Revista Vírus #6

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VÍRUS #6 — ABRIL/MAIO 2009

CRISE ECONÓMICA E OS DEBATES NAS ESQUERDAS EUROPEIAS CECÍLIA HONÓRIO MERCADO E EDUCAÇÃO JOÃO TEIXEIRA LOPES (DIVER)CIDADE: ESPAÇOS PÚBLICOS INTERCULTURAIS MÁRIO TOMÉ DEFESA CIVIL VÍTOR LIMA QIMONDA: A ARMADILHA DO INVESTIMENTO ESTRANGEIRO ALAIN BADIOU VS. DANIEL BENSAÏD ESQUERDA, PARTIDO, REVOLUÇÃO YIANNIS BOURNOS TRANSFORMANDO OS TRANSFORMADORES: PENSAMENTOS SOBRE A ESQUERDA RADICAL EUROPEIA NOS DIAS DE HOJE E.P.THOMPSON ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE CLASSE E “FALSA CONSCIÊNCIA” + MÚSICA E LIVROS


AMANHÃ DE MANHÃ, A EUROPA EDITORIAL | JOÃO TEIXEIRA LOPES

1. O NOVO NÚMERO DA VÍRUS, COM A ASSUmida designação de «crise económica e os debates nas esquerdas europeias», é uma tradução, entre muitas outras possíveis, deste estado de inquietude que atravessa todos aqueles e aquelas que se encontram envolvidos nos debates e combates (não são estas, aliás, duas palavras sinónimas?) sobre a reconstrução radical (na acepção que Badiou lhe confere: busca da constituição primeira das coisas) da Europa e do mundo, processo que, em boa parte, encontra novos recursos teóricos e empíricos a partir das reacções da década de 90 do século passado face à violenta hegemonia do neo-liberalismo. A uma anterior e momentânea paralisia na prática emancipadora, eis que, de novo, brotam as questões sem que, por dentro, se saibam de antemão e preguiçosamente as respostas. Ao contrário das velhas reacções mecanicistas, procuram-se, na intrincada complexidade dos

fenómenos, novas relações de inteligibilidade e possibilidades de acção. 2. Primeira questão: para onde nos conduz a matriz gerencialista e utilitarista das políticas educativas hegemónicas? Cecília Honório aponta rotas: a da privatização parcial dos curricula, a cavalo das «actividades de enriquecimento» da «escola a tempo inteiro» e da alienação do próprio parque escolar; o reforço autoritário do novo pedagogismo sem pedagogia; a penúria do investimento público; a uniformização gestionária e empobrecedora das práticas pedagógicas e, em particular para o ensino superior, o mito do auto-financiamento e da competição entre instituições, condição de base para a reprodução, sob novas formas, das elites dirigentes. 3. Que espaços públicos são hoje concebidos pelos produtores da cidade? A recusa do estrangeiro e da própria metáfora da estranheza leva-nos, segundo

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João Teixeira Lopes, a uma redundante busca da familiaridade e da mesmice, recusando o enriquecimento do pensamento selvagem, aquele que se alimenta da experiência da diferença nos espaços vividos, diferença, antes de mais, linguística e comunicacional, inscrição do poder, para além da mera resistência, na ordem do discurso e nas regras da enunciação (o que pode ou não dizer-se; a esfera do pensável e campo de interditos). 4. Como passar de uma defesa militar para uma defesa civil? Ou, por outras palavras, como superar a aura dos heróis da pátria pelo envolvimento da sociedade na preparação de mecanismos solidários de protecção face à imprevisibilidade dos riscos. Mudança de paradigma, propõe-nos Mário Tomé, desde logo pelo nome: defesa civil, enquanto incorporação societal de sofisticados utensílios técnicos e éticos que preparem, através de políticas públicas, cidadãos


e cidadãs para lidarem com as probabilidades. Defesa que não pressupõe outra guerra que não seja à velha lei das catástrofes: são sempre os pobres as principais vítimas. 5. O que pretende o investimento estrangeiro, eis o mote-questão de Vítor Lima, a partir do estudo de caso da Qimonda, exemplo que ilustra a cortina de mistificações sobre o capital estrangeiro em Portugal, caminhando a par do menosprezo do papel do mercado interno e da produção da precariedade ou, em suma, a «grande ilusão» que nos pretendem vender sobre o papel do Estado. Na verdade, o investimento estrangeiro, tal como se verificou com a Qimonda, procura apoios públicos, abundância e facilidade de acesso a matérias-primas, dumping social, salarial e ambiental e, claro está, qualificação do trabalho. No entanto, guarda para si a chave do «segredo»: o controlo financeiro, a investigação e a logística permanecem concentradas na empresa-mãe, o que tem pelo menos a vantagem de tornar visível, hoje mais do que nunca, o carácter colectivo e social da produção global.

reitas, descrê, no entanto, da forma-partido radical, nomeadamente porque não responde, na sua opinião, à aporia entre leninismo dirigista e movimento difuso e desorganizado («o fétichismo do movimento»), resvalando para o eleitoralismo e as cedências ao instituído. Advoga, por isso, a renúncia ao jogo eleitoral e ao exercício do direito de voto. Ora, contra o cepticismo de Badiou, Daniel Bensaïd, pensador alinhado com o Novo Partido Anticapitalista francês, defende que a nova forma-partido, em ruptura com o estalinismo e a disciplina partidária de cariz militar, será capaz, pela disciplina que irrompe da unidade na acção, de contribuir com um projecto político para as redes e movimentos insurgentes. Por sua vez, Yiannis Bournos, dirigente do Synaspismos, constata, a partir da experiência grega, a intensificação da violência capitalista, concomitante da incapacidade sistémica em propor novos pactos sociais. Daí interceder pela «transformação dos transformadores», de modo a que sejam capazes de participar na turbulência social com um projecto anticapitalista que forneça coerência às lutas.

6. Que papel para os partidos alternativos? Alain Badiou persiste na coerência de um pessimismo na acção. Enquadrando as novas direitas europeias, maxime a francesa, de matriz sarkosiana, num amplo movimento de restauração contra tentativas republicanas e populares, desde a Comuna de Paris ao Maio de 68, critica a democracia «ocidental» existente por externalizar a violência (de modo a diminuir as tensões internas) e por tentar salvar bancos com dinheiros públicos. Ciente da cumplicidade objectiva entre os velhos partidos social-democratas e as novas di-

7. Que futuro para o conceito de classe? Eis que o historiador E.P. Thompson nos propõe uma revisão entre as rotineiras relações, herdeiras do dualismo base/superestrutura, que proclamam o isomorfismo entre classe, luta e consciência de classe. Ao assumir a classe como «categoria histórica», Thompson pretende romper com reificações e a prioris positivistas, procurando, de forma heurística, estudar os processos empíricos concretos que podem levar à estruturação das classes. Em vez da visão estática defende, pois, a visão processual. Desta forma, é num «campo de

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forças» (conceito aparentemente herdeiro da noção de «campo» de Pierre Bourdieu) e em relação/luta mútua que determinadas pessoas eventualmente se descobrirão como classe, sendo que a sua consciência é o que é, nem falsa nem intrinsecamente verdadeira: uma certa visão de si mesma, das demais e do próprio jogo social e histórico. 8. Que escutas e leituras? Talvez os Flying Lizards, esses «revisionistas dementes do roque», responde Sandy Gageiro. Ou então o fazer poético de Tiago Gomes, seguidor confesso de Cesariny, interpõe Marta Lança. Ou ainda um olhar sobre o comunismo nacionalizado, proposto por Miguel Cardina a propósito da obra de José Neves Comunismo e Nacionalismo em Portugal». Ou, finalmente, uma escuta-leitura das vozes que ainda nos falam da guerra civil espanhola, a partir das Vozes do Rio Pamano de Jaume Cabré. 9. Em todo o caso, não se esqueçam. A Europa é já amanhã de manhã. É o que vem na Vírus…


CIDADES INVISÍVEI

MERCADO E EDUCAÇÃO CECÍLIA HONÓRIO

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MERCADO E EDUCAÇÃO

CECÍLIA HONÓRIO | PROFESSORA

SE BEM QUE O DESESPERO DOS GOVERNANtes do PS se dedique, hoje, a declarar o fim da submissão aos mercados e o triunfo do Estado social, o desespero rosado não suaviza as cacetadas que foram dadas nos sistemas públicos de educação. Sob o ruído da maioria absoluta, foi parasitando a hegemonia do pensamento único para a educação e há muito que os governantes deixaram de fazer de conta que a empresa não é a sua fonte de fé, e o mercado o regulador natural do ensejo reformista. Não há mistério na ferocidade das reformas. A rota neoliberal exige a adaptação das pessoas a um meio envolvente incerto. Mundo incerto que precisa que cada um se conforme e baixe os braços perante projectos individuais e colectivos. Não se estranhará, pois, que a socialização para o mundo do trabalho comece cada vez mais cedo e que às crianças se exijam skills à altura, nomeadamente a adesão ao empreendedorismo, que recentemente invadiu as escolas. O saber como forma de realização e de emancipação é hoje, para o poder, um discurso estéril. O que conta é que a fé na economia do conhecimento impõe a adaptação a um mercado de trabalho internacionalizado e de mutação rápida. É este padrão que sustenta a inflação discursiva em torno da mão-de-obra altamente qualificada. É que a sua exaltação permite reforçar a cadeia de pressão sobre todos os trabalhadores e, por maioria de razão, sobre os menos qualificados.

Instrumentalizada e subordinada à tecnologia, a educação deve sustentar o modelo centrado no hiper-consumo e na mercadorização de todos os recursos. No horizonte estão as novas formas de legitimação da divisão social e o fim do princípio demoliberal do direito ao trabalho, doravante substituído pelo dever de atestar empregabilidade. Uma mão-de-obra flexível é polivalente, móvel e reciclável. Neste quadro, a ministra da educação e o ministro da ciência, tecnologia e ensino superior estão bem acompanhados: têm as instituições europeias, a OCDE e os lóbis a aconchegá-los1. Instituições e grupos de poder e de pressão foram adubando a hegemonia, se bem que a escola neoliberal ainda não tenha as bainhas feitas. Mais do que uma casa arrumada, a escola neoliberal é um projecto de poder. É por isso que a resistência é a chave para uma outra escola possível. É também por isso que o conflito entre imobilismo-conservadorismo e os modernos foi a armadilha discursiva2, a arma dos dobermen da ideologia neoliberal. A escola que interessa é uma empresa e o filme está montado, à beira do fim do ciclo rosa: entrada das empresas no sector educativo; introdução de mecanismos concorrenciais no funcionamento do sistema educativo e das instituições escolares; importação de modelos das empresas; descompromisso do Estado e desinstitucionalização da escola pública; redução das finalidades educativas à utilidade económica; apelo

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ao consumismo escolar. É o que se pede à escola para a plena adaptação à economia capitalista. Em todas as instituições de ensino é suposto que triunfe a gestão por resultados, o financiamento de acordo com a produtividade. A privatização parcial do currículo do primeiro ciclo com as actividades de enriquecimento curricular, a privatização do património escolar público com a empresa Parque Escolar, a miríade de empresas que germinam para a reconstrução do parque escolar, o apelo a que as escolas organizem casamentos e baptizados, tudo convive com o estrangulamento financeiro das instituições, com a visão da retenção como um problema estritamente económico, com o novo modelo de disciplina interna das instituições e dos seus profissionais (onde se inserem o novo modelo de gestão e o mais barato e lucrativo modelo de avaliação de professores), destinado ao controlo e uniformização das práticas. MAIS AUTORIDADE E MENOS INVESTIMENTO PÚBLICO SÃO OS EIXOS A qualidade do ensino para todos/as é abandonada em nome da banalização de soluções de adiamento da entrada no mercado de trabalho para os mais pobres. É assim que se naturalizam opções de refugo, como a proliferação de cursos profissionais no secundário e os cursos de educação e formação para onde muitos


jovens são despachados precocemente, a expensas do próprio aconselhamento interno especializado das escolas e das excelentes dotações da Agência Nacional para a Qualificação. À semelhança da escola pública, e instaurado o lema de que somos todos trabalhadores em prol das nossas necessidades de consumo3, o consenso do pensamento único no ensino superior esvazia os valores e espaços intelectuais, o pensamento crítico, as possibilidades de democracia. Sendo a meta do Conselho Europeu para 2015 a construção da “e-Europa” – a economia planetária mais competitiva do mundo, e em condições de ultrapassar os EUA –, entendem-se os consensos, como o da criação do Espaço Europeu de Educação Superior. E neste quadro, as metas são definidas pelas organizações supranacionais: pelo BM, pela OMC, pela OCDE4, e até o financiamento da investigação vem repartido de cima5. É por tudo isto que uma universidade alternativa faz parte da luta contra a globalização neoliberal. São também estas as razões que justificam que a racionalização-desregulação se tenha instalado no ensino superior, nomeadamente com a política de financiamento segundo o mérito e o contrato para a obtenção de resultados. Se bem que há quem suspeite que o ministro do ensino superior nem sequer queira moldar as instituições nacionais ao modelo anglo-saxónico (e esse era o figurino previsto no RJIES), a desregulação não deixou de se instalar sob a opacidade do projecto político, ou a falta dele. Asfixia financeira, propinas galopantes, acção social que é o produto do descompromisso do Estado6,

SE BEM QUE HÁ QUEM SUSPEITE QUE O MINISTRO DO ENSINO SUPERIOR NEM SEQUER QUEIRA MOLDAR AS INSTITUIÇÕES NACIONAIS AO MODELO ANGLO-SAXÓNICO (E ESSE ERA O FIGURINO PREVISTO NO RJIES), A DESREGULAÇÃO NÃO DEIXOU DE SE INSTALAR SOB A OPACIDADE DO PROJECTO POLÍTICO, OU A FALTA DELE.

o miserabilista ensino superior nem por isso deixa de se alimentar do lema dos alunos consumidores, nem as instituições deixam de andar à cata de clientes. O aluno-cliente paga os saberes que não são nem gratuitos, nem para todos, o que reforçará a auto-reprodução das elites e o endividamento dos estudantes. Aliás, e diversamente da população estudantil do ensino superior em Portugal, grande parte dos e das jovens trabalha, em países como a Inglaterra e a França. Constituem uma mão-de-obra barata, disponível, adaptável e requisitada pela boa educação… Segundo estudo recente, um em cada 10 estudantes trabalhava a tempo inteiro no Reino Unido em lojas, restaurantes, hotéis, e atendimento ao público, dois dos sectores piores pagos da economia, e as raparigas, em part-time, recebem menos do que os rapazes. O argumento até pode parecer tentador para quem entenda que estes empregos podem favorecer a autonomia dos e das jovens estudantes e despenalizar as suas famílias, se a realidade não fosse o que é. Em França, onde metade dos e das jovens trabalha,

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segundo dados do observatório dos percursos dos estudantes, são os jovens saídos das classes populares que têm empregos concorrentes da sua formação e menos rentáveis para o seu currículo e, desta forma, trabalhar contribui para diminuir as possibilidades de sucesso escolar já de si mais fracas7. É por isso que se pergunta: a contracção da acção social no superior empurra quem para o mercado de trabalho e para o autofinanciamento? Se Portugal é o país europeu com menor igualdade de acesso em termos de origem das famílias8, a reprodução das elites continua leve e segura.


O ALUNO-CLIENTE PAGA OS SABERES QUE NÃO SÃO NEM GRATUITOS, NEM PARA TODOS, O QUE REFORÇARÁ A AUTO-REPRODUÇÃO DAS ELITES E O ENDIVIDAMENTO DOS ESTUDANTES.

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NOTAS 1 – cf. Análise de Memorandum da Comissão Europeia sobre a educação e a formação ao longo da vida in Francis Vergne, L’Avenir n’est pas à vendre, p. 10. Para os países da OCDE o ensino representa o “último grande mercado” – 875 milhões de euros por ano, um mercado tão apetecido como o automóvel; cf. Nico Hirtt, Los Nuevos Amos de la Escuela 2003. Os lobbies e a pressão multiplicam-se, desde banco mundial à OMC, OCDE e os seus grupos internos de pressão (grupo de Bilderberg, Comissão Trilateral, Grupo de Davos). O próprio presidente do GATE não tem dúvidas de que a educação é um dos mercados mais vastos e em maior expansão.

reiro, quando o ministro conhece e se recusa mexer num quadro legal atávico, critérios manhosos e com taxas de cobertura de custos ridículas dado o rebentar das despesas com a frequência do ensino superior. 7 – “La double vie des étudiants salariés », Alternatives Economiques, n.º 256, 2007 8 – cf. Observatório dos percursos dos Estudantes, Universidade de Lisboa, coordenação de Ana Nunes de Almeida.

2 – cf. Christian Laval, L’école n’est pas une entreprise. Le néo-libéralisme à l’ assaut de l’enseignement, 2003, p. 12. 3 – cf. Alex Callinicos, Universities in a Neoliberal World, 2006, p. 12. 4 – A Universidade ou se torna competitiva ou morre e cabe à OCDE orientar, com doçura, as reformas necessárias almofadadas pelos lóbis internacionais, mormente, OMC, AGCS, European Round Table…; cf “Universités. Produire do capital humain”, Socialisme International, n.º 12 5 – O programa Cooperação do sétimo programa-quadro selecciona as TIC, a Saúde, os Transportes e a nano-produção como áreas temáticas prioritárias e concede às ciências socioeconómicas e ciências humanas uma percentagem ínfima de fundos. 6 – É uma das mais importantes lutas estudantis a ter-

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(DIVER)CIDADE

ESPAÇOS PÚBLICOS INTERCULTURAIS JOÃO TEIXEIRA LOPES

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(DIVER)CIDADE: ESPAÇOS PÚBLICOS INTERCULTURAIS JOÃO TEIXEIRA LOPES | SOCIÓLOGO

AO FALAR EM RELAÇÕES INTERCULTURAIS ocorre-me, de imediato, que elas constituem o núcleo duro de políticas culturais públicas assentes no princípio e na prática da democracia cultural. Gostaria, por isso, antes de mais, de me referir a um princípio sem o qual dificilmente as políticas culturais poderiam merecer a designação de públicas. Falo, naturalmente, da intervenção privilegiada na esfera pública, conceito que, na abstracção de Habermas, se pauta pela diferenciação face ao mercado e à lógica da mercadoria, já que, se estes a invadirem, perde-se o “reino da liberdade e da continuidade (...), a discussão formaliza-se, posição e contraposição estão de antemão sujeitas a certas regras de apresentação; o consenso na questão torna-se grandemente supérfluo devido ao consenso no procedimento”1. Richard Sennett segue de perto a teoria crítica de Habermas, concentrando-se na análise e denúncia da tirania da intimidade, em que a esfera privada se torna o padrão de toda a acção social, numa espécie de obsessão em que tentamos transformar o mundo “num espelho de mim”2, um “mercado de auto-revelações” que desagrega o espaço público pela impossibilidade de confronto com os estranhos. Ora, a estranheza é, a meu ver, uma das mais poderosas instituições de criação da diferença para facilitar a comunicação. A linguagem é, precisamente, a objectivação de uma subjectividade que se torna acessível a outrem, pelo seu cariz partilhado. Mas, para além desse conjunto de regras elementares comuns, multiplicam-se os usos, os canais, os códigos, os contextos e quadros

de interacção. É nessa socialização que a linguagem se torna fonte de equívocos, logo, de descoberta e de alargamento do horizonte de expectativa, para utilizarmos o heurístico conceito de Jauss. O Outro, como refere Will Wright, é uma necessidade linguística que promove a possibilidade de mudanças sociais assentes em processos de aprendizagem de repertórios inéditos3. Ora, para se compreender a fundo este princípio de política cultural necessitamos de um conceito outro que não o de esfera pública, pelo menos na acepção de Habermas. Sugiro espaço público, enquanto espaço-tempo concreto, situado na trama histórica e social; espaço produzido e representado, socialmente construído e apreendido, sem perder, no entanto, a sua especificidade e materialidade específicas. Consubstancia-se, assim, uma crítica sugerida por McGuigan a Habermas, ao considerar que a esfera pública, por abstracta e universal, ignora “as suas formas plurais enquadradas em contextos específicos”4. E falo, ainda, de espaço público urbano, seguindo o pressuposto de Isabel Guerra de que ele “é hoje, aliás como outrora, em larga medida, o domínio por excelência da acção colectiva, questionando formas de entender, de concertar interesses e lógicas divergentes e contraditórias”5 Concebo este espaço como distémico e não proxémico, de acordo com a distinção operada por Barry Greenbie6. O espaço proxémico remete para a proximidade local e para a tribalização crescente das sociedades urbanas que, apesar da visão optimista que se possa ter a seu respeito (local de efervescência, socialização, consciência

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colectiva), propiciam uma lógica endogâmica pouco propícia a cruzamentos impuros. Ora, os espaços distémicos são por tendência cosmopolitas – autênticas comunidades de estranhos como, na exemplificação de Sennett, os grandes parques urbanos, as ruas, os cafés, os teatros, as salas de ópera. Tenho, é certo, dificuldade em aceitar estes últimos (cafés, teatros, salas de espectáculo) como espaços públicos, já que exigem direitos de entrada e se traduzem por graus desiguais de acesso com fortes implicações simbólicas7, mas é poderosa a sugestão de Sennett. A tribalização das sociedades urbanas pode, na verdade, alimentar o enfraquecimento do pensamento e do conhecimento selvagens – aqueles que se transmitem nos espaços públicos distémicos –, espaços de representação e apresentação, de si e dos outros, como sempre foram os espaços públicos. Ora, esta questão conduz-nos directamente às políticas urbanas. É hoje fortíssima a tendência – e não faltarão exemplos muito concretos – para criar pseudo-espaços-públicos, como os centros comerciais (onde funciona a lógica do panóptico, através da vigilância electrónica, dos seguranças privados...), espécie de arquitectura pastiche ou urbanismo de ficção, objecto visual simplificado, controlado e despolitizado onde o Outro é servido em doses de mim próprio com roupa diferente8. Olhemos à nossa volta e verifiquemos como a reconfiguração do espaço público através das grandes operações urbanísticas, associadas à chamada regeneração


ou requalificação urbanas, reflecte o esquema subjacente aos centros comerciais. Na ansiedade face ao estranho estimula-se o conforto das repetições etnocêntricas, tão patente em certo mobiliário urbano, bem como a tendência para as chamadas praças secas, onde se estimula a passagem, quando muito a mirada repentina de estilos de vida distintos (que, assim, se tornam enclaves mais ou menos exóticos), mas não recantos de paragem ou sociabilidade. Cesare Pavese falava da necessidade de “atravessar a rua para sair de casa”. Mas as tentativas de “salvar” (?) o espaço público encalham na gentrificação ou filtragem social dos espaços, através da sua conversão “em elemento especializado, um «equipamento mais» da cidade que, amiúde, inclui espaços segregados e monofuncionais, um espaço para crianças, outro para cães, outro para estacionar, outro «monumental», etc. O espaço público perde, assim, as funções fundadoras das quais derivam todas as suas potencialidades: dar forma e sentido ao conjunto da cidade, garantir trajectos e elementos de continuidade e ressaltar as diferenças (...) ”9. Esta debilidade das formas de pensar, construir e fazer cidade traduz-se, por exemplo, no modelo de cidade genérica do arquitecto R. Koolhaas10, cidade sem história, sem traços distintivos, sem identidade, sem o que ele apelida de “escravidão do centro”, cidade altamente programada para o automóvel e onde a rua já não é a saída de casa, porque não há zonas de transição. O espaço público distémico, bem ao contrário, requer elementos de referência, marcos, multifuncionalidade e diversidade de acesso e de usos. Surge, por isso, cada vez mais, como um direito11 na base de múltiplos movimentos sociais e um locus de agudo conflito, apesar das tentativas para a sua higienização e neutralização. Daí

OLHEMOS À NOSSA VOLTA E VERIFIQUEMOS COMO A RECONFIGURAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO ATRAVÉS DAS GRANDES OPERAÇÕES URBANÍSTICAS, ASSOCIADAS À CHAMADA REGENERAÇÃO OU REQUALIFICAÇÃO URBANAS, REFLECTE O ESQUEMA SUBJACENTE AOS CENTROS COMERCIAIS.

que Sennett defenda, a contracorrente das tendências securitárias que têm medo do espaço público como lugar de insegurança, uma arena de discussão e tagarelice, verdadeiro obstáculo à mobilidade do transeunte indiferente (daí a importância dos recantos, dos pormenores, do mobiliário urbano) que promova a “conversa no meio da desordem” e a mistura de funções. O discurso público requer, pois, um bom uso da desordem num contexto de contradições, de quebra das hierarquias, de complexidade das relações, de conflito e de valorização da dignidade do outro na aceitação desse conflito. Como diz Sennett, a sensibilidade ao outro está muito para além do utilitarismo e da tendência da planificação urbana em racionalizar os espaços, esquecendo as margens. Ora, é na liminaridade e nos espaços de fronteira que se gera o interconhecimento12. Igualmente contra a neutralização do espaço público, François Maspéro defende a dimensão esquecida: “O que falta não são nem os bancos, nem as árvores, nem os relvados (...) o que falta é outra coisa bem mais grave: desde o início, aqueles que o desenharam, esqueceram, suprimiram, decididamente, uma dimensão. Planos verticais: as barras. Planos horizontais: o solo. Mas onde está a terceira dimen-

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são? O que existe por detrás de tudo isto? Jamais a profundidade. Onde estão os pátios, os recantos, a pequena loja no seu rebaixo de sombra, a água-furtada de céu onde se vêem passar as nuvens e a cauda do gato da porteira, a esplanada preguiçosa do café e o seu estore que nimba os consumidores de luminosidade alaranjada? Cidades cegas.13” Cidades cegas, as que esquecem “que a visão se faz e se toma no meio das coisas, lá onde alguém visível se põe a ver”14; cidades que esquecem a “reversibilidade das dimensões”: ver entre as coisas para ser visto; não esquecer que as coisas nos vêem e que o nosso corpo – a experiência corporal encontra aí a sua matriz – é visto e visível; cidades que se dividem entre o medo da vida de rua e o “desejo superficial por um passado ficcional”15. As políticas culturais públicas de criação e animação de um espaço público distémico contribuem, decisivamente, para a diversidade semiótica da cidade16 e para uma imagem clara, distinta e distintiva, favorecendo a legibilidade e a imaginabilidade dos espaços17 e facilitando, por conseguinte, as representações sociais dos urbanitas face à cidade, já que, segundo estudos recentes, “existe (...) uma elevada componente de «abstracção», uma dificuldade na representação social dos cidadãos face à cida-


CIDADES CEGAS, AS QUE ESQUECEM “QUE A VISÃO SE FAZ E SE TOMA NO MEIO DAS COISAS, LÁ ONDE ALGUÉM VISÍVEL SE PÕE A VER”; CIDADES QUE ESQUECEM A “REVERSIBILIDADE DAS DIMENSÕES”: VER ENTRE AS COISAS PARA SER VISTO; NÃO ESQUECER QUE AS COISAS NOS VÊEM E QUE O NOSSO CORPO – A EXPERIÊNCIA CORPORAL ENCONTRA AÍ A SUA MATRIZ – É VISTO E VISÍVEL

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de” o que “dificulta a clarificação de representações sociais mais claras e abrangentes”, recordando-nos como é difícil “o exercício de uma cidadania mais activa, quando estamos em presença de quotidianos muitas vezes «semi-urbanos», em territórios em que «as próprias pessoas nem sabem o que é que lhes falta para virem a ser cidades completas»”18. Chego, então, à ocasião de dizer que os usos do espaço público fazem parte das competências do cidadão e que a participação cultural que nele se pode desenrolar19 é uma condição da cidadania global e múltipla. Não é por acaso que participação provém do latim participatio – partilha ou acção de partilhar, o que nos remete para um quadro de responsabilidade e exigência éticas. Simultaneamente, cidade e cidadania provêm, ambas, da expressão latina civitas ou “condição de cidadão”, aquele que habita num território cuja definição não é burocrática ou administrativa, mas sim política. Sennett reitera que “a sociedade civil não é apenas aquela que resiste ao poder, mas a que inscreve o poder na ordem do discurso”20, possibilidade aberta no e pelo espaço público.

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WALLIN, Luke, The Stranger in the Green in Andrew Light e Jonathan M. Smith (orgs.), The Production of Public Space, Boston, Rowman & Littlefield, 1998. WRIGHT, Will, Wild Knowledge: science, language and social life in a fragile environment, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1992.


NOTAS 1 – Vd. Jurgen Habermas, Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1984, p. 16. 2 – Vd. Richard Sennett, The Fall of the Public Man, New York, Norton, 1992, p. 8. 3 – Vd. Will Wright, Wild Knowledge: science, language and social life in a fragile environment, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1992. 4 – Vd. Jim McGuigan, Culture and the Public Sphere, London, Routledge, 1996, p. 28. Cf., também, João Teixeira Lopes, “O estranho próximo de nós” in Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 54, 1999, pp. 155-163. 5 – Vd. Isabel Guerra, “O planeamento estratégico das cidades. Organização do espaço e acção colectiva” in Cidades, Comunidades e Territórios, n.º 1, 2000, p. 38. 6 – Vd. Barry Greenbie cit. in Luke Wallin, The Stranger in the Green in Andrew Light e Jonathan M. Smith (orgs.), The Production of Public Space, Boston, Rowman & Littlefield, 1998, pp. 100-101. 7 – São, na verdade, espaços semi-públicos. 8 – Vd. Luke Wallin, art. cit., p. 105. 9 – Vd. Jordi Borja e Zaida Muxí, El Espacio Público. Ciudad y ciudadanía, Barcelona, Electa, 2003, p. 81. 10 – Arquitecto e urbanista que, paradoxalmente, constrói edifícios tão emblemáticos – a Casa da Música do Porto é um excelente exemplo – que se transformam em autênticos ícones que marcam e intensificam as passagens e épocas históricas...

11 – O Direito à cidade constitui, nas palavras de Vítor Matias Ferreira, “o pressuposto cultural da urbanidade – Vd. “Cidade e Democracia – ambiente, património e espaço público” in Cidades, Comunidades e Territórios, n.º 1, 2000, p. 15. 12 – Vd. Richard Sennett, “La conscience de l’oeil” in AA.VV., L’Espace du Public. Les compétences du citadin, Paris, Éditions Recherches, 1991, pp. 33-34. 13 – Vd. François Maspéro citado in Isaac Joseph, “Voir, exposer, observer” in AA.VV., L’Espace du Public. Les compétences du citadin, Paris, Éditions Recherches, 1991,p. 25. 14 – Idem, ibidem, p. 26. 15 – Vd. Zeynep Çelik, Diane Favro e Richard Ingersoll (eds.), Streets. Critical perspectives on public space, Berkeley, University of California Press, 1994, p. 7. 16 – Cf., a este respeito, António Teixeira Fernandes, “Espaço social e suas representações” in Sociologia, n.º 2, 1992. 17 – Conceitos de Kevin Lynch na sua obra já tornada clássica, A Imagem da Cidade, Lisboa, Edições 70, 1990. 18 – Vd. João Seixas, “A cidade não governada. Motivações públicas e governação urbana” in Cidades, Comunidades e Territórios, n.º 1, 2000, p. 63. 19 – Cf. José Madureira Pinto, “Uma reflexão sobre políticas culturais” in AA.VV, Dinâmicas Culturais, Cidadania e Desenvolvimento Local, Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia, 1994. O autor desenvolve várias ilustrações de animação cultural no espaço público urbano. 20 – Vd. Richard Sennett, art. cit., p. 34.

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IDADES INVISÍVEIS

DEFESA CIVIL MÁRIO TOMÉ

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DEFESA CIVIL

MÁRIO TOMÉ | CORONEL NA REFORMA

AS VÍTIMAS DAS GRANDES CATÁSTROFES SÃO normalmente os sectores mais pobres da população. E isso tem dois inconvenientes: o primeiro é serem as vítimas. O segundo é não poderem decidir da política de protecção civil, que é decidida pelas elites que rarammente são atingidas. As populações habituaram-se a aceitar com um certo sentido de fatalismo as calamidades e as suas consequências. Isso permite que o empenhamento e a responsabilidade das autoridades na resposta a esse problema central da segurança e da vida das populações seja sempre relativizado, tanto na prevenção como na acção. A relação da sociedade com a protecção civil é de índole muito diferente daquela que tem com a defesa militar. Esta encontra-se envolta numa espécie de aura tecida pela gesta dos egrégios avós – parece que eram todos militares, pela glória sem mácula dos altos serviços prestados, nem que fosse a chacinar inocentes, e pela mitologia que rodeia a chamada defesa da Pátria. Por seu lado, a protecção civil é tratada com um grau de reconhecimento vulgar e encarada como coisa comesinha e rotineira de que não se deve esperar muito e que mesmo assim nunca parece corresponder ao pouco que dela é esperado. Enquanto uma está fadada para ser exaltada faça o que fizer, a outra nunca faz mais do que a sua obrigação e já estamos habituados aos buracos do sistema. Coisa de civis.

De tal maneira assim é que a norma tem sido a de atribuir os altos cargos de direcção e coordenação da Protecção Civil a militares, como é o caso do Presidente da Alta Autoridade da Protecção Civil e outros altos postos de coordenação. O “AZAR DOS CABRAIS” A sociedade aceita sem grandes reticências que se gastem anualmente cerca de dois mil milhões de euros nas FAs. Porque a mitologia nacional lhe segreda que precisamos delas para nos defenderem do inimigo. Ao contrário do que acontece com os militares e a Defesa Nacional (militar, pois claro!) os bombeiros e a protecção civil, graças à visibilidade quotidiana da sua acção ou inacção, estão sujeitos ao escrutínio permanente da sociedade e à crítica rotineira dos que são vítimas das falhas e insuficiências, materiais ou humanas, do sistema. A fatalidade é a armadura protectora das políticas e opções para responder a acidentes, cheias, incêndios florestais, calamidades, catástrofes naturais ou tecnológicas. Dizer que “os picos anómalos não são quantificáveis nem orçamentáveis” é jogar na desculpabilização dos poderes públicos, contra as exigências de uma sociedade moderna. Porque é obrigatório que se definam políticas públicas que tenham como prioridade o bem-estar geral

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da sociedade. E, o que é vital, a protecção civil joga-se toda na prevenção: a quase totalidade dos edifícios que caíram nos sismos recentes em Itália não obedeciam às normas em vigor de construção anti-sísmica. A probabilidade da ocorrência de catástrofes – um terramoto, um tsunami – é sempre admitida e integrada nos planos de protecção civil. Normalmente sem consequências práticas, porque o sistema funciona jogando na muito fraca probabilidade de que aconteçam. Mas a mais improvável das probabilidades pode provavelmente acontecer amanhã. Porque é assim que se deve lidar com as probabilidades quando se trata da vida ou da morte de dezenas, centenas, milhares de pessoas, da destruição irreversível e dramática do património público e privado. Na “defesa militar” planeiam-se operações fazendo o cálculo probabilístico aos mortos que irão custar. Na protecção civil tem de planear-se a prevenção e a acção em função do número de vidas que somos obrigados a salvar, todas se possível. Uma thin red line parece separar a fruição da natureza e dos bens disponibilizados pelo progresso do desastre e da tragédia. Mas a linha não é assim tão estreita nem releva do imponderável. É uma larga faixa onde a vontade política e a organização social têm um papel decisivo.


PALAVRAS DOS SENHORES A protecção civil tem funcionado contando com a convergência das mais variadas entidades vocacionadas quer para a prevenção, quer para o socorro, quer para o ataque às situações de acidente, desastre ou catástrofe. Um longo caminho tem sido percorrido até chegar à situação actual. Um primeiro passo na direcção certa foi dado, com a Lei Orgânica do Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil (SNBPC) de 25 de Março de 2003, que pretendeu dar coerência, coesão e unidade a todos os elementos que se conjugavam como podiam, com maior ou menor empenho e eficácia, para responder às necessidades de prevenção e resposta às mais diversas ameaças que surgem dentro do seu âmbito de actuação. Depois o Decreto-Lei n.º 203/2006, de 27 de Outubro, “veio proceder, no que concerne aos serviços centrais de natureza operacional do Ministério da Administração Interna, à reestruturação do Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil, que passou a designar-se Autoridade Nacional de Protecção Civil”. Finalmente o Decreto-Lei n.º 75/07, de 29 de Março, “veio dotar a ANPC com um novo modelo de organização que assegura o exercício eficiente e oportuno das atribuições que lhe cumprem, no âmbito da previsão e gestão de riscos, da actividade de protecção e socorro, das actividades dos bombeiros e em matéria do planeamento de emergência.”. Palavras dos senhores. Mas seis anos depois da saída da Lei Orgânica do SNBPC podemos dizer que algo de substancial mudou realmente? Por exemplo, podemos garantir hoje, nesta Lisboa moderna, resposta capaz a um sismo com ou sem maremoto, mesmo que com envergadura bem inferior

O ESFORÇO LEGAL E ADMINISTRATIVO DE NADA SERVE SE NÃO SE ALTERAREM OS CONCEITOS BASE, SE NÃO SE MUDAR A ATITUDE POLÍTICA E SE A PROTECÇÃO CIVIL NÃO PASSAR A SER ENCARADA COMO UM SOFISTICADÍSSIMO SISTEMA DE SEGURANÇA EM ALTO GRAU QUE VAI MOBILIZAR TODA A SOCIEDADE.

ao de 1755? As edificações sem segurança anti-sísmica estão a, ou vão ser objecto de obras que reduzam a sua vulnerabilidade? Todas as novas construções obedecerão às regras adequadas e tecnicamente avalisadas? Quando ardem muitos milhares de hectares de floresta todos os anos, o Governo tem como objectivo 100 mil hectares/ano de área ardida até 2012 com o seu Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios (PNDFCI). Este ambicioso projecto resume-se a alcançar a média dos últimos 25 anos, em que arderam cerca de 3 milhões de hectares numa regularidade tal que de catástrofe ambiental passou a ser um fenómeno natural. Contudo os governos têm de ser confrontados com a exigência de se conseguir que os incêndios florestais devastadores voltem a ser uma raridade, graças à vida humana nos campos, à ocupação e normal limpeza da floresta, aos corta-fogos naturais constituídos pelos terrenos agricultados, à prevenção sistemática humana, técnica e economicamente apoiada.. A forma como ANPC se organiza, a diversidade, para não dizer divergência estrutural, doutrinária e até cultural das várias forças a coordenar permanentemente, a confusão que cria entre as forças de bombeiros e

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protecção civil e as forças de segurança e mesmo militares, consegue frequentemente que o problema mais difícil de resolver em cada intrevenção seja conseguir a articulação, e até mesmo a simples comunicação, entre as diversas forças convocadas para a acção, em que os vários níveis e escalões de comando rivalizam em vez de cooperarem. E a solução é invariavelmente a mesma: põe-se à frente um militar. O esforço legal e administrativo de nada serve se não se alterarem os conceitos base, se não se mudar a atitude política e se a protecção civil não passar a ser encarada como um sofisticadíssimo sistema de segurança em alto grau que vai mobilizar toda a sociedade. Tal exige uma concepção e doutrina completamente novas, com consequências profundas no enquadramento legal, na estrutura e na organização do ANPC, na política de pessoal e de meios. Exige mesmo uma viragem de fundo na cultura da defesa nacional, uma mudança de paradigma. A defesa civil, vamos chamar-lhe assim para começar a conflituar com o paradigma actual, não pode responder à sua missão se se limitar à forma ANPC.


A LUTA E PREVENÇÃO CONTRA INCÊNDIOS É, NO ÂMBITO DA PROTECÇÃO CIVIL, A PEDRA DE TOQUE QUE COLOCA EM PERMANENTE STRESS TODO O SISTEMA E ONDE SE PODE AFERIR BASTANTE A EFICÁCIA DO SEU FUNCIONAMENTO, EXIGINDO UMA PREPARAÇÃO TÉCNICA E MORAL QUE É NORMALMENTE SUBESTIMADA.

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A LUTA CONTRA OS INCÊNDIOS FLORESTAIS A defesa civil tem que organizar-se em torno de uma força com um grande grau de qualificação, especialização e homogeneidade que lhe permita grande eficácia e oportunidade de intervenção e que sustente a necessária flexibilidade e articulação com elementos especializados de áreas exteriores. Essa força civil já existe. Mas é diminuta para as necessidades, a sua qualificação exige permanente actualização e aprofundamento e, apesar da experiência que lhe confere uma eficácia surpreendente, é subalternizado no contexto geral das forças em presença. É constituída nuclearmente pelos sapadores bombeiros e conta com os corpos de bombeiros profissionais e associações de bombeiros voluntários. A massa fundamental de intervenção nas acções de protecção civil é, como se sabe, constituída pelos bombeiros. É neles que a eficácia superior da protecção civil tem de assentar. Na GNR foram criados os GIPS, grupos de intervenção, protecção e socorro, que entre várias missões têm a de assegurar a primeira resposta aos alarmes de incêndio florestal, aquela que vai, pela sua maior ou menor rapidez e eficácia, decidir da vastidão, duração e gravidade dos incêndios. Não podemos deixar de perguntar porquê na GNR, se se trata de uma função eminentemente de protecção civil, acção de sapadores florestais, e não de segurança interna? A luta e prevenção contra incêndios é, no âmbito da protecção civil, a pedra de toque que coloca em permanente stress todo o sistema e onde se pode aferir a eficácia do seu funcionamento, exigindo uma preparação

técnica e moral que é normalmente subestimada. A sua espinha dorsal deve assentar nos sapadores e na especialização de sapadores florestais que são notoriamente em número muitíssimo insuficiente. Por seu lado, os bombeiros profissionais, que são poucos, e os voluntários, que têm de enfrentar dificuldades que tantas vezes são levantadas nos locais onde trabalham, reduzindo muito a sua disponibilidade e operacionalidade, não podem continuar a ser submetidos a esforços que demasiadas vezes ultrapassam os limites da resistência humana, havendo que acabar com a grande rotatividade, que se tem revelado negativa. Os bombeiros devem assegurar a resposta normal na sua área de acção e serem empenhados, quando necessário, em apoio e reserva do trabalho altamente especializado dos sapadores. A política de pessoal exige um processo rigoroso de selecção tendo em conta o elevado esforço físico e psicológico a que vai ser submetido. Por norma há que assegurar mais especialização, organização adequada, disponibilização dos meios necessários e sua correcta utilização, assim como simplicidade e eficácia das formas de coordenação e comando. São estas as condições sem cuja efectividade real qualquer força de bombeiros não deve ser considerada operacional. Deficiente preparação pode levar ao praticismo e à tendência para abordar rapidamente e, a maior parte das vezes, precipitadamente, um incêndio, sem avaliação adequada e planeamento racional das acções. Isto será agravado se houver deficiente coordenação dos Centros Distritais de Operações com os agentes de protecção civil em cada distrito, resultando em planeamento deficiente, uso de técnicas desadequadas e má organização do trabalho.

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A acção prática, mas que exige sólido suporte teórico, tem de defender-se da má avaliação e informação errada ou insuficiente e depende de instruções claras e precisas, exige sistemas de comunicações simples e eficazes até ao nível individual para assegurar a eficácia da acção e a protecção dos próprios bombeiros, e não pode contemporizar com a frequente descoordenação entre meios terrestres e entre estes e os meios aéreos. Os meios aéreos, pelo comando do terreno que proporcionam, devem estar na primeira linha da vigilância e reconhecimento, assegurando a cobertura diária do território nacional, com maior incidência nas zonas consideradas de maior risco, durante o período crítico – tal não dispensa a guarnição dos postos de vigia terrestres, os meios de detecção tecnicamente avançados e já disponíveis, nem a acção dos guardas florestais –, sendo obrigatórios para o comando das operações de grande envergadura, através de PCV (posto de comando em voo). PROFISSÃO, SAPADOR BOMBEIRO A defesa civil exige uma base profissional permanente, caracterizada por muita dedicação e abnegação, mas acima de tudo por muito saber e experiência. Exige prática mas também muita teoria. Exige escola, académica e prática. Exige quadros altamente qualificados capazes não só de dirigir e formar os bombeiros profissionais mas também de potenciar a generosidade e entrega dos voluntários, assegurando a eficácia da sua acção própria e a sua integração em operações conjuntas. A defesa civil tem de estruturar-se e organizar-se para o combate de forma altamente qualificada. Não é difícil concluir da necessidade de uma política sustentada de recrutamento para bombeiros sapadores


profissionais, que deve começar desde logo, e sempre, junto dos voluntários mais jovens, mas desenvolvendo uma efectiva política de chamamento à juventude para seguir a carreira de sapador bombeiro. Tal exige propaganda, incentivos e garantias de uma profissão socialmente segura e prestigiada, o que começa no reconhecimento social e institucional e vai até ao orçamento. Só com este entendimento e a concretização de tais objectivos, os próprios critérios de nomeação das chefias estarão bem clarificados, de acordo com os estatutos e a natural hierarquia de uma carreira profissional. A complexidade de que se reveste hoje a necessária organização e actuação da ANPC, assim como a necessidade de articulação e uniformização de processos, meios e doutrina, correspondendo ao comando e acção unificados, exigem uma atitude conceptual e uma prática totalmente inovadoras. Objectivamente, os governos sentem essa necessidade mas não são capazes de assumir a responsabilidade de trilhar o novo caminho: a mudança do paradigma da defesa. No mundo moderno a sociedade exige do Estado garantias de segurança face ao crime, ao terrorismo, aos cataclismos naturais e desastres da mais variada índole, incluindo os incêndios florestais e, agora, de forma particularmente acentuada, perante a ameaça crescente decorrente das alterações climáticas. Existe já a consciência clara de que a única guerra que temos de travar e nos deve mobilizar é em defesa das pessoas, das culturas e das matas, dos bens e património, privados e colectivos. Cada pessoa que morra, cada prédio que caia, cada floresta que arda, enquanto não tivermos a certeza que

AS PRIORIDADES DA DEFESA DEVERÃO FOCAR-SE NA DEFESA CIVIL, O QUE ACARRETARÁ COMO CONSEQUÊNCIA ADICIONAL E ALTAMENTE POSITIVA, A CRIAÇÃO DE FORTES DINÂMICAS NA PRÓPRIA ECONOMIA, NO SERVIÇO PÚBLICO, NOS TRANSPORTES, NA SAÚDE E NO ENSINO.

a prevenção e o socorro tiveram e têm toda a atenção e meios necessários, será um crime sem justificação nem desculpa. Está na ordem do dia a necessidade de delinear uma nova visão e concretizar uma nova resposta para esta área crucial da vida colectiva, dando prioridade absoluta à defesa das vidas, dos bens e do património. CHEGOU A HORA DA DEFESA CIVIL Encarar a hipótese de catástrofe responsavelmente obriga-nos a prevenir e responder just in time, com graus de prontidão e eficiciência determinados pelo estudo e monotorização dos fenómenos e não pela irresponsabilidade orçamental ou burocrática.. Normalmente, a resposta a uma situação de catástrofe, pela surpresa e pelo “inesperado”, porque se trata de uma situação extraordinária, é desencadeada com recurso a meios extraordinários e sempre insuficientes e normalmente em situação de stress social e de sensação de impotência. A catástrofe natural arrasta consigo um factor desculpabilizador estrutural: somos muito pequenos perante a força da mãe natureza!

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O reconhecimento da centralidade da defesa civil é, pois, um imperativo categórico. As prioridades da defesa deverão focar-se na defesa civil, o que acarretará como consequência adicional e altamente positiva a criação de fortes dinâmicas na própria economia, no serviço público, nos transportes, na saúde e no ensino, com exigências de prevenção, qualificação e rigor particularmente acentuadas na construção civil, no ordenamento do território, na florestação e na urbanização. Decorre ainda a vantagem de o alargamento do recrutamento para agentes da defesa civil se integrar no combate ao desemprego, concorrendo vantajosamente com o aliciamento de jovens mercenários para Obama, que se disponibilizam para irem para a Bósnia e o Afeganistão. O peso da defesa militar, que impõe despesas pesadas e parasitárias orientadas para objectivos cada vez mais questionáveis como a permanência na NATO e a participação nas criminosas guerras do império, deve ser revisto em profundidade e substancialmente reduzido para, num orçamento necessariamente limitado, reorientar a despesa no sentido da satisfação das reais necessidades da sociedade e do país.


UMA FUTURA “LEI DE PROGRAMAÇÃO DE DEFESA CIVIL” PREVENDO, ENTRE OUTROS JÁ REFERIDOS, CORPOS AÉREO E NAVAL DA DEFESA CIVIL, INTEGRANDO OS NECESSÁRIOS MEIOS DE EVACUAÇÃO EM ESTREITA ARTICULAÇÃO COM O SNS, COMBATE A INCÊNDIOS, SOCORRO A NÁUFRAGOS E UM GRUPO NACIONAL DE NADADORES-SALVADORES EM PERMANÊNCIA, DAR-NOS-Á A SATISFAÇÃO DE VERMOS A UTILIDADE DO DINHEIRO ORÇAMENTADO.

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O “conceito estratégico de defesa nacional” ou passa por aí ou limita-se a encanar a perna à rã ao sabor de doutrinas militaristas que exigem prioridades totalmente desadequadas às necessidades que o mundo actual nos coloca concretamente enquanto sociedade organizada. O próprio combate ao terrorismo, já não há dúvidas quanto a isso, não passa pela acção militar, pelo contrário, esta só agrava a ameaça; mas exige sofisticados e eficazes seviços de informação, cooperação estratégica e táctica nesse âmbito e acção policial específica, inserindo-se claramente no próprio âmbito da defesa civil. Uma futura “Lei de Programação de Defesa Civil” prevendo, entre outros já referidos, corpos aéreo e naval da defesa civil, integrando os necessários meios de evacuação em estreita articulação com o SNS, combate a incêndios, socorro a náufragos e um grupo nacional de nadadores-salvadores em permanência, dar-nos-á a satisfação de vermos a utilidade do dinheiro orçamentado. Isso implica que a defesa civil passe a ser tida como axial e prioritária na estruturação e organização da defesa nacional, impondo a criação de carreiras de defesa civil, com hierarquia própria e escola – prática e academia – que assegure autonomamente a preparação adequada, e em número suficiente, dos seus comandos, quadros e agentes. A força nacional de Defesa Civil será o eixo de uma estrutura em rede que integrará todos os meios e formas de participação e de voluntariado e passará pela formação e preparação individual e colectiva dos cidadãos e cidadãs no sentido de serem parte activa permanente da defesa civil.

Claro que é muito difícil arrostar com a resistência da tradição, dos interesses instalados. Mas este é o caminho: classificação da defesa civil como primeira prioridade no campo da Defesa. Há que impor um novo paradigma cortando com os decorrentes da mistificação do mundo armado e das razões para uma boa guerra.

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QIMONDA

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A ARMADILHA DO INVESTIMENTO ESTRANGEIRO

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VÍTOR LIMA


QIMONDA: A ARMADILHA DO INVESTIMENTO ESTRANGEIRO VÍTOR LIMA | ECONOMISTA

O capitalismo está em plena época de monda, limpando o terreno à custa dos indesejáveis trabalhadores. E, nessa actividade que está para durar, participa, inteirinha, a Qimonda. Porém, a situação da Qimonda só (e não é pouco) vale pelo infortúnio dos seus quase dois mil trabalhadores, que em nada contribuiram para o eventual fecho da empresa. Não é caso único mas é o acontecimento do género de maior dimensão social em Portugal onde, para o bem ou para o mal, não abundam grandes empresas. A situação em que está a Qimonda é trivial; só no dia 27 de Janeiro foram anunciados 72000 despedimentos nos países desenvolvidos, a indústria automóvel perdeu em 3 dias 41 mil empregos e já a OIT aponta para 40 milhões o número dos novos desprovidos de emprego em 2009, a somar aos 190 milhões vindos de 2008 (Nov). No caso Qimonda, dizem que a causa é a redução do mercado final dos bens em que os seus produtos se incorporam; como poderia ser que, algures na Alemanha, alguém tenha feito umas contas e decidido fechar a Qimonda em Portugal, abrindo outra, numa qualquer China. Os argumentos tornam-se dispiciendos quando no fim o que se concretiza é uma tragédia social. Pela sua clareza, transcrevemos afirmações do Van Zeller, presidente da CIP, ao Jornal de Negócios: «Os chineses não querem fazer nada daquilo. Querem é ficar com a patente e outras coisas. Agora é o mundo dos abutres. Vão ali depenicar e apanhar bocados».

Para van Zeller, o que vai é acontecer à Qimonda é que aparecerá alguém para ficar com a patente dos semicondutores, «valiosíssima», outro contrata os engenheiros e um terceiro «leva cinco máquinas e fica tudo desfeito». O líder da CIP [que à data desta entrevista desconhecia o interesse eventual de um alemão na empresa] diz que a Qimonda só veio para Portugal por causa da mão-de-obra ser barata e avisa que agora «não tem nenhuma viabilidade». O governo, pela boca do desastrado Pinho, informa a plebe que a Qimonda vale 5% das exportações, para assustar e justificar o seu empenho, sem revelar quanto pesam nas importações os bens incorporados provenientes da Alemanha e que em Portugal nada mais se acrescenta que o trabalho, nem todo qualificado. Assim, a valia da empresa no seu todo só existe pela sua inserção na lógica produtiva do grupo em que se enquadra (que lhe fornecia todos os bens a transformar e lhe adquiria toda a produção), sem a qual pouco vale. É também trivial o coro da oposição contra o governo e a defesa deste de que fez e fará tudo o que lhe for possível. Se os protagonistas trocassem os seus papéis, a situação redundaria exactamente como está: uma séria ameaça para 1900 trabalhadores e suas famílias. A questão Qimonda é sintomática da forma como se tem mistificado a questão do investimento estrangeiro, menosprezado o papel do mercado interno e ignorado a

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precariedade das vidas dos trabalhadores, que são quase sinónimo de género humano. Também é sintomática a ilusão relativa ao poder e ao papel do Estado nestas questões. COMO FUNCIONA O CAPITAL NO ÂMBITO DO INVESTIMENTO ESTRANGEIRO Na realidade, o investimento estrangeiro, sobretudo onde sejam protagonistas empórios multinacionais, envolve várias características processuais mais ou menos típicas mas não únicas: * Negociação prévia de incentivos fiscais específicos para além das benesses genéricas que os Estados oferecem para interessar os capitais estrangeiros, incluindo a mobilização de fundos comunitários e formação, em Portugal a cargo do IEFP. São intervenientes obrigatórios nestas negociações entidades governamentais (áreas da economia, das finanças, ambiente, autarquias…), consultores e grandes escritórios de advogados, como se vem observando no caso Freeport. Em negócios chorudos, são incontornáveis pagamentos de luvas ao partido e aos intervenientes directos, do aparelho central ou da autarquia. * Intervenção de agências governamentais para agilizar os processos. Em Portugal existe a API – Agên-


cia Portuguesa de Investimentos, presidida por um tal Basílio Horta (CDS), que já referiu recentemente ser a actual situação muito difícil para a captação de investimentos. Como os socratóides não podiam deixar de controlar a API, Basílio não dá um ai sem que se pronuncie o controleiro do PS, um imbecil de nome Gomes da Silva, ministro da agricultura de Guterres, que se celebrizou quando, em plena crise da BSE afirmou, para tranquilizar a plebe, andar a comer mioleira… * A escolha da localização é negociada pela API e os autarcas oferecendo estes terrenos, infraestruturas e o que podem para garantir postos de trabalho para os seus conterrâneos. Pelo caminho pode ser aprovado um PIN (Projecto de Interesse Nacional) onde o património ambiental é em regra desprezado, em nome do progresso, da inovação, da criação de riqueza, bla bla.... Toda a gente fica contente por ter empresas gigantescas na localidade, pelo menos até que estas, inopinadamente, decidir ir embora, deixando um terreno quase vazio e trabalhadores no desemprego e com uma experiência que pouco lhes servirá, pois não encontrarão nas imediações outras empresas do ramo; bons exemplos disso são a Qimonda, em Vila do Conde, a Delphi em Ponte de Sor e, talvez nos próximos anos, a Autoeuropa em Palmela ou a Citroen em Mangualde. Consideramos interessante abordar a lógica do investimento estrangeiro e das deslocalizações:

O OBJECTIVO DO INVESTIMENTO ESTRANGEIRO É, ESSENCIALMENTE, A MAXIMIZAÇÃO DE UMA EQUAÇÃO QUE ENVOLVE VÁRIAS VARIÁVEIS; APOIOS PÚBLICOS, MATÉRIAS PRIMAS, DUMPING SOCIAL, LABORAL, SALARIAL E AMBIENTAL E QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO, PRINCIPALMENTE.

* O objectivo do investimento estrangeiro é, essencialmente, a maximização de uma equação que envolve várias variáveis: apoios públicos, matérias-primas, dumping social, laboral, salarial e ambiental e qualificação do trabalho, principalmente. Em termos concretos, isso significa uma pressão a nível global para um empobrecimento e redução de direitos dos trabalhadores e da população em geral, particularmente na Europa, Japão e América do Norte, no sentido de uma aproximação com os padrões da Ásia. Porém, aqueles caem mais depressa do que ascendem os últimos. E dentro em breve o capitalismo poderá concluir que as suas fábricas se deverão situar em África quando este continente oferecer bons parâmetros para aquelas variáveis, que permitam a maximização da tal equação num patamar superior. * A complexidade técnica do processo produtivo permite segmentá-lo em várias fases e separar a produção dos diversos componentes, repartindo-a por várias empresas, em locais distintos. Assim, a empresa-sede distribui a produção e aquisição de peças e componentes por vários locais do mundo, mantendo

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toda a logística sob seu controlo. A própria produção do bem final pode ser deslocalizada para longe do país da empresa-sede, ficando aí o “cérebro” do sistema, isto é, a gestão global, o controlo financeiro, a investigação. * Essa segmentação tornou-se facilitada pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação e tratamento da informação. Mas exige enormes investimentos públicos em auto-estradas, plataformas logísticas, portos, para que as mercadorias circulem rapidamente; essa foi a razão para que, logo depois da absorção portuguesa pela UE, os fundos comunitários financiassem tão fartamente esse tipo de investimentos. Nesse modelo, tem ficado, em toda a parte, subalternizado o impacto ambiental dessa hipertrofia do sistema de transportes, cujos danos não são repercutidos no custo das mercadorias mas, socializados, pagos com os impostos e com a saúde de todos. * A total mobilidade geográfica desejada para as mercadorias e para os capitais não é aplicada aos tra-


OS CAPITALISTAS PROCURAM PERMANENTEMENTE JUSTIFICAR A SUA RELEVÂNCIA NO PROCESSO PRODUTIVO E PROMOVER IDEOLOGICAMENTE A SUA NECESSIDADE JUNTO DOS TRABALHADORES; PARALELAMENTE, PROCURAM DESVALORIZAR AS CAPACIDADES TÉCNICAS E DE GESTÃO DETIDAS PELOS TRABALHADORES PARA QUE ESTES ACEITEM A SUPREMACIA E O DOMÍNIO DO CAPITAL

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balhadores. Hoje, como sempre, o capital considera os trabalhadores como seus, tornando-os objecto de controle, moldáveis às suas necessidades de acumulação; e é para esse efeito condicionador que foram criadas fronteiras, “Schengens”, leis da imigração e leis condicionadoras da mobilidade social e profissional. * As empresas fornecedoras do investidor estrangeiro umas vezes pertencem ao mesmo conglomerado multinacional (caso da Qimonda) ou são empresas juridicamente independentes. Neste útimo caso, comum no têxtil do norte de Portugal, os bens intermédios são fornecidos pelo cliente, e os prazos, os preços e as condições de pagamento definidas pela multinacional. Em Portugal, as multinacionais colocam as empresas portuguesas em tal estado de penúria que estas frequentemente deixam de pagar os impostos e a segurança social, submetendo-se a tudo, para evitar o inevitável fecho, com a conhecida complacência dos governos. Estes, dentro da mesma onda das multinacionais, criam códigos de trabalho para fragilizar, explorar, escravizar os trabalhadores, enquanto hipocritamente negam defender o modelo económico dos baixos salários. Vistas as coisas deste ângulo reentrámos subrepticiamente no salazarismo e nas suas corporações, pela mão do “democrático” PS/PSD. * O objectivo da redução de custos para a multinacional está sempre presente e a referida repartição do processo produtivo por várias empresas tanto facilita o controlo de todo o processo produtivo como retira

todo o poder sobre o bem final a esses produtores de componentes. Quanto maior é a empresa detentora do negócio mais dependentes e fragilizados ficam os seus fornecedores. O caso típico é o da produção automóvel e das muitas empresas especializadas que produzem componentes que, de nada servem se a multinacional não os comprar. Em caso de crise, como a actual, qualquer quebra ao nível da procura final desencadeia uma cascata de dificuldades e falências a montante. Os capitalistas procuram permanentemente justificar a sua relevância no processo produtivo e promover ideologicamente a sua necessidade junto dos trabalhadores; paralelamente, procuram desvalorizar as capacidades técnicas e de gestão detidas pelos trabalhadores para que estes aceitem a supremacia e o domínio do capital. * Ao nível do trabalhador, as lutas são difíceis quando o seu trabalho tem um só comprador que se situa a milhares de quilómetros de distância. Se é aquele também o fornecedor da matéria-prima, a questão ainda se complica mais, como no caso da Qimonda; e se algures existem outras empresas que fornecem o mesmo bem à multinacional, esta em nada se sente molestada se houver uma luta parcelar e localizada. E não são abundantes os casos de concertação entre trabalhadores de vários países, contra uma mesma multinacional. Está-se bem longe dos tempos em que coexistiam numa mesma fábrica, localidade, ou mesmo país, os trabalhadores de quase todos os bens necessários à produção de um certo produto final.

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* A pretendida atomização do trabalhador individual estende-se ao seu grupo de trabalho, aos seus congéneres próximos. Para ajudar a esse isolamento o capital, os seus mandarins e media cultivam ou incentivam aos patriotismos, aos nacionalismos mais tacanhos, colocando trabalhadores contra trabalhadores enquanto os accionistas e os gestores das multinacionais gozam o espectáculo. Nesse contexto que ninguém se admire quando se declaram abertamente atitudes xenófobas, emanação fedorenta da diabolização do “outro” que, por sua vez, faz parte da matriz ideológica do fascismo. * A complexidade do processo técnico de produção exige uma multiplicidade de componentes, de funções e qualificações específicas dos trabalhadores. E todas elas, componentes e qualificações, só têm, realmente, utilidade pela integração da sua necessária quota parte na produção do bem ou serviço final. Dito de outro modo, o carácter colectivo, social, da produção global tornou-se mais evidente e intenso que nunca e a actual globalização alargou-a na sua escala geográfica. * As qualificações especializadas dos trabalhadores podem servir de pouco quando desligadas da fase específica em que intervêm, na produção de um bem concreto. Se a empresa multinacional que o fabrica fecha, daí podem surgir centenas de trabalhadores com qualificação mas nem sempre adaptáveis à produção de outras coisas. E as multinacionais sabem muito bem disso, como sabem que podem pressionar os trabalhadores para obter maiores lucros, pois as alternativas de emprego não são fáceis de obter.


* A referida complexidade gerida pelo capital torna a necessária integração das diversas funções desempenhadas pelos trabalhadores dependente das decisões e interesses do capital, em regra distintos dos da sociedade humana. E, portanto, o processo produtivo, privatizado, socializado no seio da classe dos capitalistas, acaba por fragilizar a posição dos trabalhadores nas manifestações de antagonismo contra o capital, de emancipação. Daí resulta, no conjunto dos trabalhadores, uma exploração acrescida, uma precarização no âmbito do trabalho e sua extensão a todas as áreas da vida, conduzindo a uma implícita escravização do trabalhador que, apesar de tudo, se considera livre e é formalmente considerado como livre. * A estreita ligação entre os trabalhadores intervenientes na produção de um bem ou serviço concreto é, de facto, uma imprescindibilidade comum, uma solidariedade objectiva e obrigatória. Por outro lado, o crescente nível de conhecimentos residentes nos trabalhadores e na multidão em geral evidencia que no seu conjunto, na sua interacção e constante conexão, os trabalhadores podem facilmente garantir a produção social, sem as decisões distorcedoras e irracionais dos capitalistas, desligadas do objectivo do bem-estar social, do desenvolvimento harmónico da sociedade humana. Do ponto de vista da política económica, coisa herética numa época em que somente o que dá vantagens para as empresas tem dignidade, a premência, a prioridade para a entrada de investimentos estrangeiros, a todo o custo, não acautela a sua qualidade, a criação

efectiva de trabalho, a entrada de tecnologias incorporáveis no “know-how” dos trabalhadores, a criação de riqueza para a comunidade. Tudo é deixado ao arbítrio dos investidores, sendo estes os abençoados criadores de riqueza, os determinantes do santificado mercado. No século XVIII, a Inglaterra, empunhando a sua conveniente teoria das vantagens comparativas, mandou os portugueses tratar das vinhas do Douro, em ambiente sadio, assumindo ela a brutalidade e a poluição da produção industrial, provavelmente como penitência imposta pela doutrina calvinista. Bem ou mal, Portugal tinha uma especialização produtiva, embora geradora do subdesenvolvimento; hoje, porém, não há especialização, nem desenvolvimento. O mandarinato fala muito da dependência portuguesa da exportação e diz que só esta pode levar à redenção. Ora para se vender “lá fora” é preciso ser competitivo e, para esse fim, o mandarinato frisa a fulcral importância dos custos salariais, embora os trabalhadores no seu conjunto sejam uns seres pouco recomendáveis quando comparados com os diligentes e laboriosos empresários, esquecendo-se de referir a histórica incapacidade técnica e de gestão dos capitalistas lusos. Se as exportações portuguesas para Espanha caíram 27,5 por cento até Novembro e se a Qimonda, em toda a sua precariedade, representava 5% das exportações, alicerçar o desenvolvimento e a produção de riqueza nas vendas ao exterior, sacrificando o poder de compra da multidão a esse objectivo, é criminoso e suicida.

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SUMÁRIA AVALIAÇÃO DO INVESTIMENTO ESTRANGEIRO EM PORTUGAL Vejamos agora alguns dados caracterizadores do investimento estrangeiro (IDE), divulgados pelo Banco de Portugal, através da comparação entre vários indicadores médios relativos aos periodos 1996/2001 e 2002/2008 (até Novembro) Em termos globais, nos últimos anos, o registo da entrada de meios financeiros associados ao IDE tem estabilizado em cerca de 30000 M euros e, como a saída anual se cifra em torno dos 25000 M euros, o saldo, em termos financeiros, de balança de pagamentos, exprime-se apenas em 1 euro por cada 6 euros entrados para investimento. Aqueles valores, porém, devem ser reavaliados na sua dimensão e significado. E isso porque na entrada de fundos, como na saída, pesam sobremaneira os empréstimos de curto prazo e os seus reembolsos relativos, na maioria, a créditos comerciais que, realisticamente, se não podem considerar verdadeiros investimentos ou desinvestimentos mas antes operações relativas a fundo de maneio. A sua importância relativa tem aumentado, como se pode verificar adiante, ultrapassando nos últimos anos mais de metade do que o Banco de Portugal classifica de IDE (quadro 1)


EMPRÉSTIMOS DE CURTO PRAZO (% NO TOTAL) QUADRO 1

Empréstimos Reembolsos

1996/2001

44,9

57,9

2002/2008 (Nov)

50,1

60,5

Por outro lado, no total do IDE inclui-se, naturalmente, o reinvestimento de lucros, o que pode constituir, de facto, um reforço do investimento estrangeiro mas, sem corresponder a uma entrada real de valores em Portugal. O seu quantitativo médio no periodo 2002/2008 (Nov) equivale a 10,2% das entradas registadas de IDE, contra 12,9% no periodo anterior aqui considerado. Sem esquecer o que se referiu nos parágrafos anteriores e que diminui drasticamente o significado dos valores tomados como IDE, a repartição por sector de actividade do seu total, bem como das saídas de capitais relacionadas, fornece os elementos que constam do quadro 2. No capítulo do IDE, como se denota, há um claro reforço de áreas que visam essencialmente a colocação em Portugal de bens ou serviços produzidos no exterior ou o aproveitamento das facilidades concedidas aos projectos imobiliários. No seu conjunto, estas actividades não são tecnicamente grandes introdutoras de novas tecnologias, factor sempre muito referido pelo mandarinato. A indústria, potencialmente o sector mais carenciado de novas tecnologias e onde o seu impacto melhor

Indústrias extractivas e transformadoras

QUADRO 2

% DO TOTAL

Comércio, restauração e hotelaria

Construção, Imobil. e serviços às empresas

Outros sectores

ENTRADAS DE CAPITAL (IDE) 1996/2001

40,3

23,1

23,2

13,5

2002/2008 (Nov)

30,5

27,1

27,8

14,6

1996/2001

51,6

21,9

16,5

10,0

2002/2008 (Nov)

35,0

34,7

20,7

9,6

SAÍDAS DE CAPITAL

se faria sentir, decai nitidamente entre os dois periodos cotejados; e, na verdade, não se denota por aqui se o IDE na indústria traz consigo condições para uma melhoria das capacidades produtivas ou se se trata de um simples aproveitamento de trabalho barato. Quanto às saídas de capital, a indústria, apesar da redução do seu peso no total, manifesta a tendência europeia para a desindustrialização, a despeito dos baixos salários pagos em Portugal. O elevado crescimento da saída de capitais investidos no comércio e hotelaria revelará que a atrofia do mercado interno ajuda à concentração das actividades distribuidoras em Espanha. Uma tendência semelhante poderá observar-se no imobiliário e nos serviços, mormente nos últimos.

O saldo entre os fluxos financeiros de entrada (IDE) e saída de capitais relacionados com o investimento estrangeiro para os dois períodos estudados evoluem positivamente, de 3,5 M euros para 4,2 M euros. Os contributos percentuais dos principais sectores de actividade para aqueles valores não são, contudo, portadores de boas notícias (ver quadro 3) As saídas e entradas de investimento na indústria quase se equilibram e, no comércio, poderão as causas do saldo negativo estar relacionadas com a concentração em Espanha da distribuição para a Península (tomada como mercado único pelos capitais externos), sobretudo nos tempos mais recentes, de perda de peso relativo do mercado interno português, como fruto da anémica conjuntura.

Indústrias extractivas e transformadoras

Comércio, restauração e hotelaria

Construção, Imobil. e serviços às empresas

Intermediação financeira

1996/2001

- 1,3

28,2

49,5

10,8

2002/2008 (Nov)

3,2

-19,5

73,3

20,7

QUADRO 3

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[29] A MÃO VISÍVEL


A BURGUESIA PORTUGUESA PREFERE OUTRAS ACTIVIDADES, MORMENTE AS SUBTRAIDAS À CONCORRÊNCIA EXTERNA, EM SITUAÇÃO DE OLIGOPÓLIO, OU O INVESTIMENTO INDUSTRIAL NO EXTERIOR, NUMA MANIFESTAÇÃO DA HIERARQUIA PRÓPRIA DO CAPITAL; A ALEMANHA PODE INVESTIR EM PORTUGAL E NA CHINA, POR EXEMPLO, MAS DIFICILMENTE O CAPITAL INDUSTRIAL PORTUGUÊS SE INSTALA NA ALEMANHA.

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[30] A MÃO VISÍVEL


Particularmente relevante é que o referido saldo positivo global dependa em exclusivo do facto de haver mais investimento externo no imobiliário, nos serviços às empresas e na intermediação financeira, o que revela bem quais os sectores que em Portugal são atractivos para o capital estrangeiro. Coloca-se desde logo a questão se ser atractivo para o capital estrangeiro constitui forçosamente um benefício para os trabalhadores, para a criação de empregos ou a melhoria das capacidades produtivas, o que não parece constituir. Note-se ainda que o ratio entradas (IDE)/saidas passou de 1,29 em 1996/2001 para apenas 1,17 no periodo seguinte, o que revela um evidente estreitamento do excesso de IDE face às saídas de capital, onde se inclui o desinvestimento. Dizer que a estrutura produtiva portuguesa apresenta características muito penalizantes no contexto do formato para a criação de riqueza montado pelos padrões neoliberais é uma afirmação com vasta concordância. Com as adequações e equiparações necessárias (cuja explicitação não faremos aqui, por economia de texto mas que disponibilizaremos a quem o solicitar) procedemos à comparação da estrutura média do IDE em 2002/2008 (Nov) com a do emprego nas actividades essencialmente privadas (Anuário Estatístico 2007, INE) e obtivemos as seguintes conclusões, que dispensam comentários: * 34% do IDE destina-se a actividades financeiras ou imobiliárias e serviços às empresas que representam apenas 10,6% do emprego em 2006. * A construção, a agricultura e a pesca que represen-

tavam, em conjunto, 29,1% do emprego em 2006 somente atraem 1,5% do IDE no periodo 2002/2008 (Nov). * A indústria extractiva ou transformadora, que ocupa 23,8% do emprego, constituiu o destino de 31,5% do IDE no periodo referido. Por outro lado, a comparação da estrutura do IDE com a criação sectorial de valor acrescentado (VAB) ou a parcela neste último dos salários mostra que: * Em 2006, as actividades financeiras ou imobiliárias e serviços às empresas que atraem 34% do IDE são aquelas onde a capitação do VAB é mais elevada (excluida a produção de electricidade), com 118 e 59 mil euros, respectivamente, comparando com 25 mil para o total dos sectores essencialmente privados; por outro lado, a parcela dos salários no VAB daquelas duas actividades é de, respectivamente, 40 e 27% contra 50% para o total dos sectores essencialmente privados. * Por seu turno, as indústrias constituem um atractivo aliciante para o capital estrangeiro (31,5% do IDE) por razões que se prendem com as baixas remunerações médias (13500 euros anuais), pese embora a elevada parcela dos salários no VAB (64%) A comparação da referida estrutura sectorial do IDE para o periodo 2002/2008 (Nov) com a estrutura do FBCF global das diversas actividades evidencia diferenças claras:

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[31] A MÃO VISÍVEL

* A indústria, se no IDE representa 31,5% a nível global, na FBCF apenas absorve 16,4% do total das actividades fundamentalmente privadas. Se o capital em geral investe na indústria num contexto de distribuição internacional da produção, a burguesia portuguesa prefere outras actividades, mormente as subtraídas à concorrência externa, em situação de oligopólio, ou o investimento industrial no exterior, numa manifestação da hierarquia própria do capital. a Alemanha pode investir em Portugal e na China, por exemplo, mas dificilmente o capital industrial português se instala na Alemanha. Nesse contexto, recordemos que Ilídio Pinho se desfez do seu património industrial e se tornou rentista, sendo essa também a principal fonte de riqueza de Berardo; e que na conhecida Sonae a actividade industrial que lhe deu o nome (Sociedade Nacional de Estratificados) é hoje marginal, cedendo o passo ao imobiliário, à distribuição retalhista e às vulgares telecomunicações. * Se em Portugal a FBCF no comércio e hotelaria apenas corresponde a 8,7% do total dos sectores essencialmente privados, no IDE essas actividades absorvem 28% do total. Como atrás se disse, tal representa a necessidade do capital estrangeiro em estabelecer pontes para a colocação da sua produção e, em menor escala, para o encaminhamento de exportações portuguesas. * As actividades imobiliárias e de prestação de serviços às empresas compreendem o principal destino da FBCF global dos sectores vocacionalmente privados


(39,8%) revelando-se assim a sua conhecida preferência por actividades menos submetidas à concorrência exterior ou especulativas. No IDE, esses sectores são também muito relevantes (27,4% do total) mas perdem peso específico dada a importância manifestada pela indústria e o comércio.

O VOLUME DOS LUCROS DAS EMPRESAS ESTRANGEIRAS EM PORTUGAL, SAÍDOS PARA REMUNERAÇÃO DOS SEUS ACCIONISTAS, APESAR DAS ENTRADAS DE FUNDOS PROVENIENTES DO EXTERIOR PARA REMUNERAR CAPITALISTAS PORTUGUESES, TRADUZ-SE NUMA PERDA LÍQUIDA DE RIQUEZA PARA O PAÍS, SITUAÇÃO QUE SE REPETE ANO APÓS ANO.

RENDIMENTOS DO INVESTIMENTO EXTERNO A avaliação da contabilização dos rendimentos do investimento estrangeiro na balança de pagamentos revela o grau de subalternidade do capitalismo português. O volume dos lucros das empresas estrangeiras em Portugal, saídos para remuneração dos seus accionistas, apesar das entradas de fundos provenientes do exterior para remunerar capitalistas portugueses, traduz-se numa perda líquida de riqueza para o país, situação que se repete ano após ano.

Porém, a saída de capitais a título de dividendos não corresponde a todo o volume de lucros registados pelos investimentos estrangeiros em Portugal; uma outra fatia é constituida por lucros reinvestidos, incorporados no capital social ou nas reservas das suas sucursais portuguesas. O quadro 5 mede o significado conjunto e a evolução dessas duas parcelas dos lucros dos investimentos estrangeiros em Portugal, comparativamente ao PIB.

Valores anuais médios em Milhões de euros

Valores em Milhões de euros

1996/2001

2002/2008 (Nov)

ENTRADAS DE CAPITAL – lucros proven. do exterior

496,9

1891,0

SAÍDAS DE CAPITAL – lucros gerados em Portugal

1431,8

3317,2

Entradas/Saídas (%)

35,1

54,7

SALDO

-935,0

-1426,2

QUADRO 4

Sublinhe-se, em primeiro lugar, que a dinâmica dos lucros gerados pelas empresas estrangeiras é várias vezes superior à observada para a criação de riqueza em Portugal. O peso dos lucros reinvestidos em Portugal no total tem vindo a reduzir-se, passando de 52,1% para 47,3% nos dois periodos considerados, devendo ainda registar-se a sua quebra abrupta em 2005/2007 para valores abaixo dos 45%. Refira-se que no Brasil as empresas estrangeiras são obrigadas a reinvestir no país pelo menos 70% dos seus lucros.

1996/2001

2002/2007

Variação (%)

PIB médio (preços correntes)

110.113

147.722

+34,16

Lucros totais

2.990,9

5.987,1

+100,18

Lucros reinvestidos

1.559,1

2.833,1

+81,72

Lucros saídos de Portugal

1.431,8

3.153,9

+120,27

2,72

4,05

QUADRO 5

Lucros totais (% PIB)

VÍRUS ABRIL/MAIO 2009

[32] A MÃO VISÍVEL


NA SUA GLOBALIDADE, A BALANÇA TECNOLÓGICA MANIFESTA-SE POSITIVA NOS DOIS ÚLTIMOS ANOS, INVERTENDO UM LONGO REGISTO ANTERIOR DE SALDOS NEGATIVOS, EM VIRTUDE DO CRESCIMENTO DA EXPORTAÇÃO RECENTE DE TECNOLOGIA NO CAMPO DAS ENERGIAS RENOVÁVEIS... QUE, CONTUDO CÁ, MARCAM PASSO NA SUA APLICAÇÃO PARA NÃO MOLESTAR OS INTERESSES DAS PETROLÍFERAS E DA EDP.

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[33] A MÃO VISÍVEL


O significado desta tendência é claro. À medida que a recessão se vem arrastando como fruto das debilidades estruturais de Portugal, os capitais estrangeiros instalados aumentam a parcela dos seus lucros aí gerados exportados para o exterior. De outro modo, Portugal vai decaindo na hierarquia das preferências do capital internacional. Note-se, para efeitos de comparação, que o volume dos lucros realizados pelos investidores externos em Portugal supera nitidamente os valores do tão badalado deficit (agora muito menos, pois é preciso acudir aos bancos, apoiar as empresas, pagar dívidas…) A ENTRADA DE TECNOLOGIA Na sua globalidade, a balança tecnológica manifesta-se positiva nos dois últimos anos, invertendo um longo registo anterior de saldos negativos, em virtude do crescimento da exportação recente de tecnologia no campo das energias renováveis… que contudo cá marcam passo na sua aplicação, para não molestar os interesses das petrolíferas e da EDP. Das componentes da balança tecnológica, a que inclui direitos de aquisição ou utilização de patentes, marcas ou similares, é bastante negativa (134 M euros em 2007). Naturalmente que estes valores não derivam linearmente do investimento estrangeiro, mas sobretudo do deficit tecnológico das empresas portuguesas, da sua incipiente capacidade de criar tecnologia, da sua elevada dependência do exterior. Apesar da propaganda sobre a vinda de tanta tecnologia atrelada ao investimento estrangeiro, os governos talvez devam explicar porque é que os pagamentos pela importação de direitos de aquisição ou utilização de

patentes, marcas ou similares se mantêm praticamente estagnados há muitos anos com 259,5 M euros anuais no periodo 1996/2001 e 297,6 em 2002/2008 (Nov). Um processo de desenvolvimento numa economia atrasada envolve a incorporação de tecnologias no processo produtivo. Se as importações de tecnologia não apresentam grande crescimento será porque os bravos empresários portugueses, nos seus centros de investigação empresariais (?) desataram a desenvolver tecnologia para substituir as importações? Se as importações de tecnologia não apresentam grande crescimento será porque os investidores estrangeiros aqui instalados se esqueceram da tecnologia no bornal (a não ser direitos de utilização de marcas que em rigor não são tecnologia nenhuma)? Ou então, condoídos com o atraso nacional, oferecem-na sem contrapartidas… O destacado saldo negativo e a relativa estagnação das importações de tecnologia revelam sobretudo o bloqueamento do reforço das capacidades produtivas do tecido empresarial português e que o investimento estrangeiro tende a ficar mais associado a actividades pouco incorporantes de tecnologia, como atrás se referiu.

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TEXTO PUBLICADO NO BLOGUE ESQUERDA DESALINHADA HTTP://ESQUERDA D _ ESALINHADA.BLOGS.SAPO.PT/


ALTERFILIA

ESQUERDA PARTIDO REVOLUÇÃO

B

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ADIOU ENSAÏD


«O VOLUNTARISMO DE SARKOZY É, EM PRIMEIRO LUGAR, A OPRESSÃO DOS MAIS FRACOS» ALAIN BADIOU | FILÓSOFO

O seu trabalho filosófico e o seu envolvimento político com a extrema-esquerda remontam aos anos 70. No entanto, nestes últimos anos, tornou-se no símbolo de uma nova radicalidade intelectual, que critica o liberalismo, o reformismo e mesmo a democracia. Como é que explica o fenómeno? “Radicalidade” é um termo que eu não emprego muitas vezes. Vindo do inglês, parece designar qualquer coisa para além da esquerda, ou até mesmo para além da extrema-esquerda, onde a vista não alcança! Prefiro dar-lhe o seu primeiro sentido: levar as coisas até à raiz, ao nível da sua constituição essencial. Porque é uma definição possível da filosofia. Se os intermediários mediáticos descobriram recentemente a minha “radicalidade” política e intelectual, é porque eu não mudei desde os anos 70, um período em que, sob o adjectivo de “revolucionária”, a radicalidade política estava de boa saúde. Durante os anos 80, muitos renunciaram e eu mantive-me fiel. Por que é que esta fidelidade se tornou visível, mediática? A explicação está em procurar na evidência de uma vacuidade do jogo político oficial. Há uma crise da política, uma crise do Estado. A separação entre a vida das pessoas e aquilo que faz o poder, ou que se recusa a fazer, cresce. Esta crise política, que também é uma crise ideológica, contribui para o retorno do interesse pelos pensamentos que tentam ir à raiz das coisas.

O seu panfleto “De quoi Sarkozy est-il le nom?” teve um eco inesperado há um ano atrás. Que balanço faz hoje da política do presidente da República? Um balanço idêntico ao que temíamos. O seu voluntarismo aplica-se ao que se pode aplicar, isto é, através da opressão dos mais fracos, nomeadamente dos trabalhadores estrangeiros, e ao crescimento desenfreado, através de leis perversas, do aparelho repressivo. As “reformas” vão todas no mesmo sentido: um Estado autoritário e anti-popular, que qualquer obstáculo importuna. Sarkozy procede, com velocidade, ao desmantelamento do sistema educativo e, mais grave ainda, do sector hospitalar. A designação do doente mental enquanto objecto de perseguição pública é um dos aspectos mais repelentes da sua política. Nestes últimos meses, a crise financeira apanhou-o em contra-pé. Ele tenta geri-la com anúncios que prometem efeitos mas não faz mais do que fazem os outros governos por todo o lado: salvar bancos com fundos públicos. A propósito dele, você falou em “pétainismo transcendental”. Isso não será excessivo? Esta fórmula visava inscrever Nicolas Sarkozy na história de uma certa reacção francesa, a da Restauração contra a República, de Junho de 1848 contra os trabalhadores, dos moradores de Versalhes contra A Comuna, dos colonialistas contra os “indígenas”, uma reacção que

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nunca aceitou, desde a Revolução de 1792-1794, a existência de uma política popular e revolucionária. Uma reacção de que eu descrevo as invariantes, por exemplo a perseguição explícita dos mais fracos ou a referência aos discursos naturalistas e “biologizantes”, como o que ouvimos da boca de Sarkozy acerca dos negros ou dos doentes mentais. Tal como Pétain queria ser o homem que acabaria com os horrores da Frente Popular, Sarkozy declarou que queria acabar com o Maio de 68. Não seria mais justo falar de “bonapartismo”? O “bonapartismo” faz-se acompanhar de uma dimensão militar. Sarkozy está mais ligado ao mundo dos negócios. Digamos “orleanismo duro”. A esquerda reformista também faz a crítica do “sarkozismo”. No entanto, você parece dizer que ela não se diferencia muito deste. O PS e a UMP são a mesma coisa para si? A longo prazo, sim. A cumplicidade do Partido Socialista e da direita fixa-se a partir dos anos 80. A desregulação financeira, a promoção de Tapie e do carreirismo individual, as limitações ao reagrupamento familiar, os campos de retenção, foi a esquerda que os fez. Foram Mauroy e Defferre que estigmatizaram os grevistas de Flins como islamistas, é com os socialistas que se substitui a palavra “trabalhador” pela palavra “imigrante” ou


“clandestino”. O Partido Socialista esteve encarregado, a longo prazo, da pedagogia pró-capitalista para as classes médias e populares e da sua consequência imediata: o endurecimento da repressão policial nos subúrbios. Ao mesmo tempo existe agora no seio da esquerda reformista uma franja violentamente hostil para com Sarkozy. O desfasamento entre a moleza do jogo parlamentar e esta animosidade, que ainda não encontrou a sua forma, define a esquerda actual.

EXISTE AGORA, NO SEIO DA ESQUERDA REFORMISTA,

Está a reprovar a esquerda por preferir a reforma à revolução? Já não vivemos nessa oposição. “Revolução” é hoje um conceito vazio e mesmo o Novo Partido Anti-capitalista (NPA) não está a preparar a revolução. Para estabelecer uma comparação histórica, eu diria que estamos numa situação comparável à de 1840. A Restauração aconteceu, o capitalismo instalou-se em toda a sua extensão, a ideia de revolução parece definitivamente enterrada – ainda se fala de Robespierre e Saint-Just – o que se diz hoje de Mao e Lenine. Quanto aos republicanos, que encarnariam a esquerda, estão, como os nossos socialistas de hoje, absorvidos no jogo parlamentar, e veremos em 1848 como é que vão ser privados da sua aparente vitória com Napoleão III. O que aconteceu na época foi uma reconstrução intelectual alimentada por experiências políticas operárias isoladas: as utopias comunistas, o Manifesto de Marx, etc. Mas esta efervescência passa inicialmente, como é normal, despercebida.

dos ideólogos do início do século XIX (Constant, Tocqueville...). As restaurações fazem-se sempre acompanhar de uma intelectualidade liberal que recusa assumir o passado revolucionário e vira-se para a incansável doutrina liberal, com a qual lucra: a liberdade de opinião, o Estado de direito, as eleições, sempre sem tocar, no fundo, nas desigualdades e na propriedade privada.

Só que, desde aí, teve lugar a experiência comunista, e a esquerda anti-totalitária criticou-a... radicalmente. Os anti-totalitários do século XXI não são diferentes

UMA FRANJA VIOLENTAMENTE HOSTIL PARA COM SARKOZY. O DESFASAMENTO ENTRE A MOLEZA DO JOGO PARLAMENTAR E ESTA ANIMOSIDADE, QUE AINDA NÃO ENCONTROU A SUA FORMA, DEFINE A ESQUERDA ACTUAL.

Mas enfim, quer em termos de eficácia económica quer de liberdades políticas, o balanço dos regimes comunistas é desastroso! Comecemos por recordar que estes regimes não desapareceram sob o efeito de um levantamento popular, de uma grande revolta, mas por uma decisão dos seus “aparatchiks”, dos seus governos. A vontade dos povos não foi determinante; de resto, teriam sido preferíveis os levantamentos populares: teriam saído ideias e uma reivindicação de metamorfose interna do comunismo. Quanto ao balanço em si, se julgar as experiências comunistas segundo os critérios da eficácia económica e das liberdades políticas, então, elas já perderam à partida, porque esses são precisamente os critérios de julgamento do mundo ocidental. O critério que essas

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experiências fixaram a si próprias era completamente diferente. Tratava-se de inventar e dispor de uma realidade colectiva que não fosse fundada sobre a propriedade privada. É claro que os meios adoptados foram desastrosos. Deve-se, portanto, renunciar ao projecto em si? Pelo contrário! Devemos, imperativamente, manter a ideia de uma sociedade cujo motor não seja a propriedade privada, o egoísmo e a avidez. Hoje, dá-se ares de descobrir que os dirigentes dos bancos e os seus principais clientes são obcecados por lucro. Mas o projecto comunista quer, precisamente, livrar a humanidade do lucro enquanto motor da vida social. Todas as experiências falharam, com um número considerável de mortos. Mais que o falhanço económico, o que me parece importante é o balanço político. Depois da aniquilação das revoltas operárias do século XIX, os revolucionários do início do século XX estavam obcecados pelo problema da vitória. Uma revolução pode, enfim, triunfar? Lenine respondeu falando de organização, de disciplina de ferro, de partido. De facto, se a Comuna se desmoronou, a URSS durou. Só que as formas de organização eficazes


O PROBLEMA DE UMA DISCIPLINA POLÍTICA QUE NÃO SEJA DECALCADA DA ORGANIZAÇÃO MILITAR É UM PROBLEMA ABERTO, EXPERIMENTAL. TENHAMOS ATENÇÃO ÀS ABORDAGENS TEÓRICAS SOBRE A QUESTÃO, QUE LEVAM SEMPRE PARA A OPOSIÇÃO ENTRE LENINISMO (A ORGANIZAÇÃO) E ANARQUISMO (MOBILIZAÇÃO INFORMAL). OU SEJA, A OPOSIÇÃO ENTRE ESTADO E MOVIMENTO, QUE É UM IMPASSE.

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para tomar o poder mostraram-se inadaptadas à gestão de um país em tempos de paz. Não se pode dirigir a agricultura ou a indústria por métodos militares. Não se pode pacificar uma sociedade colectivista pela violência do Estado. Portanto, o que é preciso instituir é a escolha da organização em partido, a que se pode chamar “a forma-partido”. Agir sem formar um partido não é o que tentam os alter-globalistas, as coordenações, etc.? Espero que sim! Podemos bem falar de rede, de tecnologia, de Internet, de consenso, mas este tipo de organização não provou a sua eficiência. Por outras palavras, aqueles que não têm nada – nem dinheiro, nem armas, nem meios de comunicação – só têm a sua disciplina, a sua unidade. O problema de uma disciplina política que não seja decalcada da organização militar é um problema aberto, experimental. Tenhamos atenção às abordagens teóricas sobre a questão, que levam sempre para a oposição entre leninismo (a organização) e anarquismo (mobilização informal). Ou seja, a oposição entre Estado e movimento, que é um impasse. Critica com veemência a democracia. No entanto, ela permitiu eliminar a violência das relações sociais. Eu sou pelo Estado de direito, pelos Direitos do Homem. Só os ponho em causa quando servem a ideologia de encobrimento para intervenções militares ou como justificação para intoleráveis desigualdades ou para perseguições sob a capa do “democratismo” cultural. A verdade é que a democracia só permitiu diminuir a violência interna das sociedades ocidentais

deslocando esta violência para o exterior. Os Estados Unidos estão em guerra quase ininterruptamente desde há um século e meio. Trate-se de 14-18, das guerras de descolonização, da Coreia, do Vietname, do Iraque, do conflito israelo-palestiniano, sem esquecer as guerras secundárias onde as democracias intervêm como apoio (ainda não se sabe o que a França fez no Ruanda). Dizer que, graças às democracias, se vive num mundo sem violência, é uma piada. A democracia não eliminou a violência, externalizou-a. Porque uma arena democrática sujeita ao capitalismo, se quer durar, deve ser também uma arena de prosperidade relativa. Os procedimentos democráticos, enquanto tal, não chegam para canalizar os conflitos da classe nascida de disparidades sociais. Para evitar que estes degenerem em violência, é necessária uma prosperidade que se apresente como não existindo noutro lugar. Assim, vai ser preciso proteger esta prosperidade. Será o proteccionismo, as leis contra os estrangeiros, as intervenções militares, etc. Uma violência inconcebível acompanhou a acumulação primitiva do capital e a constituição das democracias. No fundamento da prosperidade do capitalismo, há o desaparecimento de povos inteiros (habitantes das Caraíbas, Tasmânia…), um sem número de guerras e massacres. E esta violência continua. Só vai aumentar, acredite. Sem um desdobramento sem precedentes de iniciativas políticas populares de tipo novo, vamos para guerras aterradoras. Seria necessário renunciar a viver em democracia? Enquanto cidadão francês, sei que gozo de muitos privilégios. Peço apenas que tenhamos consciência do seu

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preço, que saibamos que este preço é, cada vez mais, elevado. Mencionou o número de vítimas do comunismo. Poder-se-ia responder que, desde os anos 50, os Estados Unidos e os seus aliados ocidentais mataram mais pessoas do que qualquer outro país. Voltei de Israel e da Palestina, onde vi esse muro que serpenteia ao longo da Cisjordânia. Quantos protestos se fizeram sobre o Muro de Berlim? E agora, constroem-se muros em toda a parte, na Palestina, no México, com um número de mortes que concorre com os equivalentes comunistas. A Cortina de Ferro impedia as pessoas de sair, os muros de segurança impedem-nas de entrar. Os Estados Socialistas internalizavam a violência, a democracia exporta-a. Ser algoz dos outros povos em vez do seu próprio povo, é uma coisa de que nos possamos vangloriar abertamente? O que entende por “hipótese comunista” de que é defensor? Aproximadamente o que Marx entendia por essa palavra. É um retrocesso necessário para separar o comunismo da figura do partido-Estado e trazê-lo para a sua natureza primeira de ideia filosófica: uma sociedade cujo motor não seja propriedade privada, capaz de se comprometer com um processo igualitário que venha regulamentar uma nova concepção do direito. A grande dificuldade continua a ser o poder do Estado. Marx previa o seu declínio. Os regimes comunistas, pelo contrário, estabeleceram Estados omnipotentes. Quais devem ser os limites do Estado? De momento, não dispomos, neste ponto, de uma doutrina esclarecida. É por isso que a experiência política, hoje, deve ter o Estado do seu lado, mas nunca depender dele.


Tem um programa concreto? O ponto central é a igualdade. Isso passa por enérgicas medidas anti-capitalistas, uma reorganização dos serviços públicos, uma refundação do Estado para o tornar, verdadeiramente, um Estado de todos, uma ligação nova entre a educação e o trabalho, um internacionalismo reinventado. Mas tudo isto será elaborado na altura, não como programa abstracto. A “hipótese comunista” é, portanto, à partida, um conjunto de questões. A hipótese comunista é uma tentativa de reinvestir o presente ao viés da sua necessidade. A democracia, hoje em dia, consiste em dizer que não há outra norma possível a não ser o lucro. Este é objecto do consenso implícito entre a direita e a esquerda; isto é também o que a crise financeira revela a cada dia, com as somas colossais que estão em causa, os bónus dos dirigentes de empresas, etc. Pode-se suportar este sistema, pode-se pensar que é o único possível, mas pode-se, filosoficamente, querê-lo, ou desejá-lo? Entre o liberalismo e o comunismo, não há espaço para o Estado-providência tal como o conhecemos até ao fim dos anos 70? A revolução conservadora dos anos 80 não foi a ruptura com os Trinta Gloriosos que, por vezes, se descreve. A principal diferença foi o desaparecimento da força dos Estados socialistas. Amedrontando o capitalismo, estes permitiram às organizações de trabalhadores dos países ocidentais obter concessões importantes. Esta é minha única saudação a Estaline: ele amedrontava os capitalistas. O que vemos, hoje, é um capitalismo que, proviso-

riamente, não tem medo, um capitalismo em liberdade. Encontra a sua selvajaria nativa. O que pensa do Novo partido anti-capitalista de Olivier Besancenot? Desejo que tenha 10% nas próximas eleições, porque isso trará um pouco de desordem divertida no jogo parlamentar. Mas será sem a minha voz, porque não voto desde Junho de 1968. Essa combinação da velha forma-partido de justificação marxista, e de um tradicional jogo político (participação nas eleições, a gestão das autoridades locais, infiltração dos sindicatos) refere-se apenas ao bom e velho Partido Comunista de há quarenta anos atrás». Hoje, a acção militante deve evitar duas armadilhas: primeiro, definir-se a partir do Estado, porque, de outro modo, voltamos, necessariamente, à forma-partido. De seguida, jogar o jogo eleitoral. Primeiro porque não temos de validar a democracia no seu sentido capital-parlamentar. Depois, porque, desde que nos apresentamos a eleição, queremos ser eleitos, depois reeleitos, ter um grupo parlamentar, ter créditos firmados, etc. No momento, o que interessa é a prática da organização política directa no seio das massas populares e de experimentar novas formas de organização.. É preciso distanciar-se da forma-partido e do Estado, e também saber resistir ao fetichismo “do movimento”, que é sempre a antecâmara do desespero. O NPA não segue esse caminho. TRADUÇÃO DE RUI MAIO

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ENTREVISTA PUBLICADA NO DIÁRIO LIBÉRATION A 27 DE JANEIRO DE 2009


RESPOSTA A ALAIN BADIOU

DANIEL BENSAÏD | FILÓSOFO, MEMBRO DO NOVO PARTIDO ANTICAPITALISTA

A REVOLUÇÃO TORNOU-SE «UM CONCEITO vazio» e «mesmo o NPA (O Novo Partido Anticapitalista) não está a preparar a revolução» tal como dizes. A situação é «comparável à do ano 1840». Após a Restauração, há um ressurgimento das lutas sociais e de fermentação utópica. A ideia de revolução sobrevive então como mito em vez de projecto estratégico: «O que aconteceu na época foi uma reconstrução intelectual alimentada por experiências políticas operárias isoladas: as utopias comunistas, o Manifesto de Marx, etc.». Este «etc.» enumerativo apaga o facto que então se esboça em uma diferenciação entre socialismos utópicos e comunismo, uma transição do «comunismo filosófico» ao comunismo político, que sanciona, em 1848, o encontro de uma ideia (o Manifesto) e de um acontecimento (a revolução de Fevereiro e a tragédia de Junho). Do mesmo modo, desde o início dos anos 90 – o levantamento zapatista de 1994, as greves durante o inverno 1995, em França, as manifestações altermundialistas em Seattle, em 1999 -, as diferenciações põem mãos à obra entre um antiliberalismo resistente aos excessos e aos abusos da mundialização, e um anticapitalismo renascente que põe em causa a própria lógica da acumulação do capital. Ganhando forças, tal como o referes e muito bem, «a ideia de uma sociedade cujo motor não seja a propriedade privada, o egoísmo e a avidez». Esta ideia não é certamente

suficiente para reconstruir um projecto que pretenda derrubar a ordem estabelecida. Mas ela começa a traçar uma linha divisória entre os que querem a transformação do capitalismo moralizado e os seus irreconciliáveis adversários, que pretendem derrubar: «A hipótese comunista é uma tentativa de reinvestir o presente ao viés da sua necessidade». Partilhamos contigo estas convicções e a oposição intransigente à ordem estabelecida. Estamos muito menos de acordo com a forma de abordar o balanço do Século ao qual dedicaste um grande livro. Tens razão ao dizer que os critérios de juízo, geralmente aplicados ao que se convém chamar a experiência comunista, são os da eficiência económica e das normas institucionais do mundo ocidental. De tal modo que o veredicto é uma evidência. Por conseguinte, será suficiente, do ponto de vista oposto dos explorados e dos oprimidos, de constatar que «os meios adoptados foram desastrosos», como se fosse um simples erro – ou apenas de um “desvio” como Louis Althusser o defendeu anteriormente. A questão que continua por resolver entre nós, é a do balanço do estalinismo, e – embora confusa – do maoísmo. «Desde a época de Estaline», escreves no teu panfleto contra Sarkozy, «deve dizer-se que as organizações políticas operárias e populares estavam muito melhor, e que o capitalismo era menos arrogante. Não há comparação possível.» A fórmula remete evidentemente para a provocação. Mas

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se é indiscutível que os partidos e os sindicatos operários eram mais fortes “no tempo de Estaline», esta simples observação não permite dizer se foi graças ou apesar dele, nem sobretudo o que a sua política custou e ainda custa aos movimentos de emancipação. A tua entrevista ao Libération é mais cautelosa: “A única vénia que faço a Estaline: ele metia medo aos capitalistas.» É uma vénia a mais. Seria Estaline a meter medo aos capitalistas ou outra coisa: as grandes lutas operárias dos anos trinta, as milícias de trabalhadores das Astúrias e da Catalunha, as manifestações da Frente Popular? O medo das massas, na verdade. Em muitas circunstâncias, não só Estaline não meteu tanto medo aos capitalistas, mas foi em seu auxílio, durante os dias de Maio de 1937 em Barcelona, no pacto germano-soviético, na grande partilha de Ialta, no desarmamento da resistência grega. Estas diferenças de opinião sobre o significado e o alcance do estalinismo são a consequência de uma abordagem diferente à história. Registas uma sucessão de sequências – o movimento comunista no século XIX, o comunismo de estado no século XX, a hipótese comunista aberta na contemporaneidade – sem te preocupares muito com os processos sociais que estiveram em andamento e das orientações políticas que se opuseram. O desafio é importante, não para o passado, mas para o presente e futuro: nem mais nem menos do que a compreensão do fenómeno


burocrático e dos «riscos profissionais do poder», a fim de melhor lhes resistir, sem garantia de o conseguir. Reduzes a tua crítica do estalinismo a uma questão de método: «Não se pode dirigir a agricultura ou a indústria por métodos militares. Não se pode pacificar uma sociedade colectivista pela violência do Estado. Portanto, o que é preciso instituir é a escolha da organização em partido, a que se pode chamar “a forma-partido”..» Assim acabas por juntar-te à crítica superficial dos ex-eurocomunistas desiludidos que, não tendo em conta o inédito histórico, desenrolam as tragédias do século de uma forma partidária e por um método organizacional. Seria suficiente, portanto, renunciar à «forma-partido»? Como se, um acontecimento tão importante como uma contra-revolução burocrática, resultando em milhões de mortos e de deportados, não levantasse questões de um impacto diferente sobre o desempenho das forças sociais, sobre as suas relações com o mercado mundial, sobre os efeitos da divisão social do trabalho, sobre as formas de transição económica, sobre as instituições políticas. E se o partido não fosse o problema, mas uma parte da solução? Porque há partido e partido. Para impor a partir de 1934, o «Partido dos vencedores» e da Nomenclatura, foi necessário destruir metodicamente, pelos processos, as purgas, as deportações e as execuções em massa, o que foi o Partido Bolchevique de Outubro. Foi necessário destruir, uma após a outra, as oposições. Foi preciso, a partir do quinto congresso da Internacional Comunista, sob o pretexto falacioso de “bolchevização”, militarizar os partidos e a própria Internacional. Pelo contrário, um partido pode ser o meio – certamente imperfeito – de resistir aos poderes do dinhei-

ESTAMOS MUITO LONGE, NA MAIORIA DAS ORGANIZAÇÕES DA ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA, DE UMA DISCIPLINA MILITAR E DOS SEUS MITOS. A QUESTÃO DA DISCIPLINA É SECUNDÁRIA À DA DEMOCRACIA: A UNIDADE (DISCIPLINA) NA ACÇÃO É O DESAFIO QUE DISTINGUE A DELIBERAÇÃO DEMOCRÁTICA DO TAGARELAR E DA SIMPLES TROCA DE OPINIÕES.

ro e dos media, de corrigir as desigualdades sociais e culturais, criando um espaço democrático colectivo de pensamento e de acção. Tu próprio reconheces as limitações das alternativas para a “forma- partido”: «Podemos bem falar de rede, de tecnologia, de Internet, de consenso, mas este tipo de organização não provou a sua eficiência.» Só te resta reconhecer que «aqueles que não têm nada», apenas têm «a sua disciplina, a sua unidade». Parece curioso abordar o problema da organização política sob o ângulo da disciplina, para concluir que «o problema de uma disciplina política que não seja decalcada sobre a militar é um problema aberto, experimental». Hoje, estamos muito longe, na maioria das organizações da esquerda revolucionária, de uma disciplina militar e dos seus mitos. A questão da disciplina é secundária à da democracia: a unidade (disciplina) na acção é o desafio que distingue a deliberação democrática do tagarelar e da simples troca de opiniões. No final da entrevista, desejas ao NPA um resultado eleitoral de 10%, que iria provocar «um pouco de desordem no jogo parlamentar.» Mas, fiel à tua recusa inicial em participar no jogo eleitoral, anuncias a tua recusa em participar: «Será sem a minha voz.» Desejaste

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o mesmo em 2005, a vitória do Não contra o Tratado Constitucional Europeu, sem trazer o teu contributo. Todos poderão ver nisso uma vaidade ou uma inconsistência. Na verdade trata-se de uma posição coerente, cuja fundamentação resumes muito bem na entrevista: Seria desconfiar de um duplo problema: «definir-se a partir do Estado» e «entrar no jogo eleitoral». Quanto ao primeiro ponto, estamos de acordo. O NPA não se define a partir e em função do Estado, mas tendo em conta os interesses de classe, as mobilizações «lá debaixo», a auto-emancipação, daquilo a que chamamos uma política do oprimido. Quanto ao segundo ponto, tudo depende do que se entende por «jogar o jogo eleitoral.» Se jogar este jogo é simplesmente participar nas eleições, a verdade é que o jogamos na medida em que as relações de força eleitorais não são estranhas, mesmo de maneira deformada, às relações de força entre as classes. Mas se o jogo é subordinar a auto-organização e a luta aos cálculos e alianças eleitorais, então nós não jogamos. E é precisamente isso de que nos responsabilizam quando nos acusam de “fazer o jogo Sarkozy”, com o pretexto de que rejeitamos qualquer coligação maioritária nos executivos com o Partido Socialista.


O «FETICHISMO DO MOVIMENTO», DE QUE DIZES TER MEDO, NÃO SERÁ UMA CONSEQUÊNCIA DA RENÚNCIA A DAR UMA FORMA DE UM PROJECTO POLÍTICO – QUE ESTA FORMA SEJA CHAMADA PARTIDO, ORGANIZAÇÃO, FRENTE, MOVIMENTO, POUCO IMPORTA – SEM A QUAL A POLÍTICA, TÃO FORTEMENTE INVOCADA, SERIA APENAS UMA POLÍTICA SEM POLÍTICA?

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Aos dois obstáculos precedentes, adicionas um terceiro, sobre os quais concordaríamos: «Saber resistir ao fetichismo do movimento, que é sempre a antecâmara do desespero.» Com efeito, temos combatido consistentemente a «ilusão social» que opõe de forma caricatural um movimento social, limpo e saudável para a luta política, suja e comprometedora por natureza. Isto é uma evasão da política que num clima de derrota e refluxo, torna em virtude a impotência. A tua conclusão sobre o NPA é um julgamento de intenção e previsão arriscada:«Essa combinação da velha forma-partido de justificação marxista, e de um tradicional jogo político (participação nas eleições, a gestão das autoridades locais, infiltração dos sindicatos) refere-se apenas ao bom e velho Partido Comunista de há quarenta anos atrás». Passemos sobre a «infiltração dos sindicatos» que recupera uma velha fórmula da burocracia sindical, como se os militantes revolucionários que participam na construção de um sindicato com os seus colegas de trabalho fossem corpos estranhos. E paramos na tua proposta final: «No momento, o que interessa é a prática da organização política directa no seio das massas populares e de experimentar novas formas de organização.» Com efeito, isso interessa. E é isso que quotidianamente fazem todos os militantes ligados às lutas sindicais, no movimento altermundialista, nas lutas pela habitação, nas redes como a Educação sem Fronteiras, no movimento feminista ou ecologista. Mas é o suficiente? O «fetichismo do movimento», de que dizes ter medo, não será uma consequência da renúncia a dar uma forma de um projecto político – que esta forma seja chamada partido, organização, frente, movimento, pouco importa – sem a qual a política, tão fortemente invocada, seria apenas uma política sem política? TRADUÇÃO DE ANA DA PALMA

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TRANSFORMANDO OS TRANSFORMADORES

PENSAMENTOS SOBRE A ESQUERDA RADICAL EUROPEIA NOS DIAS DE HOJE YIANNIS BOURNOS

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TRANSFORMANDO OS TRANSFORMADORES: PENSAMENTOS SOBRE A ESQUERDA RADICAL EUROPEIA NOS DIAS DE HOJE YIANNIS BOURNOS | DIRIGENTE DO SYNASPISMOS, RESPONSÁVEL PELO DEPARTAMENTO DE POLÍTICA EUROPEIA DESTE PARTIDO.

A PALAVRA-CHAVE É “CRISE”: FINANCEIRA, económica, social, cultural e definitivamente política. Uma série de decisões consecutivas, de políticas que foram sendo aplicadas, das suas reacções e consequências, levaram o nosso continente e o planeta a uma situação profundamente estranha, um “estado de emergência” durante o qual todas as sociedades enfrentam um fenómeno importante e comum: a intensificação da violência vinda do Estado, do capital, pela própria natureza do sistema. A violência no local de trabalho, no espaço rural e urbano, em casa, na televisão, nas principais ruas e nos guetos das metrópoles. Não vou explorar muito este assunto, por questões de economia de espaço. Este período traz a lume grandes contradições, o que começa pela própria natureza do sistema, e que gera o seu próprio péssimo funcionamento. Através do diálogo público programático do Synaspismos e da SYRIZA (que prossegue), tenho insistido numa coisa que explica o beco sem saída dos resultados a que chegaram todas as cimeiras e encontros da UE e dos G20: o capitalismo neoliberal, devido à sua natureza gananciosa e ultra-ofensiva, é completamente incapaz de facultar novos “pactos sociais”, que possibilitem o regresso da “paz social” à vida do dia-a-dia. As propostas de muitos economistas, intelectuais e políticos neoliberais (que estão actualmente a regressar a um falso e populista “proteccionis-

mo anti-liberal”) para novos contratos sociais com a classe média, são completamente hipócritas. Porque estes arcebispos do sistema, que levaram o planeta ao ponto da capitulação, sabem bem que este sistema que desenharam não pode ser controlado e contido de uma forma eficaz, de modo a possibilitar uma redistribuição eficaz da riqueza e a lançar uma nova prioridade aos serviços públicos e sociais. Por outras palavras, é impossível ressuscitar o Keynesianismo 30 anos depois da dominação absoluta da tempestade neoliberal e da mercantilização de todos os aspectos da vida humana. Precariedade, insegurança, marginalização, exclusão, medo, raiva e desapontamento trazem esta radicalização. Em muitos casos na história global, ela não foi progressista nem de esquerda, mas correspondeu a uma escalada da extrema-direita, do populismo religioso, do racismo, da xenofobia e de um desastroso terrorismo “revolucionário”, da repressão de estado e da violência nacionalista. Este é o momento de viragem para a Esquerda radical Europeia dos dias de hoje: redescobrir e utilizar todos os instrumentos políticos, ideológicos e estruturais necessários, de forma a convencer as classes e os grupos oprimidos a não negar a sua existência no sistema, mas pelo contrário, a darem-se conta da sua posição na sistema de produção de riqueza e distribuição de recursos no espaço social estabelecido pelo

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capitalismo neoliberal e a transformar a sua crescente “turbulência social” em lutas anti-sistémicas progressistas e de esquerda, para transformações imediatas, de médio e de longo prazo. Estes três tipos de reivindicações e aspirações não devem ser vistas como três estádios diferentes e consecutivos (este modelo foi uma falha desastrosa e principal desculpa da prática de poder Estalinista). Pelo contrário, eles devem ser vistos como partes de um projecto político dialecticamente interligado, que se inicia “amanhã de manhã” e avança causando brechas maiores ou mais pequenas no vidro da coerência sistémica, abrindo assim janelas maiores ou menores de uma sociedade organizada de uma forma diferente num mundo organizado de forma diversa. De forma a lograr tal tarefa, a Esquerda radical Europeia necessita de entender e preparar a sua própria estrutura para isto. Um partido dogmático de Esquerda não pode desafiar a existência da lógica de “pensamento único” e “via única” do capitalismo neoliberal. Um partido de esquerda burocrata não se pode dar conta da essência (assim como não pode eficazmente convencer a sociedade acerca da importância) da organização democrática directa das sociedades. Um partido de esquerda dirigido de forma 100% vertical não pode dar lições sobre a importância do controlo democrático e público do processo de tomada de decisão nacional e continental. Um partido de


Esquerda que seja construído como a soma de carreiras políticas pessoais, não tem a legitimidade para falar sobre o valor da colectividade e do trabalho colectivo contra o conceito neoliberal de individualidade. Um partido de Esquerda com uma liderança, uma representação pública e institucional predominantemente masculina, não é capaz de convencer ninguém sobre a necessidade da libertação humana em relação ao sexismo. Um partido de esquerda sectário não pode convencer ninguém acerca da importância das respostas colectivas e lutas colectivas relativamente aos problemas. Finalmente, um partido de Esquerda que promova ou silenciosamente aceite reformas sistémicas ofensivas quando se encontre numa posição de poder (ao nível local, regional ou nacional) não poderá de forma alguma inspirar os oprimidos e os seus aliados sociais a buscar e lutar por transformações sociais e políticas radicais (e, por esta razão, habitualmente recebe rejeições claras e fortes nas batalhas eleitorais seguintes). Pelo já exposto, torna-se evidente a razão pela qual a Esquerda Europeia ainda não logrou atingir a sua emergência enquanto actor social no meio desta crise que ostensivamente avança. O nosso sujeito político europeu comum ainda continua um puzzle de identidades ideológicas, políticas, históricas e psicológicas. Em termos de movimento alterglobal, esta imagem tem sido uma bênção, porque a Esquerda Europeia (social e política) global, nova, radical que emergiu após Seattle, foi gerada pela “contaminação” de cada uma destas identidades com os outros e a combinação da cada ideia, prática e entidade sociopolítica ainda que con-

traditórias para a produção de novos e originais projectos sociopolíticos. Contudo, quando se refere ao nosso sujeito político, as coisas são bem diferentes. PEQUENOS PASSOS DA ESQUERDA EUROPEIA Cinco anos após a sua criação, do que tem sido, sem dúvida, um dos mais importantes passos da Esquerda na Europa após a II Guerra Mundial, o Partido da Esquerda Europeia ainda se mantém apenas capaz de dar pequenos passos em frente, quer em termos políticos, quer em termos organizacionais. As bases dos seus partidos-membros e dos observadores ainda se mantêm afastadas dos processos de decisão e da definição da orientação política do Partido da Esquerda Europeia, enquanto os seus congressos não conseguiram tornar-se momentos para um diálogo mais profundo, pelo menos entre as delegações participantes. Para além disso, o Manifesto da Esquerda Europeia (o primeiro alguma vez produzido, o que representa já um importante passo) parece estar ainda alguns passos atrás da presente radicalização dos conflitos sociais na Europa apesar dos importantes e enormes esforços que foram efectuados por muitos partidos e camaradas para dar forma ao texto final. Ao lado do Partido da Esquerda Europeia, as Esquerdas Anticapitalistas Europeias (EACL) permanece incapaz de se dar conta das responsabilidades que a Esquerda radical Europeia enfrenta actualmente. Apesar da transformação da Liga Comunista Revolucionária (LCR) em Novo Partido Anticapitalista (NPA) ter produzido uma experiência política interessante, que todos nós (juntamente com muitos

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órgãos mainstream de comunicação social europeus!) seguimos com muita atenção, a maioria das forças das EACL (pelo menos aquelas que não participam também na Esquerda Europeia1) estão confinadas na incurável patogénese histórica da extrema-esquerda extra-parlamentar, que se isola em questões e dilemas inexistentes, de forma a evitar enfrentar a amarga e crua realidade da sua incapacidade política e organizativa para mobilizar largas massas ou pelo menos largos segmentos das classes oprimidas. Por outro lado, para ser exacto, deveríamos mencionar algumas evoluções positivas presentes que abriram janelas de esperança para os nossos próximos passos: a formação do “Partido da Esquerda” em França e a consecutiva formação da “Frente de Esquerda” com os Comunistas Franceses (apesar da longa crise interna de identidade que o PCF atravessou) e o actual sucesso da esquerda francesa nas sondagens (no total e apesar da decisão final que se traduz na apresentação de duas listas separadas às Eleições Europeias no campo da esquerda à esquerda do Partido Socialista) é um raio de esperança, após um período tão longo de uma dominação quase total de Sarkozy. Para além disso, uma nova linha política do Partido da Refundação Comunista (PRC), após a experiência desastrosa do governo Prodi e a recente separação causada por Nichi Vendola e as aspirações meta-políticas de Fausto Bertinotti, é uma tentativa de relançar uma alternativa de esquerda em Itália e restabelecer os movimentos sociais e as forças que confiavam no partido no passado pela sua análise e prática exemplares no movimento alterglobal. Para além disso, o Bloco de Esquerda e a SYRIZA perma-


NÃO HÁ MAIS TEMPO A PERDER PARA A ESQUERDA RADICAL EUROPEIA. É MAIS QUE TEMPO DE COLOCAR DE PARTE OS NOSSOS TRAUMAS NACIONAIS E DIVERSIDADES DO PASSADO E TENTAR REFORÇAR – PELO MENOS – A PERSPECTIVA CONTINENTAL DA NOSSA IDENTIDADE COMUM.

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necem exemplos positivos (com os problemas internos que cada um terá...) de unidade política através da diversidade ideológica e de ter reforçado a sua posição política de uma forma impressionante nos últimos anos, “ameaçando” (em ambos os casos) a) destabilizar maiorias absolutas – e, assim, a arrogância neoliberal – do sistema bipartidário neoliberal e b) alterar o equilíbrio eleitoral dentro do espectro da Esquerda, trazendo as dogmáticas lideranças do PCP e do KKE para uma posição profundamente difícil face à sua base social e ao seu eleitorado político. Não há mais tempo a perder para a Esquerda Radical Europeia. É mais que tempo de colocar de parte os nossos traumas nacionais e diversidades do passado e tentar reforçar – pelo menos – a perspectiva continental da nossa identidade comum, de forma a produzir um projecto social e cultural original e unificador para o presente e para o futuro da Europa, assim como para nos tornarmos mais eficazes, produtivos e úteis no campo de uma estratégia mínima comum para a realização de grandes transformações sociopolíticas. Estamos no meio de uma série de acontecimentos históricos que vão determinar o equilíbrio do poder na Europa por muitas décadas vindouras. Não podemos dar-nos ao luxo de perder outra oportunidade histórica. A nova geração política da Esquerda radical que nasceu nas ruas de Génova não devia acabar a imitar os erros que a grande maioria da Esquerda política fez após o Maio de 68… Porque, nesse caso, a história repete-se como uma tragédia.

NOTAS 1 A Esquerda Anti-Capitalista Europeia (EACL) é uma rede de partidos de esquerda a nível europeu, que reuniu pela primeira vez em Março de 2000 em Lisboa, com representantes do Bloco de Esquerda, do Scotish Socialist Party, da Aliança Verde Vermelha da Dinamarca, da LCR francesa e da ODP turca. Outros partidos, como os SWP britânico, o Espacio Alternativo espanhol, o Déi Lénk luxemburguês, o SolidaritéS suíço também participam com regularidade. O Synaspismos grego e a Refundação Comunista também são observadores, ou foram-no inicialmente. A sua última reunião foi em Portugal em Novembro de 2007. Desde a criação do Partido da Esquerda Europeia, uma série de partidos que faziam parte da EACL integraram o PEE.

TRADUÇÃO DE CLÁUDIA BELCHIOR

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CONTRATEMPO

ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE

CLASSE E “FALSA CONSCIÊNCIA” E.P. THOMPSON

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ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE CLASSE E “FALSA CONSCIÊNCIA” E.P.THOMPSON | HISTORIADOR MARXISTA

A propósito da publicação da edição portuguesa do texto “A Economia Moral da Multidão na Inglaterra do Século XVIII”, pela Antígona, traduzido por Frederico Ágoas e José Neves, a Vírus reproduz um texto do historiador marxista publicado em 1977 integrando a colectânea “As Peculiaridades dos Ingleses e outros Artigos”. Este texto dedeca-se a um debate crucial para o pensamento marxista: o da relação entre classe, luta e consciência de classe. Contrapondo-se a uma visão estática e até anti-histórica da categoria de classe social, Thompson justifica a polémica e o interesse que suas elaborações despertaram.

Por me encontrar em desacordo com muitos outros marxistas (e também não marxistas) que se ocupam do tema da classe e da consciência de classe, pode ser proveitoso, para os fins desta discussão, formular algumas observações de forma sintética e, talvez, de maneira um pouco seca. De facto, levar a efeito uma demonstração de cada uma dessas minhas observações naturalmente exigiria uma intervenção bem mais ampla e complexa. 1) “Classe”, na minha prática, é uma categoria histórica, ou seja, deriva de processos sociais através do tempo. Conhecemos as classes porque, repetidamente, as pessoas se comportam de modo classista. Este andamento histórico gera regularidade de resposta em situações análogas e, em certo nível (o da formação “madura” das classes), permite-nos observar o nascer de instituições e de uma cultura com traços de classe passíveis de uma comparação internacional. Somos, então, levados a teorizar este fenómeno como uma teoria global das classes e da sua formação, esperando encontrar algumas regularidades, certos “estágios” de desenvolvimento, etc. 2) Contudo, a esta altura, ocorre que, com excessiva frequência, a teoria prevalece sobre o fenómeno histórico que se propõe teorizar. É plausível supor que a classe seja levada em consideração não no quadro

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do processo histórico, mas abstractamente. Ainda que não admitamos que isso se dê apenas no terreno mental, uma grande parte do discurso sobre as classes ocorre, na realidade, assim. Ou melhor, modelos ou estruturas são teorizados pressupondo-se que neles se verifiquem definições objectivas de classe, como, por exemplo, a da expressão de relações diversas de produção. 3) Deriva deste falso modo de pensar a noção de classe como uma categoria estática, tanto sociológica quanto heuristicamente. Em ambos os casos, embora diferentes, servimo-nos de categorias de tipo estático. Numa difundida tradição sociológica, geralmente de cunho positivista, a classe pode ser reduzida a uma pura e simples medida quantitativa: tantas pessoas nesta ou naquela determinada relação com os meios de produção, ou, em termos mais grosseiros, “x” ou “y”, tantos assalariados, tantos “colarinhos-brancos” e por ai vai. Segundo uma tradição ligeiramente distinta, essa definição de tipo estático pode ser adoptada para a crítica da noção marxista de classe. Por exemplo, os assalariados não se comportam de modo condizente com a sua condição proletária, ou mesmo alguns deles, quando interrogados, não sabem definir-se ou afirmam pertencer ao “estrato médio”. Ou, ainda mais, classe é aquilo que a classe diz supor representar em resposta a um questionário. Mais uma


vez, a classe como categoria histórica, no seu comportamento através do tempo, resulta excluída. 4) Gostaria de afirmar que classe enquanto categoria histórica pertence ao preciso e dominante uso marxista. Creio poder demonstrar que muitas vezes, no próprio Marx –e, especialmente, em O Capital - , é esta a acepção dominante, mas este não é o lugar para fornecer provas segundo uma autoridade filológica. Esse é, de qualquer modo, o pressuposto de muitos, se não todos, da tradição histórica marxista inglesa, sobretudo os da velha geração. Seja como for, restou bem claro nos últimos anos que a classe enquanto categoria estática tem conquistado peso em sectores muito relevantes de todo o pensamento marxista. Nos termos económicos correntes, trata-se tão somente de uma categoria gémea daquela sociológica positivista. De um modelo estático de relações capitalistas de produção são extraídas as classes que lhes devem corresponder e a “consciência” que deve corresponder às classes e à sua respectiva inserção. De uma forma comum, geralmente leninista, isso fornece uma boa justificativa para uma política de “substantivos”, como aquele de uma “vanguarda” que saberia mais que a própria classe quais seriam tanto o interesse verdadeiro quanto a consciência mais conveniente a essa mesma classe. De forma alternativa, mas muito mais sofisticada, com Althusser, temos de novo uma categoria profundamente estática, uma categoria que encontra a própria definição apenas numa totalidade estrutural estática. Malgrado esta sofisticação teórica, malgrado o facto de essa teoria refutar o processo histórico empírico

real da formação da classe, os resultados são muito próximos dos da versão economicista vulgar. Ambos apoiam-se numa análoga noção de “falsa consciência”, mesmo que a teoria de Althusser e outras entre as mais sofisticadas do “marxismo ocidental” tendam a apresentar um arsenal teórico mais amplo com que explicam a dominação ideológica e a mistificação da consciência. 5) Se retornarmos à classe como categoria historiográfica, poderemos ver historiadores dispondo do conceito com dois significados diferentes: a) com referência ao conteúdo histórico correspondente, empiricamente observável, e b) como uma categoria heurística ou analítica, recurso para organizar uma evidência histórica cuja correspondência directa é muito mais escassa. No meu modo de ver, tal conceito pode ser adoptado com propriedade em ambos os sentidos. Todavia, confusões geralmente surgem quando nos deslocamos de uma acepção para outra. No primeiro caso, é óbvio que classe no seu uso moderno possui relação com a sociedade capitalista industrial do século XIX. Isto é, somente no seu uso moderno a classe se torna utilizável para um sistema de conhecimento da sociedade que vive nesse período. Por isso, o conceito não só nos permite organizar e analisar as evidências, mas está também presente, com um novo sentido, nas evidências elas mesmas. Podemos, desse modo, observar, na Grã Bretanha, como na França ou na Alemanha, instituições de classe, partidos de classe, culturas de classe etc. Essa evidência histórica, por sua vez, deu origem, à medida que se desenvolveu, ao mais maduro conceito

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de classe e o marcou, a um certo nível, com a sua própria especificidade histórica. No outro caso, a especificidade histórica, anacrónica, deve ser levada em conta quando lançamos mão do conceito na análise de sociedades anteriores à Revolução Industrial. De facto, a correspondência da categoria com a evidência histórica torna-se então muito menos directa. Se a classe não é admitida no sistema de conhecimento das próprias pessoas e se elas se nomeiam e levam adiante as suas batalhas históricas em termos de “estados”, de “ordens” etc., então, ao descrevermos tais conflitos em termos de classe, devemos nos esquivar de toda a tendência a interpretá-los segundo concepções de classe posteriores. O facto de se manter o uso da categoria heurística de classe, não obstante as dificuldades indicadas, não deriva da perfeição do conceito, mas da carência de categorias alternativas adequadas à análise do processo histórico evidente e universal. Por esse motivo não podemos, no idioma inglês, falar de “luta de estados” ou “luta de ordens” no momento em que o recurso à “luta de classes” foi, não sem dificuldades, notavelmente bem sucedido quando operado por estudiosos da Idade Antiga, medieval ou protomoderna, ali onde tais historiadores, no seu manuseio particular, introduziram as suas advertências e qualificações específicas do conceito nos seus próprios campos históricos. 6) Isso sublinha, portanto, o facto de a classe, no seu sentido heurístico, ser inseparável da noção de “luta de classes”. Do meu ponto de vista, foi dada exces-


QUANDO DIGO QUE CLASSE E CONSCIÊNCIA DE CLASSE SÃO SEMPRE O ÚLTIMO ESTÁGIO DE UM PROCESSO REAL, NATURALMENTE NÃO PENSO QUE ISSO SEJA TOMADO NO SENTIDO LITERAL E MECÂNICO. UMA VEZ QUE UMA CONSCIÊNCIA DE CLASSE MADURA TENHA SE DESENVOLVIDO, OS JOVENS PODEM SER “SOCIALIZADOS” NUM SENTIDO CLASSISTA, E AS INSTITUIÇÕES DE CLASSE PROLONGAM AS CONDIÇÕES PARA SUA FORMAÇÃO. VÍRUS ABRIL/MAIO 2009

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siva atenção, frequentemente de maneira anti-histórica, à “classe”, e muito pouca, ao contrário, à “luta de classes”. Na verdade, na medida em que é mais universal, a luta de classes parece-me ser o conceito prioritário. Talvez diga isso porque a luta de classes é evidentemente um conceito histórico, pois implica um processo, e, portanto, seja o filósofo, o sociólogo ou o criador de teorias, todos têm dificuldade em utilizá-lo. Para dizê-lo com todas as letras: as classes não existem como entidades separadas que olham ao redor, acham um inimigo de classe e partem para a batalha. Ao contrário, para mim, as pessoas vêem-se numa sociedade estruturada de um certo modo (por meio de relações de produção, fundamentalmente), suportam a exploração (ou buscam manter poder sobre os explorados), identificam os nós dos interesses antagónicos, debatem-se em torno desses mesmos nós e, no decurso de tal processo de luta, descobrem a si mesmas como uma classe, vindo, pois, a fazer a descoberta da sua consciência de classe. Classe e consciência de classe são sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico real. Mas se adoptarmos uma concepção estática da categoria de classe, ou se fizermos descender esse nosso conceito de um modelo teórico preliminar de totalidade estrutural, não procederemos assim, pois estaremos subentendendo que a classe está presente desde o início como um resultado de relações de produção, daí derivando a luta de classes. Quando digo que classe e consciência de classe são sempre o último estágio de um processo real, naturalmente não penso que isso seja tomado no sentido literal e mecânico. Uma vez que uma consciência

de classe madura se tenha desenvolvido, os jovens podem ser “socializados” num sentido classista, e as instituições de classe prolongam as condições para sua formação. Podem-se gerar tradições ou costumes de antagonismo de classes que não correspondam mais a um antagonismo de interesses. Mas tudo isso faz parte da complexidade que habitualmente encontramos na nossa análise histórica, especialmente na contemporânea. A questão é que não podemos falar de classes sem que as pessoas, diante de outros grupos, por meio de um processo de luta (o que compreende uma luta a nível cultural), entrem em relação e em oposição sob uma forma classista, ou ainda sem que modifiquem as relações de classe herdadas, já existentes. No belíssimo estudo de Temma Kaplan sobre a Andaluzia, que supera todas as críticas que eu poderia levantar, um estudo que é uma exposição lucidíssima de um processo real de formação de classes, vê-se, aliás, uma afirmação indicadora das dificuldades encontradas: “O proletariado pode tornar-se consciente de si mesmo somente desenvolvendo a consciência de classe, ao passo que a burguesia, contra quem luta, já é consciente de si”. Ora, a dificuldade não reside na proposição conclusiva. Antes, eu mesmo insisti no facto de a classe não poder ser individualizada independentemente das relações com outros grupos sociais e classes e reconheço que a relação deva ser recíproca. Mas a dificuldade reside na primeira proposição de Kaplan. Pois, se o proletariado é verdadeiramente privado da consciência de si mesmo como proletariado, então não pode se definir assim. Para um historiador, e espero poder afirmar

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que isso vale para um historiador marxista, atribuir o termo “classe” a um grupo privado de consciência de classe, ou de cultura de classe, e que não age nessa direção é uma afirmação destituída de significado. Podemos dizer: “os pobres, ou a plebe, podem vir a ter consciência de si apenas como proletariado”, tal é a sequência histórica da formação de uma classe. Se, de facto, esse pobre ou essa plebe se alinham com outros grupos (proprietários de terra, mercadores, Estado) de um ponto de vista classista e se possuem uma consciência correspondente, que não é a de um “proletariado” maduro ou de classe operária, logo o problema histórico começa com a análise e definição deste específico processo de formação da classe (como muito bem faz Temma Kaplan). Por meio de análises e definições similares, logramos descobrir as insuficiências escondidas sob o uso do termo “classe operária”, podendo reexaminá-lo. Tenho certeza de ser culpado pelas mesmas faltas de Temma Kaplan, mas, eventualmente, mesmo Marx algumas vezes o foi. Tudo o que posso dizer é: estou agora à procura de deixar de ser culpado. O meu texto apresentado ao Davis Centre faz um acerto de contas com problemas análogos, e nele explico porque prefiro, para a Inglaterra do séc. XVIII, o termo “plebe”, com também porque dou uma prioridade heurística à luta de classes (e àquilo que chamo de “campo de forças”) em detrimento da classe. Não me parece que o ponto em questão seja, em absoluto, de importância secundária. Se creio que, de facto, um certo dado histórico não está de acordo com as costumeiras categorias de classe, então, em vez de golpear a história para salvar as categorias, devemos


instigá-las com novas análises. Por muitas décadas, os historiadores foram intimidados pelo fracasso de grandes teóricos; é tempo de insistirem muito decididamente para que a teoria leve em consideração os resultados historiográficos.

RESULTARÁ CLARO QUE NÃO VEJO COM SIMPATIA O CONCEITO

7) Por tudo isso, suponho que ninguém possa pensar que eu corrobore a ideia de a formação da classe ser independente de determinações objectivas, nem que eu sustente que a classe possa ser definida como simples fenómeno cultural, ou coisa semelhante. Isso seria, creio, desmentido pela minha própria prática de historiador, como pela de muitos outros. Resta o fato de essas determinações objectivas pedirem um exame muito escrupuloso. Todavia, em primeiro lugar, nenhum exame das determinações objectivas e, mais do que nunca, nenhum modelo eventualmente teorizado podem levar à equação simples de uma classe com consciência de classe. A classe se delineia segundo o modo como homens e mulheres vivem as suas relações de produção e segundo a experiência das suas situações determinadas, no interior do “conjunto das suas relações sociais”, com a cultura e as expectativas a elas transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram dessas experiências ao nível cultural. De tal sorte que, afinal, nenhum modelo pode dar-nos aquilo que deveria ser a “verdadeira” formação de classe num certo “estágio” do processo. Numa análise comparativa, o modelo tem apenas valor heurístico, passível de geralmente redundar em perigo dada a sua tendência em direção a uma estase conceptual. Na história, nenhuma formação de classe específica é mais autêntica ou mais real do que outra.

DA QUAL PARTIDÁRIOS DAS ELITES INSINUAM-SE CONTINUADAMENTE.

DE “FALSA CONSCIÊNCIA”, SE REFERIDO A UMA CLASSE. NO MELHOR DOS CASOS, É UMA AFIRMAÇÃO DESTITUÍDA DE SIGNIFICADO E, NO PIOR DELES, É UMA CONSTRUÇÃO TEÓRICA ABSURDA, EM TORNO

As classes definem-se de acordo com o modo como tal formação acontece efectivamente. Em segundo lugar, muito da teoria marxista e, igualmente, embora em menor parte, muito da historiografia marxista foram distorcidos pelo exame da classe segundo as categorias de “base” e “superestrutura”. As forças e as relações produtivas fornecer-nos-iam a “base” (que se supõe real e objectiva), e delas a consciência de classe emergiria como uma superestrutura “derivada”. Aqui não é o lugar para sublinhar uma vez mais as minhas antigas e frequentemente manifestas objecções a este tipo de procedimento, objecções retomadas recentemente na parte final de Senhores e Caçadores (1975), para não falar de Raymond Williams, que expressou, nos últimos 20 anos, posições muito próximas das minhas, recentemente recapituladas com muita lucidez e nitidez no seu Marxismo e Literatura (1977). Já o demonstrei anteriormente e resta-me somente repetir que, no meu modo de ver, a desafortunada analogia, ou metáfora, apresenta uma tendência inerentemente redutiva. E por mais sofisticada que seja a primeira, a última jamais será supe-

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rada, de modo que continuarei a insurgir-me contra uma –totalmente irreal –semelhante classificação das actividades e características entre dois campos considerados como primário e derivado. Essa analogia, mesmo uma vez à sombra, quando aplicada às classes, fornece-nos uma classe –ou uma “classe em si” –no nível da base que se traduz em consciência de classe –ou “classe para si” –quando, porventura, desemboca no nível da superestrutura. Se esta não dá origem a uma direcção própria, devemos introduzir então o conceito de “falsa consciência”. A classe está ali, mas, mistificada, não se conhece a si mesma nem os seus próprios e verdadeiros interesses. Para dizê-lo mais elaboradamente: essa teoria pode dar lugar a uma teoria das classes que evoca Platão, pois oferece um modelo de desenvolvimento por etapas da formação da classe com o qual a história deveria conformar-se, e, caso a evidência se oponha, ou se corta a parte válida ou se introduz a “falsa consciência”. Na Inglaterra, já expressei a opinião pela qual o excelente historiador John Foster teria caído neste tipo de concepção leninista-platónica. E quando Gareth Stedman Jones, na sua intervenção


preparatória a este encontro, se refere à consciência política dos cartistas, não nos termos em que se deu (coisa à qual ele pouco teria a dizer), mas nos termos daquilo que deveria ter sido, até ele alcança um autêntico resultado do género “platónico”. 8) Resultará claro que não vejo com simpatia o conceito de “falsa consciência”, se referido a uma classe. No melhor dos casos, é uma afirmação destituída de significado e, no pior deles, é uma construção teórica absurda, em torno da qual partidários das elites –que sabem bem, muito melhor do que os protagonistas, como a história deve ser –insinuam-se continuadamente por ocasião de discussões e seminários universitários. Uma classe não pode existir sem um tipo qualquer de consciência de si mesma. De outro modo, não é, ou não é ainda, uma classe. Quer dizer, não é “algo” ainda, não tem espécie alguma de identidade histórica. Até aquela díspar e móbil entidade que é a multidão ou a plebe da Inglaterra do século XVIII possuía uma noção dos seus direitos de legalidade e de respeito, que foram investigados pelos historiadores. Se a noção dos seus próprios direitos e a própria consciência fossem outras e diversas das suas atitudes, então teria tido lugar um outro tipo de classe, como de facto começou a haver depois de 1816. Mas dizer que uma classe no seu conjunto tem uma consciência verdadeira ou falsa é historicamente sem sentido. Pode nascer uma dificuldade da palavra “consciência”. Se aplicada a uma colectividade muito ampla, como uma classe, designa uma cultura global desprendida da formação. Ela não pode ser nem “ver-

dadeira” nem “falsa”. É simplesmente o que é. Numa acepção mais limitada, porém, pode servir para indicar a política ou a estratégia dominante, numa relação com outras classes, conduzida pelos seus líderes, partidos, por outras instituições. Nestes termos mais circunscritos, podemos talvez recuperar a noção de falsa consciência no sentido escrito por Engels a Mehring (em 14 de Julho de 1893): “A ideologia é um processo operado pelo assim chamado pensador de maneira consciente, com uma falsa consciência, portanto. Os reais intentos que o impulsionam são-lhe mantidos desconhecidos. De outro modo, não se tratará, de modo algum, de um processo ideológico”. Neste sentido estritamente ideológico (que, além do mais, exige um uso mais limitado do termo “ideologia” do que o corrente), parece-me que opera um conceito histórico pontual e muitas vezes apropriado. Uma vez que estamos a considerar aqui as ilusões e deformações ideológicas características, a estrutura profunda da ideologia característica deste período, é possível que a teoria política dominante de uma classe esteja enformada por essas ilusões características ou seja sujeita ao domínio dessas “falsas” idéias. Mas trata-se de uma operação muito específica de análise histórica e intelectual. Não podemos ir além, pensando que, se essas ilusões fossem superadas, se, enfim, a consciência fosse “desmistificada”, daí emergiria uma “verdadeira” consciência, da qual poderíamos extrair, conforme um modelo platónico dissimulado, um projecto daquilo que a consciência deveria ser. Para esta, as classes mesmas e suas acções deveriam ter sido diversas. Isto é, as suas relações com as outras classes mudariam nitidamente, novos conflitos

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se manifestariam à medida que ela adquirisse ou perdesse a adesão de outros grupos e que mudasse de estratégia, partidos, instituições. Resumindo: teríamos um tipo diverso de luta de classes. Ou ainda, para dar mais um exemplo, os intelectuais sonham amiúde com uma classe que seja como uma motocicleta cujo assento esteja vazio. Saltando sobre ele, assumem a direcção, pois têm a verdadeira teoria. Essa é uma ilusão característica, é a “falsa consciência” da burguesia intelectual. Mas, quando semelhantes conceitos dominam a toda a intelligentsia, poderemos falar de “falsa consciência”? Pelo contrário, tais conceitos acabam por ser muito cómodos para ela.

E. P. Thompson foi provavelmente o historiador marxista de maior repercussão no séc. XX. Seu livro “A Formação da Classe Operária Inglesa” é reconhecido como um clássico da historiografia marxista. O presente texto está presente na coletânea “As Peculiaridades dos Ingleses e outros Artigos” organizada por Sergio Silva e Antonio Luigi Negro, que o traduziu. A versão original data de 1977. Publicado em Marxismo Revolucionário Atual.: – www.mra.org.br


RAPS Ó DIA

MÚSICA FLYING LIZARDS POR SANDY GAGEIRO | LIVROS «AUTO-AJUDA» POR MARTA LANÇA «COMUNISMO E NACIONALISMO EM PORTUGAL» E «AS VOZES DO RIO PAMANO», POR MIGUEL CARDINA

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REVISIONISTAS DEMENTES DO ROQUE

SANDY GAGEIRO

REDUZIR CLÁSSICOS DO ROQUE A PARÓDIAS com sintetizadores minimalistas, loops, vocalizações robotizadas e leituras desapaixonadas pode parecer uma brincadeira mas, nas mãos do pianista irlandês David Cunningham, tornou-se tarefa séria que o aproximou da pop mais arty que assomava no fim da década de setenta, início de oitenta. David Cunningham tão rapidamente se movimentava na cena new wave como na música experimental e electrónica. Trabalhou com o guitarrista/produtor Robert Fripp (David Bowie, Brian Eno, Peter Gabriel, Talking Heads), Michel Legrand e com várias formações pop/rock. Pela formação dos Flying Lizards passaram nomes envolvidos no jazz como Steve Beresford ou da música contemporânea como Alexander Balanescu. David Toop também passou por lá, ele que – tão profundamente - escreve e teoriza sobre música. As vozes femininas (Deborah Evans e Patti Palladin) dão um contributo irreverente e fundamental, especialmente Vivien Goldman – membro fundador da banda, jornalista, escritora e divulgadora. Dos quatro álbuns dos Flying Lizards porventura o mais divertido é Top Ten. Qual desfile de hits misturados na Moulinex, neste álbum encontram-se covers de James Brown, Burt Bacharah, Leonard Cohen e Jimmie Hendrix. Um álbum bizarro que terá horrorizado puristas e conservadores incapazes de apreciar a capacidade inventiva e reconstrutiva de David Cunningham. Hoje as versões improváveis são comuns e mais que muitas, mas estas continuam tão actuais como se tivessem sido gravadas ontem em Brooklyn ou Londres.

FLYING LIZARDS ALGUMA DISCOGRAFIA:

The Flying Lizards 1979 Fourth Wall 1981 Top Ten 1984

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ESTRANHA ENTRANHA ENTRANÇADA NÃO ME PARECE QUE HAJA MUITA GENTE A ler esta revista que não conheça o Tiago Gomes. Autor, performer, poeta, activista, produtor, escritor de canções, homem da noite e do underground, rapaz dos contactos e do rock e, sobretudo, editor da revista Bíblia. O que ele escreve sobre o Cesariny, podia bem servir-lhe como retrato: “agoniado ou bem disposto / lacónico animal subterrâneo / roupa suja para lavar em máquina eclética.” Viola-Me Eléctrica, Brincadeiras Com Cianeto (1998), Homem Vago Em Cinzento (1995), Caixa Negra De Avião Desviado Por Ataque Terrorista (1993) são os títulos dos livros da sua poesia agora compilados num não menos aliciante título Auto-ajuda da Mariposa Azual. Poemagem / intelegentema / tem tema, o poema? / O problema tem solução? /Imagentema. / Remoinho com poeta à chuva / sofrema. / Lê-ma. Os poemas de Tiago Gomes testemunham uma espécie rara do fazer poético: despretencioso e atento ao que por aqui, no nosso quintal, se passa ou falta, sem perder uma ideia alargada do mundo. Quero dizer com isto que são muito fruto do seu meio, um reflexo com as devidas picardias. Nada devendo aos muito recorrentes barroquismos da nova poesia portuguesa, às palavras caras e obstrução estilística, este poeta encontrou uma voz singular, próxima da perspicácia e paixão adolescentes. Era necessário resgatar estes poemas para dar visibilidade à escrita que se foi construindo, como livro de ‘auto-ajuda’ para todos que possamos andar perdidos na dificuldade em aceitar certos códigos de vida.

MARTA LANÇA

O registo coloquial permeia a desordem dessa mesma vida: entre o trocadilho e a ousadia do dizer directo, sem rodeios, permite que a sedução-solidão, as incompreensões, o conflito, a alegria ou o espanto ganhem mais expressão. E depois aquela fórmula-súmula que nos deixa desarmados, de tão simples e eficaz, em composições como esta: “Sabia demais. / Mataram-no./ Sabia tudo. / Suicidou-se.” É como se Tiago Gomes escrevesse por impulso e com sofreguidão, vislumbrando o que se persegue da noite, o regresso a casa dos bêbados errantes e as juras de mudança sempre reformuladas, através de uma voz confidencial. A exigente lucidez da escrita impele-o a fixar o fulgor do instante – que lhe vem da observação – a dar sentido à mais opaca ou insignificante experiência ou, diríamos, a pôr em relevo o que há de absurdo na aparente “normalidade”. Não deixa de criticar esta observação de poeta, às vezes de grande insolência, que o condiciona a um papel de quem “sofre após o acto”. Encontramos a geografia afectiva da cidade onde não só habita como nela respira, e da qual consegue arrancar várias das suas camadas de vivência. Da trindade que é uns caos, do bairro alto que é um poema, do Tejo que é um vazio. Lisboémia, uma cidade linda, barata, segura, luminosa, cheia de entretenimento, sem dramas. Só a vil tristeza. Conhece-lhe os podres, os esquemas, as personagens, o pessoal: músicos, bêbados, jornalistas, activistas, noiteabundos e lunáticos. O poeta diagnostica a superficialidade – “essa capa fina e invisível” – das pessoas giras, a cultura de plástico, o espectáculo e fetichismo do mercado que nos toldam a animais ino-

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AUTO-AJUDA TIAGO GOMES ED. MARIPOSA AZUAL, 2009

fensivos e desejantes, onde a cidade sem solidariedade, é povoada de sacanas e oportunistas. Atravessa os poemas um sarcasmo pós-moderno que se auto-satiriza, às vezes desanimado, às vezes apaixonado. Há também um lado militante, combativo e interventivo sempre irónico que não se perde a relativizar tudo, enfurecendo-se contra a injustiça. Critica a luta desigual que opõe homens a máquinas de repressão. Descreve a dura e por vezes aborrecida (frustrante) luta do quotidiano, o ócio disfarçado de ocupação, a anedótica burocracia, o mundo tecnocrata e a modernidade necessária. Apelas aos governos com propostas radicais, como em “O Último Abraço”: Pensara várias vezes / em ser um kamikaze / com uma bomba no peito / e dar um abraço apertado e cordial / ao primeiro ministro do seu país. O retrato da ambiguidade portuguesa, do nacional


porreirismo ignorante, do jogo de cintura que nos dá tanta ‘graça’ e cria personagens dignos de relato, os ambientes de cigarros, fado, putas, tascas de rissol e tremoço são familiares e revertem na sua poesia nos mesmos termos. No país com maior concentração de opinião por m2, também ele contribui para a estatística. Uma poesia com gíria popular e referências a Gogol e Maiakovsky, onde a vida própria se implica e se impõe como medida, não se poupando em juízos de valor. Os poemas de sobrevivência e auto-ajuda reflectem muito de uma geração resistente mas meio desorientada: herdeira-bisneta dos surrealismos portugueses (elogiando a conversa desconexa + uma fórmula minimal repetitiva + um sub real encadeante + quezílias imorais sociais do Mário Cesariny), com a juventude mais radical e comprometida nos anos 90 (Where were you in 97? Playing hardcore against the system and spraying the city buildings doing demonstrations), a usar das novas redes sociais e informação à escala global, desconfiada mas receosa das crises financeiras e precariedade dos anos 00, onde se tenta, a custo, não perder o fio à meada. Com a bomba poética como remédio, melhor arma de sempre além do cianeto.

REVISTA BÍBLIA Em Portugal ainda é possível fazer edição sem departamento de marketing, consultadoria editorial, relações públicas, atelier de design, subsídio do Instituto do Livro, distribuição nacional, publicidade em periódicos, subornar livreiros, partir as pernas ao adversário, sexo explícito, sem empresa ou associação e até sem leitores (ou poucos). A Bíblia é um caso de resistência no panorama das revistas portuguesas. Ainda consegue ter um aspecto de fanzine apesar de, do alto da sua maturidade, o seu autor/promotor Tiago Gomes lhe chamar revista de Literatura e Artes. Já saíram 30 números de 2 mil exemplares cada desde há 13 anos. É a sua grande acessibilidade que continua a gerar colaborações. Tornou-se um espaço de experimentação nas tendências contemporâneas das artes visuais e da literatura, e a diversidade de áreas artísticas abrange a ilustração, desenho, fotografia, pintura, design, banda desenhada, vídeo prints, prosa, conto e poesia, sem excluir também abordagens à arquitectura, cinema, teatro e música. Cada número é “arquitectado” por um designer diferente e pelas páginas da revista já passaram centenas de colaboradores nacionais e internacionais, desde a revelação de autores novos a outros de renome, sendo esta horizontalidade de conhecidos e desconhecidos e várias gerações outro aspecto interessante.

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Destacam-se alguns nomes como: Adília Lopes, Alberto Pimenta, Alexandre Estrela, Alice Geirinhas, Ana Teresa Pereira, Ângelo Ferreira de Sousa, António Oliveira, António Pocinho, Carlos Leite, Carlos Roque, Cláudia Galhós, Fernando Guerreiro, José Luís Peixoto, João Fonte Santa, José Mário Silva, Manuel João Vieira, Mariana Viegas, Miguel Soares, Miguel Vasconcelos, Nuno Milagre, Nuno Moura, Rui Zink, Sarah Adamopoulos, Susana Paiva e Teresa Câmara Pestana. A revista Bíblia é um pouco o espelho do próprio Tiago Gomes, e faz bem a síntese de uma maneira de estar na vida e na edição, que muitas vezes se confundem. Diz ele: “revejo-me na actualidade dos temas da poesia, e claro, na qualidade literária da escrita. A Poesia experimental, tal como a mail art, poesia visual e outros géneros, tudo cabe na Bíblia”. A revista circula de uma forma inventiva e personalizada, não só como um produto cultural vendável. Organiza actividades, como leituras, debates, concertos, em parcerias com outros, sendo um ponto de encontro já muito familiar que não se circunscreve a Lisboa, andando pelo país afora. Presente em tudo o que é feiras e festivais, como a BD da Amadora (coordenação de espaço para revistas e fanzines nacionais e estrangeiros), a Feira Mix de Lisboa e Porto, as Feiras do livro, o Mercado Negro, Salão de B.D. do Porto, na ARCO em Madrid. O Tiago tem sempre um choradinho a fazer, e imensas campanhas de angariação de dinheiro para não deixar cair este projecto de vida: “O problema é não haver apoios do Estado nem das empresas.” mas também encontra o lado divertido e positivo desta independência: “As vantagens são editarmos o que queremos e como queremos.”


MALHAS DO COMUNISMO NACIONALIZADO COMUNISMO E NACIONALISMO EM PORTUgal abre com uma história curiosa contada por André Malraux: durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), nas proximidades de Toledo, abate-se sob as tropas republicanas mais um punhado de bombas do céu que, ao contrário de tantas outras, desta vez não explodem. Surpreendidos, os republicanos descobrem-lhes no dorso uma mensagem em português – «camarada, esta bomba não explodirá» – indiciando a sabotagem dos engenhos algures na passagem de Portugal para Espanha. Como nota José Neves, este exemplo permite dar conta da «tendência internacionalista que trespassou fronteiras estatais e identidades nacionais sem revelar grande consideração por qualquer tipo de ideologia nacionalista». O livro em causa, no entanto, analisa precisamente o reverso dessa disposição: o modo como o Partido Comunista Português, sobretudo a partir da «reorganização» empreendida nos anos 40, forjou um «nacionalismo comunista» oposto e em competição com o nacionalismo do Estado Novo. Se é verdade que o internacionalismo proletário, por um lado, e o nacionalismo fascista, por outro, não deixaram de se confrontar – como aparece evidenciado no episódio recordado por Malraux – não é menos verdade que a mundivisão comunista – nomeadamente, aquela oriunda dos partidos da Terceira Internacional – foi também animada por uma forte pulsão soberanista. Assim sendo, o nacionalismo comunista construiu-se como um nacionalismo alternativo ao do Estado Novo, mas nem por isso menos convicto na invenção de uma identidade nacional, a qual se deveria acomodar com a

PUBLICADO NO BLOGUE CAMINHOS DA MEMÓRIA

MIGUEL CARDINA

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figura revolucionária do proletariado, numa dinâmica tensional em regra desequilibrada. Como assevera o autor: «Pretendendo-se um nacionalismo instrumental, um meio para um outro fim, o nacionalismo comunista acabou por assumir uma importância tal na história do PCP reorganizado que em nenhum momento este terá programaticamente proposto uma terra sem estados nacionais. Uma terra sem amos, sem dúvida que sim, mas não a Internacional». Boa parte do livro consiste justamente em mostrar de que modo, na área do PCP, este imaginário nacionalista se foi construindo não apenas do terreno das proposições político-ideológicas, mas também no campo da literatura, da música, das imagens desportivas ou das interpretações da história. Na realidade, o autor mostra que a nacionalização do discurso comunista se afirma no PCP ainda antes da «reorganização», designadamente em textos de Bento Gonçalves e Pavel e nas acusações de «traição nacional» efectuadas pelo partido ao regime, no contexto da Guerra Civil de Espanha. O livro analisa ainda temas como a influência do comunismo francês no português, a relação complexa do PCP com a questão colonial e a invenção de uma cultura nacional, patente, por exemplo, na valorização do campo e na depreciação da cidade em autores como Lopes-Graça ou Maria Lamas. A última parte, dedicada à «patrimonialização comunista da história», debate-se com as leituras da história de Portugal feita por António Borges Coelho, Victor de Sá e Álvaro Cunhal, entre outros, e encerra com dois interessantes capítulos sobre «A Vanguarda e o Comum» e «O Militante», nos quais

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COMUNISMO E NACIONALISMO EM PORTUGAL. POLÍTICA, CULTURA E HISTÓRIA NO SÉCULO XX. JOSÉ NEVES ED. TINTA DA CHINA, 2008, 502 PÁGINAS

se convocam conceitos oriundos da reflexão autonomista italiana. Com uma capacidade analítica notável e num registo narrativo elegante e cuidado – qualidades nem sempre comuns na historiografia produzida no nosso país – José Neves percorre inúmeras áreas nas quais se foi tecendo o encontro entre estes dois pólos magnéticos de sinal aparentemente contrário: comunismo e nacionalismo. Se aqui se usassem bolinhas avaliadoras para aferir a qualidade de uma obra, como é costume em alguns suplementos literários, não haveriam dúvidas: cinco estrelas.


AS VOZES QUE AINDA NOS FALAM DA GUERRA A GUERRA CIVIL ESPANHOLA FOI, DURANTE décadas, embebida numa espécie de silêncio espesso, apenas interrompido pelos discursos triunfais sobre a «paz» dos vencedores e pelas evocações dos seus mártires. Num lúcido estudo intitulado Memoria y Olvido de la Guerra Civil Española, publicado pela primeira vez em 1996, Paloma Aguilar Fernández anotou a existência na Espanha democrática de uma «memória colectiva traumática da Guerra Civil». Neste domínio, a transição não só não ajudou a sanar a ferida como contribuiu para a reforçar, ao sustentar-se num «pacto tácito entre as elites mais visíveis para silenciar as vozes amargas do passado». Como é sabido, este processo tem vindo a ser progressivamente desbloqueado por diferentes associações ligadas à recuperação da memória histórica. E recebeu importantes impulsos nos últimos tempos, com a aprovação da Lei da Memória Histórica e a mediática iniciativa do juiz Baltasar Garzón de investigar o destino das vítimas de Franco. Significativamente, e se as primeiras obras de fôlego sobre a guerra civil foram escritas por autores estrangeiros (Hugh Thomas, Anthony Beevor, Ronald Fraser, Paul Preston), a verdade é que os espanhóis têm vindo a revelar nos últimos anos um interesse espantoso pelo assunto. Basta efectuar um passeio despreocupado pelas livrarias de uma qualquer cidade do país vizinho para nos apercebermos da crescente historiografia dedicada ao conflito que opôs republicanos e nacionalistas. Também no campo da ficção têm aparecido obras – como este volumoso As Vozes do Rio Pamano, de Jaume Cabré – que se propõe tomar o evento como alavanca narrativa. No caso deste romance, trata-se sobretudo de abordar o tempo da

PUBLICADO NO BLOGUE CAMINHOS DA MEMÓRIA

MIGUEL CARDINA

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«ressaca», o surdo e espaçado jogo do gato e do rato que a ditadura teve de travar, durante a década de quarenta, com os fogachos ainda acesos da resistência republicana. A intriga passa-se numa zona rural da Catalunha, onde uma professora descobre inadvertidamente, numa escola em desactivação, uma caixa de charutos contendo o diário secreto de Oriol Fontelles, antigo mestre-escola naquele lugar e alvo na actualidade de um processo de canonização por ter defendido gloriosa e fatidicamente a igreja local aquando de uma incursão falhada dos maquis. É na distância – física, moral, geracional – entre as duas mulheres que se dedicam no presente a esse homem que se estabelece a trama: de um lado, Elisenda Vilabrú, antiga amante de Oriol, rica proprietária, mulher influente e principal preponente da canonização; do outro, Tina, a professora, terá de ir contornando a sombra de Elisenda de modo a poder contar a «verdadeira» história do suposto herói falangista. E que na verdade foi, afinal, um dos pilares fundamentais dos acossados maquis da zona. Não se trata, porém, da história de alguém que por convicções ideológicas se transforma num espião. Oriol é um herói «cinzento», que desperta para a acção depois de ter assistido passivamente à morte de um rapaz inocente, de ser abandonado pela mulher grávida e, sobretudo, por ser obrigado pelos revoltosos a servir de ponto de apoio na aldeia, o que faz com relativo êxito. Sendo um livro que tem como tema a guerra civil e o período de consolidação do franquismo, As Vozes do Rio Pamano é um livro sobre vencedores e vencidos, isto é, sobre as execuções, as denúncias, as expropriações e as conivências entre os poderes fácticos. Mas é também

VÍRUS ABRIL/MAIO 2009

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AS VOZES DO RIO PAMANO JAUME CABRÉ ED. TINTA DA CHINA, 2008, TRADUÇÃO DE JORGE FALLORCA, 653 PÁGINAS

uma poderosa narrativa sobre a fragilidade da memória e as marcas quase invisíveis que teimam em sobreviver, resguardadas, por exemplo, atrás de um quadro negro, numa escola em vésperas de ser demolida, à espera de que um presente mais propício as venha libertar. Três notas finais, a letra miudinha: a primeira para dar conta da preparação deum filme, baseado no livro. A segunda para notar o cuidado gráfico da edição (belíssima capa), o que aliás tem vindo a caracterizar as edições da Tinta da China. A terceira para lamentar o preço elevado do livro: 29,90 euros. Para ler devagarinho, portanto.


IMAGENS CAPA

REVISTA VÍRUS #6

CAVEMAN’S DAY OFF

ABRIL/MAIO 2009

DALIBORLEV

DIRECÇÃO

IMAGENS CIDADES INVISÍVEIS UWAUDITORIUM

089/365 MONEY...WHAT MONEY INTO THE BUBBLE _

JOÃO TEIXEIRA LOPES

MAHALIE STUARTPILBROW

EDIÇÃO GRÁFICA

[PHIL H]

LUÍS BRANCO

CONFUSEDVISION

AND ANOTHER FIRE... VVF

CONSELHO EDITORIAL

LUÍS MIGUEL MARTINS

ANA DRAGO

ROBERTO FERRARI

BETTER RUN

ANDREA PENICHE

*MARS

JORGE COSTA JOSÉ SOEIRO

IMAGENS A MÃO VISÍVEL DEMO PRO QIMONDA

BAD LUCK STRIKES TWICE SOLAR PANELS

MANUEL DENIZ SILVA

LUXTONNERRE

MARIANA AVELÃS

LIPJIN

NUNO TELES

138 PHOTO

PEDRO SALES RITA SILVA

IMAGENS ALTERFILIA MANIF 1O MAIO 2009

RUI BORGES

PAULETE MATOS

ILLEGAL IMMIGRANTS DEMONSTRATION (48) TODAY’S MOOD!

PHILIPPE LEROYER

COLABORARAM NESTA EDIÇÃO CECÍLIA HONÓRIO

PULPOLUX!!!

ETERNAL CLOCK

MÁRIO TOMÉ

ROBBERT VAN DER STEEG

MARTA LANÇA

IMAGENS CONTRATEMPOS SENECA KNITTING MILLS REFLECTION (BW)

MIGUEL CARDINA TONY THE MISFIT

BRITISH COAL STRIKE - BUILDING UP RESERVES FOR MIDLAND RAILWAY (LOC)

LIBRARY OF CONGRESS

VÍTOR LIMA YIANNIS BOURNOS

IMAGENS RAPSÓDIA PAGES OF A BOOK

SANDY GAGEIRO

KEVINDOOLEY

WWW.ESQUERDA.NET/VIRUS REGISTO ERC NO 125486 || PROPRIEDADE: BLOCO DE ESQUERDA AV. ALMIRANTE REIS, 131, 2O – 1100-015 LISBOA ESTA OBRA ESTÁ LICENCIADA SOB UMA LICENÇA CREATIVE COMMONS VÍRUS ABRIL/MAIO 2009

[63] FICHA TÉCNICA


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