforça o valor-notícia proximidade: “A França está sempre no caminho dos brasileiros”, rememorando a derrota do Brasil em 2006, quando a seleção nacional era comandada por ele e perdeu para a França nas quartas de final da Copa do Mundo.

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O jornal LF optou de forma ainda mais clara pelo valor-notícia proximidade, pois apenas mencionou os demais países participantes da competição ao listar, na edição do dia 3, a divisão dos potes que seriam usados durante o sorteio e, na edição do dia 4, as nações consideradas cabeças de chave por terem maior pontuação no ranking da Fifa. No dia 5, LF publicou pequenos infográficos, de 7 x 5 centímetros, dos três competidores franceses na primeira fase (África do Sul, México e Uruguai) e breves declarações dos técnicos destes países em matéria na qual o entrevistado principal foi o treinador francês Domenech. Entre os valores-notícia ligados ao produto, Wolf (1995) cita a disponibilidade, numa referência ao acesso e às possibilidades técnicas de cobertura do fato. Os dois jornais objeto da presente pesquisa optaram por garantir acessos diferenciados ao material que seria disponibilizado por agência de notícias e enviaram jornalistas para acompanhar o sorteio na África do Sul. O francês LF mandou um profissional e a FSP contou com dois repórteres para cobrir o evento. Cyrille Haddouche, do LF, assina oito textos nos três dias pesquisados, enquanto os enviados especiais da FSP, Paulo Cobos e Rodrigo Bueno, têm creditados em conjunto 18 matérias, e Bueno assina sozinho um texto. Os dois jornais mencionam a condição de “enviados especiais” junto com os créditos dos textos, deixando claro a importância conferida ao acontecimento. Ambos, no entanto, não enviaram repórteres fotográficos, pois todas as imagens são creditas a agências internacionais, com exceção de uma foto do treinador francês, possivelmente de arquivo, publicada junto com a entrevista de página inteira na edição de 4 de dezembro do LF. O tratamento dado aos treinadores das respectivas seleções é outra diferença significativa: LF usa, nos três dias, duas fotos de Domenech (além da citada acima há outra, menor, na edição do dia 5) e declarações dele em duas edições. O técnico brasileiro, Dunga, não aparece em imagens na FSP e, na edição do dia 5, consta uma entrevista de três questões com o treinador, feita logo depois do sorteio14. Nelson Traquina (2002) aponta a existência de valores-notícia de construção, nos quais estão descritos os elementos dentro do acontecimento dignos de serem incluídos na elaboração da informação. Um deles é a simplificação, que estabelece que quanto mais o acontecimento é livre de ambiguidade e complexidade, mais chance tem de se transformar em notícia e ser compreendida pelo público. O outro é a amplificação, por intermédio do qual o acontecimento, ou suas consequências, ganham amplitude. O sorteio dos grupos para disputa da Copa do Mundo certamente é um acontecimento simples – apesar da complexa produção enquanto espetáculo midiático -, facilmente entendido pelos leitores dos dois jornais e amplificado em suas consequências porque, dependendo dos adversários que integram os grupos iniciais, as seleções têm maiores ou menores chances de evoluírem na competição. A dramatização e a personificação são outros dois valores-notícia de construção definidos, respectivamente, como o reforço do lado emocional, do drama; e a valorização das pessoas envolvidas nos acontecimentos para dar conta de uma 14 É possível identificar uma certa má vontade da FSP em relação a Dunga também na nota “Técnico brasileiro faz hoje seu debute em mundiais”, na qual o jornal cita o fato dele ser o mais novo entre os treinadores e não ter sido mencionado por nenhum colega como o melhor técnico do certame em pesquisa feita pela Fifa.

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Nacionalismo e futebol: a cobertura do sorteio dos grupos da Copa do Mundo de 2010 nos jornais Le Figaro e Folha de S. Paulo

estratégia de “agarrar” o leitor, uma vez que estudos acerca do discurso jornalístico comprovam o interesse dos leitores por “histórias humanas”. Esta estratégia foi usada pelos dois jornais ao cederem espaços significativos para a visita dos dirigentes da Fifa a Robben Island, com citações da figura emblemática de Nelson Madela, preso no local durante 19 anos. A FSP ainda usou outro personagem, Anthony Suze, expreso político ao lado de Mandela e do atual presidente sul africano, Jacob Zuma, que aproveitou a visita dos dirigentes à ilha para pedir ingressos para ver o Mundial – e foi atendido15. Em sua análise, Traquina sublinha também que, embora os valores-notícia façam parte da cultura dos jornalistas, a visão editorial das empresas pode ter uma representatividade no processo de seleção. “A direcção da organização jornalística (ou os seus donos) podem influenciar o peso dos valores-notícia com a sua política editorial” (Traquina, 2002:202). Está possivelmente na política editorial da FSP, adversária ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a justificativa para uma nota publicada na página 3 do caderno especial sobre o sorteio com o título “Lula é alvo de irritação de português”. O texto, de 17 linhas em uma coluna, não sustenta o título ao informar que o presidente da federação portuguesa de futebol, Gilberto Madail, “mostrou desapontamento” e não quis comentar a declaração de apoio de Lula à candidatura da Inglaterra para sediar a Copa de 2018 ou 2022, disputada por Portugal e Espanha em candidatura conjunta.

5. Considerações finais A capacidade de “construir futuros” faz parte das estratégias jornalísticas empregadas para ampliar audiências e reforçar o seu papel na construção da realidade social. Assis (2202), citando Jan Ekecrantz, aponta ser esta uma contradição dos jornais contemporâneos uma vez que a notícia, por definição, trata de eventos passados. O principal texto da página D2 da edição de 4 de dezembro da FSP é emblemático: “Fifa faz hexa valer 300% a mais do que o penta”, diz o título da matéria numa clara construção do futuro do Brasil campeão em 2010 e referindo-se ao valor recebido como prêmio pela vitória em 2002. Apenas a gravata16 do texto coloca o verbo no condicional. Esta projeção ufanista e totalmente destituída de base real exemplifica de maneira cristalina o que o presente trabalho aponta: a valorização exponencialmente maior que o jornal Folha de S. Paulo concedeu ao evento do sorteio dos grupos da Copa do Mundo em comparação ao francês Le Fígaro, denotando a predominância do futebol na narrativa da nacionalidade brasileira - a um só tempo construída pela mídia e utilizada por ela para atender às demandas no público local. Esta acepção vai de encontro ao que diz Schudson: “...podemos entender a mídia de notícias melhor se nós reconhecermos que o que ela produz – notícias – é uma forma de cultura. Isso é defender que notícia está relacionada com, mas não é mesma coisa do que, ideologia; está relacionada com, mas não a mesma coisa do que, informação; 15 Uma outra referência a personagem conhecido foi feita pela FSP no texto de abertura do caderno especial da edição do dia 5 ao citar a ausência de Pelé na solenidade, sem explicar o porquê. 16 Gravata é em texto auxiliar, colocado abaixo do título que apresenta um resumo das informações da matéria: “Em caso de título do time de Dunga na África do Sul, a CBF receberia prêmio de US$ 30 milhões, o dobro do que paga seu maior patrocínio anual”, diz a gravata desta matéria.

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e é potencialmente, mas apenas indiretamente, uma força social” (Schudson, 1995:3). Nesse contexto podemos compreender melhor os sentidos implícitos à epigrafe nesse trabalho, na qual Nelson Rodrigues compara torcedores a soldadinhos de chumbo. Interpretação perfeitamente condizente com o projeto de tornar o futebol um denominador fundamental da “nação” brasileira, fator homogeneizante por excelência, provavelmente não tem qualquer sustentação ao ser comparada com a constelação de significados mobilizados pelo futebol na França.

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Nacionalismo e futebol: a cobertura do sorteio dos grupos da Copa do Mundo de 2010 nos jornais Le Figaro e Folha de S. Paulo

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Telejornalismo e Fait Divers: uma nova maneira de narrar a notícia? Adriana Pierre Coca1

RESUMO O presente artigo pretende investigar a parceria entre o discurso ficcional e o discurso jornalístico na televisão. Em discussão: os fait divers (termo francês introduzido por Roland Barthes no livro Essais Critiques de 1964) que remota da imprensa popular francesa do século XIX e é associado às temáticas sensacionalistas, como escândalos, bizarrices e casos policiais. Pretendemos aqui relacionar como se dá a fusão entre os fait divers e os fatos narrados nos programas jornalísticos, em especial os telejornais, já que atualmente constatase que os fait divers ganham a cada dia mais espaço na televisão brasileira. Palavras-chave: Folhetim; Notícia; Fait Divers; Entretenimento; Telejornal.

Abstract This article investigates the partnership between fictional discourse and media discourse on television. Under discussion: the fait divers (the French term introduced by Roland Barthes in his book Essais Critiques, 1964) that the remote French popular press of the nineteenth century and is associated with the sensational topics such as scandals, bizarre and police cases. We intend here to relate how is the merger between fait divers and the facts narrated in the news programs, especially news programs, as currently it appears that the fait divers earn increasingly more space on Brazilian television. Keywords: Feuilleton; News; Fait Divers; Entertainment, TV News.

1 Especialista em Técnicas e Teorias da Comunicação pela Fundação Cásper Líbero, MBA em Gerenciamento de Projetos, segundo as Práticas do PMI pela Faculdade de Informática Paulista. Jornalista. Radialista graduada pela UNESP. Trabalhou nas redações da TV Cultura e SBT, onde também dirigiu e produziu programas sob o comando de Silvio Santos. Leciona as disciplinas de Telejornalismo do Curso de Jornalismo e Produção Publicitária em TV I e TV II do Curso de Publicidade e Propaganda.


Telejornalismo e Fait Divers: uma nova maneira de narrar a notícia?

Introdução Imprensa popular francesa, século XIX, época em que as notícias extraordinárias estampadas nas páginas dos jornais aparecem entre os folhetins. O público feminino era o principal leitor/consumidor desse tipo de “literatura” que já naquele tempo era garantia de sucesso. A notícia romanceada conhecida como fait divers – é um gênero informativo, irmão próximo da chamada Nouvelle ou Chronique, a crônica de jornais. É comum ouvirmos falar da crônica dos fait divers ou apenas fait divers. Alguns autores usam a tradução – fatos, assuntos ou casos diversos, mas não há tradução satisfatória em português e para evitar reducionismos ou diferenças de significação convém usar sempre a grafia original em francês. Nos principais manuais de redação, aqui no Brasil, os fait divers são lembrados apenas no Manual de Redação do Jornal Folha de S.Paulo. Nele o termo aparece como uma “expressão usada para designar notas e notícias com alto potencial de atração para o leitor. Exemplos: crime envolvendo família de classe média ou alta; casamento de personalidade; morte de pessoa famosa.” (NOVO, 1992, p.142.) Roland Barthes o definiu como:

(...) uma informação total, ou mais exatamente imanente; ela contém em si o seu saber; não é preciso conhecer nada para consumir um fait divers, ele não remete formalmente a nada além dele próprio, evidentemente o seu conteúdo não é estranho ao mundo: desastres, raptos, agressões, acidentes, roubos, esquisitices, tudo isso remete ao homem, à sua história, à sua alienação, a seus fantasmas, a seus sonhos, a seus medos. (BARTHES, 2009, p.216)

Esse tipo de notícia que traz na essência a busca pelo extraordinário, pelo fantasioso e pelo que choca é cada dia mais presente na narrativa da TV, na ficção, no jornalismo e também na publicidade, mas o que nos interessa aqui é como o discurso ficcional e como o discurso jornalístico se misturam no processo da construção da notícia. Visto que a fronteira entre ficção e realidade nunca foi tão próxima, embora há muito tempo o sincretismo entre elas já faça parte da linguagem televisual, em setembro de 1969 o então diretor global Walter Clark estreiou o Jornal Nacional entre duas telenovelas, recurso que estimulou a briga pela audiência e que funciona até hoje, exatos 41 anos depois. Com esse breve artigo queremos levantar a reflexão sobre como se alicerça nos dias de hoje essa fusão tão antiga. Será que o nosso telejornalismo é mesmo ancorado em fait divers? Até que ponto o discurso ficcional está presente na narração dos fatos? Para isso vamos dividir o texto em três partes: as características dos fait divers, a fusão narrativa entre o discurso ficcional e a o discurso jornalístico e os reflexos dessa interação nos programas jornalísticos de televisão, sobretudo nos telejornais.

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1. A Estrutura do Fait Divers O fait divers apresenta características bem definidas, a principal delas é a imanência. Segundo o Dicionário da Comunicação, organizado por Ciro Marcondes Filho, imanência é “aquilo que está contido num ser, que lhe pertence, independentemente da interferência de fatores externos”. (MARCONDES FILHO, 2009, P.178) Associando esse conceito a notícia, imanente quer dizer que um fato narrado como fait divers dispensa o contexto da informação para ser entendido e isso o diferencia da construção de qualquer outra notícia. Vejamos o que diz a reportagem de abertura do “Jornal Hoje” da TV Globo em 30/08/2010. A apresentadora Sandra Annenberg começa a edição com o seguinte texto: Sandra Annenberg: “O Jornal Hoje começa mostrando imagens impressionantes feitas por caçadores de redemoinhos. Eles são cinegrafistas e fotógrafos que se aventuram registrando fenômenos formados pelo fogo e pela poeira nesses dias quentes. No interior de São Paulo não chove há cem dias.” A reportagem entrou no ar com imagens de canudos de fogo atingindo até 10 metros de altura também trazia sonoras/entrevistas com depoimentos empolgados sobre o fenômeno, nada exigia do telespectador para ser compreendida. (JORNAL HOJE, TV GLOBO, 30/08/2010) De outra parte a mesma edição do telejornal exibiu uma reportagem sobre a indústria têxtil que no segundo off (texto narrado coberto por imagens) já pressupõe um conhecimento mínimo do telespectador para que a informação seja completa: OFF: “O setor têxtil emprega engenheiros, químicos, técnicos em máquinas, operadores, modistas, designers, costureiras, são 30 mil empresas no país.” (JORNAL HOJE, TV GLOBO, 30/08/2010) Podemos dizer, então, que os temas dos fait divers são tratados sem qualquer preocupação com as relações que os cercam. Logo, pautas sobre ecomonia, política, artes ou história não permitem o tratamento da notícia como fait divers, que tem o surpreendente como traço. Um dos fatores que garantem a invasão desse recurso sensacionalista na telinha é o imediatismo característico das mídias de hoje que nos conduzem a querer as informações prontas e que, infelizmente, muitas vezes não nos permite a reflexão sobre aquilo que estamos consumindo. Guilherme Jorge Rezende diz que: A TV procura atender às necessidades de entretenimento do público. Essa satisfação se processa por meio da elaboração de mensagens homogeneizadas destinadas a um consumidor médio ideal, em função de ingredientes que padronizam produtos da indústria cultural: ação, aventura, amor, felicidade, final-feliz, erotismo, violência, o pitoresco, as relações maniqueístas, o culto às personalidades (as “vedetes”, os “olimpianos”), a trivialização da vida privada, o jogo-lúdico e o jogo-competição, a exaltação de valores juvenis e outros

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Telejornalismo e Fait Divers: uma nova maneira de narrar a notícia?

arquétipos que constituem o imaginário coletivo. (REZENDE, 2005, p.3)

O fait divers fala diretamente a esse público porque como esclarece Barthes (2009) traz a informação na sua totalidade, não há necessidade de conhecimento prévio sobre nada para entender o que nos conta um fait divers e por tratar de temas do imaginário coletivo dá ao telespectador/receptor uma sensação de satisfação. A temática repetitiva é outra característica marcante. Embora destacados como inéditos, os assuntos são sempre os mesmos, giram em torno de acidentes, catástrofes, mortes, personalidades e do inusitado. Michel Foucault acrescenta que “de outra parte, é preciso que todas estas listas de acontecimentos - apesar da sua frequência e sua monotonia – apareçam como singulares, curiosas, extraordinárias, únicas ou quase, na memória dos homens.” * (FOUCAULT, 1973, P.269) Podemos relacionar a repetição temática apontada por Barthes com a reflexão sobre a serialização feita por Umberto Eco no texto “A Inovação do Seriado” publicado em “Sobre os Espelhos e outros Ensaios” (1989) quando o autor explica que: produzir em série é criar algo com o mesmo padrão, ou seja, sempre igual, da mesma forma e afirma que a serialidade dos meios de comunicação de massa pode ser mais nociva do que a industrial, porque não é um objeto que está sendo produzido em grande escala e sim conteúdos e expressões, que aparentemente são distintos. O perigo está no tratamento da notícia, tratar a informação de forma seriada é “fingir” que algo inovador está sendo contado e continuar trabalhando “o mesmo conteúdo básico” como alerta Eco. (ECO, 1989, p.121) A proposta contida nos fait divers é essa, os temas se repetem e são conduzidos como se fossem únicos, serializando a notícia. Isso torna o fait divers sempre atual e essa atualidade é o que buscamos quando selecionamos os fatos/as pautas que vão ocupar nossas mídias. * Tradução livre da autora.

Vamos a alguns exemplos: • Polvo da Copa, quem não ouviu, ou melhor, viu o polvo Paul morador do aquário da cidade alemã de Oberhausen dar seu palpite antecipado sobre qual time venceria as partidas do mundial? A Copa do Mundo de Futebol da África do Sul teve um profeta eleito pela mídia e torcedores. Inusitado, não? (JORNAL NACIONAL, TV GLOBO, 07/07/2010) • Duas catástrofes naturais que mereceram o tratamento sensacionalista da mídia televisiva no início desse ano de 2010 também se enquadram no gênero fait divers de reportar. São eles: o deslizamento de 01 de janeiro em Ilha Grande, Angra dos Reis, litoral do Rio de Janeiro e o terremoto no Haiti, quinze dias depois. Seguem alguns trechos da reportagem que foi ao ar no mesmo dia do acidente em Angra, pelo Jornal Nacional da TV Globo. • OFF: “A imagem impressiona. Terra, pedras e árvores desceram em cima de pelo menos três casas e parte de uma pousada. A Praia do Bananal ficou 92 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 103-112| 2° Semestre 2009


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debaixo de galhos e lama. E o mar, tingido de marrom. (...) Durante o dia, a água da chuva ainda descia da encosta como cachoeira – um cenário de destruição. O trabalho de resgate do Corpo de Bombeiros é muito difícil. Eles tentam encontrar, no meio de toneladas de terra, vítimas da tragédia.” • Na edição de 16/01/2010 do mesmo telejornal, a pauta do dia era a destruição no Haiti e a cabeça/lead (texto lido pelo apresentador para chamar a reportagem) começou assim: • Carla Vilhena: “As Nações Unidas consideram o terremoto no Haiti o pior desastre em 60 anos de história da instituição.” (JORNAL NACIONAL, TV GLOBO, 16/01/2010) • Caso Isabela Nardoni - espetacular também foi a imagem de comemoração com fogos de artifício repetida muitas vezes em nossos telejornais em 27/03/2010, quando saiu o resultado do julgamento de Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá, condenados há 31 e 26 anos de prisão respectivamente, pela morte da menina Isabela Nardoni. Nesse dia, o telejornal de maior audiência no país abriu a reportagem sobre o assunto dessa forma: • Chico Pinheiro: “Foi feita justiça à menina Isabela Nardoni quase no dia do segundo aniversário do assassinato dela - esganada e jogada do sexto andar pelo pai e a madrasta.” (JORNAL NACIONAL, TV GLOBO, 27/03/2010) Os exemplos são do Jornal Nacional, por se tratar do principal telejornal do país, com a maior audiência registrada, em comparação com os demais telejornais de emissoras abertas. O que nos propomos nessa discussão não é dar conta de analisar a fundo como essas notícias foram ao ar, apenas exemplificar como a emoção é o fio condutor desse tipo de narrativa como afirma Barthes. O autor sinaliza ainda que os fait divers são ancorados nas relações de causalidade e coincidência e apresenta para o que chama de problemas da causalidade dois viés possíveis: • causa perturbada, mais um caso recente pode servir de exemplo, o caso Bruno, o ex-jogador do Flamengo acusado de mandar sequestrar e matar a amante Elisa Samudio, em junho de 2010. O motivo (causa) que teria levado ao crime pouco importa, o que surpreende é o efeito (resultado), o fato da moça ter sido provavelmente esquartejada e ter os pedaços jogados aos cães. A violação do que o entendemos como “normal” no senso comum é o que choca; • causa esperada, nesse aspecto a excepcionalidade do fato se inverte, não é a causa/efeito que chama a atenção, o foco recai sobre os personagens envolvidos, em geral, idosos, crianças, mães. Não precisamos de um esforço muito grande de memória para relembrar a notícia de maio desse ano sobre a senhora de 77 anos que vestida de freira tentou sacar um título de dívida pública de quase dois milhões de reais em um banco de Niterói, região metropolitana do Rio de

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Telejornalismo e Fait Divers: uma nova maneira de narrar a notícia?

Janeiro. Em 25/08/2010, durante o período em que o Jornal Nacional estava sendo observado para a redação desse artigo (De 23/08/2010 a 30/08/2010), destaque para a notícia do bebê de 20 dias que, sobreviveu a um assalto seguido de acidente de carro, em São Paulo. • As relações de coincidência também se alicerçam na emoção e se apresentam dentro da estrutura que forma os fait divers de duas maneiras: • repetição - associada aos casos sem uma explicação razoável, como o personagem da reportagem da revista eletrônica, o “Fantástico” da TV Globo exibida em 02/05/2010, um morador de Brasília que ganhou duas vezes na mesma semana na loteria, mas não foi só isso, o homem não costumava jogar e o bilhete premiado teria sido encontrado no para-brisas de seu carro. Como isso foi possível, o ganhador não teve o nome revelado e atribuiu tamanha sorte a mão divina, não há outra explicação, segundo ele; • antítese - quando a situação está vinculada a noção de cúmulo - conceito vindo da tragédia grega e associado as coincidências inexplicáveis, um exemplo é a queda do voo 1907 da Gol em setembro de 2006, algo aparentemente inacreditável aconteceu, dois aviões se chocaram no ar. A sequencia de falhas cometidas serviram de amarração para a narrativa do docudrama intitulado “A Tragédia do voo 1907” da Discovery Channel em uma série especial sobre acidentes aéreos. Logo no início do programa a narração e trechos de entrevistas editados introduzem o assunto: • Off: “Foi uma sucessão de erros. (...) Coincidências inacreditáveis. (...) O Discovery Channel reúne todas as peças deste quebra cabeça assustador. (...) Descubra a história real por trás da tragédia do voo 1907.” (DISCOVERY CHANNEL, 10/06/2007). Além do tema: acidente, as coincidências dão o tom da narrativa que promete logo no início do programa dar conta da verdadeira história por trás da tragédia, ou seja, toda a informação que precisamos ter sobre o assunto. • E por fim, as surpresas dos números, outro elemento dos fait divers, nesse caso os nossos telejornais são enfáticos, vemos todos os dias notícias que surpreendem pelos números. O Jornal Nacional de 27/08/2010 nos traz mais um exemplo, • Fátima Bernardes: “Foram divulgadas, ontem à noite, as primeiras imagens dos trabalhadores presos há 22 dias numa mina, no Chile. Os mineiros descreveram a rotina 700 m debaixo da terra: dividem o tempo entre orações e jogos de dominó.” (JORNAL NACIONAL, TV GLOBO, 27/03/2010, grifo nosso) A essa notícia vale acrescentar que a operação de retirada dos trabalhadores da mina deve durar quatro meses. Na edição anterior do mesmo telejornal, destaque para os números tendo uma personalidade como destaque, Fátima Bernardes: “O piloto brasileiro Rubens Barrichello vai completar 300 corridas na F1 neste domingo”. (JORNAL NACIONAL, TV GLOBO, 26/03/2010,

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grifo nosso). Portanto, a natureza intrínseca dos fait divers fisga o telespectador pela emoção, com pautas associadas ao espetáculo e ao divertimento, estamos no terreno do entretenimento, que nos carrega ao mundo da fantasia, do sonho como sinalizado por Barthes. O problema é que essa narrativa está diretamente associada ao jornalismo que tem o compromisso com a verdade, pelo menos, a busca dela. A esse respeito Sodré nos esclarece que o interesse maior dessa reflexão consiste na associação que se pode fazer entre o fait divers e o jornalismo como prática social da narrativa. Assim é que Barthes sublinha a predileção da imprensa pelo cúmulo, entendido como algo que ultrapassa as medidas habituais, como um inaudito: “É precisamente quando são chamados à reconciliação que o marido mata sua mulher”. Ou seja, a informação é estruturada – assim como a narrativa folhetisnesca ou melodramática.” (SODRÉ, 2009, p.229)

2. A Fusão Narrativa A informação nos chega pela televisão em diferentes formatos: revistas eletrônicas, reality shows, documentários e telejornais, entre outros programas, o que nos interessa nesse artigo é pensar a narração do fato com vertentes ficcionais nos telejornais, que é o principal meio de divulgação de informações na TV e se destaca porque conta com a vantagem da transmissão ao vivo, poder mostrar os fatos na hora em que acontecem. Fazendo um breve histórico de alguns dos nossos telejornais sensacionalistas é possível perceber a presença do fait divers e com ele a garantia de audiência em alta, talvez assim possamos entender o avanço sutil dessa narrativa nos telejornais clássicos da TV brasileira. Vinte de Maio de 1991 entra no ar pelo SBT – Sistema Brasileiro de Televisão o “Aqui Agora” telejornal com câmera nervosa, repórteres-personagens que cobriam fatos policiais explorando o plano-sequencia, o sucesso da fórmula é estrondoso e a emissora de Silvio Santos atinge em pouco mais de um ano vinte pontos de audiência no Ibope, na grande São Paulo. Na rasteira do “Aqui Agora” surgem o “190” pela CNT, o “Cidade Alerta” na Record, “Repórter Cidadão” na Rede TV e o “Brasil Urgente” na TV Bandeirantes. Em uma tentativa frustrada, uma segunda versão do “Aqui Agora” voltou para a grade do SBT, em fevereiro desse ano, mas dessa vez mais brando e por pouco tempo, durou menos de dois meses no ar. Segundo o que foi divulgado pela imprensa, porque não atingiu a audiência desejada de 8 pontos no Ibope. Só que quem achou que o dono do baú desistiu de ter um telejornal que exemplifica os fait divers em sua essência se surpreendeu mais uma vez, e pode conferir todos os dias edições de 20 minutos do B.O programa que segue o mesmo estilo sensacionalista e rende bons pontos na audiência da emissora. Essa trajetória dos elementos dos fait divers no telejornalismo sensacionalista na TV Brasileira sempre esteve associada à audiência, consequentemente ao lucro das emissoras. Portanto, não é de se estranhar o avanço dessas características nos COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 103-112| 2° Semestre 2009 | 95


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telejornais tradicionais. Para o jornalista e crítico de TV Eugênio Bucci esse sincretismo impossibilita a busca pela verdade factual que deve ser o objetivo principal do fazer jornalístico, Bucci argumenta: “Onde quer que a notícia esteja a serviço do espetáculo, a busca pela verdade é apenas um cadáver. Pode até existir, mas, sempre, como um cadáver a serviço do ‘dom de iludir’” (BUCCI, 2004, p.129) Bucci completa seu raciocínio de forma assustadora quando diz que É por isso que, hoje, o telejornalismo no Brasil dificilmente pode ser compreendido como resultado de um esforço autêntico pela busca da verdade. Há exceções, por certo. Há emissoras de TV pública que desafinam o coro comercial das grandes redes. Há momentos ou coberturas de excelência jornalística mesmo nas redes comerciais – mas não constituem a regra. O negócio do telejornalismo não é jornalismo. Seu negócio é outro. Seu negócio não é sequer a veiculação de conteúdos. As grandes redes de televisão aberta têm como negócio a atração dos olhares da massa para depois vendê-los aos anunciantes.” (BUCCI, 2004, p.130)

Esse olhar apocalíptico reforça a ideia de que o telejornalismo é ancorado somente em fait divers, mas cabe aqui outra reflexão que merece atenção. As considerações de Arlindo Machado que entende o telejornal como um gênero de caráter polifônico, quer dizer que tem em seu discurso várias vozes (editores, repórteres, cinegrafistas) envolvidas na construção da notícia. E aponta certa ingenuidade de analistas e críticos que dizem que os telejornais não são neutros. Para Machado, se a televisão coloca no ar duas opiniões contra e um a favor, não significa que o telespectador vai necessariamente endossar a majoritária. (2000) E afirma que A televisão não se resume a uma única emissão: ela consiste num fluxo ininterrupto de imagens e sons, que progride diariamente diante de nossos olhos e ouvidos, perfazendo, portanto, um processo, ao longo do qual o espectador pode formar uma opinião. A diferença em relação aos outros meios, é que a reflexão do telespectador, pode se dar ao vivo, ou seja, num processo que ainda está em andamento, pode tomar a forma de ação política e, em alguns (mas não poucos) casos, resultar em mobilização.” (MACHADO, 2000, p.129)

Será?

Conclusão São evidentes as características folhetinescas dos fait divers no telejornalismo. Os elementos que compõem essa narrativa são facilmente identificados e remetem a emoções que criam com o telespectador uma ilusão de proximidade. A fusão do

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discurso ficcional e do discurso jornalístico também é preocupação entre os teóricos de televisão que em sua maioria tem uma visão pessimista em relação ao meio. Sem dúvida toda construção da notícia, na TV ou em qualquer outro veículo deve ser realizada levando em conta o compromisso que temos com o público, com a busca pelos fatos tais quais eles se apresentam. Como jornalistas, nossa missão é contribuir para o enriquecimento cultural, social, político e econômico da sociedade, parafraseando aqui a missão do curso de jornalismo da UP. Não queremos, portanto, com esse artigo endossar as afirmações que na televisão não é possível fazer jornalismo, e sim, levantar a reflexão para que nossos alunos possam estar atentos as fronteiras do real e do ficcional, pois acreditamos que podemos usar recursos da ficção para narrar notícias, sem com isso, tornar nossas coberturas fictícias ou espetaculares como muitos preferem chamar a linguagem da TV.

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REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Ensaios Críticos. Lisboa: Edições 70, 2009. BUCCI, Eugênio, KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, 2004. ECO, Umberto. Sobre os Espelhos e outros Ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. FOUCAULT, M. Ces meutres qu’on raconte. Moi, Pierre Rivière ayant égorgé ma mére, ma souer et mon frére. Paris: Julliard, 1973. LAGE, NILSON. Linguagem Jornalística. São Paulo: Ática, 2006. MACHADO, Arlindo. A Televisão levada a Sério. São Paulo: Senac, 2000. MARCONDES FILHO, Ciro. A Saga dos Cães Perdidos. São Paulo: Hackers Editores, 2000. ________________________ (org.). Dicionário da Comunicação. São Paulo: Paulus, 2009. NOVO Manual da Redação Folha de S.Paulo. São Paulo: Folha de S.Paulo, 1992. REZENDE, Guilherme Jorge de. O Discurso Jornalístico e o Discurso Ficcional na Televisão Brasileira. Trabalho apresentado na Mesa Temática “Análise do Discurso e Estudos Midiáticos: fronteiras e diálogos”, no XXVIII Congresso da INTERCOM, realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ, em setembro de 2005. SODRÉ, Muniz. A Narração do Fato: Notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

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Rádio Teia Uma prática que começa na universidade Luiz Witiuk1. Resumo O presente texto tem como objetivo mostrar o caráter educativo da Rádio Teia do Curso de Jornalismo da Universidade Positivo, no que diz respeito à apreensão e aplicação das atividades relacionadas à atividade da disciplina de Radiojornalismo. Justifica-se como um laboratório para experiências de linguagem radiofônica e que também permite aos alunos enriquecerem seu conhecimento com a veiculação de programas de cunho científico, esportivo, político, de lazer, cultural, educacional e social. Em destaque os programas radiojornalísticos Jornal da Teia e Jornal da Teia Edição Especial, duas experiências especialmente significativas sob o ponto de vista da proposta pedagógica do curso de Jornalismo. Oportunidade para os alunos colocarem em prática, o conhecimento teórico adquirido, enriquecendo o aprendizado.

Palavras-chave: rádio on-line, radiojornalismo, Rádio Teia

Abstract This paper aims at showing the educational aspects of “Radio Teia” which is one of the journalistic products produced by the BA in Journalism from Positivo University. It was designed to serve students as a laboratory for experiments in radio broadcasting and also allows students to enrich their general knowledge with the broadcast of programs about nature, sports, politics, entertainment, culture, education and social issues. There are two special radio programs - “Jornal da Teia” and “Jornal da Teia Edição Especial” - which meet the course pedagogical project. It is a valuable opportunity for students to put into practice all the theoretical concepts learned, enriching the learning process. Key-words: On-line radio, Rádio Teia, journalism, radio

1 Luiz Witiuk é Mestre em Comunicação e Linguagens e professor de Radiojornalismo I, II, III e de Jornalismo Especializado I e II na Universidade Positivo. É membro do Conselho do Curso de Jornalismo da mesma universidade. Como jornalista, atuou na Rádio Clube Paranaense por 12 anos, onde também foi diretor de jornalismo.


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1. O meio rádio As ondas eletromagnéticas descobertas no final século XIX, primeiro por James Clerk Maxwell por meio do cálculo matemático e depois demonstradas experimentalmente pelo alemão Rudolf Hertz, com seu posterior desenvolvimento revolucionaram a comunicação já no início do século XX. O rádio, como novo meio de comunicação, encurtou as distâncias no mundo e aproximou as pessoas nas suas relações. Esse primeiro meio de comunicação eletrônico da história causou um impacto tão grande que o ensaísta alemão, Bertolt Brecht, sonhou com uma nova forma de interatividade: “O rádio seria o mais fabuloso meio de comunicação imaginável na vida pública, constituiria um fantástico sistema de canalização, se fosse capaz, não apenas de emitir, mas também de receber. O ouvinte não deveria apenas ouvir, mas também falar: não isolar-se, mas ficar em comunicação com o rádio (...)” (BRECHT, 1981:56-57). No Brasil, mesmo aos 87 anos da sua primeira transmissão2, o rádio detém uma audiência de cerca de 17 horas semanais, uma das mais expressiva audiências no mundo e que mostra ser um veículo de comunicação que dispõe de um conteúdo que chama a atenção. João Brito de Almeida e Luciano Klöckner ao enfatizarem a força de comunicação que o rádio ainda tem, recorrem a dados de pesquisa do IBGE para mostrar o grande número de aparelhos receptores. “Segundo o IBGE (PNAD, 2002) 87% dos 44,7 milhões de domicílios brasileiros tinham aparelhos de rádio. Percentual semelhante de receptores deve se repetir com 19 milhões de automóveis, caminhões, ônibus (ANFAVEA, 2002) que circulam no país” (ALMEIDA; KLÖCKNER 2007: 6). Essa significativa presença que o rádio vem mantendo nos dias atuais, demonstrando, inclusive, uma incrível capacidade de absorção dos avanços tecnológicos, praticamente foi negada em plena época de ouro pelos profetas midiáticos quando surgiu a televisão, ao propalarem que num curto prazo de tempo o rádio estaria extinto. Que o meio rádio sofreu um grande impacto, ninguém nega. Tudo o que ele tinha de melhor na área de produção, de técnica, de profissionais locutores, apresentadores, de programação de entretenimento, verba publicitária, migrou para a novidade chamada televisão. O rádio ficou apenas com as coberturas esportivas ao vivo mantendo seus profissionais. O restante da programação, num primeiro momento, ficou restrito aos estúdios com programas musicais. Porém, aos poucos, a emissão informativa e de prestação de serviço sustentou e manteve o rádio em pé. Aliás, mesmo com tantas novas tecnologias e o predomínio de uma sociedade seduzida pela imagem, e ainda mesmo diante das constantes mortes anunciadas, o rádio cobre 96% do território brasileiro com suas 3.647 emissoras espalhadas pelas diversas regiões do Brasil e com cerca de 90 milhões de ouvintes. Milton Jung, ao comparar esses dados com a televisão, constata que a TV está em desvantagem, pois “a vedete do meio, está presente em pouco mais de 87% do país, com 90% da 2 A primeira transmissão oficial pelo sistema de radiodifusão ocorreu no Rio de Janeiro, no dia 7 de setembro de 1922, durante as comemorações do Centenário da Independência do Brasil.

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população sintonizada em alguma emissora, ao menos uma vez por semana. Esses percentuais (...) atingem menos pessoas que o rádio. Não mais do que sessenta milhões de telespectadores” (JUNG, 2004: 13-14). Um dos estudiosos do rádio na atualidade, Eduardo Meditsch , ao explicar por que o rádio não terminou com a sua era, afirma que Tanto o rádio como a TV pertencem à era da informação, e o rádio foi a manifestação mais precoce da era eletrônica na comunicação de massa. [...] A lógica do compromisso com hora marcada tanto para começar quanto para terminar, importada do mundo dos espetáculos, inventou os programas, organizou os conteúdos e acabou por se impor, disciplinando o público. (MEDITSCH, 1999: 112)

Ao longo da sua história, o rádio não deixou de dialogar com os diversos momentos da evolução da ciência e da tecnologia, adaptando-se na convivência com os demais meios, sem perder suas características essenciais de um meio que se utiliza apenas do som. No seu imediatismo e instantaneidade de transmissão, qualifica a importância da sua sensorialidade que envolve o ouvinte, como observa Gisela Ortriwano: O rádio envolve o ouvinte, fazendo-o participar por meio da criação de um “diálogo mental” com o emissor. Ao mesmo tempo, desperta a imaginação através da emocionalidade das palavras e dos recursos de sonoplastia, permitindo que as mensagens tenham nuances individuais, de acordo com as expectativas de cada um. (ORTRIWANO, 1985: 80)

É bem verdade que a instantaneidade do rádio na sua perspectiva jornalística do imediatismo do fato, tem muito a ver com sua facilidade de mobilidade na recepção (o transistor facilitou a miniaturização do receptor) e também na emissão com as novas tecnologias, principalmente a telefonia celular que permite a transmissão a partir do local do fato, com extrema agilidade. De acordo com Meditsch, a recepção portátil foi uma conquista da comunicação sem fio que alterou profundamente a produção e transmissão de informações. Se o telefone e o telégrafo inauguraram a era da comunicação eletrônica com a introdução do tempo real, a tecnologia do rádio a complementou pela ubiqüidade. (2001: 244)

Mais adiante o autor enaltece essa mobilidade do rádio como sendo somente dele, associando-a como um recurso para o discurso radiofônico que se refere aos acontecimentos em tempo real: “A ubiquidade e mobilidade da recepção, associadas às mesmas ubiquidade e mobilidade na emissão, são características da situação comunicativa do rádio ainda não alcançadas por nenhum outro meio” (MEDITSCH, 2001: 246). Com relação à sensorialidade do rádio, seu suporte está na voz humana e é por meio dela que se realiza o diálogo mental entre o emissor e o receptor. Nair Prata (2004: 76) lembra que “é pela voz de quem fala no rádio que o ouvinte imagina, idealiza, cria imagens, fabrica diálogos mentais”.

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O rádio, portanto, como um meio extraordinário de transmissão, comunicação e expressão, tem, na sua mobilidade, instantaneidade e sensorialidade, um poder inigualável ainda hoje sobre a vida e o imaginário das pessoas. Assim, a magia do rádio continua mantendo os ouvidos atentos ao som da emissão radiofônica, convocando o cérebro a “trabalhar” não apenas na decodificação da mensagem, mas indo além na busca da compreensão do sentido da mensagem. Para tanto, é preciso estar sintonizado com a linguagem do rádio que ajuda a entender o discurso radiofônico.

2. Rádio e Internet: uma convergência interessante e intrigante Como meio de comunicação extraordinariamente rico e linguagem singular, o rádio ainda é fascinante, em que pese a série de obstáculos que precisou superar com o advento dos meios audiovisuais, a partir da televisão, adaptando-se aos novos cenários tecnológicos e renovando sua tecnologia de comunicação. Seu imediatismo e instantaneidade na velocidade das ondas hertezianas pode sofrer um processo de redefinição, como afirma Paula Cordeiro. Para a autora, “a introdução de sistemas multimédia vem alterar a natureza da rádio, podendo transformá-la de tal forma que nos obrigue a reequacionar o conceito, questionando a validade da definição do que é a rádio e a sua comunicação” (Cordeiro, 2004). Com a constante e rápida evolução da tecnologia eletrônica e da informática, passou-se a viver num mundo cada vez mais multimídia que por sua vez é o suporte do qual a radiodifusão também passa a se utilizar para se transformar e evoluir, agora no sistema digital e multimidiático. Para Lílian Zaremba (1999), “radiodifusão multimídia significa [...] novos conceitos sinalizados na convergência, flexibilidade e interatividade desse novo modelo radiofônico”. Neste mundo pós-moderno da alta tecnologia, o sinal de emissão radiofônica não está mais apenas no ambiente das ondas eletromagnéticas e sujeito a todo tipo de interferência na qualidade sonora. A rede mundial da eletrônica digital também abre espaço para um sinal limpo e instantâneo de rádio que chega até os receptores pelos cabos de fibra ótica. O que está muito patente, hoje, é a grande transformação que vive a mídia respondendo a todos os anseios de globalização. Esses sinais futuristas encontraram sustentação na revolucionária internet. A internet é um fenômeno recente e já se integra de forma marcante ao cotidiano das pessoas, tanto no ambiente profissional quanto no doméstico. Apesar dessa expansão, a realidade é que ainda menos de 10% da população mundial, por exemplo, pode dela desfrutar. Portanto, existe ainda a barreira do acesso à rede mundial de computadores, seja pelos custos, seja pela pouca agilidade, mas que a evolução tecnológica poderá superar num futuro bem próximo, favorecendo uma ampla fatia da população. “A evolução e miniaturização dos componentes e os menores custos da linha telefônica vão permitir que a emissora via Internet seja sintonizada, talvez em breve, não apenas por um computador de mesa, um notebook, mas por um palmtop, a partir de um telefone celular” (ALMEIDA; KLÖCKNER, 2007: 3). Os benefícios e serviços que a Internet pode prestar aos usuários são inúmeros.

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Hoje constata-se a convergência das diversas mídias para a internet. O rádio é uma delas, com milhares de emissoras pelo mundo servindo-se da internet como suporte adicional para emissão e apresentação de conteúdos. A expansão do rádio na Internet está ocorrendo rapidamente. Sabrina Brognoli D’Aquino (2003) afirma que em 2003, “somente no site www.radios.com.br estariam cadastradas mais 5.200 rádios” entre as emissoras on-line (com áudio como seu produto principal), emissoras off-line (que utilizam a rede para divulgar trabalho no dial, sem áudio; e emissoras webrádios (on-line virtuais, não existentes fora da internet). O Brasil é o segundo país em número de rádios na internet. De acordo com Lígia Maria Trigo-de-Souza (2003: 292-302), uma série de fatores ajudaram o rádio a aportar com sucesso na internet. Entre eles, destaca o desenvolvimento tecnológico, com a evolução de softwares e melhoria dos computadores; o alcance sem limites que agrega novos públicos; a união de políticas globais e programações locais, que faz Fernando Kuhn (2005) afirmar que “talvez o aspecto mais fascinante do rádio na internet seja a perspectiva de sintonizar emissoras de qualquer parte do mundo”. A autora ainda destaca a democratização do acesso, com os cidadãos sendo não apenas consumidores, mas também geradores de informação; a interatividade; a recepção, que permite o internauta manter suas atividades e navegar na internet sem interromper a audição. O rádio vive este momento de transição que reflete a passagem de uma comunicação dialógica para um modelo interativo de comunicação. Este modelo multimidiático de rádio é ressaltado por Paula Cordeiro quando afirma que “a rádio vive neste momento um processo de transformação extensivo e com consequências maiores do que as primeiras grandes mudanças que enfrentou, quando apareceram os transistores, ou quando passou a emitir em Frequência Modulada” (Cordeiro, 2004). Para reafirmar a abrangência dessa transformação, a autora fala da possibilidade de alteração do conceito do rádio: Em conjunto com a automatização e a compressão de sinal, tornam-se mudanças fundamentais que abrangem os processos de produção, emissão e recepção da rádio, chegando ao ponto de alterar a natureza do conceito, quando a rádio é transposta para um novo suporte que permite a combinação das suas características com elementos multimédia, numa plataforma de convergência mediática. (Cordeiro, 2004)

O rádio, portanto, diante das novas tecnologias, tem suscitado reflexões quanto às suas características. São várias as questões colocadas: O rádio, com as novas tecnologias sendo assimiladas, passaria a ter um conceito híbrido? A tecnologia digital vai sepultar o rádio analógico? Este rádio que é essencialmente som, como poderá ser definido no futuro, quando a internet já começa a colocar nele imagens fixas, mensagens, texto e, no futuro, com o rádio digital, até transmissão de dados? Eduardo Meditsch (2001: 225) lembra, nesse contexto, que alguns autores, como Faus Belau, se manifestaram admitindo que o rádio da tradição herteziana não sobreviveria no contexto multimídia das novas tecnologias. Ele também traz a

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afirmação de Heródoto Barbeiro de que o rádio seria engolido pela internet. Alguns autores, ao focarem o rádio diante dessa revolução tecnológica, têm opiniões mais conciliadoras. Sônia Virginia Moreira (apud ROCHA2001), por exemplo, afirma que, ao que tudo indica, “a força sempre permanece no rádio”, apesar das perspectivas de o rádio futuro ficar mais com a cara de um multimídia. Os novos serviços que a internet permite acrescentar à emissão do rádio em tempo real – preservando assim uma das características marcantes do rádio/dial que é o imediatismo -, possibilita o efeito de complementaridade para o rádio num só meio, além de superar as limitações das ondas hertzianas. Ainda nessa mesma linha de benefícios para o rádio, a internet se impõe “como um novo suporte para a escuta das emissões de rádio e uma forma da estação se auto promover” (Cordeiro, 2004). Em defesa do rádio tradicional, ou rádio/dial, Sarmento Campos (2009), no seu site htpp://radioescuta.aminharadio.com, tem um artigo intitulado “A Internet nunca irá substituir o rádio”. Afirma ser um “fato que a Internet é uma poderosa fonte de informações, mas sempre será um complemento ao rádio, pois este tem abrangência mundial, não requer computador, linha telefônica, pagamento de assinatura de acesso, nem está limitado ao espaço físico”. Ele não nega a convergência das diversas mídias para a internet, porém, não acredita que a presença do rádio nessas novas tecnologias venha a se popularizar da mesma maneira que o transistor contribuiu para o rádio. A questão financeira, ao menos por enquanto, é um empecilho para a popularização do rádio na internet. Há, ainda, a questão da portabilidade, por enquanto uma barreira a ser vencida, e que manteria o rádio na internet nas mesmas condições de poder de penetração e mobilidade que tem hoje o rádio/dial enquanto receptor. O professor de Comunicação da Universidade de Salamanca Arturo Merayo Pérez, em artigo publicado em 1996, defendia a necessidade de o rádio inserir-se nas novas demandas tecnológicas, mas com algumas ressalvas. Ele, por exemplo, alerta que o rádio na Europa (nos demais países também) é um veículo de “alta credibilidade e com boa imagem social”. Os motivos para tanto, segundo ele, são as possibilidades de participação de forma instantânea, diretamente, muito mais transparentes do que a televisão e a imprensa. Pérez ressalta aqui a importância do aspecto sociológico em relação ao rádio. De certa maneira, Pérez (1997) faz a defesa do rádio/dial embora não descarte a necessidade de utilização das novas tecnologias. A impressão que se tem é que o autor está preocupado que o rádio venha a perder sua característica de comunicação, ou seja, sua facilidade de penetração e sua proximidade com o ouvinte, com as características e a simplicidade do som da voz de um ser humano em comunicação com outros seres humanos. Tanto que Pérez chega a afirmar que por mais sofisticada que seja a tecnologia, ela vai sempre precisar do fator humano, capaz de trabalhar a técnica em benefício de uma audiência de qualidade. Em suma: em comunicação, o ser humano é essencialmente relação com o outro. Ao considerar a presença do rádio na internet, a pesquisadora Claudia Irene de Quadros (2005) classifica-a em quatro estágios: o 1º estágio é a transposição do 118 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 113-130| 2° Semestre 2009


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conteúdo radiofônico para a web e que não permite interação do usuário; o 2º estágio é a transmissão do rádio no dial utilizando os recursos da internet. A participação interativa ainda é pequena por meio de e-mail e controlada pela produção; o 3º estágio é o rádio feito para a Internet mas ainda com “muitas características do rádio tradicional e apresenta poucos recursos multimídia” (QUADROS, 2005: 16), com garantia de uma interatividade maior; o 4º estágio é uma rádio construída só para a internet, como no 3º estágio, com a diferença da possibilidade de explorar as potencialidades da hipermídia. Nesse estágio do rádio na internet, Quadros (2005: 16) diz que “o usuário pode planejar a sua própria rádio e manifestar a sua opinião. Nessa rádio, há muitos caminhos possíveis. O cidadão usuário pode trocar de papel com o mediador, sem censura ou controle”. Claudia Quadros (2005: 17) reconhece que este último estágio do rádio na internet, por uma questão cultural do meio jornalístico, ainda não se realizou plenamente. Mas é o caminho da renovação do rádio no novo suporte tecnológico digital na busca redentora de sua missão original: ser um meio de comunicação em que o receptor/ usuário tem a possibilidade de interagir democraticamente na discussão e proposta de conteúdo emitido. Dependendo do foco, os olhares são múltiplos, quando se discute a presença do rádio na internet. Eduardo Meditsch (2001) vai buscar na obra de Rudolf Arnheim os argumentos para uma definição para esse rádio envolvido com o mundo multimidiático. Ele estabelece, primeiro, uma distinção entre o que chama de “primeira internet” e “segunda internet”. Como primeira internet, Meditsch entende o que Arnheim denomina de meio de transmissão, ou seja, “desenvolvida pelos militares e adaptada pelos engenheiros para uso civil [...]” que “permite a transmissão de som, ao vivo ou gravado, a baixíssimo custo, de qualquer parte para qualquer parte do mundo” (MEDITSCH, 2001: 227). Trata-se de um sistema de telecomunicação. A segunda internet, a do meio de expressão, o autor distingue como a que “aparece na tela e atende pelas letras www: pertence aos jornalistas, radialistas e demais produtores de conteúdo” (idem). Trata-se, portanto, de um novo meio de comunicação, ou de expressão. No entender de Meditsch, “o rádio meio de transmissão - o das ondas de radiofrequência - deixou de ser referência para definir o rádio meio de comunicação. Este, o do radialista, passou a ser transmitido também por cabo, internet, satélite. Aquele, o do engenheiro, passou a transmitir dados, imagens, telefonia celular” (2001: 228). A partir dessa distinção e esclarecimento, Meditsch define o rádio como mídia presente no ambiente da internet, sendo “um meio de comunicação sonoro, invisível e que emite em tempo real” (2001: 229). Ou seja, o rádio não deixa de ser um meio de comunicação, mesmo que sua mensagem chegue até ao destinatário por outros sistemas que não o das ondas hertzianas. Na sua defesa do rádio como meio de comunicação, Meditsch é enfático:

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Minha aposta é que o rádio assim definido - um meio de comunicação que transmite informação sonora, invisível, em tempo real - vai continuar existindo, na era da internet e até depois dela, e vai ser aperfeiçoado pelas novas tecnologias que estão por aí e ainda por vir, sem deixar de ser o que é. (MEDITSCH, 2001: 229)

Mesmo integrado às novas tecnologias, o rádio na Internet não perde suas características, principalmente no que diz respeito ao seu imediatismo e sua difusão sonora. Não há indícios de que o conceito original de rádio – como meio de comunicação - estaria se perdendo com seu aporte na Internet. O que existe é um enriquecimento, com uma mensagem que não apenas se apresenta sonora, mas também se completa com todos os recursos que o ambiente da Internet oferece.

3. Uma “prática” que começa na universidade Os futuros caminhos do rádio passam pelo estudo, pesquisa e experimentações possíveis nos laboratórios das universidades, seja pelas discussões do modelo radiofônico das ondas hertzianas, seja pelo novo rádio, portanto com novas possibilidades, aportado na internet. Na criativa característica do meio rádio está o principal argumento para fazer do ambiente universitário a mola propulsora na valorização de inovações. “Não vislumbrar modelos novos é bloquear a capacidade imaginativa, característica própria do veículo. Entre as possibilidades de atualizar a linguagem radiofônica, estão as pesquisas dos modos de produção nos centros tecnológicos específicos localizados nas universidades” (ALMEIDA; KLÖCKNER, 2007: 7). Essa visão, porém, não é compartilhada de forma ampla dentro do ensino superior. Nem todas as instituições, em seus cursos de comunicação, contemplam a disciplina do radiojornalismo considerando que o rádio tem uma das linguagens utilizadas para veicular notícias. Mesmo diante de tantas oportunidades chamativas das novas tecnologias, a experiência de sala de aula revela que, à medida que os alunos passam a conhecer o meio rádio, com suas características e linguagem próprias e suas possibilidades de uso calcadas no imediatismo e mobilidade, amplia-se o grau de interesse pela sua utilização. Portanto, mesmo que uma grade de disciplinas não ofereça ao rádio a importância que ele tem como meio de comunicação, a partir do momento em que os estudantes são motivados a conhecer e entender o meio rádio no contexto da oportunidade da notícia, ele passa a ter importância, não só jornalística mas também como meio de comunicação que é. Nesse particular, a importância é dada pela capacidade de motivação do professor. Aliás, é de um rádio-apaixonado como Eduardo Meditsch (2001: 226) que vem a defesa do ensino do radiojornalismo e sua importância, mediante três argumentos: o primeiro garante que aprender radiojornalismo prepara o estudante também para outras linguagens da informação: “Quem sai dominando a linguagem do veículo

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[rádio] se adapta muito mais facilmente tanto à expressão audiovisual quanto ao texto utilizado na internet” (idem). O segundo argumento para Meditsch “é poder comparar a história do rádio com a conformação de uma nova mídia que surge diante dos nossos olhos”(idem). O terceiro argumento apresentado pelo autor é que o rádio não apenas vai continuar existindo diante das novas tecnologias, mas também vai fortalecer-se com elas. Justificando as razões apresentadas por Meditsch na defesa da importância da disciplina de radiojornalismo, é preciso que se busque um aprendizado que tenha sustentabilidade em conteúdos que aprofundem o conhecimento teórico sobre o rádio e estimulem a pesquisa bibliográfica e que se traduza em possibilidade efetiva de uma experiência prática capaz de motivar o desenvolvimento das potencialidades do estudante. Ao constatar a necessidade de uma preparação acadêmica adequada para o exercício do radiojornalismo, Almeida e Klöckner enfatizam no discurso que mostra um ouvinte mais exigente, que não apenas quer saber dos fatos, mas também entendêlos. Junto à informação está o esclarecimento, e mais: essas radioemissoras têm despertado a cidadania, incitando a comunidade a resolver os problemas, a não esperar passivamente só pelas autoridades. [...] E, para fazer isso, o jornalista de rádio deverá estar habilitado. Capacitado para ouvir, perceber as necessidades do seu público; cabe à universidade alertá-lo e prepará-lo para estas situações. Não adianta só um currículo adequado; serão necessários agentes de educação atualizados e imbuídos da necessidade destas mudanças. (ALMEIDA; KLÖCKNER, 2007: 8)

A apreensão teórica, a compreensão das diversas linguagens informativas, o conhecimento sobre os diversos veículos na comunicação da notícia... tudo é muito importante. Porém, se não houver a experimentação, a prática efetiva dos diversos conteúdos teóricos, a atividade laboratorial, o estudante não poderá sentir o peso e a importância da sua atuação. É por isso que Spenthof, citado por Sandra de Deus (2003: 6) afirma que “o exercício de experimentação, de aplicação de conhecimentos, de atividades práticas; é a realização de notáveis operações e transformações na formação e no mundo do estudante”. Portanto, ultrapassar os limites da sala de aula, em se tratando da disciplina de rádio e, mais especificamente, radiojornalismo, é fundamental para que os estudantes sintam-se não apenas cobrados pelo resultado acadêmico, mas que, indo além, pela experiência numa emissora de rádio, ainda que em processo laboratorial, possam avaliar o grau de sua responsabilidade, inclusive ética, na produção e veiculação da notícia, além de experimentar na prática seus conhecimentos teóricos adquiridos em sala. Há, ainda, outra observação importante e necessária. Sandra de Deus (2003: 6) acredita que “o exercício laboratorial se caracteriza pela liberdade e pela experimentação como espaço único de reflexão acadêmica sobre a prática profissional”. Na afirmação da autora dois aspectos, de fato, são fundamentais nesse processo também de formação COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 113-130| 2° Semestre 2009 | 121


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profissional: a “liberdade” de expressão e a “experimentação”. E é essa oportunidade dada por um curso de jornalismo por meio de um bom laboratório de rádio (se for uma emissora de rádio, melhor) que torna possível ao estudante experimentar a sua criatividade e que poderá tornar possível o profissional diferenciado para um promissor futuro do radiojornalismo.

4. Rádio Teia: antecipando o futuro A formação profissional de um bom jornalista passa necessariamente por um curso de jornalismo que estimule a busca do conhecimento com boa base humanística, sem deixar de lado a filosofia e a responsabilidade social. Trata-se, portanto, de uma preocupação não apenas com o mercado de trabalho, mas essencialmente da oportunidade de boa bagagem cultural que o futuro profissional precisa adquirir no seu período de preparação. A prática jornalística, portanto, será mais eficaz na medida em que houver melhor absorção do conhecimento. Será o reflexo deste. Porém, essa prática precisa ser compatibilizada já no ambiente universitário, período de aprendizado, oportunidade que o aluno tem até de errar para identificar o melhor caminho no exercício jornalístico. O Curso de Jornalismo da Universidade Positivo, em sua proposta pedagógica, oferece aos alunos a oportunidade do conhecimento e da pesquisa científica, ao mesmo tempo em que disponibiliza uma série de veículos com o objetivo de o aluno também adquirir a prática jornalística e exercitar a criatividade. Nesse sentido, criou a Rede Teia, que agrupa o jornal impresso Laboratório da Notícia (Lona), a Rádio Teia, o Tela UM (telejornal laboratório), a Agência de Notícias Jornalismo Expresso, a revista Entrelinha, e o Núcleo de Assessoria em Comunicação (Naco). São veículos para atuação exclusiva dos alunos, supervisionados pelos professores das respectivas disciplinas. A Rádio Teia, portanto, é um dos veículos que integram a Rede Teia de comunicação. Ela passou a compor o quadro de veículos laboratoriais do Curso de Jornalismo da Universidade Positivo a partir de junho de 2004. Na época, foi um grande desafio para os alunos e que se revelou altamente estimulante na aplicação prática da disciplina de Radiojornalismo. O embrião foi a Rádio Corredor, que no ano anterior funcionou por meio de alto-falantes distribuídos nos corredores e salas de aula, com programação espontânea que reunia os alunos no laboratório de rádio durante o intervalo das aulas. A Rádio Teia está ambientada na internet (jornalismo.up.edu.br), portanto, é uma rádio on-line que, ligada à função didática laboratorial, constitui-se num amplo espaço para a prática do radiojornalismo ao vivo e/ou gravado e para a discussão sobre a linguagem radiofônica. A rádio é coordenada pelo professor da disciplina de Radiojornalismo, a operação técnica é de responsabilidade de funcionários profissionais da área de áudio do laboratório, ficando a responsabilidade de orientar a produção e organização do 122 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 113-130| 2° Semestre 2009


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conteúdo jornalístico para o editor-chefe, cargo exercido por um aluno estagiário. Os alunos, orientados pelos professores do curso de Jornalismo, produzem matérias e programas sobre temas do cotidiano e de interesse público. Em sua proposta didática, a Rádio Teia busca ser um meio para: a) a interdisciplinaridade no curso de Jornalismo com produções envolvendo as demais disciplinas; b) veicular material produzido pelos alunos das disciplinas de Radiojornalismo I e Radiojornalismo II; c) veiculação de projetos individuais de discentes; d) promoção de formas de comunicação entre os cursos da instituição. Portanto, além da função laboratorial, a Rádio Teia é um canal de perspectivas esclarecedoras dos problemas sociais e das contradições políticas e econômicas, procurando dar visibilidade para as diferentes formas de expressão e a multiplicidade de idéias. A rádio busca preparar diferenciados profissionais de comunicação aptos ao intercâmbio de idéias políticas e sociais, abertos à pluralidade e capazes de executar um serviço voltado ao interesse educativo e cultural da sociedade. As fases de produção, pauta, reportagem, locução e apresentação são realizadas pelos alunos de Jornalismo, supervisionados pelo professor coordenador da rádio e/ ou por professor de disciplinas específicas do curso de Jornalismo para os quais os trabalhos são originalmente realizados. A programação da emissora oferece a possibilidade de programas bem específicos envolvendo os demais cursos da Universidade Positivo. Nesse caso, a produção do programa é realizada em reunião que envolve a presença de um aluno do curso de Jornalismo com o professor e os alunos envolvidos no programa específico de determinado curso. A apresentação do programa é feita sempre pelo aluno do Jornalismo. A rádio fica no ar 24 horas por dia com uma programação distribuída em grade de reprises não coincidentes em dia e hora. Fazem parte dessa grade as produções dos alunos da disciplina de Radiojornalismo III em seus mais diversos formatos: documentários, radionovelas, programas de entrevistas, programas especiais, reportagens especiais. Os programas ao vivo estão devidamente distribuídos na grade semanal, com horários pré-determinados. Entre eles: Jornal da Teia, informativo de uma hora; Teia de Esportes, sobre futebol, regional e nacional; Planeta Bizarro, programa com produção de notícias curiosas, fatos inusitados; B.O.B, bate-papo descontraído entre quatro apresentadores e um convidado sobre assuntos diversos do momento; Álbuns Clássicos, produção informativo-cultural e musical; Jornal da Teia Edição Especial, informativo produzido e apresentado durante o horário da disciplina de Radiojornalismo III. A grade de programação também está aberta a programas especiais como radionovelas, documentários e outros com proposta de linguagem radiofônica experimental. Tais programas são possíveis com formação espontânea de grupos de alunos. A idéia é que a Rádio Teia é dos alunos e para os alunos do curso de Jornalismo, ou seja, um espaço e um veículo que os alunos podem utilizar democraticamente para

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seu aprimoramento e criatividade dentro do amplo espaço jornalístico. A grade fixa de programação é alterada quando das transmissões de eventos especiais, que podem ocorrer tanto dentro quanto fora do campus da Universidade. Essas transmissões atendem solicitações de eventos acadêmicos de outros cursos, congressos, jornadas esportivas ou cobertura de acontecimentos como as eleições de dois em dois anos. Para citar um exemplo dessas transmissões especiais, desde o ano de 2004, os alunos do curso de Jornalismo planejam, produzem e realizam a transmissão das eleições. O trabalho todo, desde o planejamento até a execução, é supervisionado pelo professor da disciplina de rádio. A transmissão começa às 8 horas da manhã e permanece no ar até a conclusão da apuração dos votos. Vários alunos se revezam a cada duas horas no comando de estúdio como âncoras e mais de 50 alunos atuam como repórteres em Curitiba, região Metropolitana e outras cidades, informando o que acontece durante o processo de votação. Parcerias com emissoras de outras cidades e estados possibilitam troca de boletins informativos. No estúdio, convidados especiais e professores da Universidade Positivo ligados às áreas da Sociologia, Medicina, Direito, Economia, Política, História são entrevistados, aprofundando os diversos temas em discussão durante o período de campanha eleitoral. Os alunos repórteres acompanham, ao vivo, do Tribunal Regional Eleitoral de Curitiba, o processo de apuração, proporcionando em primeira mão os resultados como também realizando entrevistas com personalidades do mundo político ali presentes e análises sobre desdobramentos políticos pós eleição. Uma experiência enriquecedora de cobertura jornalística no ritmo do imediatismo do rádio. Outra experiência de coberturas especiais são as transmissões de jornadas esportivas do Campeonato Brasileiro de Futebol. Mediante parcerias com os clubes, os alunos têm a possibilidade de utilizar cabines dos estádios para a transmissão dos jogos. Os alunos se organizam em diversas equipes completas (narrador, repórteres, comentarista, produtores e locutor de retaguarda no estúdio para o plantão esportivo). Em algumas oportunidades, foram formadas equipes femininas para transmissões de partidas do Campeonato Brasileiro de Futebol, fato inédito no rádio esportivo paranaense. Nessa atividade específica, é preciso ressaltar o quão enriquecedora é a convivência com profissionais de outras emissoras de rádio e também a possibilidade de se fazerem notar pelo mercado de trabalho. A equipe técnica do laboratório de rádio atua no apoio técnico, tanto no estádio de futebol, quanto no estúdio. É oportuno destacar neste relato duas práticas especialmente significativas sob o ponto de vista da proposta pedagógica do curso de Jornalismo. Trata-se de dois programas mais especificamente ligados à disciplina de Radiojornalismo II e III: Jornal da Teia e Jornal da Teia Edição Especial.

Jornal da Teia Tem o formato de um radiojornal, é diário e apresentado ao vivo. Vai ao ar de segunda a sexta-feira às 17 horas. Tem uma hora de duração. O objetivo é destacar as principais notícias do dia. Seu conteúdo contempla as diversas editorias, como 124 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 113-130| 2° Semestre 2009


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política, economia, cultura, esporte e também assuntos ligados à cidadania e aos movimentos sociais. Participam os alunos do 2º e do 3º ano do curso de Jornalismo, respectivamente das disciplinas Radiojornalismo I, II e III, que têm a possibilidade de exercitar na prática os diversos conhecimentos teóricos sobre rádio. Para os alunos do Radiojornalismo I e II, é a oportunidade de colocar em prática os conteúdos da linguagem radiofônica, produção de texto, entrevista, reportagem e edição. Os alunos de Radiojornalismo III, cujo conteúdo também aborda programação, programas de rádio, produção, roteiro para diferentes formatos e apresentação, têm no Jornal da Teia uma oportunidade de exercitar tais conteúdos. Suas produções ligadas à disciplina também são colocadas à disposição da grade de programação: documentários, radionovelas, programas especiais e programas de entrevistas. Os alunos, orientados pelo professor da disciplina, são organizados em equipes de sete participantes no início do ano letivo. Um deles exerce a função de produtor, e os demais dividem as funções de repórteres e apresentadores. Os programas seguem um calendário que vai de março até o final de outubro, com datas e equipes definidas. A produção é feita com antecedência. O produtor reúne a equipe, quando ficam estabelecidas as pautas, tanto para as reportagens gravadas, quanto para a participação ao vivo e entrevistas. O trabalho é finalizado momentos antes de o programa ir ao ar, quando, com o suporte do aluno editor-chefe, organizam-se o roteiro e as fichas de produção. O programa, já produzido, vai ao ar com dois apresentadores que exercem a função seguindo a orientação do roteiro e tendo a supervisão do produtor, todos acompanhados de perto pelo editor-chefe. Com duração de uma hora, o programa é dividido em vários blocos contendo reportagens ao vivo e gravadas, entrevistas ao vivo com protagonistas de assuntos relevantes, boletins sobre acontecimentos do momento extraídos de agências de notícias. Durante o programa, são acionados, com participação ao vivo, os serviços de informação da previsão do tempo, situação do trânsito em Curitiba e o principal fato do dia com repórter falando direto do Palácio Iguaçu. Já está sendo articulada também a participação de alunos fazendo a cobertura diária, ao vivo, das sessões na Assembléia Legislativa do Estado do Paraná e na Câmara Municipal de Curitiba. Ao final de cada programa, o professor da disciplina de Radiojornalismo faz uma avaliação com a equipe sobre o desempenho quanto à produção, conteúdo e apresentação. Nesse momento, são esclarecidas dúvidas e também dadas orientações práticas, sempre fazendo a correlação com o conteúdo dado em sala.

Jornal da Teia Edição Especial O grande objetivo do Jornal da Teia Edição Especial é experimentar o rádio em tempo real. Trata-se de um programa informativo, porém com uma estratégia de produção e apresentação mais desafiadora. Os alunos produzem e apresentam o programa durante o horário da aula. Tudo é transmitido ao vivo. Portanto, não há

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reportagem gravada antecipadamente. Os diversos programas são realizados no primeiro semestre do ano letivo e somente com os alunos da disciplina de Radiojornalismo III. O grande desafio é produzir e apresentar o programa durante o horário da aula. No início da aula, são escolhidos um produtor e dois apresentadores. Os demais alunos da sala se transformam em repórteres. Todos vão à redação e estúdio da Rádio Teia. Produtor e repórteres têm 45 minutos para produzir um programa que é apresentado em seguida, com duração de 45 minutos. São distribuídas as pautas, e os repórteres têm pouco tempo para ir atrás da informação. Por questões práticas, as fontes de informação somente podem ser buscadas dentro do campus. Os repórteres têm duas opções de participação ao vivo: entrar por telefone do local da informação ou, gravar com a fonte, correr para o estúdio, e selecionar uma sonora para utilizar ao vivo como ilustração da sua reportagem. No período de produção, os repórteres, na medida em que vão retornando, preparam uma chamada para que o produtor possa organizar o roteiro. Os que participam ao vivo, por telefone, têm a mesma obrigação. No horário estipulado começa o programa com os dois apresentadores comandando os repórteres que transmitem suas informações ao vivo por telefone ou no estúdio, com a utilização da sonora sendo encaixada ao vivo na fala do repórter. É uma valiosa oportunidade para os alunos exercitarem o improviso inteligente, manterem o ritmo na verbalização e sentirem a excitação de produzir e fazer rádio ao vivo dentro de um tempo limitado. A agitação é grande com os alunos querendo provar que são capazes de dominar o estresse e fazer bem feito. Durante a apresentação do programa, o aluno com a função de produtor supervisiona e orienta as participações dos repórteres e a atuação dos apresentadores. A função do professor é apenas e tão somente observar. Ao término do programa, o professor coordena uma avaliação dos alunos, sempre remetendo a atuação prática aos conceitos e conteúdos dados em sala.

Algumas considerações O objetivo educativo e de compreensão, apreensão e aplicação das atividades relacionadas à atividade do radiojornalismo é plenamente alcançado pela produção da Rádio Teia. A veiculação ao vivo e a transmissão de notícias produzidas pelos alunos do Curso de Jornalismo são um avanço tanto no sentido didático quanto no de produção de conhecimento, o que promove um diferencial ao curso. Com ênfase em preparar o aluno de Jornalismo da Universidade Positivo com um diferencial qualitativo que abranja as áreas de conhecimentos técnicos, éticos, estéticos e humanistas, a Rádio Teia é canal aberto para experiências de linguagem radiofônica. Finalmente, é também importante frisar que a necessidade de apresentar programas ao vivo torna-se uma oportunidade de exercitar a verbalização com ritmo e coerência lógica, testar o improviso inteligente e familiarizar-se com a responsabilidade de falar 126 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 3| n.3|p. 113-130| 2° Semestre 2009


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diretamente ao ouvinte. O fato é que os alunos colocados diante do desafio de fazer o rádio ao vivo muitas vezes se surpreendem com a própria capacidade latente. É nessa hora que o aluno percebe a importância do conteúdo proporcionado pelas demais disciplinas do curso, a necessidade da leitura acadêmica e do acompanhamento de noticiários. A prática na Rádio Teia tem oferecido a oportunidade de se perceber a evolução dos alunos no aprendizado e na prática do radiojornalismo na Universidade Positivo.

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