Revista Vírus #11

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VÍRUS #11 — NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010

SOCIALISMO 2010 TIAGO IVO CRUZ

PENSAR O SOCIALISMO

ANA BASTOS

O PROBLEMA É A SOLUÇÃO: MODERNIDADE, CRISE AMBIENTAL E IMPLICAÇÕES SOCIAIS

LUÍS FARINHA

OCASO DA PRIMEIRA REPÚBLICA

JOÃO RODRIGUES E NUNO TELES

PARA LÁ DA ECONOMIA - 2012

JOSÉ GUILHERME GUSMÃO ESPÍRITOS, LETRAS E PRÁTICAS

JOÃO SEMEDO E SOFIA CRISÓSTOMO

SNS – NEM ROSA VELHO NEM LARANJA CHOQUE: A RESPOSTA DA ESQUERDA

XOSÉ CARBALLIDO PRESAS BANCO PÚBLICO DE TERRAS

JOÃO TEIXEIRA LOPES

A RECEPÇÃO É A ARMA DO POVO?

+ CONTO DE PEDRO EIRAS


OBLÍQUA MUDANÇA AO PUBLICAR OS TEXTOS QUE RESULTAM DE algumas das intervenções proferidas no socialismo 2010, realizado em Braga, no final de Agosto, por iniciativa do Bloco de Esquerda, lançamos alguns contributos para imaginar a mudança. A construção de processos alternativos requer muita paciência: os resultados raramente são visíveis no curto e médio prazo e, por vezes, parecem esfumar-se nas boas intenções. A mudança, na verdade, não tem a direcção de uma seta nem se pode conceber como a distância mais curta entre dois pontos. Por outro lado, a difícil conversão do pensamento em praxis transformadora convida os preguiçosos à desistência ou à repetição de um puzzle cuja resolução é invariavelmente a mesma. Imaginar a mudança requer aprumo técnico, saber científico e forte entrosamento com a materialidade das práticas sociais que, em certa medida, estão sempre em situação de avanço face à teoria (mesmo quando esta se pretende vanguardista e até quando as práticas parecem assumir uma configuração regressiva).

EDITORIAL | JOÃO TEIXEIRA LOPES

Requer também a transcendência dos possíveis. Daí o ofício da imaginação: transpor para outras coordenadas os limites do que se pode pensar e fazer (e fazer-pensando e pensar-fazendo). Tantas vezes em contra-mão, perpassando contradições e tensões, avanços e recuos, como uma espécie de nomadismo que exige a coragem propriamente intelectual de propor traduções, de rejeitar automatismos e de atravessar a complexidade com atenção e um certo deslumbramento. Quando o fragmento se impõe, persistamos no afã de conceber a totalidade, mas sem deixar de magicar a diferença e a mutação que nela se relacionam. Eis o propósito desta revista, o seu fio de Ariadne.

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PENSAR O SOCIALISMO

TIAGO IVO CRUZ | PROGRAMADOR CULTURAL

Reflectir, confrontar e discutir é a base sobre a qual uma ideia se desenvolve e ganha capacidade. Capacidade de mudar e de criar novas realidades e percepções para a economia, a sociedade, história e culturas. Uma ideia deve ser entendida como uma entidade própria, que se procura expandir sempre, de forma inexorável, num jogo ininterrupto sofrendo as mutações que lhe permitirem sobreviver. Algumas ideias são particularmente virulentas, outras passam despercebidas durante séculos, outras ainda exigem atenção, cuidado e reflexão pela potencialidade e possibilidades que delas podem surgir. E é extraordinário o quão resilientes algumas ideias podem ser. Chegamos ao séc. XXI com uma crise financeira que abalou o sistema capitalista e a ideologia neo-liberal numa consumação profética do seus próprios instintos predadores e no entanto, sentenciada e rejeitada por tantos, a própria ideia de capitalismo responde entrando em novo processo de mutação num movimento sem paralelo histórico. É bom lembrar que esta ideia sobreviveu já a duas guerras mundiais (e delas se alimentou), à industrialização e à financiarização mundial da economia. Por causa dos seus méritos? Pelo contrário. Temos hoje provas dos seus limites, das falhas e das consequências da sua hegemonia. Os PECs, a delapidação dos salários, das reformas e das pensões, a precarização do trabalho, a criminalização dos pobres, tudo isto é o produto de uma ideia que faliu e ameaça lançar-nos na bancarrota completa.

Urgem alternativas. Uma extensa operação de procura e mudança de paradigma para uma nova hegemonia cultural que recupera os ganhos do pós-guerra europeu e constrói novos caminhos na democratização da economia. Socialismo é uma palavra usada e abusada, com experiências que não construíram respostas nem futuros, ou experiências que muitas vezes se acanharam de procurar aquilo que todos merecemos. Mas Socialismo pode e deve ser um sistema de ideias em potência, em desenvolvimento e em confronto democrático. O seu potencial é tanto mais desenvolvido quanto mais pessoas as usarem, no dia-a-dia. Ideias feitas todas a gente as tem. Não é por acaso. O pensamento neo-liberal assim o obriga. Procurar alternativas significa por isso quebrar ideias feitas, quebrar a vertigem da crise e o domínio do centrão partidário. E esta procura ganha-se com sentido, objectivos claros e uma prática alternativa de ganhos concretos. O Fórum Socialismo é por isso um momento de construção de ideias. Ideias que fazem falta porque são possíveis. Este ano na sua quarta edição, o Bloco de Esquerda convidou 45 oradores para apresentar e debater não só as questões centrais da actualidade mas também o que não está e devia estar presente no debate público. Organizado em Braga, na Escola Secundária Sá de Miranda, contou com 350 participantes. Não sendo exequível apresentar uma edição extensiva foram recolhidas as apresentações de sete oradores que sintetizam um pouco do pensamento produzido no fórum. Com base neste suporte de memória esperamos manter vivo o debate para a alternativa.

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OCIALISMO 2010

O PROBLEMA É A SOLUÇÃO

MODERNIDADE, CRISE AMBIENTAL E IMPLICAÇÕES SOCIAIS ANA BASTOS VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010

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O PROBLEMA É A SOLUÇÃO - MODERNIDADE, CRISE AMBIENTAL E IMPLICAÇÕES SOCIAIS. ANA BASTOS | ENGENHEIRA DO AMBIENTE

A CRISE AMBIENTAL E AS CRISES SOCIAIS - O ULTIMATO DA NATUREZA The universe is not required to be in perfect harmony with human ambition. Carl Sagan As preocupações ambientais, sob a forma de conservação da natureza ou de crítica à industrialização, existem praticamente desde o início da revolução industrial. No entanto, ao longo do século XIX e boa parte do século XX, mantiveram-se restritas a algumas elites ou a movimentos políticos minoritários de cariz anarquista. A publicação do livro “Silent Spring” de Rachel Carson em 1962, onde esta denunciava os impactes do uso de pesticidas, marca um ponto de viragem - é a partir da década de 60 que explodem os movimentos ambientalistas de várias naturezas e que a ecologia é transportada para o discurso público e dos media. A preservação da biodiversidade, a poluição da atmosfera, da água e dos solos, o uso de fertilizantes e pesticidas químicos, a depleção das reservas energéticas, o consumo exponencial de recursos naturais finitos e o problema da explosão demográfica tornaram-se a base da crítica ao modelo de desenvolvimento da sociedade ocidental por parte

dos “ambientalistas”. É sobretudo na década de 80, com o problema do buraco do ozono devido às emissões de CFCs, que desperta a consciência de que estes problemas são globais e que as suas soluções também terão necessariamente de o ser. O aparente sucesso do Protocolo de Montreal (para eliminar as emissões de CFCs) não se traduziu, no entanto, na mesma capacidade para lidar de forma eficaz com a maioria dos problemas ambientais, apesar dos avanços que se deram nas últimas duas décadas. As alterações climáticas puseram a nú de forma dramática as fragilidades daquilo a que se chama a “comunidade internacional” no que toca à cooperação para resolver problemas comuns. Desde finais da década de 80, havia suspeitas da comunidade científica acerca da influência humana no clima devido às emissões de Gases com Efeito de Estufa (GEE)1. O Terceiro Relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (IPCC) sustentou que as alterações do sistema climático observadas ao longo do século XX - como o aumento da temperatura média do planeta, alterações dos regimes de pluviosidade, ou a diminuição do volume de gelo nos pólos – estavam relacionadas com o aumento da concentração de CO2 (e outros GEE) na atmosfera, resultante da actividade humana nos países industrializados. Devido ao aumento crescente das emissões glo-

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bais destes gases e ao longo período de residência dos mesmos, o IPCC apelava ainda para a acção urgente e global no sentido de estabilizar a sua concentração, o mais rapidamente possível, para que a temperatura média global aumentasse até 2ºC em relação ao período pré-industrial. Este limite de 2ºC tem reunido consenso nas últimas duas décadas, o que corresponde à estabilização da concentração de CO2 na atmosfera em cerca de 450ppm. A necessidade de uma diminuição rápida, senão imediata, das emissões de GEE prende-se sobretudo com a complexidade do sistema terrestre, já que é preciso ter em conta a sua inércia, os mecanismos de feedback positivo ou negativo, e as múltiplas, complexas e dinâmicas interacções entre os seus diversos elementos. Como se pode observar pela Fig.1, só eliminando imediatamente as emissões de GEE poderíamos assegurar a estabilização da temperatura média global abaixo dos 2ºC em relação à correspondente ao período pré-industrial mas, ainda assim, superior. O cientista James Hansen, um dos primeiros a trazer a público a discussão sobre as alterações climáticas, defende, no entanto, que a concentração de CO2 deve descer abaixo das 350ppm (actualmente encontra-se nas 385ppm). A constatação parte de uma análise probabilística do intervalo de concentrações para o qual o de-


gelo da Antárctida é irreversível, e que se situa entre as 350 e as 550 ppm.2 Por esse motivo, e porque as consequências do aumento da concentração de GEE já podem ser observadas abaixo das 400ppm, Hansen defende que devemos procurar manter a concentração abaixo das 350ppm.3 Por outro lado, Meinshausen defende que em vez de se procurar definir um patamar de estabilização, se deve orientar a análise para a quantidade total de combustíveis fósseis que podermos consumir para garantir segurança. Na mesma linha, Milles Allen estima que já ultrapassámos metade do total que poderemos emitir – cerca de um trilião de toneladas – e justifica que uma análise deste tipo facilita a acção política, dado que o limite total «(…) é como um orçamento. Uma vez usado, já não há nada mais para gastar.»4Há uma conclusão subjacente a qualquer uma destas perspectivas: é necessária uma inversão urgente na tendência das emissões de GEE - o phasing out terá de ocorrer num espaço de poucas décadas. Com o problema das alterações climáticas, a resolução da crise ambiental tornou-se prioritária e urgente. O MUNDO NÃO É PLANO O mundo em que vivemos é um mundo altamente polarizado. As desigualdades entre o centro – os países industrializados do “Norte” – e a periferia – os países “em desenvolvimento” do “Sul” – são de vários tipos e estão relacionadas. A promessa da industrialização (dita desenvolvimento) em meados do século XX era a promessa do fim de uma série de graves problemas que afectavam os países do Sul: a erradicação da pobreza, melhorias drásticas na saúde das populações, o acesso generalizado à educação,

avanços tecnológicos, em suma, o aumento do “nível de vida” das populações dos países do Sul e a diminuição da sua dependência dos países do Norte. Se é verdade que o desarrollismo produziu melhorias nalguns países (sobretudo na América Latina), a verdade é que a ânsia da industrialização nem trouxe os resultados esperados, nem conseguiu aliviar a dependência dos países do Sul – pelo contrário acentuou-a após a crise do petróleo, com a estagnação da economia mundial e o peso dos empréstimos contraídos em nome do “desenvolvimento”. Trouxe ainda, em muitos destes países, problemas sociais e ambientais associados à sobre-exploração de recursos naturais, ao abandono da agricultura e à explosão urbana. Na década de 80, a “globalização” – entendida como a abertura dos mercados e a livre circulação de capitais – surge como a nova solução para os problemas do Sul. Thomas Friedman afirmava que a globalização e o avanço tecnológico tornaram o mundo “plano”, no sentido em que todos os países competem em igualdade de circunstâncias. Pelo contrário, no actual mundo globalizado, as assimetrias parecem estar a multiplicar-se e sobrepor-se e não a desvanecerem-se. De facto, no que diz respeito à pobreza, as disparidades continuam a crescer: a população a viver abaixo do limiar da pobreza (menos de 2€ por dia) tem vindo a aumentar, situando-se actualmente perto dos 2,5 mil milhões de pessoas5. Apesar de todas as campanhas de erradicação da pobreza, de ajuda humanitária aos países “em desenvolvimento”, do alívio total ou parcial da dívida externa, dos esforços de movimentos de Comércio Justo ou de promoção dos Direitos Humanos, entrámos no século XXI num mundo menos igualitário e mais injusto.

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Como Boaventura Sousa Santos afirma, aquilo que se define como globalização corresponde à «globalização bem sucedida de determinado localismo»6, implicando sempre, em alguma medida, a imposição dos vencedores sobre os vencidos. O processo de globalização das últimas três décadas correspondeu à hegemonia de um determinado modelo político e económico, marcadamente ocidental, baseado no “Consenso de Washington”7 e centrado nos interesses do Norte. A industrialização e o consumo crescentes comportam também graves problemas ambientais: desde a destruição da biodiversidade, à desertificação, aos diversos tipos de poluição, ao consumo de recursos além da capacidade de regeneração dos mesmos, da desflorestação às alterações climáticas. A crise ambiental não se limita a estas últimas (ao contrário do que pode parecer mais recentemente), mas corresponde à interligação e sobreposição de todos os danos provocados pela actividade humana num mundo cada vez mais industrializado. São, portanto, os países industrializados os principais responsáveis pela crise ambiental – o Norte, juntamente com algumas “potências emergentes”. Estes países têm ainda, nos últimos anos, exportando uma boa parte das consequências mais danosas – venda de lixo tóxico, deslocação das indústrias mais poluentes – para os países do Sul, onde a consciência ecológica das populações é inferior e a regulamentação menos apertada. Se considerarmos as emissões totais de CO2 desde 1750, cerca de 60% foram realizadas pela Europa e pelos EUA, como se pode verificar pela Fig.2. O problema das emissões de GEE é que não é possível “exportar” as suas consequências já que estas são, inegavelmente, globais. O Norte, apesar disso, tem ensaiado manobras de di-


versão para evitar mudanças estruturais efectivas e colocar a responsabilidade da resolução do problema nos países do Sul, por exemplo através dos CDM, previstos no Protocolo de Quioto.8 Para as populações do Sul, as alterações climáticas representam o culminar de um processo que «priva os pobres dos seus direitos fundamentais à alimentação, solo e dos seus meios de subsistência.»9 Para perceber os motivos, é preciso considerar em primeiro lugar os principais impactes e consequências sociais das alterações climáticas e, em segundo, as respostas que têm sido dadas para a sua resolução. ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS – IMPACTES DESIGUAIS Os principais efeitos das alterações do sistema climático10 podem ser resumidos em: — Aumento da temperatura média global; — Alterações dos regimes de pluviosidade; — Maior intensidade e frequência de fenómenos extremos como secas, cheias e ciclones; — Expansão da zona tropical; — Degelo dos pólos; — Aumento do nível médio das águas do mar. Estes efeitos não incidem da mesma forma sobre todas as zonas do globo, nem os seus impactes na actividade humana são independentes da região que estivermos a considerar. As suas consequências dependerão sempre de uma combinação do tipo de alteração que afecta determinada zona, da densidade populacional, da dependência da população nos recursos naturais afectados bem como da sua capacidade para lidar com o problema e para se adaptar.

JÁ HÁ ACTUALMENTE ILHAS QUE SE TORNARAM INABITÁVEIS PELO AQUECIMENTO GLOBAL: A POPULAÇÃO DAS ILHAS CARTERET, PERTO DA NOVA GUINÉ, FOI EVACUADA EM ABRIL DE 2009: DEVIDO À SUBIDA DO NÍVEL DO MAR E AO AUMENTO DA SALINIDADE DA ÁGUA, AS SUAS CULTURAS TORNARAM-SE IMPRODUTIVAS.

Num estudo realizado pela ONU e pela CARE, os dados sobre vulnerabilidade humana – a capacidade de os indivíduos, comunidades ou sociedades recuperarem ou adaptarem-se a riscos ambientais – foram cruzados com a probabilidade de incidência de cheias, secas e ciclones nessa região.11 Como se pode ver na Fig.3 a vulnerabilidade humana é particularmente elevada nas regiões do Sahel, do nordeste e centro africano; nas regiões próximas do mar Cáspio; no sul, sudeste e nas ilhas asiáticas. Estes dados são cruzados com a incidência dos fenómenos extremos descritos, de forma a determinar áreas de elevado risco humanitário. Como se pode observar pela fig. 4, estas zonas concentram-se sobretudo em África (Sahel, nordeste e centro), no sul e sudeste asiáticos, nalgumas zonas da América Central e na região ocidental da América do Sul. É preciso considerar ainda que muitas destas regiões são zonas de densidade populacional elevada e crescente, pelo que as populações afectadas pelos fenómenos extremos poderão ser obrigadas a migrar, temporária ou definitivamente. Além disso, o relatório revela ainda que muitas das zonas mais afectadas pelas secas são zonas de tensão bélica. A seca é, dos três fenómenos, aquele que

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mais poderá contribuir para a possibilidade de conflitos – pela redução da água disponível e pela diminuição dos recursos alimentares. A incidência de secas nestas zonas poderá aumentar as tensões de conflitos armados. O IPCC aponta que as pequenas ilhas também deverão sofrer graves consequências das alterações climáticas.12 As alterações dos regimes de pluviosidade poderão limitar o acesso a água. A subida do nível do mar aumentará a erosão costeira, o risco de inundações e poderá destruir determinadas infra-estruturas vitais para a actividade económica, nomeadamente o turismo; quando combinada com poluição, alterações na circulação oceânica e o aumento da temperatura, reduzirá consideravelmente a biodiversidade das zonas costeiras, diminuindo o acesso a recursos que constituem a base das economias locais dessas ilhas. Nalgumas ilhas, a conjugação de vários impactes poderá torná-las inabitáveis, o que levará à migração das suas populações. Na verdade, já há actualmente ilhas que se tornaram inabitáveis pelo aquecimento global: a população das ilhas Carteret, perto da Nova Guiné, foi evacuada em Abril de 2009: devido à subida do nível do mar e ao aumento da salinidade da água, as suas culturas tornaram-se improdutivas.13


Figura 3 – Vulnerabilidade humana global, baseada numa combinação de factores naturais, humanos, sociais, económicos

e físicos. As zonas a azul escuro estarão mais vulneráveis se sujeitas a fenómenos extremos. Figura 1 - Simulação da resposta da temperatura em função da concentração de CO 2 na atmosfera para diferentes cenários.

Figura 2 – Emissões de CO2 acumuladas desde 1750 até 2006.

FIGURA 2 – EMISSÕES DE CO2 ACUMULADAS DESDE 1750 ATÉ 2006.

FIGURA 1 – SIMULAÇÃO DA RESPOSTA DA TEMPERATURA Anexos EM FUNÇÃO DA CONCENTRAÇÃO DE CO2 NA ATMOSFERA PARA DIFERENTES CENÁRIOS. FIGURA 3 – VULNERABILIDADE HUMANA GLOBAL, BASEADA NUMA COMBINAÇÃO DE FACTORES

FIGURA 4 – ZONAS DE RISCO HUMANITÁRIO ELEVADO, COMBINANDO A VULNERABILIDADE HUMANA

Figura 3 – Vulnerabilidade humana global, baseada numa combinação de factores naturais, humanos, sociais, económicos NATURAIS, HUMANOS, SOCIAIS, ECONÓMICOS E FÍSICOS. AS ZONAS A AZUL ESCURO ESTARÃO e físicos. As a azulAescuro estarão mais vulneráveis se sujeitas a fenómenos extremos. MAIS VULNERÁVEIS SE zonas SUJEITAS FENÓMENOS EXTREMOS.

Figura – Zonas de risco elevado, combinando a vulnerabilidade humana com deAcheias, secas e 20a incidência COM A4 INCIDÊNCIA DE humanitário CHEIAS, SECAS E CICLONES. A AMARELO ESTÃO AS ZONAS SUJEITAS UM DOS Bastos ciclones. as zonasSUJEITAS sujeitas a um dos riscos, a verde as zonas sujeitasAna a dois e nº35592 a azul zonas sujeitas aos três. RISCOS,A Aamarelo VERDEestão AS ZONAS A DOIS E A AZUL ZONAS SUJEITAS AOS TRÊS.

Figura 4 – Zonas de risco humanitário elevado, combinando a vulnerabilidade humana com a incidência de cheias, secas e ciclones. A amarelo estão as zonas sujeitas a um dos riscos, a verde as zonas sujeitas a dois e a azul zonas sujeitas aos três.

Ana Bastos nº35592

Figura 2 – Emissões de CO2 acumuladas desde 1750 até 2006.

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No que concerne aos sistemas costeiros, os impactes são semelhantes – erosão costeira, diminuição dos recursos marinhos – agravados pela pressão humana nestas regiões. No entanto, o IPCC reconhece que a adaptação nas zonas costeiras dos países “em desenvolvimento” será mais difícil do que nos países “desenvolvidos”. Um dos impactes mais dramáticos das alterações climáticas é na agricultura, já que a agricultura é ainda a base de subsistência de uma grande parte da população mundial. A alteração dos padrões de pluviosidade, o aumento da temperatura média e o aumento de fenómenos extremos afectam directamente a produtividade agrícola de culturas de sequeiro e de regadio e, pela alteração da água disponível, afectam indirectamente as culturas de regadio. Na maioria das regiões consideradas, estas mudanças diminuem a produtividade agrícola, no entanto há regiões em que certas culturas podem ser ligeiramente mais produtivas – o trigo e o arroz sem irrigação, sobretudo nalgumas regiões dos países desenvolvidos. 14 A fig. 5 sintetiza os principais impactes na produção de recursos alimentares: as regiões que vêem reduções drásticas nas suas colheitas são a Ásia oriental e as ilhas do pacífico (milho, arroz e trigo com irrigação), o sul Asiático (todas as culturas com irrigação), a África subsariana (milho), o Médio Oriente e algumas zonas da América do Sul. A produção de gado também diminuirá em praticamente todo o globo, excepto no Norte da Europa, EUA e Canadá. Quando se analisa o impacte que a redução da produtividade agrícola e pecuária tem na alimentação das populações, verifica-se que, por todo o globo, a disponibilidade calórica diária será em 2050 não só inferior ao que seria sem alterações climáticas, mas inferior à do

ano 2000 (Fig.6). Verifica-se também que as populações dos países “desenvolvidos” continuarão a ter disponíveis acima das 3000kcal/dia, enquanto as dos países “em desenvolvimento” viverão abaixo das 2500kcal/dia – na África Subsariana este valor desce mesmo abaixo das 2000kcal/dia.15 Por outro lado, com a redução da produtividade das culturas, os preços das mesmas tenderão a subir, o que agravará a situação de muitas destas populações, com o acesso a bens essenciais cada vez mais limitado. É esperado um aumento considerável de problemas de saúde associados às alterações climáticas. De facto, actualmente estes problemas já se fazem sentir: estimase que a saúde de 235 milhões de pessoas é afectada por consequências das alterações climáticas e 300000 mortes por ano estejam relacionadas com alterações no clima.16 As alterações climáticas já alteraram a distribuição dos portadores de certas doenças infecciosas (malária, dengue e febre amarela, por exemplo) e de certas espécies de pólenes que provocam alergias e aumentaram o número de mortes devido a ondas de calor. Espera-se que nos próximos cinquenta anos, a saúde humana venha a degradar-se ainda mais devido a estes fenómenos: aumento dos níveis de má nutrição, sobretudo infantil; alterações nos padrões de distribuição dos portadores de doenças infecciosas, o que aumentará o número de pessoas em risco de as contrair; agravamento das consequências de doenças como diarreia; aumento do número de mortes devido a fenómenos extremos e pelo aumento de problemas cardio-respiratórios. É expectável que nas latitudes mais a Norte haja uma redução do número de mortes devido a ondas de frio, no entanto o aumento do número de mortes devido a ondas de calor (sobretu-

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do nos países “em desenvolvimento”) ultrapassará em grande medida esta redução.17 A mortalidade relacionada com as alterações climáticas tenderá a ser superior nas populações mais vulneráveis, com pior alimentação, condições sanitárias mais precárias e sistemas de saúde inexistentes ou insuficientes. Como se pode ver pela fig. 7, a mortalidade relacionada com as alterações climáticas incide sobretudo em África, no Médio Oriente e em toda a região sul da Ásia. A actividade turística também deverá sofrer alterações: à medida que as regiões temperadas se tornam mais quentes, haverá uma tendência para o aumento do turismo interno na Europa, sobretudo nos períodos de Verão. Espera-se também uma diminuição do turismo nos “paraísos tropicais”, à medida que os fenómenos extremos aumentam em frequência e intensidade e que estes países de tornam menos seguros e menos “paradisíacos”. Pela diminuição da biodiversidade em muitas zonas do continente africano também se espera que o “turismo selvagem” sofra quebras. É de salientar que muitos dos países que sofrerão reduções na actividade turística são países profundamente dependentes desta – o turismo representa 39% do PIB das Bahamas, por exemplo.18 Todas estas alterações terão consequências geopolíticas, relacionadas com a segurança alimentar e o controle de recursos, a par do acentuar dos movimentos migratórios, que poderão gerar mais conflitos e mais situações de crise humanitária. O degelo do Árctico, por exemplo, ao abrir a possibilidade de navegação e de exploração de recursos minerais e de combustíveis fósseis, tem feito com que aquilo que era uma relação de cooperação entre as diversas potências que o rodeiam para


investigação científica se esteja a tornar numa corrida pelo controle da região. A conclusão que se pode tirar da análise dos impactes na actividade humana das alterações climáticas, é que estes afectam sobretudo – e de forma mais drástica – as populações dos países do Sul. Os problemas sociais e humanitários que já se fazem sentir nesta região do globo serão acentuados pelos efeitos das alterações climáticas, e agravados por uma série de novas consequências sociais e económicas. São sobretudo as comunidades do Sul que vivem ainda em regimes de subsistência, profundamente dependentes da actividade agrícola, que não têm acesso a serviços básicos de saúde, que não possuem electrodomésticos e que, provavelmente, nem sabem o que é o aquecimento global, que serão as suas principais vítimas. Tudo indica que serão também os países do Sul a assumir a responsabilidade de albergar os “refugiados do clima”, já que têm sido estes a conceder asilo à maioria dos refugiados – entre 1992 e 2001 86% dos refugiados provinha de países “em desenvolvimento”, ao mesmo tempo que estes países acolhiam 72% do total de refugiados.19 As medidas securitárias tomadas pela União Europeia e pelos EUA nos últimos anos não revelam qualquer desejo de inversão neste cenário, pelo contrário. Os países do Norte terão capacidade para lidar com uma boa parte das consequências negativas e assegurar a adaptação das suas populações, além de que alguns dos efeitos das alterações climáticas trarão alguns benefícios (aparentes) para as populações das latitudes mais elevadas. O modelo de desenvolvimento ocidental, baseado na

CONSIDERANDO QUE A CRISE AMBIENTAL INTEGRA UM CICLO QUE AUMENTA AS DESIGUALDADES E SE ALIMENTA DELAS, É NECESSÁRIO QUE AS SOLUÇÕES SEJAM AO MESMO TEMPO SOLUÇÕES QUE REDUZAM A PROBABILIDADE DE INFLIGIRMOS DANOS IRREVERSÍVEIS NO SISTEMA ECOLÓGICO E QUE PROMOVAM A EQUIDADE E A JUSTIÇA SOCIAL GLOBAIS.

industrialização intensiva e numa economia capitalista colocou um duplo fardo sobre a maioria da população mundial: se a globalização acentuou as assimetrias económicas e sociais entre o Norte e o Sul, as consequências ambientais desse mesmo modelo afectam principalmente aqueles que são menos responsáveis por ele, e que mais sofrem com a sua hegemonia. A crise ambiental fecha o ciclo das desigualdades Norte/Sul, sendo ao mesmo tempo causa e consequência destas. We sink or swim together. Climate change can be a threat to peace and stability. There is no part of the globe that can be immune to the security threat. Rajendra K. Pauchauri É TEMPO DE PARAR DE FINGIR As alterações climáticas colocaram um desafio à humanidade sob a forma de ultimato: depois de décadas e décadas do agravar dos problemas ambientais, da sua resolução apenas parcial ou sem que estes fossem resolvidos de todo, ou rompemos com uma grande parte daquilo que têm sido as nossas concepções e práticas nas últimas

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centenas de anos, ou é a nossa própria sobrevivência que está em risco. O pico do petróleo, somado a esta crise ambiental coloca um perigo adicional: à medida que a produção de petróleo diminui, é provável que aumente o uso de carvão, mais abundante, mas consideravelmente mais poluente. A resposta é, portanto, urgente. Dado o carácter global dos problemas, as soluções terão necessariamente que ser globais no sentido mais abrangente possível: exigem não só uma solidariedade global em termos territoriais, mas também inter-geracionais. Considerando que a crise ambiental integra um ciclo que aumenta as desigualdades e se alimenta delas, é necessário que as soluções sejam ao mesmo tempo soluções que reduzam a probabilidade de infligirmos danos irreversíveis no sistema ecológico e que promovam a equidade e a justiça social globais. Impõem-se portanto, soluções estruturais, e não “correcções” que apenas adiam o inevitável ou que exportam os seus custos para zonas do planeta já fragilizadas, como se tem feito até agora. Como diz Stiglitz, «o aquecimento global é um problema global e, no entanto, ninguém quer pagar para o resolver.» 20


relativo de mortes).

Anexos FIGURA 5 – VARIAÇÕES NA PRODUÇÃO DE RECURSOS EM 2050 DEVIDO ÀS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS: CEREAIS, GADO E SILVICULTURA Figura 5 – Variações na produção de recursos em 2050 devido às alterações climáticas: cereais, gado e silvicultura.

FIGURA 6 – DISPONIBILIDADE CALÓRICA DIÁRIA EMdiferentes 2050 PARA DIFERENTES DO GLOBO Figura 6 – Disponibilidade calórica diária em 2050 para regiões do globo para REGIÕES cenários sem alterações com alteraçõesCLIMÁTICAS, climáticas (NCAR e CSIRO) e impacte daCLIMÁTICAS fertilização (CF). PARA CENÁRIOSclimáticas, SEM ALTERAÇÕES COM ALTERAÇÕES (NCAR E CSIRO) E IMPACTE DA FERTILIZAÇÃO (CF).

22até 2006 FIGURA 8 – EVOLUÇÃO DAS EMISSÕES DE CO2 NA UNIÃO EUROPEIA 2006 (ROXO), DO Figura 8 – Evolução das emissões de CO2 na União Europeia (roxo), ATÉ do PIB (vermelho), do PIB consumo de energia Ana EBastos nº35592 (VERMELHO), DO CONSUMO DEintensidade ENERGIA (AZUL) DA DA UE-15 (VERDE) E (azul) e da energética da INTENSIDADE UE-15 (verde) ENERGÉTICA e UE-27 (laranja). UE-27 (LARANJA).

Anexos Figura767–––MAPA Disponibilidade calórica diária 2050 para diferentes do globo para cenários sem alterações Figura Mapa do mundo adaptado à em mortalidade àsregiões alterações climáticas representa maior número FIGURA DO MUNDO ADAPTADO À relativa MORTALIDADE RELATIV A(área ÀSmaior ALTERAÇÕES climáticas, com alterações climáticas (NCAR e CSIRO) e impacte da fertilização (CF). relativo de mortes). CLIMÁTICAS (ÁREA MAIOR REPRESENTA MAIOR NÚMERO RELATIVO DE MORTES).

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Figura 8 – Evolução das emissões de CO2 na União Europeia até 2006 (roxo), do PIB (vermelho), do consumo de energia (azul) e da intensidade energética da UE-15 (verde) e UE-27 (laranja).

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Ana Bastos nº35592


AS NÃO-SOLUÇÕES O Protocolo de Quioto foi encarado como a solução possível para o controle das emissões de GEE, impondo limites de emissões para 39 países industrializados (Anexo I) e prevendo vários mecanismos para reduzir as emissões nesses países: a criação de um sistema de comércio de licenças de emissão, a possibilidade de projectos de cooperação entre os países do Anexo I para redução conjunta das emissões globais, JI – Joint Implementation – e, como medida de promoção do desenvolvimento sustentável, a criação dos CDM – Clean Development Mechanisms. Quioto revelou-se não só insuficiente na redução das emissões de GEE globais, como ainda promoveu, muitas vezes o seu aumento. Em primeiro lugar, não contemplava países que, devido ao seu processo de industrialização intensiva recente, se tornaram grandes emissores de GEE, como a China, a Índia ou o Brasil. Em segundo lugar, o sistema de mercado apresenta inúmeras fragilidades: parte da assumpção duvidosa de que é possível (e legítimo) definir direitos de propriedade sobre a atmosfera; cria um sistema de compra e venda de “licenças” e “créditos” de emissão sujeito à especulação financeira, volátil e completamente desligado da realidade; privilegia soluções baratas e de curto-prazo em vez de mudanças estruturais. Como Vandana Shiva aponta «O carbono circula em Wall Street, não no ciclo do carbono.»21 Em terceiro lugar, os CDM, responsabilizados pelo “desenvolvimento limpo”, na maioria das vezes nem promovem o “desenvolvimento” real das comunidades locais, nem reduzem as emissões de GEE. A concessão de créditos em função do cenário “business-as-usual” dá azo a tentativas de fraude

ou de adulteração dos resultados, além de que há exemplos de créditos concedidos incorrectamente a projectos com início muito antes de o Protocolo ter entrado em vigor, ou mesmo de situações em que créditos são atribuídos a projectos, apenas porque estes queimam gás natural em vez de carvão, ou porque cumprem a legislação local.22 Além disso, muitos dos projectos prejudicam as comunidades locais, sendo impostos em nome do “desenvolvimento”: a produção de biocombustíveis em monocultura que degradam os solos e sobem o preço da alimentação ou o uso de territórios indígenas para reflorestação, privando-os do seu direito legítimo ao território, recursos e auto-determinação e destruindo o seu património cultural.23 Em quarto lugar, Quioto faz com que qualquer projecto que “reduza” as emissões de GEE seja equivalente, quer este promova soluções estruturais ou apenas de “end-of-pipe”, quer seja um projecto de energias renováveis, nuclear ou hidroeléctrico, ou de promoção da eficiência energética. A melhor prova do falhanço de Quioto é a constatação de que as emissões globais continuam a aumentar e que mesmo a Europa, onde o protocolo foi mais seriamente implementado, falhou o cumprimento dos seus objectivos (fig. 8). Também a eficiência energética, apontada como uma das principais soluções para o aquecimento global, constitui mais o adiar do problema e menos a sua resolução. A emissão de CO2 está profundamente relacionada com a actividade económica, sobretudo no que diz respeito à actividade industrial para satisfazer o consumo crescente de bens. Estima-se que a actividade económica global duplique a cada 17 anos, o que implica um aumento exponencial do consumo de energia.24 Apesar de todas as medidas de melhoria da eficiência energética, há limites

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físicos para lá dos quais é impossível aumentá-la. Isto significa que se nos concentrarmos apenas em medidas de eficiência energética sem actuar do lado do consumo, por um lado, e da produção limpa, por outro, estaremos apenas a adiar por alguns anos o problema. A escolha das soluções não pode, igualmente, centrar-se apenas na questão das emissões de GEE: a crise ambiental vai além das alterações climáticas, toca todas as componentes do sistema terrestre, solos, oceanos, atmosfera, biosfera, e como tal, não é equivalente optar pela produção de energia a partir de fontes renováveis, utilizar biocombustíveis ou recorrer à energia nuclear, apesar de ambas terem emissões nulas ou reduzidas. As “soluções tecnológicas”, como a fertilização dos oceanos com ferro, a colocação de reflectores no céu ou a criação de árvores geneticamente modificadas para absorverem mais CO2 além de terem eficácia altamente duvidosa e impactes ambientais imprevisíveis, são a tentativa desesperada de quem não quer assumir que a crise ambiental é, em última análise, uma crise do uso que fazemos da tecnologia e da nossa relação com a natureza. EXTERNALIDADES Desde o início da economia capitalista que a lógica da acumulação crescente impôs a tentativa de reduzir ao máximo os custos dos inputs da actividade produtiva, bem como das suas consequências negativas. Wallerstein aponta: «O principal mecanismo através do qual os empregadores conseguiram, através dos séculos, evitar as despesas com inputs, foi transferindo os custos para outros»25, isto é, externalizar os custos. A poluição é o exemplo mais óbvio das externalidades ambientais – durante muito tempo, a maior parte


dos poluidores dos países industrializados não sofria qualquer sanção por despejar lixo tóxico em rios, ou por poluir a atmosfera. A partir do momento em que os governos destes países (sobretudo por pressões sociais) começaram criar legislação no sentido de internalizar os custos para o ambiente e para a saúde pública (como o princípio do poluidor-pagador, taxas, etc.), muitas das indústrias mais poluentes deslocaram-se para países com legislação menos apertada. A maior parte dos recursos naturais também tem sido explorado como se fosse algo alheio à economia, os custos da sua renovação ou do seu esgotamento têm sido deixados às gerações futuras. A “prosperidade económica” ocidental dos últimos séculos baseou-se num autêntico saque de recursos naturais, sem qualquer preocupação com o equilíbrio dos ecossistemas ou das populações humanas que deles dependem, ou com as necessidades das gerações futuras. A explosão da economia ocidental também teve, e ainda tem, como principal propulsor o acesso a energia barata – muitas vezes com recurso a meios desonestos ou mesmo da violência armada, dos quais a ocupação do Iraque pelos EUA desde 2003 é um dos exemplos recentes. O baixo preço da energia “fóssil” assenta no esquecimento de que consumirmos combustíveis fósseis milhões de vezes mais depressa do que o tempo que estes levam a regenerar-se, deveria ser considerado um custo e de que a queima de combustíveis fósseis para produção de energia tem custos ambientais e sociais elevadíssimos. O mesmo se pode dizer da energia de fissão nuclear, apresentada como a melhor solução para resolver o problema das emissões de GEE: no preço da energia nuclear não são contemplados os custos da de-

A MENOS QUE A ECONOMIA SE SUBORDINE, COMO PARECE NATURAL, AO AMBIENTE, CONTINUAREMOS A VIVER NUMA REALIDADE FINGIDA, ABASTECIDOS POR ENERGIA BARATA, CONSUMINDO CADA VEZ MAIS RECURSOS, A UMA VELOCIDADE CADA VEZ MAIS ALUCINANTE.

sintoxicação dos resíduos radioactivos (que leva milhares de anos a processar-se), nem os impactes ambientais durante todo o tempo de vida de uma central (extracção do minério, preparação, transporte, construção, funcionamento e do seu desmantelamento), nem os riscos para a saúde ou mesmo a vida humana e biológica no caso de acidentes. A menos que a economia se subordine, como parece natural, ao ambiente, continuaremos a viver numa realidade fingida, abastecidos por energia barata, consumindo cada vez mais recursos, a uma velocidade cada vez mais alucinante. DÍVIDA EXTERNA VS. DÍVIDA ECOLÓGICA O ano de 2000 foi o culminar de uma campanha internacional, o Jubileu 2000, pelo cancelamento total da dívida externa dos países do Sul. Quando, em 1996, o Banco Mundial (BM) lançou a “Iniciativa pelos Países Pobres Altamente Endividados”, as expectativas de todos os que combatiam pela autonomização dos países do Sul foram goradas. Dos 41 países que se candidataram, considerou-se que 23 não conseguiam sustentar os seus

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encargos com a dívida – estavam falidos – mas, apesar disso, em 2005, apenas 18 países tinham conseguido a redução parcial da sua dívida, depois de o G8 lhes ter concedido o seu “perdão”. Aquilo que se definiu como um nível de dívida “sustentável” estava na verdade muito acima daquilo que os países pobres podiam suportar: o valor da dívida continuou a aumentar e, actualmente, soma cerca de 1,5 triliões de dólares.26 As ajudas financeiras aos países mais pobres sob a forma de empréstimos têm sido acusadas de, ao contrário do que parece, terem sido criadas para defender os interesses do Norte e alargar a sua hegemonia, mantendo e aprofundando a dependência dos países do Sul. Na verdade, a concessão de “ajudas” por parte do Fundo Monetário Internacional (FMI) ou pelo BM dependia do cumprimento de uma série de exigências que, invariavelmente, impunham um modelo industrialista de desenvolvimento e que eram baseadas no Consenso de Washington. Estas exigências, além de minarem as democracias dos países, em geral colocaram-nos em situações ainda mais frágeis do que anteriormente. As condições dos empréstimos aos países pobres, ao imporem certas políticas aos seus governos, limitam a


A “PEGADA ECOLÓGICA” DE WILLIAM REES É UMA FORMA DE QUANTIFICAR A NOSSA DÍVIDA ECOLÓGICA – A PARTIR DA ANÁLISE DA OCUPAÇÃO HUMANA DO PLANETA (EM HECTARES PER CAPITA) PERMITE ANALISAR SE DETERMINADAS ACTIVIDADES CORRESPONDEM A UMA OCUPAÇÃO SUSTENTÁVEL OU EXCESSIVA DO PLANETA.

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sua capacidade de acção e enfraquecem as instituições democráticas locais. A população vê os seus dirigentes democraticamente eleitos forçados a cumprir medidas ditadas por organizações externas comandadas pelos interesses dos países mais ricos. Como Stiglitz (que foi economista principal do BM) aponta a propósito da dívida dos países africanos: «A liberalização abria os mercados africanos às mercadorias dos países estrangeiros, mas os países africanos pouco tinham para vender ao exterior. A abertura do mercado de capitais não trouxe uma entrada súbita de capital; os investidores estavam mais interessados em retirar de África os seus abundantes recursos naturais.»27 As regras impostas levaram, assim, a uma degradação das economias destes países, o que resultou em perdas de capital que vieram agravar as suas dívidas. Curiosamente, como Simms repara, o aumento da dívida dos países africanos entre 1980 e 1992 corresponde aproximadamente ao valor das perdas do comércio de bens essenciais, fruto dos acordos estabelecidos. Assim, os governos destes países são forçados a canalizar uma boa parte do orçamento para o pagamento de uma dívida injusta e que os prejudica, em vez de investirem em saúde ou educação, por exemplo. No entanto, há países com elevadíssimas dívidas que não sofrem quaisquer pressões para as pagar: o Reino Unido tem uma divida para com os EUA de 14,5 biliões de dólares e o resto da Europa cerca de 18,5 biliões de dólares, desde a 2ª Guerra Mundial.28 Um outro conceito de dívida tem vindo a ser formulado ao longo do século XX – o de dívida ecológica. Este conceito pode ser resumido da seguinte forma: num planeta com recursos limitados, a cada um de nós cabe uma pequena parte da “capacidade ecológica” – re-

generação dos elementos, despoluição dos recursos que usamos, recuperação de ecossistemas, etc. – do planeta, quando utilizamos mais do que o que nos cabe, contraímos uma “dívida ecológica”. A “pegada ecológica” de William Rees é uma forma de quantificar a nossa dívida ecológica – a partir da análise da ocupação humana do planeta (em hectares per capita) permite analisar se determinadas actividades correspondem a uma ocupação sustentável ou excessiva do planeta. Como se pode ver pela fig. 9, a Europa (excepto os países nórdicos) e os Estados Unidos usam o planeta muito acima daquilo que é sustentável, estão portanto em «dívida para com o resto do planeta»29. É preciso salientar que esta dívida é fruto de um processo que se iniciou e que se alimentou da expropriação dos recursos à maioria dos países que têm uma ocupação muito reduzida do planeta. É preciso também não esquecer que, se os países do Norte puderam ter o “privilégio” de viver muito acima da capacidade do planeta, foi à custa do empobrecimento dos países do Sul. Enquanto a dívida externa, mais do que uma obrigação de um Estado para com outros, tem constituído um instrumento injusto (senão mesmo imoral) de dominação do Norte sobre o Sul, a dívida ecológica permanece esquecida nos círculos de poder político e económico, do G8, ao FMI e BM. É tempo de reequilibrar a balança e começar a cobrar aquilo que é devido. O PROBLEMA INSTITUCIONAL As regras do sistema mundial parecem estar viciadas: os países do Sul têm visto a sua dependência aumentada e a sua autonomia limitada por regras internacionais estabelecidas pelo Norte. Se é verdade que os

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problemas globais exigem a cooperação à escala global, também parece ser verdade que as instituições existentes não têm sido adequadas para os resolver. Desde a 2ª Guerra Mundial que se sentiu a necessidade da criação de instituições mundiais, fosse para assegurar a “estabilidade económica” – o FMI e o BM – ou para evitar novas guerras – a Organização das Nações Unidas (ONU). No entanto, estas instituições foram criadas à medida dos interesses dos países do Norte com as chefias do FMI e o BM nomeadas pela Europa e pelos EUA, respectivamente, o número de votos no FMI definido pelo poder económico de cada país ou a definição do direito de veto dos cinco membros permanentes no Conselho de Segurança da ONU. As instituições como o BM e o FMI (juntamente com a Organização Mundial do Comércio), como já foi apontado, foram responsáveis pela definição de regras de comércio internacional desequilibradas e pela imposição da desregulação dos mercados. Esta última lançou as bases daquilo que se tornou um dos traços mais distintivos da globalização: o surgimento de grandes empresas multinacionais cujo poder económico ultrapassa em larga medida muitos dos Estados mais pobres e que têm poder para influenciar as decisões políticas quer nos seus países de origem, quer noutros onde se estabelecem. A crescente importância das empresas multinacionais veio agravar ainda mais a situação dos países do Sul, dado que estas têm um grande poder na economia global e beneficiam – no quadro actual – simultaneamente de mobilidade total, podendo escolher os países em que se instalam e abandoná-lo quando os seus interesses deixam de ser satisfeitos. Desta forma, a globalização da economia conduziu à perda do poder


dos Estados de regulação macro-económica e à erosão da soberania, não só dos países do Sul, mas igualmente dos países do Norte. No que toca à resolução das questões ambientais globais, a acção dos Estados ainda é mais limitada: a interdependência de todos os Estados não permite acções unilaterais e, além disso, os mecanismos utilizados internamente por cada Estado para lidar com problemas semelhantes não são facilmente transpostos para o plano internacional. A ONU tem assumido a seu cargo a tentativa de concertação de esforços à escala global sobre diversos problemas: desde as questões humanitárias, ao desenvolvimento ou aos problemas ambientais. No entanto, como Castells afirma: «Os esforços para que os Estados actuem em regime de cooperação assumem muitas vezes a forma de espectáculos internacionais e retóricas solenes ao invés de conduzirem à implantação efectiva de programas de acção conjunta.»30 A Cimeira de Copenhaga em Dezembro de 2009 foi o corolário da afirmação anterior. As duas semanas da cimeira foram marcadas por um clima de suspeita, intrigas, reuniões paralelas restritas a alguns membros, o aparecimento de um texto preparado de antemão pelas grandes potências para, alegadamente, ser usado em momento de impasse, e acusações de parte a parte sobre a responsabilidade do falhanço da Cimeira. Segundo Bernarditas de Castro Muller, coordenadora do G77 dos países “em desenvolvimento” e da China, o fracasso da Cimeira «(…) não se deveu a duas semanas de negociações diplomáticas agitadas, mas foi o culminar de anos de tentativas de intimidação e suborno por parte dos países ricos para pressionar o mundo em desenvolvimento a aceitar um acordo que ia contra os seus interesses.»31 Estas pressões

não são originais e, nas Cimeiras, Convenções, Fóruns ou outros espaços de concertação internacional são, em geral, os interesses dos países “em desenvolvimento” que são deixados cair durante as negociações, em nome da viabilização dos acordos. Copenhaga pode ter sido um fracasso, no entanto, a recusa por parte dos países “em desenvolvimento” em aceitar acordos criados para manter o estilo de vida do Norte à custa das populações do Sul, constituiu uma afirmação de que é necessário abandonar uma forma de governação mundial desequilibrada e pouco democrática, ao mesmo tempo que revelou as fragilidades das instituições existentes. À medida que ganham mais consciência sobre todas as dimensões do problema, os países do Sul começam a questionar a legitimidade com que os países ricos e as “suas” instituições exercem autoridade sobre os mais pobres. A exigência é simples: é urgente parar de fingir que é possível resolver a crise ambiental sem fazer uma profunda reflexão sobre o paradigma de desenvolvimento que nos conduz, a uma velocidade estonteante, até ao precipício.

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A paradigm shift is emerging not from politics or ideology but from a deep fissure opening up between two great continental plates – on one hand the way the world does business and, on the other, the limited tolerance of the earth’s environment. Andrew Simms CRISE AMBIENTAL OU A CRISE DA MODERNIDADE? A promessa da modernidade A crise ambiental não é um fenómeno independente do caminho que traçámos nas últimas centenas de anos – é consequência última dos modos de vida e de organização social que se começaram a desenhar por volta do século XV e que se consolidaram ao longo dos séculos XVII e XVIII. A transição para a Modernidade foi um período de profundas rupturas, quer no que diz respeito à concepção do ser humano sobre si próprio, quer na sua relação com os outros seres humanos e com a natureza. Diversos acontecimentos contribuíram para moldar a modernidade, enquanto projecto socio-cultural, naquilo que são os seus aspectos mais fundamentais: a invenção da imprensa de caracteres móveis por Gutenberg, o início das descobertas marítimas, a Reforma Protestante, a ascensão da burguesia, o desenvolvimento da Ciência Moderna, foram factores determinantes para a definição do ser humano como senhor de si próprio, criador do seu destino, orientado pelo livre uso da razão, liberto da dependência da natureza e capaz de a moldar de acordo com as suas necessidades. Boaventura S. Santos define como dois pilares do projecto moderno a regulação – através dos princípios do Estado, do mercado e da comunidade – e a eman-


cipação – através da ciência e da técnica, da arte e da literatura, e da ética e do direito. Estes dois pilares da modernidade – regulação e emancipação – teriam como objectivo a racionalização global quer da vida individual, quer da vida colectiva.32 Este projecto implicou, necessariamente, a emergência de novas formas de organização social que materializam e reúnem estes diversos princípios. Giddens aponta quatro dimensões institucionais básicas da modernidade – a economia capitalista, a vigilância, o industrialismo e o poder militar. Defende também que a modernidade é, por inerência, globalizante e indica três características das instituições modernas que estão na origem da globalização: a separação do espaço e do tempo, através do estabelecimento de referenciais absolutos e distintos; o alargamento dos mecanismos de descontextualização, através da retirada dos contextos e significações locais de certas actividades sociais; a ruptura com a tradição e a tentativa de examinar e reformar as práticas sociais à luz do conhecimento que se produz sobre elas.33 A definição de referenciais de tempo e espaço absolutos permitiu por um lado, “unificar” o planeta em torno de representações abstractas, esvaziando-os de significado contextual e, por outro, foi essencial para o desenvolvimento dos processos industriais e para a uniformização da organização social do tempo e do espaço (o horário de trabalho por turnos, por exemplo). Os mecanismos de descontextualização permitiram reestruturar as relações sociais noutras dimensões do espaço-tempo transformando o «espaço de lugares» em «espaço de fluxos»34, onde as trocas se processam sem interacção social física. Exemplos de espaços de fluxos são os sistemas financeiros, de telecomunicações ou de in-

A CRISE AMBIENTAL É FRUTO DO CUMPRIMENTO EM EXCESSO DE TRÊS DOS ASPECTOS DA MODERNIDADE – DO INDUSTRIALISMO, DA PRIMAZIA DO MERCADO NUMA ECONOMIA CAPITALISTA E DO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO.

formação. A maioria dos processos que se dão no espaço de fluxos tem também carácter instantâneo, provocando portanto, o “colapso” do tempo. O desenvolvimento do Estado-Nação constituiu um dos principais mecanismos de descontextualização, inserindo as relações sociais e económicas num espaço vasto e entendido como homogéneo, redefinindo e unificando as diversas identidades sob a égide de uma nova identidade baseada na soberania territorial. O EstadoNação foi determinante para a organização política moderna, tornando-se o grande centro do poder político e económico, e exercendo a sua hegemonia quer através da economia capitalista e da produção industrial, quer através do poder militar. No entanto, este processo hegemónico ocidental, na sua fase de maior expansão, tornou cada vez mais indistinguíveis os países de lugar para lugar e tem vindo a enfraquecer a soberania do Estado-Nação moderno devido à incapacidade do mesmo para regular os «espaços de fluxos» no seio do seu território e pelo surgimento de problemas globais, que exigem uma regulação supranacional. Chegados ao período de maior radicalização da modernidade, descobrimos que esta não se cumpriu em

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todos os seus aspectos e que, cumprindo em excesso alguns deles, tornou impossível o cumprimento dos outros. A CRISE DA MODERNIDADE E A CRISE AMBIENTAL A crise ambiental é fruto do cumprimento em excesso de três dos aspectos da modernidade – do industrialismo, da primazia do mercado numa economia capitalista e do desenvolvimento científico e tecnológico. Por industrialismo entende-se a utilização de fontes inanimadas de energia para a produção de mercadorias que, associada à “crença” no progresso científico e tecnológico, conduziu por um lado à disseminação de uma ideia de “desenvolvimento” baseado na industrialização intensiva e, por outro, à transformação da natureza de forma tão radical que acarreta consequências imprevisíveis e impossíveis de controlar exclusivamente pela “técnica”. A promessa de que o desenvolvimento científico e tecnológico, aliado à produção industrial, poderia satisfazer todas as necessidades do ser humano e libertá-lo para que pudesse desenvolver em pleno as suas capaci-


Anexos

Figura 9 – Dívida ecológica mundial:o vermelho corresponde a uma dívida muito elevada, o verde mais escuro a uma dívida negativa (ou um crédito). A área dos países foi alterada para corresponder ao consumo efectivo de recursos.

FIGURA 9 – DÍVIDA ECOLÓGICA MUNDIAL: O VERMELHO CORRESPONDE A UMA DÍVIDA MUITO ELEVADA, O VERDE MAIS ESCURO A UMA DÍVIDA NEGATIVA (OU UM CRÉDITO). A ÁREA DOS PAÍSES FOI ALTERADA PARA CORRESPONDER AO CONSUMO EFECTIVO DE RECURSOS

Figura 10 – Relação entre a média de pessoas felizes e satisfeitas com a sua vida e o PIB per capita, análise por país.

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dades criativas e sociais, foi sendo adiada, à medida que se intensificavam os processos industriais, até que foi posta em causa a partir de meados do século XX. Em primeiro lugar, o projecto de emancipação do ser humano não só não foi cumprido como, para uma grande parte da população mundial, foi invertido. A abstracção e mercadorização da força de trabalho, ponto que une as dimensões industrialista e capitalista da modernidade, explica em parte esta inversão: o crescimento da desigualdade na distribuição dos recursos (apesar do crescimento da “riqueza” global) e a dependência no trabalho assalariado tornaram cada vez mais difícil satisfação das necessidades básicas e a maioria dos seres humanos cada vez menos livres. Em segundo lugar, o desenvolvimento da tecnologia e a manipulação da natureza levantaram novas questões éticas que põem em causa a legitimidade do progresso científico e tecnológico ilimitado como, por exemplo, a possibilidade de manipulação genética de seres vivos. Em muitos casos, estas preocupações éticas/morais prendem-se com o receio do uso da tecnologia para o controlo social (dimensão da supervisão) ou o controlo dos meios de violência (dimensão do poder militar), por exemplo através da produção industrial de armas químicas ou biológicas. Ou ainda, no contexto da primazia do mercado sobre as outras formas de regulação, coloca questões sobre a legitimidade de compra e venda de património biológico (genoma) ou da definição de propriedade intelectual sobre descobertas que poderiam ser usadas para o bem comum (fármacos, por exemplo). Em terceiro lugar, a industrialização da agricultura – recorrendo ao uso de fertilizantes químicos, pesticidas, ao desvio de leitos dos rios para reservar a água para

culturas de regadio ou à produção de culturas geneticamente modificadas – conduziu a alterações dramáticas no uso dos solos, à perda de biodiversidade, erosão dos solos e a desequilíbrios nos sistemas hídricos. O surgimento de problemas ambientais que não têm “território”, como seja a poluição atmosférica, a erosão costeira ou a depleção dos recursos marinhos, questiona a capacidade do sistema de regulação política assente em soberanias territoriais para lidar de forma adequada com problemas de natureza transversal. Por último, a emergência de problemas ambientais potencialmente irreversíveis, como o aquecimento global, ou o esgotamento dos recursos naturais, causado pela associação do industrialismo à exigência de acumulação crescente da economia capitalista, atingiu um estágio em que pode inviabilizar, por completo, o projecto de emancipação da humanidade. Com a globalização surgiram novos actores sociais que «denunciam, com uma radicalidade sem precedentes, os excessos de regulação da modernidade»35 - os Novos Movimentos Sociais. A sua radicalidade assenta sobretudo numa ruptura com todas as formas de luta anteriores – os seus protagonistas não são classes sociais, são grupos sociais com identidades comuns; as suas formas organizativas baseiam-se na democracia participativa; a sua luta é mais a emancipação pessoal, social e cultural, do que a política; e actuam, em geral, paralelamente ao Estado, no âmbito da sociedade civil. Estes movimentos, apesar de actualmente se constituírem mais como identidades de resistência de que de projecto e de terem um carácter muito diverso, esboçam em conjunto a reivindicação de um novo paradigma baseado na cultura, democracia, qualidade de vida,

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e direitos humanos, mais do que no “desenvolvimento” material e na riqueza. Wallerstein defende que estamos a atravessar o período da crise do sistema-mundo moderno, iniciado no século XV e baseado na economia capitalista. Na análise que faz dos sistemas-mundo, Wallerstein recorre às ciências da complexidade para explicar a sua dinâmica. Durante o seu funcionamento “regular”, um sistema encontra-se em equilíbrio dinâmico, mas tende a afastar-se dessa situação de equilíbrio e a aumentar progressivamente o grau de desordem. Quando o grau de desordem é demasiado elevado, o sistema colapsa, atravessando um período de transição onde se bifurca (em dois ou mais caminhos). No entanto, é impossível determinar antecipadamente que caminho seguirá para atingir uma nova situação de equilíbrio. As sucessivas crises financeiras e económicas, a crise ambiental, a crise da democracia são sinais do esgotamento do sistema moderno e a instabilidade e incerteza profunda que se tem vivido nas últimas décadas são características de um período de transição entre dois sistemas-mundo.36 Apesar de não conseguirmos prever que tipo de sistema pós-moderno surgirá nas próximas décadas, é possível vislumbrar algumas das características básicas que poderá assumir. Wallerstein defende que a bifurcação se está a operar entre duas forças que operam em sentidos opostos – o «espírito de Davos» e o «espírito de Porto Alegre» - e que, nesse sentido, o sistema que substituirá o sistema-mundo moderno ou será mais polarizante e hierárquico (Davos), ou será mais democrático e igualitário (Porto Alegre).37 São as escolhas que fizermos que determinarão qual o caminho a seguir.


We need to reinvent society, technology, and economy. We need to do it fast and we need to do it creatively. We can. Vandana Shiva O MUNDO COMO UMA ILHA O biólogo Jared Diamond, procurou analisar as razões do sucesso ou do fracasso de várias sociedades ao longo da história. Embora não seja o único factor, a relação da sociedade com o ambiente revelou-se determinante, nomeadamente a capacidade da sociedade se desenvolver explorando os seus recursos de forma sustentável e assumindo formas de organização que asseguravam um equilíbrio entre a actividade humana e o ambiente. Os melhores exemplos de sucesso – as comunidades das ilhas da Nova Guiné e de Tikopia e o Japão durante a era Tokugawa – apesar de grandes diferenças a nível do clima, da geografia, da cultura, partilhavam uma característica comum: eram comunidades insulares que viviam praticamente isoladas em relação a outras sociedades. As soluções adoptadas, como a contenção do crescimento populacional, a exploração limitada dos recursos naturais, a redução do desperdício no uso do espaço ou a organização da vida social em função dos limites ambientais não impediram essas sociedades de florescer social e culturalmente e de atingirem níveis de complexidade social relativamente elevados. A globalização aproximou cada vez mais as diversas regiões do planeta e aumentou profundamente as relações de inter-relação e inter-dependência entre todas as comunidades do mundo. Os problemas mais sérios com que nos confrontamos são essencialmente globais e exigem não só a solidariedade entre os mais ricos e os

mais pobres, mas também a solidariedade, introduzida pela irreversibilidade potencial da crise ambiental, para com as gerações futuras. A globalização tornou o mundo num sistema único e isolado, à semelhança de uma ilha. As soluções que adoptarmos terão necessariamente que ter em conta que «(…) não há nenhum outra ilha/ planeta a que possamos recorrer para ajuda, nem para onde possamos exportar os nossos problemas. Em vez disso, temos de aprender, como eles [Tikopianos e Japoneses Tokugawa] aprenderam, a viver de acordo com o nosso meio.» 38 A urgência de aprendermos a viver dentro do nosso meio, reconhecendo os seus limites e a nossa capacidade limitada para o transformar, implica uma ruptura com alguns dos pilares em que assentou a globalização moderna. Implica em primeiro lugar encontrar novas formas de organização social que incorporem a noção dos limites da acção humana. Implica também a “recontextualização” das actividades sociais, conferindo-lhes de novo sentido, nomeadamente através de novas/antigas concepções de tempo, de espaço e de cidadania. Implica, por último, uma concepção radicalmente diferente de “ser humano”. Ao mesmo tempo, a análise da natureza e da sociedade deixam de poder estar espartilhadas em “disciplinas” perfeitamente definidas e estanques – a vida numa “ilha” exige a compreensão holística da profunda e complexa inter-relação entre todas as dimensões do sistema. DO HOMEM-MÁQUINA À ESPÉCIE HUMANA O paradigma científico moderno operou uma mudança profunda naquilo que era a concepção do ser humano sobre si próprio, sobre a natureza e sobre a sua relação com ela.

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A visão mecanicista da natureza tornou-a apenas espaço e movimento, um mecanismo cujos elementos se podem estudar em separado e relacionados através de leis absolutas, passiva, e cujos segredos podem ser totalmente desvendados. Da mesma forma, conhecendo-se as regras que regem a “máquina humana” seria possível descrever e prever o seu comportamento em função de leis gerais. O determinismo mecanicista tinha por objectivo a dominação e o controlo: a compreensão do mundo e das suas leis tornaria o ser humano capaz de dominar e transformar a natureza de acordo com as suas necessidades e desejos. A construção de máquinas que reproduzem as actividades humanas ou o uso da técnica para reproduzir a natureza aumentaram drasticamente a capacidade humana para transformar quer o meio, quer a si próprio. As consequências deste paradigma já foram abordadas anteriormente. A vida num ecossistema isolado exige uma perspectiva radicalmente diferente quer sobre a relação ser humano-natureza, quer sobre os objectivos do conhecimento e do desenvolvimento. Em biologia, o termo desenvolvimento refere-se ao processo evolutivo dos sistemas, modificando o meio físico (sendo ao mesmo tempo condicionado por ele) de forma a atingir estados de equilíbrio onde se atingem elevados conteúdos de informação (máximo de biomassa) com o mínimo de consumo de energia e onde se mantém a relação simbiótica entre os organismos.39 O ser humano moderno é o único ser vivo que quebra constantemente as regras do ecossistema em que se insere, conseguindo através da tecnologia vencer os limites naturais, por exemplo no que diz respeito ao


crescimento da população ou na quantidade de energia e recursos utilizada. A tecnologia tem-lhe permitido viver muito acima daquilo que é a “capacidade de sustentação” do sistema terrestre, cujas consequências se têm vindo a avolumar e que atingem, neste momento, proporções perigosas. É fundamental o retorno a uma concepção de ser humano como parte integrante da natureza que lhe é distinta, mas não descontínua. Isto não implica abandonar a ciência e a técnica e retornar à dependência de uma natureza incompreensível e incontrolável, mas antes a emergência de uma nova identidade: a identidade de espécie humana cuja actividade, nas suas dimensões económica, cultural e social, integra e é condicionada pelo sistema natural. A nossa noção de desenvolvimento, mais do que se traduzir em crescimento constante – da população, da exploração e consumo de recursos, da ocupação do espaço e da transformação da natureza – deverá assumir os nossos limites e a nossa condição de ser vivo entre os demais, devendo por isso corresponder à capacidade de florescer social e culturalmente, com fluxos de massa e energia dentro da capacidade de sustentação dos ecossistemas. O conhecimento das regras que condicionam a nossa actividade deverão, mais do que procurar moldar a natureza segundo as nossas ambições, conhecer «(…) as condições de possibilidade da acção humana projectada no mundo a partir de um espaço-tempo local.»40

A NOSSA NOÇÃO DE DESENVOLVIMENTO, MAIS DO QUE SE TRADUZIR EM CRESCIMENTO CONSTANTE – DA POPULAÇÃO, DA EXPLORAÇÃO E CONSUMO DE RECURSOS, DA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO E DA TRANSFORMAÇÃO DA NATUREZA – DEVERÁ ASSUMIR OS NOSSOS LIMITES E A NOSSA CONDIÇÃO DE SER VIVO ENTRE OS DEMAIS.

VIVER DE ACORDO COM OS NOSSOS MEIOS A concepção de ser humano enquanto espécie implica que a forma com que nos organizamos socialmente seja pensada de forma holística e não compartimentada entre aquilo que se definiu como as diversas “esferas” da vida social. A economia, que nas últimas décadas se constituiu como uma esfera separada da sociedade e que a subordinou às suas “regras”, deverá passar a estar ao serviço de uma sociedade que vive e se organiza dentro dos seus limites naturais. Herman Daly defende que à medida que a economia se aproxima da escala do planeta, esta terá de se adaptar ao seu funcionamento físico (e não o contrário). O sistema terrestre é aproximadamente um sistema estacionário, o que significa que se comporta da mesma forma ao longo do tempo (podendo ou não estar em equilíbrio dinâmico). Sendo um subsistema aberto do sistema terrestre, também a economia deverá atingir um estado estacionário, já que não é possível fisicamente, manter o seu crescimento ad infinitum. Daly recorre assim à ideia da economia de estado estacionário, já proposta no século XIX por John Stuart Mill. Uma economia de estado

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estacionário não é planeada para se expandir, pelo que as características que a definem são consideravelmente diferentes da economia “clássica”: população constante, a maximização dos stocks de recursos e manutenção dos fluxos abaixo das capacidades de assimilação e regeneração dos ecossistemas. 41 Estas três características básicas da economia de estado estacionário têm consequências profundas. Em primeiro lugar implicam o controlo do crescimento populacional para manter a população num nível em que a pressão que esta exerce sobre o ecossistema seja sustentável – este limite da população é atingido, naturalmente, pelas espécies em ecossistemas em equilíbrio – igualando e reduzindo as taxas de natalidade e mortalidade e aumentando a esperança média de vida. Em segundo lugar, exigem o aumento da durabilidade dos bens e do tempo de vida dos produtos, aliado à redução do consumo e do desperdício para níveis que permitam a regeneração dos stocks naturais e a assimilação do lixo pela natureza. Por último, numa economia em estado estacionário, a única forma de reduzir a pobreza é redistribuir os recursos de forma mais igualitária e reduzir o fosso entre os mais ricos e os mais pobres.


10 – RELAÇÃO A MÉDIA DE PESSOAS FELIZESe E SATISFEITAS COM A SUA O PIB PER ANÁLISE POR PAÍS. Figura 10 – FIGURA Relação entre aENTRE média de pessoas felizes satisfeitas com a VIDA sua Evida e oCAPITA, PIB per capita, análise por país.

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A questão que se coloca é se será possível atingir vidas satisfatórias numa economia de estado estacionário, dado que nas últimas centenas de anos se associou o aumento do bem-estar ao crescimento da riqueza material – mais precisamente ao aumento do PIB. Nas últimas décadas, esta perspectiva de “desenvolvimento” baseada no aumento do PIB tem vindo a ser posta em causa e tem-se assistido à definição de dezenas de novos índices que procuram definir e quantificar a “qualidade de vida”. Na verdade, quando se analisa a sensação de satisfação das populações em função do PIB per capita do seu país, chega-se à conclusão que a relação não é linear, como se pode ver pela Fig.10. O aumento da riqueza parece contribuir de forma muito mais acentuada para a felicidade quando se trata de populações muito pobres do que para as populações das “sociedades de afluência”. Assim, a felicidade parece estar relacionada com a riqueza até se atingir a satisfação das necessidades básicas e assegurar um certo nível de conforto material, ponto a partir do qual a felicidade parece estar mais relacionada com os estilos de vida que se adopta do que com a afluência material.42 Por outro lado, o PIB enviesa a análise sobre o crescimento económico de um país, já que contabiliza fluxos (produção, consumo ou despesa) e não entra em conta com os stocks nem com as consequências (ambientais ou sociais) desses fluxos. A economia de estado estacionário corresponde assim, àquilo que Giddens define como um sistema pósescassez dado que, como este aponta: «(…) com excepção das necessidades básicas da existência física, a “escassez” reporta-se a necessidades socialmente definidas e a estilos de vida específicos.»43

A APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO-TEMPO Como já foi referido anteriormente, a separação entre espaço e tempo e a sua descontextualização, foi uma das características em que assentou a sociedade moderna globalizada. A sustentabilidade da vida no planeta é um problema que diz respeito não só à sociedade presente mas também às futuras. O desenvolvimento harmonioso da espécie humana não está apenas nas mãos dos indivíduos, está nas relações que estes estabelecem com a natureza e nas condições que criam para o desenvolvimento das gerações seguintes. É preciso, portanto, voltar a dar sentido ao tempo e ao espaço em que nos movemos. Do tempo cronológico, mecanizado, abstracto do período industrial, ou do tempo instantâneo da sociedade da informação global, passa-se ao «tempo glacial» em que a relação entre seres humanos e entre estes e a natureza é um processo evolutivo, com raízes no passado e que se projecta num futuro. A (re)integração holística do ser humano no sistema planetário obriga-nos a planear a nossa vida e as nossas formas de organização como uma forma de solidariedade entre gerações que «reúne um egoísmo saudável e um pensamento sistémico dentro de uma perspectiva evolucionista».44 A integração holística no sistema terrestre e a temporalidade alargada exige também uma nova relação com o espaço, pensando a forma de produção de energia e de bens não em termos de “exploração” mas em termos de relação sinérgica com o meio natural. É necessário limitar o recurso a processos unidireccionais: pelo contrário a produção e a extracção de recursos naturais deverão ser integradas nos ciclos dos sistemas naturais

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e “cooperantes” com os processos que mantêm os ecossistemas vivos. A produção de energia com recurso a energias renováveis, mais do que ser uma alternativa entre outras, é a única que integra esta temporalidade dado que é potencialmente “eterna”. As fontes de energia renovável são também as fontes privilegiadas numa economia de estado estacionário, já que tiram partido dos fluxos naturais de energia (em vez de acelerar alguns fluxos) e permitem a redistribuição do acesso à energia necessária para atingir qualidade de vida – são globais e democráticas, além de poderem ser dimensionadas de acordo com as características físicas e necessidades específicas de cada local. A microgeração a partir de energias renováveis permitirá a minimização do impacte negativo humano no planeta, descentralizando-o e reduzindo a sua escala, ao mesmo tempo que permite a redução da dependência energética das comunidades, promovendo a sua emancipação. As formas de organização espacial e de produção de recursos deverão também assumir esta temporalidade e procurar tirar partido dos processos naturais, mais do que os alterar irreversivelmente. A permacultura, um conceito desenvolvido por Bill Mollison e David Holmgren na década de 70, pode ser definida como a cultura desenhada para ser permanente – não num sentido estático, mas pelo contrário, num sentido altamente dinâmico que utiliza aquilo que são as características e os processos físicos e biológicos de um dado local para planear a organização social e a produção de recursos, reduzindo a dependência dos processos industriais. A permacultura, apelidada de «design for living»45 parte da observação integrada do sistema natural e social. As suas diversas


componentes e respectivos inputs, outputs, características principais e o modo como interagem, bem como a cultura local e as práticas ancestrais, são analisadas de forma a potenciar as sinergias entre os diversos constituintes do sistema, reduzindo o consumo de energia, minimizando a necessidade de intervenção humana e a produção de desperdícios. Esta prática é compatível com os espaços urbanos, permitindo a produção alimentar descentralizada em meio urbano e promovendo novas formas de vida e de organização das cidades, mais sustentáveis, mais diversas e criativas e em harmonia com o meio natural. «O problema é a solução»46, uma das ideias chave da permacultura, significa que mesmo os factores que se apontam à partida como problemas podem ter utilidade e são o ponto de partida para soluções criativas e diversas. Esta noção corresponde a uma ideia de utilidade do conhecimento e da técnica profundamente diferente da ideia moderna: a ciência não está ao serviço da dominação da natureza e o conhecimento das regras que gerem os processos naturais serve para que sejamos, criativamente e em conjunto com a natureza, cocriadores da vida e da diversidade ecológica, social e cultural. A vida num planeta isolado reivindica assim a reunião do espaço e do tempo bem como sua recontextualização, conferindo-lhes sentidos múltiplos, mas com um sentido global que é o de assegurar a sobrevivência humana, partilhando recursos e cooperando na definição de modos de vida que sejam ambiental e socialmente sustentáveis, no presente e no futuro.

«O PROBLEMA É A SOLUÇÃO», UMA DAS IDEIAS CHAVE DA PERMACULTURA, SIGNIFICA QUE MESMO OS FACTORES QUE SE APONTAM À PARTIDA COMO PROBLEMAS PODEM TER UTILIDADE E SÃO O PONTO DE PARTIDA PARA SOLUÇÕES CRIATIVAS E DIVERSAS.

COMUNIDADE LOCAL, CIDADANIA GLOBAL A recontextualização do espaço e do tempo conferelhes sentidos que são necessariamente locais, criando identidades comunitárias – de vizinhança, regionais, culturais, etc. – que vivem em harmonia com o ambiente local e que o projectam no futuro. A diversidade de formas de organização e de modos de vida deverá corresponder à forma como cada sociedade resolve criativamente os problemas que se lhe colocam e se adapta às características específicas de cada local. Como indica Castells: «(…) essa identidade sociobiológica pode ser facilmente sobreposta a tradições históricas e multifacetadas, idiomas e símbolos culturais, mas dificilmente poderá coexistir com a identidade do Estado nacionalista.»47 Se a soberania do Estado-Nação já vinha sendo diminuída pela globalização, a emergência de novas identidades e o retorno ao “local”, por um lado, e a necessidade de articular a acção globalmente, por outro, questionam seriamente o Estado-Nação moderno. Enquanto o Estado-Nação confere identidade e cidadania exclusivamente segundo um critério territorial e uniformiza a estrutura social, as instituições emergentes deverão

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distinguir identidade(s) e cidadania, por um lado, e permitir uma definição das mesmas segundo critérios mais fluidos. Estas comunidades são definidas mais por temas ou projectos comuns do que pela unidade territorial, podendo ser, ao mesmo tempo locais e articuladas globalmente. Por outro lado, o facto de terem, em certa medida vinculação territorial, isso não implica que sejam comunidades encerradas nas suas fronteiras. Pelo contrário, o território deve ser a base de convivência de identidades múltiplas e diversas, inclusivas e permeáveis que coordenam a sua actividade segundo formas de organização variáveis e democráticas. Do mesmo modo, o conceito de cidadania não tem de ser necessariamente individual e nacional, podendo ser individual ou colectivo e, ao mesmo tempo, local, nacional ou global, dada a necessidade de interligar simultaneamente o local e o global de forma complexa. A institucionalização da participação democrática tem por isso de ocorrer a várias escalas e integrar diversas estruturas. O Estado (no sentido de governação) deverá assumir uma função de negociação e coordenação entre as várias organizações sociais e, mantendo uma


certa dose de centralidade, deverá promover a criação de estruturas organizativas locais, descentralizadas em menor escala. Da soberania excludente e total, assente na territorialidade, passa-se para uma «soberania reciprocamente permeável» em que o Estado negoceia quer internamente, quer com outros Estados, a redução da sua soberania na medida em que isso permita a resolução de problemas que não podem ser resolvidos à escala estatal. A organização social deverá assim ser plural e diversa, como o é a organização dos sistemas ambientais, e estar ao serviço daquilo que deverá ser o “desenvolvimento” o florescer da cultura, o aprofundamento das relações sociais, o exercício pleno da liberdade, e a auto-realização dos seres humanos, em harmonia com o meio natural em que vivemos. No fundo a tão almejada emancipação humana. Se o paradigma social e cultural que conduziu a globalização hegemónica nos colocou problemas de escala e seriedade nunca antes imaginados, também nos trouxe a consciência de que fazemos parte de um sistema vivo, com múltiplas escalas, e profundamente complexo. Mais do que ignorar que a crise ambiental é fruto do paradigma da modernidade, devemos reflectir sobre as fragilidades (ou os excessos) do processo que nos trouxe até tão perto do desastre. Só aceitando o problema poderemos responder ao desafio de forma criativa e que assegure a sustentabilidade e a qualidade da vida humana no planeta. «O problema é a solução.»

NOTAS 1 Apesar do trabalho desenvolvido por Arrhenius e Tyndal no século XIX, que já nessa altura concluiam que o aumento da concentração de CO2 na atmosfera devido à actividade industrial conduziria a um aumento da temperatura global pelo acentuar do efeito de estufa. 2 Hansen, J. et al.; “Target Atmospheric CO2: Where Should Humanity Aim?”; 2009 3 Hansen, J. et al.; Open Atmos. Sci. J. 2; p. 217–231; 2008 4 Monastersky, Nature 458; p. 1091-1094; 2009 5 Dados do site oficial da ONU. 6 Santos, B. S.; Por uma concepção multicultural de direitos humanos; Revista Crítica de Ciências Sociais; p 14; 1997 7 Santos, B. S; Globalizations; Theory Culture Society; p. 393-399; 2006 8 Lohmann, Larry; Carbon trading; Development dialogue; 2006 9 Shiva, V.; Soil not oil; Zed Books; p. 6; 2008 10IPCC; Climate Change 2007: The Physical Science Basis.Contribution of Working Group I to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change; Cambridge Univ. Press; 2007 11 Ehrhart, C.; Thow, A.; Blois, M.; “Humanitarian Implications of Climate Change:Mapping Emerging Trends and Risk Hotspots”; CARE Int.; 2009 12 Mimura, N. et al.; “Small Islands”, Climate Change 2007:Impacts, Adaptation and Vulnerability. Contribution of Working Group II to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change;Cambridge Univ. Press; 2007 13 Monbiot, G.; Climate change displacement has begun – but hardly anyone has noticed; The Guardian; 8/05/2009 14 Easterling, W.E.,et al.;“Food, fibre and forest products” Climate Change 2007: Impacts, Adaptations and vulnerability, Contribution of Working Group II to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change; Cambridge University Press; 2007 15 Nelson, G. C. et al.; Climate Change: impact on agriculture and costs of adaptation; International Food Policy Research Institute; 2009 20 Stiglitz, J. E.; Tornar a globalização eficaz; Ed. Asa; p. 226; 2006

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21 Shiva, V.; Soil not oil; Zed Books; p. 21; 2008 22 Lohmann, Larry; Carbon trading; Development dialogue; 2006 23 Ibidem. 24 Simms, A.; Ecological debt; Pluto Press; 2009 25 Wallerstein, I.; After developmentalism and globalization, what?; Cornell University; 2004 26 Stiglitz, J. E.; Tornar a globalização eficaz; Ed. Asa; 2006 27 Stiglitz, J. E.; Tornar a globalização eficaz; Ed. Asa; p. 71; 2006 28 Hanlon, J.; We’ve been here before; Jubilee 2000 coalition; 1998 29 The Latin American and Caribbean Commission on Development and Environment; Our common agenda; UNCED; 1992 30 Castells, Manuel; O poder da identidade; Fundação Calouste Gulbenkian; 2007 31 Muller, B. C.; Pressure on poor at Copenhagen led to failure, not diplomatic wrangling; The Guardian; 23/12/2009 32 Santos, B.S.; Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade; Edições Afrontamento; 1994 33 Giddens, A.; as consequências da modernidade; Celta Ed.; 2005 34 Castells, Manuel; O poder da identidade; Fundação Calouste Gulbenkian; 2007 35 Santos, B.S.; Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade; Edições Afrontamento; p. 222; 1994 36 Wallerstein, I.; Globalization or the age of transition?; International Sociology, Vol 15(2): p. 251–267; Junho 2000 37 Wallerstein, I.; After developmentalism and globalization, what?; Cornell University; 2004 38 Diamond, J.; Collapse; Penguin Books; p. 521; 2005 39 Odum, E.; Fundamentos de ecologia; Fundação Calouste Gulbenkian; 2004 40 Santos, B. S; Um discurso sobre as ciências; Ed. Afrontamento;p.48; 2003 41 Daly, H.; A steady-state economy; Sustainable Development Comission, UK; 2008 42 Inglehart, R; Modernization and post modernization; Princeton University Press; 1997 43 Giddens, A.; as consequências da modernidade; Celta Ed.; p. 117; 2005


44 Castells, Manuel; O poder da identidade; Fundação Calouste Gulbenkian; p.221; 2007 45 Atkinsson, A.; Permaculture is more than a new way of gardening - it’s a sustainable way to live on planet Earth: an Interview with Bill Mollison; Making it happen; 1991 46 Mollison, B.; Permaculture designers manual; Tagari, 1988 47 Castells, Manuel; O poder da identidade; Fundação Calouste Gulbenkian; p.222; 2007

BIBLIOGRAFIA Atkinsson, A.; Permaculture is more than a new way of gardening - it’s a sustainable way to live on planet Earth: an Interview with Bill Mollison; Making it happen; 1991 Castells, Manuel; O poder da identidade; Fundação Calouste Gulbenkian; 2007 Comissão Europeia, COMUNICAÇÃO DA COMISSÃO - PROGRESSOS NA REALIZAÇÃO DOS OBJECTIVOS DE QUIOTO; Eurostat; 2008 Confalonieri, U. et al.;“Human health” Climate Change 2007: Impacts, Adaptations and vulnerability, Contribution of Working Group II to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change; Cambridge University Press; 2007 Conisbee, M., Simms, A..; Environmental Refugees: the case for recognition; nef; 2003 Diamond, J.; Collapse; Penguin Books; 2005 Easterling, W.E., et al.; “Food, fibre and forest products.” Climate Change 2007: Impacts, Adaptations and vulnerability, Contribution of Working Group II to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change; Cambridge University Press, 2007 Ehrhart, C.; Thow, A.; Blois, M.; “Humanitarian Implications of Climate Change:Mapping Emerging Trends and Risk Hotspots”; CARE International; 2009 Giddens, A.; as consequências da modernidade; Celta Ed.; 2005 Global Humanitarian Forum; “Human Impact Report: Climate Change: The Anatomy of a Silent Crisis”, 2009 Gomes, Carla Amado; Elementos de apoio à disciplina de Direito In-

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deal from collapse; The Guardian; 20/12/2009 Wallerstein, I.; After developmentalism and globalization, what?; Cornell University; 2004 Wallerstein, I.; Globalization or the age of transition?; International Sociology, Vol 15(2): p. 251–267; Junho 2000 Wilbanks,T. et al.;“Industry,settlement and society” Climate Change 2007: Impacts, Adaptations and vulnerability, Contribution of Working Group II to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change; Cambridge University Press; 2007


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OCASO DA PRIMEIRA REPÚBLICA (1924-1933) LUÍS FARINHA

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OCASO DA PRIMEIRA REPÚBLICA - (1924-1933) LUÍS FARINHA | HISTORIADOR

“O meu propósito é ir contra a acção nefasta de todos os políticos e dos partidos e de pôr fim a uma ditadura de políticos irresponsáveis.” General Gomes da Costa, comandante das forças militares que derrubaram a República, em 28 de Maio de 1926

EM FINAIS DE 1925, O PODER POLÍTICO LEgalmente constituído (Parlamento, Governo e Presidente da República) mostrou-se incapaz de corresponder aos anseios de mudança e, muito menos, de pôr freio à fronda anticonstitucional e conspirativa que se havia constituído a partir de 1923. Durante cerca de uma década (1923-1933), o país experimentou um clima de confronto institucional fora do comum, com eclosão de inúmeras intentonas militares e, depois do Golpe Militar de 28 de Maio de 1926, de uma guerra civil larvar e intermitente, opondo a direita antiliberal e anticonstitucional aos sectores republicanos democráticos e liberais que resistiam à destruição do regime constitucional implantado em 1910. No final desse período, António de Oliveira Salazar (e os salazaristas) haviam conseguido federar as direitas antiliberais e antidemocráticas e implantado um regime corporativo, só nominalmente republicano. Do novo regime em construção tinham desaparecido os partidos políticos, os sindicatos livres, a liberdade de imprensa e a luta de classes manifestava-se de forma controlada, sujeita

ao freio brutal de uma força conjugada das polícias políticas, dos tribunais especiais, com apoio declarado dos sectores da tropa que mantinham a Ditadura Militar. Instigadora de uma participação na Primeira Grande Guerra (por razões de estratégia colonial e de reconhecimento internacional do novo regime), a Primeira República não conseguiu superar – como acontecera em praticamente toda a Europa -, os “anos loucos” que se seguiram ao primeiro conflito mundial. Uma inflação galopante, acompanhada pela desvalorização dramática do escudo e por uma crise de subsistências a que as epidemias (do tifo e da pneumónica) acrescentavam um toque de tragédia, fizeram dos anos do pós-guerra um período de difícil governabilidade, em regime de confronto partidário e constitucional. Pouco preparados para a mudança, os partidos republicanos ensaiaram todas as soluções constitucionais, reformaram-se por cisão ou por fusão em novas formações partidárias, renovaram as lideranças, mas não conseguiram encontrar respostas adequadas para a complexa situação política do momento. Descontente com a “desordem” existente, a direita constitucional (agrupada no Partido Nacionalista em 1923) foi-se circunscrevendo a um campo praticamente insignificante: a maioria das forças de direita passou a competir fora do jogo democrático: alarmou o país com a imprensa que adquiriu e foi mudando editorialmente (à medida dos seus interesses), aliciou os

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militares vindos da Guerra (muito descontentes) para o golpismo militar e preparou-se para tomar o poder pela força das armas. Do ponto de vista institucional, a situação política continuava hegemonizada pelo Partido Democrático que, na ânsia de secar todas as tendências à sua esquerda, as mantinha sob a sua alçada ou as derrotava no Parlamento à primeira oportunidade, como aconteceu com os governos de Álvaro de Castro (1924) ou de José Domingues dos Santos (1925): “reinava”, mas não governava. Com esta política sectária, não só se perdia o partido como se afundava a República. Em 28 de Maio de 1926, dois grandes blocos se juntaram para subverter a situação constitucional por golpe militar. Um, de cariz liberal e democrático, que pensava poder regenerar o regime através da implantação de uma “ditadura temporária” e a formação de um “governo extrapartidário de competências”, sem a obstrução do Parlamento. Passado algum tempo, defendia este bloco – liderado militarmente pelo comandante Mendes Cabeçadas e com o apoio político da União Liberal Republicana de Cunha Leal -, o País regressaria à normalidade constitucional, na base de um sistema político reequilibrado em torno de dois grandes blocos políticos, um à esquerda e outro à direita, os dois dispostos a disputar o poder através do jogo democrático. Um outro bloco, antiliberal e antidemocrático, ansiava por uma ditadura definitiva, ou antes, pela constitucio-


nalização de um Governo ditatorial, como aqueles que a Europa ia conhecendo, da Espanha à Polónia, passando pelo caso mais sui generis da Itália mussoliniana. Este bloco era apoiado pela direita anticonstitucional – alguma dela antirepublicana -, com grande sustentação na numerosa “tenentada” aquartelada e já sem a incumbência da Guerra, nos pequenos grupos de extremadireita com simpatias fascistas e, muito especialmente, na reacção católica e conservadora das antigas classes afastadas do poder pela República em 1910. Elegeram um nome de prestígio para os comandar numa marcha militar de Braga a Lisboa – o general Gomes da Costa, um nome prestigiado do comando militar do país -, mas, na verdade, apenas a “farda” que escondia por detrás os verdadeiros detentores do poder e que tinham dado a conhecer o seu pensamento antiliberal na Revolta de 18 de Abril de 1925: Sinel de Cordes, Filomeno da Câmara, Raul Esteves, Óscar Carmona. Todos militares dispostos a hipotecar a República pluripartidária, as liberdades públicas e o regime em nome de uma “nova ordem”. A República não estava ainda definitivamente perdida, porque, logo em Julho, a esquerda republicana se organizou para resistir e para desalojar pela força os ditadores. Durante mais de uma década, o Reviralho fez sair à rua quatro grandes revoltas, algumas, como a de 3-7 de Fevereiro de 1927, no Porto e em Lisboa, movimentando milhares de homens e armas, numa guerra civil, larvar e intermitente, de vida ou morte. Em resposta a esta resistência, a Ditadura Militar armou-se de medidas excepcionais – Tribunais Militares Especiais, polícias políticas, censura, deportação e exílio de milhares de republicanos -, e ao fim de um quinqénio, substituira as instituições liberais e instalara

uma nova elite política em todas as instâncias do poder. Não sem luta e resistência, a primeira experiência de modernização e democratização do país ficaria adiada por quase meio século, até 25 de Abril de 1974.

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PARA LÁ DA ECONOMIA - 2012 JOÃO RODRIGUES E NUNO TELES

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PARA LÁ DA ECONOMIA - 2012

POR JOÃO RODRIGUES E NUNO TELES | ECONOMISTAS E CO-AUTORES DO BLOGUE LADRÕES DE BICICLETAS

MUITOS ECONOMISTAS FALAM COMO SE TIvessem tido acesso à profecia que proclama o fim do mundo em 2012; profecia que se concretiza num cinema perto do leitor, cortesia de Hollywood. A radiografia da cena intelectual portuguesa, feita pelo filósofo João Cardoso Rosas, aplica-se-lhes na perfeição: «Para nós o tempo tem um sentido, ou seja, decorre entre um qualquer alfa e um ómega final. Se, em certos momentos de optimismo social, o ómega é vivido como utopia, noutros é experienciado como apocalipse»2. O apocalipse económico está mais na moda, mas curiosamente este é anunciado pelas mesmas vozes, as que quase monopolizam o debate público, que até ao início da grande crise do capitalismo neoliberal, em 2007, tinham participado activamente na grande utopia de mercado que nos levou até ao actual desastre económico português e internacional: um processo de integração económica marcado, entre outras coisas, pela liberalização financeira, por políticas públicas que fragilizaram o mundo do trabalho e por uma desatenção às necessidades dos sectores industriais. REDUZIR OS SALÁRIOS? A análise dos economistas-2012 tem sido focada numa mão cheia de dados macroeconómicos sobre a economia portuguesa. A par da obsessão com o «peso» do Estado, a falta de competitividade externa da economia

portuguesa é um dos temas recorrentes entre a opinião publicada. Se a falta de competitividade é um facto, as análises convergem na atribuição desta aos crescentes custos laborais. Os salários em Portugal, ainda que dos mais baixos a nível europeu, seriam demasiado elevados. Neste ponto, o economista Vítor Bento, novo conselheiro de Estado nomeado por Cavaco Silva, destacou-se pela proposta de corte salarial generalizado de forma a promover as exportações nacionais. No seu livro, Vítor Bento compara a evolução dos custos unitários de trabalho nominais entre 1999 e 2007 na zona euro: Portugal aparece como um dos países onde estes custos mais cresceram desde a adesão ao euro, a par da Espanha e da Grécia e atrás da Irlanda3. No entanto, as diferentes taxas de inflação não são levadas em conta. Se o fossem, através do cálculo dos custos unitários do trabalho reais, observaríamos um decréscimo durante o mesmo período. O que esta diferença nos mostra é que, desde então, a repartição do rendimento entre capital e trabalho foi favorável ao primeiro, sinónimo do aumento da desigualdade, uma das mais altas da Europa. A causa dos diferenciais nos custos de trabalho não está, pois, no dinamismo da evolução salarial face aos restantes custos, mas sim na subida generalizada dos preços acima da média europeia. Por outro lado, importa perceber quais os efeitos da prescrição do corte salarial e do mais eloquente con-

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gelamento do salário mínimo. Se a receita aponta para cortes generalizados nos salários nominais, o objectivo consiste na redução dos salários mais baixos, já que são estes os predominantes nos sectores que se pretende dinamizar, as indústrias exportadoras nacionais (por exemplo, os têxteis e o calçado). O elevado número de trabalhadores pobres engrossaria, o consumo interno (variável mais resistente no actual contexto de recessão) cairia e a crónica ineficiência de alguns dos sectores industriais sairia premiada. Acresce ainda que nada garante uma saída da crise pelas exportações num contexto em que a generalidade dos países siga por este caminho de cortes salariais generalizados e de contenção da procura interna, estratégia aliás facilitada pelo presente aumento do desemprego, poderoso mecanismo disciplinador das classes trabalhadoras. O que parece ter racionalidade (duvidosa) para cada país – promover as suas exportações por via da compressão dos custos relativos do trabalho e conter o consumo interno – gera um resultado global irracional sob a forma de um mercado interno europeu desequilibrado e contraído por um défice permanente de procura. Através de uma análise estatística superficial e de prescrições simplistas, ignoram-se assim as raízes do problema. Se, de facto, Portugal perdeu competitividade externa nos últimos anos, tal deve-se, não às reivindicações dos trabalhadores, mas sim a uma entrada defi-


ciente na moeda única, o euro: a chamada convergência nominal, no quadro da aceleração liberal da integração europeia, contribuiu para uma duradoura sobreapreciação da nossa moeda, que se prolongou com o euro. Esta opção enfraqueceu a competitividade do sector de bens transaccionáveis para exportação num período crucial e canalizou muito do esforço empresarial para o sector de bens não-transaccionáveis, como foi o caso da construção. Os países da zona euro têm a mesma política monetária, mas diferentes realidades económicas. Nos anos que precederam o euro assistiu-se a uma convergência das diferentes taxas de inflação, devido aos critérios de adesão. No entanto, a partir da criação da moeda única as taxas de inflação começaram a divergir nos países aderentes. Esta insustentável miopia resultou de um entendimento estreito, partilhado pelos economistas convencionais, da exclusiva determinação da taxa de inflação pela política monetária do Banco Central Europeu (BCE). O resultado foi a degradação da estrutura de custos das economias com maiores taxas de inflação em relação às restantes. A moeda única foi instituída sem a necessária coordenação no campo das restantes políticas de integração económica, simbolizada num orçamento comunitário residual, que não permite uma política europeia de redistribuição e de investimento contracíclico, na ausência de políticas fiscais, salariais e sociais convergentes e na impossibilidade de emissão de dívida pública europeia, o que seria o corolário lógico de um processo de integração monetária. A exigência de uma reconfiguração da política económica europeia tem, pois, que estar nos programas de quem pretende ultrapassar a crise no nosso país.

OS SUPERÁVITES DE UNS SÃO OS DÉFICES DE OUTROS… Outro dos problemas recorrentemente invocados pelos economistas-2012 e pelos partidos da direita, o crescente endividamento externo associado a um défice da balança corrente, encontra as suas causas estruturais nos mesmos mecanismos atrás mencionados. Se, por um lado, o acesso ao crédito nos mercados financeiros foi facilitado pela adesão à moeda única, por outro, os crescentes diferenciais de custos na zona euro, aliados a uma estratégia do capital nacional – facilitada por políticas públicas erradas, de captura de sectores não expostos à concorrência externa (construção civil, distribuição, saúde, etc.) –, contribuíram para um galopante défice externo, traduzido em endividamento crescente. Contudo, se o endividamento é o resultado do comportamento dos agentes privados nacionais que data de há vários anos, o discurso dominante, numa mistificação que confunde amiúde endividamento externo com dívida pública, aponta os recentes esforços resultantes da crise internacional, traduzidos no aumento do défice orçamental (e logo da dívida pública) como responsável pelos nossos problemas. Nesta tarefa política de transformação das consequências em causas, os economistas-2012 são auxiliados pelas inenarráveis agências de notação internacionais. Depois de terem ajudado a preparar a crise financeira com as suas avaliações laxistas dos títulos baseados no crédito imobiliário, cortam a notação da dívida pública emitida pelos governos, tornando mais difícil e oneroso o financiamento público e a saída da crise. O seu necessário desmantelamento e substituição por agências públicas internacionais de avaliação é bloqueado: fazem

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parte das estruturas de constrangimento criadas por décadas de hegemonia neoliberal e que se destinam a enviesar as políticas públicas. Mais uma vez a prescrição, proposta por estas agências e repetida pelos economistas-2012, é o corte cego da despesa pública sem que se perceba claramente como seria reduzido o endividamento externo. Ou melhor, existe um único mecanismo credível neste processo: o efeito depressivo na restante economia, afectando todos os agentes económicos, de um corte da despesa e do investimento públicos. O endividamento externo, entendido como constrangimento futuro do nosso crescimento, seria paradoxalmente resolvido através da contracção presente do produto nacional. Dada os duradouros efeitos negativos na capacidade produtiva nacional de tal contracção, a destruição seria muito pouco criadora. A resposta à fraca competitividade nacional, na origem dos nossos problemas mais estruturais, só pode ser elaborada através de uma efectiva reconversão industrial, focada nos bens transaccionáveis (exportáveis), prosseguida através de política públicas de protecção comercial e de incentivo aos sectores tecnologicamente mais avançados, apoiadas num acesso a preços controlados a bens essenciais às indústrias que queremos promover (crédito, energia, serviços públicos). Por outro lado, e seguindo a preciosa indicação do economista James Galbraith, é preciso sublinhar que regras laborais exigentes, que reforcem os standards laborais, os contrapoderes sindicais e a negociação colectiva centralizada, ou regras ambientais avançadas, que impeçam a transferência de custos sociais para a comunidade, são armas de reconversão industrial que beneficiam os sectores


mais produtivos e competitivos4. Este resultado requer necessariamente a requalificação e valorização do factor trabalho, traduzida em melhores salários. Neste esforço, a União Europeia poderia desempenhar um papel decisivo. É urgente a criação de arranjos institucionais europeus que reduzam as assimetrias entre as diferentes economias e corrijam a existência crónica de brutais excedentes externos de certos países, como a Alemanha, face aos países cronicamente deficitários. Caso contrário, não só a moeda única, como também o próprio projecto europeu, estarão condenados ao fracasso. As políticas necessárias exigem mudanças profundas que vão muito para lá do que foi aprovado no Tratado de Lisboa: da modificação do estatutos do BCE, por forma a que leve em linha de conta o emprego e a necessidade de uma política cambial competitiva, à possibilidade de se instituírem mecanismos de controlo de capitais e de protecção comercial entre a União Europeia e outros espaços, sobretudo aqueles que não respeitem regras mínimas em matéria de regulação financeira, ambiental e laboral, até à suspensão das regras da concorrência para que economias menos avançadas e muito dependentes, como a portuguesa, possam praticar uma politica industrial digna desse nome. DO INVESTIMENTO À FISCALIDADE, HÁ TANTO PARA FAZER A maior crise económica desde a Grande Depressão dos anos 30 é, para os economistas-2012, um mero choque exógeno na economia portuguesa, destinado a ser ultrapassado mais cedo do que tarde. Este não seria um problema da economia portuguesa, mas sim das grandes

É CERTO QUE A ESTRATÉGIA DE RECUPERAÇÃO DA ECONOMIA PORTUGUESA DEVE TER EM ATENÇÃO OS PROBLEMAS ESTRUTURAIS. NO ENTANTO, O PAPEL DA PRESENTE CRISE NÃO PODE SER MENORIZADO. SE O COLAPSO DO SISTEMA FINANCEIRO GLOBAL PARECE TER SIDO EVITADO, A RECUPERAÇÃO DA ECONOMIA GLOBAL ESTÁ LONGE DE SER UMA REALIDADE.

economias mundiais. Tal atitude não mostra só miopia quanto à gravidade da actual crise, como traduz a incapacidade destes economistas de analisar as causas da crise e as formas de a ultrapassar. No caso português, a atenção é exclusivamente dedicada aos problemas que vêm de trás, nomeadamente à estagnação económica da última década, e para os quais estes economistas contribuíram decisivamente com as suas prescrições de flexibilização, ou seja, de criação de condições para fazer com que sejam os trabalhadores e a comunidade a ajustaremse às supostas necessidades da economia. É certo que a estratégia de recuperação da economia portuguesa deve ter em atenção os problemas estruturais. No entanto, o papel da presente crise não pode ser menorizado. Se o colapso do sistema financeiro global parece ter sido evitado, a recuperação da economia global está longe de ser uma realidade. As fontes de um crescimento económico sustentável e durável estão longe de ser identificadas. O Estado deve, pois, paralelamente à reconstrução de um sistema financeiro realmente útil à economia, assegurar que as políticas fiscal e monetária expansionistas continuem a desempenhar o seu papel de dinamização da economia e do

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emprego. Como assinalava a economista Christina Romer, actual líder do Council of Economic Advisors da administração de Barack Obama, uma reversão destas políticas públicas pode resultar num prolongamento da recessão, tal como aconteceu em 1937 nos Estados Unidos. Então animada pela recuperação do crescimento económico, a Reserva Federal promoveu uma política de restrição da expansão monetária junto do sistema bancário de forma a controlar potenciais aumentos da taxa de inflação. Contudo, a memória da depressão ainda estava fresca e os bancos reagiram, aumentando as suas reservas voluntárias e reduzindo o crédito. O resultado foi o prolongamento da Grande Depressão. As estratégias de dinamização da economia através do investimento público são, por isso, responsabilidade de todos os países. Portugal não pode furtar-se. No entanto, a direcção do investimento e as suas formas de financiamento devem ser adaptadas à realidade nacional. O esforço do Estado deve dirigir-se à promoção dos sectores potencialmente mais competitivos da economia internacional. Assim, as promessas de uma reconversão «verde» da economia apresentam-se como uma formidável oportunidade para, não só desenvolver uma eco-


nomia livre de carbono, como também reduzir o nosso défice energético e, sobretudo, criar sectores industriais exportadores, tecnologicamente avançados. Esta mudança também passa por transformações de fundo no regime fiscal e nas instituições que enquadram as relações laborais e por maior solidez política à medida que aumentar o seu grau de coordenação à escala europeia. Só assim se bloqueará a chantagem da fuga dos capitais e se ganhará autonomia para fazer o que tem de ser feito: do aumento da progressividade do sistema fiscal à taxação das transacções financeiras e dos consumos conspícuos e ambientalmente insustentáveis, passando pelo reforço da determinação, em sede de concertação social, das normas salariais, por forma a gerar uma distribuição mais igualitária dos rendimentos antes de impostos. As reformas necessárias requerem assim imaginação institucional, capacidade de forjar coligações políticas amplas e princípios realistas, ou seja, princípios compatíveis com o melhor conhecimento disponível. Para isso temos de superar a economia-2012 e as suas insustentáveis oscilações entre a utopia e o apocalipse. NOTAS 1 - Jornal i, 3 de Dezembro de 2009. 2 - Vítor Bento, Perceber a crise para encontrar o caminho, Bnomics, Lisboa, 2009. 3 - James Galbraith, The Predator State, Free Press, Nova Iorque, 2008. 4 - The Economist, Londres, 18 de Junho de 2009.

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ESPÍRITOS, LETRAS E PRÁTICAS JOSÉ GUSMÃO

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ESPÍRITOS, LETRAS E PRÁTICAS

POR JOSÉ GUILHERME GUSMÃO | ECONOMISTA

O DEBATE SOBRE FISCALIDADE É CENTRAL EM toda a política económica. As fronteiras políticas são frequentemente traçadas em torno do peso da despesa ou da carga fiscal. Nada poderia ser mais enganador. Assim como na despesa as grandes fracturas vêem-se nas áreas para as quais a despesa é dirigida, na política fiscal o terreno das escolhas políticas é o da distribuição do esforço pelos vários tipos de rendimento e classes sociais. É por isso que o discurso neoliberal sobre o peso da carga fiscal em Portugal por comparação com outros países da Europa, para além de ser pura e simplesmente falso, está ideologicamente viciado, porque a estatística escolhida ignora as desigualdades existentes na distribuição dessa carga. Uma política mais exigente nos resultados tem de ser mais exigente na análise. A DESIGUALDADE NA LEI O sistema fiscal português é dos que menos rendimento redistribui e isso acontece no país mais desigual da Europa a 15. Este facto deve-se ao peso relativo dos vários impostos na nossa receita e às características desses impostos. A maior parte da receita fiscal é obtida através de impostos indirectos, regressivos, como o IVA, cujo peso tem aumentado. A sua regressividade radica no facto de as pessoas com menores rendimentos gastarem, proporcionalmente mais, do seu rendimento em consu-

mo. Em 2007, o peso dos impostos indirectos foi de 57%, mais de metade. O único elemento de progressividade no sistema está no IRS, que corresponde no mesmo ano a 23% da receita fiscal (ver quadro 1). E mesmo o IRS, é na realidade, já hoje, um imposto semi­-dual. São várias as categorias de rendimento sujeitas a taxas especiais fora do englobamento e, portanto fora da tributação progressiva. É também por isso que 70% dos rendimentos que são cobrados em sede de IRS provêm de contribuintes cuja principal fonte de rendimento é o trabalho. Estas taxas especiais foram sendo introduzidas e são muito difíceis de eliminar porque essa é a prática generalizada nos países desenvolvidos. A estes buracos na progressividade do IRS, acresce a situação inexplicável e indefensável da isenção das maisvalias mobiliárias quando os activos forem detidos por mais de um ano, uma das disposições mais desprovidas de sentido económico da nossa legislação. Aqui, aliás, não existe nenhum argumento internacional. A prática na esmagadora maioria dos países da OCDE é a tributação e, em alguns casos, através de englobamento ou com taxas extremamente pesadas. A DESIGUALDADE FORA DA LEI Mas o maior cancro da fiscalidade em Portugal é a fraude e evasão fiscal. Os números são impressionantes.

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Estes números têm diminuído e deve salientar-se que foi feito trabalho nesta área. Mas Portugal continua a ser um dos países com maiores índices de fraude fiscal da Europa e esse facto tem consequências ao nível da receita fiscal, redistribuição de rendimentos, políticas sociais, para além de provocar uma degradação da chamada moralidade fiscal e um sentimento generalizado de injustiça impunidade. Até porque a fraude e a evasão fiscais, tal como a carga fiscal, também se distribuem de forma desigual. Os rendimentos do trabalho são tributados com muito maior eficácia. Mas também o combate à fraude incide de forma desequilibrada. Nos últimos anos foram aprovadas medidas de tributação mínima e mecanismos de combate à fraude que produziram efeitos significativos junto de micro e pequenas empresas. Esses mecanismos, como o Pagamento por Conta, produziram resultados e, com alguns ajustamentos, devem ser mantidos e protegidos do populismo fiscal que começa a dominar algum debate político. Mas a eficácia e acutilância contrasta com o constante adiamento de medidas que combatam a grande fraude fiscal. Algum progresso tem sido feito aqui, mas com um enorme atraso em relação a outras áreas. À cabeça dessas medidas, está a derrogação do sigilo bancário. A nossa legislação é particularmente tímida em relação à prática na União Europeia e nada justifica que a situação


actual permaneça. A esta medida têm de ser associadas, no plano nacional e internacional, iniciativas corajosos contra os maiores buracos negros fiscais e judiciais no planeta. OS PARAÍSOS FISCAIS Existe hoje um razoável consenso, pelo menos no discurso, sobre os prejuízos causados pela existência de paraísos fiscais. No entanto, as medidas necessárias continuam paralisadas à espera do consenso na comunidade internacional. Em Portugal, o discurso é o de que não tem sentido encerrar o off-shore da Madeira se a decisão não for multi-lateral. O argumento é o de que Portugal seria prejudicado se encerrasse unilateralmente mas é necessário demonstrar primeiro que a existência de um off-shore na Madeira trouxe benefícios para o país, o que até agora ninguém conseguiu. SIMPLICIDADE Mas há outros factores que determinam o carácter desigual do nosso sistema fiscal. A forma fragmentada como a legislação portuguesa tem evoluído, nomeadamente o primado das alterações avulsas sobre uma reforma fiscal corajosa e estruturante gerou um labirinto de regimes especiais, excepções, deduções, isenções, taxas especiais e toda a espécie de regras e excepções que são, não apenas o paraíso do planeador fiscal, como (e pelos mesmos motivos) um factor de opacidade nas relações entre Estado e contribuintes e um nível acrescido de desigualdade. Um sistema complexo é um sistema em que as diferentes capacidades de leitura, compreensão e aproveitamento das possibilidades legais constituem um terreno em que os excluídos são mais excluídos e em que

os privilegiados encontram o terreno mais favorável. É por isso que a simplificação do sistema fiscal é, tendencialmente, uma política de igualdade, sobretudo quando incide sobre mecanismos e particularidades que exigem um conhecimento do sistema por parte do contribuinte. Um sistema fiscal mais simples promove a igualdade de duas formas diferentes: (1) torna mais acessíveis a todos os direitos, deveres e oportunidades que estão definidos no quadro da lei e (2) torna mais transparentes (e contestáveis) as escolhas de política fiscal, aumentando a pressão social para a introdução de mecanismos de promoção da igualdade. A ESTRATÉGIA MANHOSA DAS DEDUÇÕES Um dos exemplos mais perversos da opacidade do sistema fiscal é o das deduções fiscais, nomeadamente nas áreas sociais. A generalização e agravamento desta prática constitui uma forma particularmente insidiosa de rentismo e transformou-­se (em conjunto com as parcerias publico-privado) no grande cavalo de Tróia da privatização de funções sociais do Estado. Esta política é insidiosa porque o financiamento dos sistemas privados se faz indirectamente, através do apoio (ainda que parcial) aos utentes. Este desvio de receita fiscal do Estado para o financiamento de serviços privados nas áreas sociais põe em marcha um ciclo vicioso (ver quadro 2). A perda de receita degrada a qualidade e dificulta o acesso aos serviços públicos, empurrando os utentes com mais meios para o recurso cada vez mais frequente ao sector privado. Essa deslocação diminui a exigência dos sectores mais influentes da sociedade em relação aos serviços públicos e aumenta a pressão social para o alar-

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gamento dos benefícios aos serviços privados. E assim por diante (ver quadro 3). Estas deduções são muito utilizadas pelos que têm maiores rendimentos, não apenas porque têm um melhor conhecimento da legislação ou podem contratar ajuda profissional, mas também e muito simplesmente porque têm tectos mais elevados para essas deduções. É por isso que uma das mais difíceis mas mais necessárias exigências para uma política fiscal à esquerda é a da canalização de toda a receita fiscal para funções sociais para os serviços públicos. Isso não quer dizer, obviamente, que não façam sentido outras deduções que introduzem incentivos ao deinvestimento, à criação de emprego ou ao investimento no interior. A verdade, no entanto, é que muitas das políticas fiscais de apoio ao crescimento se têm baseado mais em cortes cegos e indiscriminados na fiscalidade sobre as empresas ou em medidas com pouca precisão na delimitação dos destinatários e que acabam por promover mais o planeamento fiscal das empresas do que as actividades que visavam apoiar (ver Nuno Teles, “Areia para os Olhos” no Ladrões de Bicicletas, 16/11/2009). Uma boa política industrial exige uma mistura equilibrada de incentivos fiscais e programas públicos de apoio às empresas. A via fiscal tem sido muitas vezes a resposta preguiçosa de uma direita desconfiada em relação ao Estado. HARMONIZAÇÃO Referi no início que o argumento central do discurso neoliberal sobre fiscalidade era o peso da carga fiscal, aliada à competitividade fiscal no contexto de uma economia globalizada. O problema com este argumento é que a lógica da competitividade fiscal gera uma corrida


de progressividade no sistema está no IRS, que corresponde no mesmo ano a 23% da receita fiscal. avulsas sobre uma reforma fiscal corajosa e estruturante gerou um labirinto de regimes especiais, !"#$%&'()'*+&,"-.&'$#/'%01023#/'42/1#2/'0'1&53%26"2-70/'8#%#'#'90:"%#5-#'9&12#,' QUADRO 1: EVOLUÇÃO DAS RECEITAS FISCAIS E CONTRIBUIÇÕES PARA A SEGURANÇA SOCIAL (% DO PIB) excepções, deduções, isenções, taxas especiais $%!&'!()*+! e toda a espécie de regras e excepções que são, não ' @24)'>??(A apenas o paraíso do planeador fiscal, como (e pelos mesmos mo/vos) um factor de opacidade nas ;<<=' >???' >??=' >??(' ;<<='B0C' relações entre Estado e contribuintes e um nível acrescido de desigualdade. Um sistema complexo é 8)8)D' um EC8&/3&/'@2%013&/' sistema em que as diferentes capacidades d e l eitura, c ompreensão e a proveitamento d as FG<H' ;?GIH' <GJH' ;?G(H' ;GF' ''9&6%0'&'%05$2C053&' FG;H' <GIH' FG>H' <GKH' e em que ;GK' possibilidades legais cons/tuem um terreno em que os excluídos são mais excluídos os !!!!!),-!! #./%! #.0%! #.1%! #.0%! 2.3! privilegiados e ncontram o t erreno m ais f avorável. " !!!!!),4 ! 3.1%! 5.6%! 3.7%! 5.0%! ".5! !!!!!)89':;'!&'!:<='!:'>?<!:@=A?B':!

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seguinte foi transcrito da pág. 121 do Relatório Final da Comissão para a Sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde constituída por Despacho Conjunto do Ministro de Estado e das Finanças e do Ministro da Saúde em 13 de Março de 2006. QUADRO III

QUADRO 3: PERCENTAGEM DE DESPESA RECUPERADA PELOS AGREGADOS, ORDENADOS POR DECIS DE RENDIMENTO LÍQUIDO EQUIVALENTE

É por isso que a simplificação do sistema fi?GFH' scal é, tendencialmente, uma polí/ca de igualdade, ?GK' ''9&6%0'&'8#3%2CL52&' ;G;H' ;G;H' ;G>H' !!!!!)89':;'!:'>?<!:DE<::F<:!<!&'@GF<:! 2."%! 2."%! C2."! sobretudo quando incide sobre mecanismos e par/cularidades que 2.2%! exigem um 2.2%! conhecimento do !!!!!)H)!I!4'J;?B>DBGK'!LD;A?MDBE@! 2.1%! 2.1%! 2./%! 2./%! 2.5! sistema por parte do contribuinte. Um sistema fiscal m2./%! ais simples p2.#%! romove a igualdade de duas !!!!!)HN!I!-B:@!! 2.5%! 2./%! 2.3! formas diferentes: (1) torna mais acessíveis a t odos o s d ireitos, d everes e o portunidades que e2.2! stão !!!!!)89':;'!&'!:<='!:'>?<!;?@J:@EGF<:!&<! 2.2%! 2.2%! 2.2%! 2.2%! B8OP<B:! definidos no quadro da lei e (2) torna mais transparentes (e contestáveis) as escolhas de polí/ca EC8&/3&/'25$2%013&/'' ;JGJH' ;JG;H' ;KG;H' ;KG;H' ?GF' fiscal, aumentando a pressão social para a 0."%! introdução d7.2%! e mecanismos de promoção !!!!!)QL!! 7.0%! 7.7%! da igualdade. ".0! !!!!!)89':;':!:'>?<!A=E''=!<!><>B&@:! A estratégia manhosa das deduções

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De acordo com a Comissão encarregada de estudar a sustentabilidade do SNS nomeada pelos Estas deduções são muito u/lizadas elos que têm aiores rendimentos, não aricos penas porque têm ministros das Finanças e da Saúdepdo governo demSócrates , os 10% mais da população recuperam das suas despesas comosaúde, enquanto osa10% mais pobres m recuperam apenas um melhor 27% conhecimento da legislação u podem contratar juda p rofissional, as também e muito

simplesmente orque têm t–ectos ais elevados ara essas dem eduções. É por isso que uma das mais Eugénio Rosa –pEconomista Maism estudos estão p disponíveis www.eugeniorosa@com diZceis mas mais necessárias exigências para uma polí/ca fiscal à esquerda é a da canalização de toda a receita fiscal para funções sociais para os serviços públicos.

Isso não quer dizer, obviamente, que não façam sen/do outras deduções que introduzem incen/vos ao reinves/mento, à criação de emprego ou ao inves/mento no interior . A verdade, no entanto, é que muitas das polí/cas fiscais de apoio ao crescimento se têm baseado mais em cortes cegos e indiscriminados na fiscalidade sobre as empresas ou em medidas com pouca precisão na delimitação dos des/natários e que acabam por promover mais o planeamento fiscal das empresas do que as ac/vidades que visavam apoiar (ver Nuno Teles, “Areia para os Olhos” no Ladrões de Bicicletas, 16/11/2009). Uma boa polí/ca industrial exige uma mistura equilibrada de incen/vos fiscais e programas públicos de apoio às empresas. A via fiscal tem sido muitas vezes a resposta preguiçosa de uma direita desconfiada em relação ao Estado. Harmonização

Referi no início que o argumento central do discurso neoliberal sobre fiscalidade era o peso da carga fiscal, aliada à compe//vidade fiscal no contexto de uma economia globalizada. O problema com este argumento é que a lógica da compe//vidade fiscal gera uma corrida para o fundo. O regime compe//vo por excelência é o regime de tributação zero (dos rendimentos de capitais, mais móveis, 3.1.2 Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) A perda de receita degrada a qualidade e dificulta o acesso aos serviços públicos, empurrando os bem entendido). Mas o argumento também tem um problema para a esquerda. É que a ! VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [38] SOCIALISMO 2010 utentes com mais meios para o recurso cada vez mais frequente ao sector privado. Essa deslocação compe//vidade fiscal existe. Mesmo que a sua importância seja grosseiramente exagerada quando !!!C)4*'&(!C,W-)! Fonte: DGCI

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para o fundo. O regime competitivo por excelência é o regime de tributação zero (dos rendimentos de capitais, mais móveis, bem entendido). Mas o argumento também tem um problema para a esquerda. É que a competitividade fiscal existe. Mesmo que a sua importância seja grosseiramente exagerada quando se fala, por exemplo, de Investimento Directo Estrangeiro. Em primeiro lugar, não basta argumentar que, em teoria, tudo o resto permanecendo constante, as empresas preferem investir em países com regimes fiscais favoráveis. É preciso demonstrar que as empresas valorizam regimes fiscais favoráveis mais do que valorizam boas infra­-estruturas, energia barata ou serviços públicos de qualidade. De qualquer forma, convém que a esquerda não ignore o argumento e pense as implicações que a globalização tem na fiscalidade. A principal dessas implicações é a da necessidade de harmonização fiscal no espaço europeu. Essa necessidade é contraditória com as tentações soberanistas e exige a formulação de um caderno de encargos para um conjunto de mínimos fiscais à escala europeia.

2. Redistribuir e Simplificar Duas prioridades a buscar em conjunto. Existe hoje um discurso de “simplificação” que é dirigido contra a já tão frágil vocação distributiva do nosso sistema fiscal. A simplificação que interessa é a que combate a evasão e aproxima todos os cidadãos da plena consciência e exercício dos seus direitos e deveres. 3. Coordenar políticas fiscais no plano internacional Esta é a mais difícil para a esquerda porque a divide e há bons argumentos dos dois lados. Se a resposta da competitividade e da corrida para o fundo só tem boa resposta na harmonização fiscal, é verdade que a pressão cidadã tão necessária continua a estar muito longe das instituições que a podem implementar. Mesmo assim, não vejo como é que a esquerda poderá obter as vitórias mais significativas sem enfrentar esse desafio.

CONCLUSÕES Em resumo, e como se fala de agenda, tentaria definir três grandes prioridades: 1. Coragem contra a fraude Não há segredos hoje sobre quem mais foge à tributação e quais os instrumentos que utilizam. Todos esses instrumentos estão ao alcance dos poderes públicos. Está na hora de os mobilizar.

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SOCIALISMO 2010

SNS – NEM ROSA VELHO NEM LARANJA CHOQUE A RESPOSTA DA ESQUERDA JOÃO SEMEDO E SOFIA CRISÓSTOMO

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SNS – NEM ROSA VELHO NEM LARANJA CHOQUE: A RESPOSTA DA ESQUERDA

JOÃO SEMEDO E SOFIA CRISÓSTOMO | MÉDICO E ASSESSORA PARLAMENTAR PARA A ÁREA DA SAÚDE

BASTARAM TRÊS MESES PARA PEDRO PASSOS Coelho deixar cair o tendencialmente gratuito como característica fundamental do SNS e aderir a uma das mais antigas e liberais pretensões da direita portuguesa: mercantilizar o direito à saúde e transformar a saúde num grande negócio. Em Abril, por ocasião do congresso que o elegeu para líder do PSD, Pedro Passos Coelho expressava assim a sua visão sobre os princípios que deviam orientar a política de saúde: “Do princípio da Igualdade, resultam os princípios: da universalidade de acesso; do seu carácter geral e solidário; da especial preocupação com os mais pobres e os mais idosos; e do ser tendencialmente gratuito.” Em Julho, apenas três meses depois, os princípios de Pedro Passos Coelho passaram a ser outros: a revisão constitucional desejada pelo PSD acaba com o SNS tendencialmente gratuito, proclamando que “em caso algum, o acesso pode ser recusado por insuficiência de meios económicos”, assim sossegando os sentimentos misericordiosos de um partido que, de social-democrata, só lhe resta mesmo o nome, tal a deriva liberal que se apoderou dos seus principais dirigentes. O primeiro ponto que é necessário esclarecer é o objectivo exacto do PSD, o que está escondido nas entrelinhas da proposta de Pedro Passos Coelho e nas intervenções contraditórias de diversos dirigentes do

PSD, cada qual dizendo uma coisa diferente, como se não quisessem que percebêssemos as suas intenções e as consequências que teriam no acesso dos cidadãos ao SNS e na garantia constitucional do direito à saúde. Para Luís Meneses, jovem deputado e dirigente do PSD, tudo se resume a diferenciar o valor das taxas moderadoras: “O PSD pretende com isto que cada um comparticipe nas despesas de saúde em função das suas possibilidades, dos seus rendimentos. Vamos exemplificar: por que razão é que dois cidadãos com rendimentos substancialmente diferentes, um funcionário fabril a ganhar o salário mínimo e um empresário com rendimentos avultados, hão-de pagar o mesmo valor de taxa moderadora por um serviço de saúde, seja ele qual for?”[DN, 20.07.10]. Ingenuidade ou engodo? Bacelar Gouveia, também ele deputado e dirigente do PSD, encarrega-se de “traduzir” Luís Meneses: “Corrige-se a injustiça de obrigar aqueles que recorrem aos serviços não públicos a terem de pagar duas vezes, podendo assim livremente escolher.” [Público, 21.07.10]. Tanta franqueza tem uma virtude: fica a perceber-se o que pretende o PSD. Pedro Passos Coelho quer os portugueses a pagar os cuidados de saúde directamente no momento da prestação e não através dos impostos, como acontece actualmente. E se pagam, devem poder escolher o prestador que desejam - público ou privado. Mas, se pagam quando

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usam os serviços de saúde, públicos ou privados, então devem reduzir o imposto que o estado lhes cobra: “E ao assumirem a sua co-responsabilidade nas despesas de saúde, os cidadãos devem beneficiados com desagravamentos fiscais. Ou, preferencialmente, deve existir uma redução efectiva da carga fiscal de modo a que os cidadãos e as famílias disponham de um nível de rendimento que lhes permita efectuar estas e outras escolhas sem existir um sentimento implícito de injustiça no modo como os impostos são utilizados pela sociedade.” [“Mudar” de Pedro Passos Coelho, página 204, ed. Quetzal] A redução da receita fiscal do estado comprometeria o financiamento do SNS pelo orçamento e a curtíssimo prazo o SNS deixaria de ser sustentável tanto na sua dimensão actual como na versão minimalista que o projecto do PSD prevê par uso exclusivo dos cidadãos sem recursos próprios para custear as suas despesas de saúde. As regras da “boa gestão e da rentabilização do património” não demorariam muito tempo a transferir a propriedade da rede pública de serviços de saúde para os grupos privados que hoje operam e dominam o mercado da saúde (BES Saúde, HPP/CGD, grupo Mello), adequando a sua capacidade de resposta a uma procura incomensuravelmente maior. Rapidamente a prestação seria universalmente privada, com o estado a cumprir a sua função assistencialista: uma espécie de grande misericórdia nacional para o século XXI, cuja “obra” seria


comparticipar ou subsidiar os encargos com a saúde dos indigentes. Em síntese, o que Pedro Passos Coelho visiona é a privatização do SNS e a substituição do direito à saúde pela fórmula “quem quer saúde, pague-a”, através de dois sistemas de saúde: um, de primeira, para quem pode pagar e outro, de segunda, para pobres e excluídos. Se alguma vez viesse a ser assim, não seria apenas a perda ou degenerescência do SNS que lamentaríamos mas sim a erosão do contrato social estabelecido entre os portugueses e que se materializa na solidariedade de todos contribuirmos para a saúde de todos, de acordo com o rendimento de cada um e em função das suas necessidades de saúde. Seria um brutal retrocesso no modelo social em que vivemos. Não deixa de ser caricato ouvir Pedro Passos Coelho invocar os problemas da sustentabilidade financeira do SNS para justificar e defender um projecto cuja principal consequência seria, precisamente, inviabilizar financeiramente o SNS. Não é previsível nem realista admitir que o crescimento da despesa em saúde possa ser interrompido ou invertido. Mas isso não significa que, ao contrário das profecias de muitos, o SNS não seja financeiramente sustentável. Uma análise mais pormenorizada à despesa e à sua evolução demonstra-o, contrariando mitos e certezas que, precipitada e intencionalmente, se foram afirmando. Não pode deixar de ser dito que a receita fiscal também é condição de sustentabilidade da despesa social do estado. O problema está do lado da despesa, mas também do lado da receita. Sobretudo da receita fiscal perdida (evasão e fraude fiscal, dívida fiscal por executar,

tributação da banca e sociedades financeiras, transferências para sociedades offshore). Se fosse outra a realidade fiscal portuguesa, certamente que seriam bem diferentes os termos do debate sobre as despesas sociais do estado. Mas olhemos e concentremo-nos na despesa em saúde, na pública e na privada. Sem esquecer – até pela sua elevada expressão, a transferência de fundos públicos para os prestadores privados. Apesar de a despesa pública em saúde ser muitas vezes anunciada como sendo exorbitante e estando fora de controlo, a verdade nua e crua dos números mostra uma realidade bem diferente. Não só continuamos a ter, entre os países da UE 15, a mais baixa despesa pública em saúde per capita, quando ajustada pela paridade do poder de compra (Gráfico 1), como o crescimento real da despesa tem apresentado níveis de crescimento sucessivamente mais baixos, tendo mesmo atingido em 2006 um crescimento real negativo, comparativamente com o período homólogo (Gráfico 2). Por outro lado, Portugal é dos países onde uma maior proporção (quase 30%) da despesa total em saúde

é assumida por fontes de financiamento privadas (Gráfico 3), sobretudos as famílias (Tabela 1), que têm visto aumentar sucessivamente os seus encargos directos com a saúde (Gráfico 4). Curiosamente, os seguros privados de saúde que, em 2006, já abrangiam 1,725 milhões de pessoas seguras (quase 1/5 da população Portuguesa), foram responsáveis, no mesmo ano, pelo financiamento de apenas 2,4% da despesa corrente total, o que confirma a complementaridade dos seguros em relação ao SNS, os quais não constituem, na prática, uma alternativa ao sistema público de saúde. Quanto aos grandes grupos privados, estes continuam a encarar a saúde como uma área com enorme potencial de crescimento, o que se reflecte nos avultados investimentos que têm feito para aumentar a sua capacidade enquanto prestadores de cuidados de saúde. Isto na expectativa que o Estado venha a financiar ainda mais os cuidados de saúde prestados por privados. Tal não deixa de constituir um paradoxo curioso. Aqueles que mais defendem a iniciativa privada procuram a todo o custo maximizar os seus investimentos, nomeadamen-

TABELA 1 – FINANCIAMENTO DA DESPESA CORRENTE EM SAÚDE EM PORTUGAL

Despesa pública 57,5 % SNS 7,1% subsistemas públicos 5,7% outros serviços públicos 0,9% fundos da segurança social Total: 71,2%

Despesa privada 23,9% famílias 2,4% seguros privados 1,9% subsistemas privados 0,6% outros Total: 28,8% FONTE: INE. CONTA SATÉLITE DA SAÚDE 2006.

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GRÁFICO 1 – DESPESA PÚBLICA EM SAÚDE PER CAPITA (AJUSTADA PELA PPC, USD, 2007)

GRÁFICO 2 – CRESCIMENTO REAL DA DESPESA PÚBLICA EM SAÚDE PER CAPITA (%)

FONTE: WHO GLOBAL HEALTH OBSERVATORY. FONTE: OECD HEALTH DATA

GRÁFICO 3 – DESPESA PRIVADA EM SAÚDE (% DA DESPESA TOTAL, 2007)

GRÁFICO 4 – EVOLUÇÃO DA DESPESA PRIVADA EM SAÚDE (MILHARES DE €)

Grécia Portugal Espanha Bélgica Finlândia Áustria Itália Alemanha França Irlanda Suécia Reino Unido Holanda Dinamarca Luxemburgo 0

5

10

15

20

25

30

35

40

45 FONTE: PORDATA

FONTE: WHO GLOBAL HEALTH OBSERVATORY.

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te, através de contratos de Parcerias Público Privadas (PPP) e de convenções com a ADSE ou no âmbito do SIGIC. Até 2013, os gastos do Estado com as PPP aumentarão mais de 300% face ao valor registado em 2009 (Gráfico 5), sem contar com as adendas aos contratos, expediente a que o Estado se tem sido obrigado a recorrer, sempre que as entidades gestoras alegam que determinada prestação de cuidados não está incluída no contrato inicial. Aconteceu assim em Cascais e agora também mais recentemente em Braga. Em 2009, os quatro maiores grupos privados de saúde facturaram 694 milhões de euros, o que representa um crescimento de 42,5% comparativamente com o ano anterior. Para 2010, esperam atingir os 950 milhões de euros de facturação. Por outro lado, os dados disponíveis mostram que o Estado já financia mais de metade da prestação privada, incluindo medicamentos, meios complementares de diagnóstico e terapêutica e outros cuidados de saúde. Apregoando um custo por acto inferior ao cobrado pelo SNS aos subsistemas, os privados escondem que, não havendo um controlo do volume total de actos a realizar, a indução da procura surge naturalmente numa tentativa de maximização do lucro, tal como explicado em qualquer manual de economia. Em 2007, o Ministério das Finanças celebrou um acordo com o Hospital da Luz para assistência dos beneficiários da ADSE. Em 2008, novo acordo com um grande grupo privado, desta vez o grupo HPP, que abrangeu mais três instituições: Hospital dos Lusíadas, HPP Centro e Hospital Privado da Boavista. Do lado da despesa paga, enquanto as transferên-

A GARANTIA DA SUSTENTABILIDADE DO SNS PASSA PELO FIM DAS PPP E PELA PREFERÊNCIA DO SNS NA PRESTAÇÃO DE CUIDADOS AOS BENEFICIÁRIOS DOS SUBSISTEMAS PÚBLICOS. SÓ ASSIM PODEMOS CONTINUAR A PROMOVER E ASSEGURAR UMA MAIOR EQUIDADE NO ACESSO E NO FINANCIAMENTO DOS CUIDADOS DE SAÚDE

cias da ADSE para o SNS diminuíram 33,6 milhões de euros, a despesa da ADSE com prestadores no regime convencionado e com encargos no regime livre aumentou, no seu conjunto, 40,5 milhões de euros. No regime convencionado, o maior crescimento da despesa esteve associado ao internamento e ambulatório em hospitais e clínicas privadas, aos actos médicos (sobretudo de medicina, onde se destacam os exames do foro cardíaco e gastrointestinal) e às cirurgias (Tabela 2). Os mais de 1,3 milhões de beneficiários da ADSE constituem assim para os privados um grande manancial de receita, apresentando uma vantagem inigualável, comparativamente com os seguros privados de saúde, o facto de a ADSE não estabelecer limites máximos para o custo total por tratamento completo, nem para a despesa anual por beneficiário. Do exposto resulta claro que a sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não passa pelo predomínio dos privados na prestação de cuidados de saúde, nem pela contratação mais generalizada de seguros privados. No entanto, a garantia da sustentabilidade do SNS passa pelo fim das PPP e pela preferência do SNS na prestação de cuidados aos beneficiários dos

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subsistemas públicos. Só através da aposta continuada num SNS geral, universal e de qualidade podemos continuar a promover e assegurar uma maior equidade no acesso e no financiamento dos cuidados de saúde, a maximização do estado de saúde da população, um maior controlo do crescimento da procura e um menor risco de insustentabilidade financeira. Contrariando os que alegam que apenas através de uma maior intervenção dos privados na saúde se poderá atingir a eficiência necessária para garantir a sustentabilidade do sistema, escondendo nesse chavão a tão desejada maximização do lucro mesmo que o custo a pagar seja a diminuição do acesso por parte da generalidade dos cidadãos ou o aumento dos co-pagamentos, a reforma em curso do sistema de saúde americano, por iniciativa do Presidente Obama, veio pôr a nu e de forma inegável todas as fragilidades das propostas liberais para a privatização da saúde. O sistema de saúde americano em que 15% da população não tem qualquer seguro de saúde e em que 75% dos seguros de saúde estão ligados à entidade empregadora3,4 e que, portanto, qualquer pessoa que fique sem emprego deixa de beneficiar do seguro, tem a maior des-


GRÁFICO 5 – DESPESA PÚBLICA COM PPP NA ÁREA DA SAÚDE (MILHÕES DE €)

TABELA 2 – DESPESA PAGA PELA ADSE NO REGIME CONVENCIONADO (MILHÕES DE €)

600

Internamento e ambulatório

500

400

Actos médicos 300

Actos cirúrgicos

Despesa Instituições Oficiais Misericórdias e IPSS Privados Consultas de clínica geral Consultas de especialidade Actos de medicina Cirurgias

200

2007 1,88 14,82 43,75 1,64 8,49 1,30 3,24

2009 1,52 19,31 73,82 1,74 9,55 2,02 4,02

Variação -19% +30% +69% +6% +12% +55% +24%

FONTE: ADSE. RELATÓRIO DE ACTIVIDADES 2009.

100

0 2009

2010

2011

2012

2013

FONTE: ORÇAMENTO DO ESTADO PARA 2010

GRÁFICO 6 – ESPERANÇA MÉDIA DE VIDA TOTAL (ANOS, 2008)

GRÁFICO 7 – ESPERANÇA MÉDIA DE VIDA SEM DOENÇA (ANOS, 2008)

84

77

83

76

82

75

81 80 79 78

74 73 72 71 70

77

69

76

68

75

67

FONTE: WHO – GLOBAL HEALTH OBSERVATORY.

FONTE: WHO – GLOBAL HEALTH OBSERVATORY.

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pesa total em saúde per capita e, desconhecido de muitos, é o terceiro país com maior despesa pública em saúde per capita, a seguir ao Luxemburgo e à Noruega5. E a tão elevada despesa nem sequer correspondem os melhores indicadores de saúde. Por exemplo, tanto ao nível da esperança média de vida (Gráfico 6 e Gráfico 7), como da taxa de mortalidade infantil (Gráfico 8), os EUA têm um desempenho inferior a qualquer um dos países da EU 15, Canadá, Austrália ou Japão. Por estas e outras razões, os EUA foram classificados pela Organização Mundial de saúde em 37.º lugar no ranking dos sistemas de saúde (2000). Ou seja, a redução do papel do Estado ao mínimo, tanto na regulação e supervisão, como na prestação de cuidados de saúde, e a sua substituição nesta função pelos privados, revela-se ineficaz para atingir a tão propalada eficiência, com que se pretende justificar a privatização da saúde em Portugal, com prejuízo do estado de saúde das populações.

GRÁFICO 8 – ESPERANÇA MÉDIA DE VIDA (ANOS)

8 7 6 5 4 3 2 1 0

FONTE: WHO – GLOBAL HEALTH OBSERVATORY.

NOTAS

1 INE. Conta Satélite da Saúde 2004 in Nogueira da Silva, S. (2010). Os seguros de saúde privados no contexto do Sistema de Saúde Português. Lisboa: Associação Portuguesa de Seguradores. 2 ADSE. Relatório de Actividades 2009. 3 Mills R.J., Bhandari S. (2003). Health Insurance Coverage in the United States. 4 Katz M.B. (2001). The Price of Citizenship. Redefining the American Welfare State. New York: Metropolitan Books. 5 WHO Global Health Observatory.

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SOCIALISMO 2010

BANCO PÚBLICO DE TERRAS XOSÉ CARBALLIDO PRESAS

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BANCO PÚBLICO DE TERRAS

XOSÉ CARBALLIDO PRESAS | MEMBRO DO CONSELHO NACIONAL DO BLOCO NACIONALISTA GALEGO E DA COMISSÃO DE POLÍTICA AGRÁRIA DO BNG. EX-DIRECTOR GERAL DE ESTRUTURAS E INFRA-ESTRUTURAS AGRÁRIAS DO GOVERNO GALEGO

A ESTRUTURA PARCELARIA Assim como acontece na Galiza, a estrutura parcelária de Portugal é caracterizada por um elevado grau de fragmentação, dividindo a Superficie Agrária Útil (labradíos, prados e pastagens) em milhares de pequenas parcelas. Assim, muitas explorações possuem um grande número de parcelas dispersas que obriga a deslocamentos contínuos. Uma grande parte da superfície rural está em regime de propriedade privada, em muitos casos, os titulares não são os gestores da terra e há muitas parcelas sem nenhum tipo de gestão. Entre as causas da fragmentação podemos destacar: Estratégias e costumes hereditários do sistema agrário tradicional, a vinculação afectiva à origem familiar, os modelos de assentamento (dispersão de núcleos), a falta de ordenação territorial, a consideração da terra como bem raiz e valor refúgio e mesmo a insuficiente adaptação das estruturas às mudanças experimentadas pelo sector nas últimas décadas. Esta situação afecta de forma directa as explorações: Diminuição no número de explorações das últimas décadas sem levar emparelhado a transferência de Superfície Agrária Útil (SAU) para as que se mantêm, e grande parte das terras de vocação agrária sem

nenhum tipo de gestão, com um deficiente aproveitamento ou em estado de abandono. Como consequência podemos destacar a falta de unidades produtivas viáveis e o dimensionamento da exploração inadequado. Isto provoca dificuldade de inovação e melhorias tecnológicas, incremento dos custos de produção, menor eficiência do factor trabalho, diminuição das rendas da família no rural, mínimo relevo geracional, êxodo rural, envelhecimento da população rural, abandono e perda da paisagem tradicional, redução da diversidade ecológica, risco de incêndios e degradação dos solos e aquíferos. INTERVENÇÃO PÚBLICA PARA A MOBILIZAÇÃO DE TERRAS Nenhum país pode deixar a produção de alimentos exclusivamente em mãos de terceiros, e há que ter em conta a função social do direito de propriedade. Os governos devem intervir para a ordenação territorial de uso da terra, conservar a Superfície Agrária Útil (Portugal perdeu mais de 500.000 hectares de SAU nos últimos 20 anos), melhorar a situação estrutural das explorações, buscar a viabilidade e competitividade do sector, estabelecer critérios de eqüidade e acesso democrático aos recursos, e intervir na melhora do funcionamento

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do mercado de terras. Ten por tanto possibilidades de intervenção nos mecanismos de mobilidade: Acesso à propriedade (compra) ou acesso ao uso pelas explorações (arrendamentos). A mobilização por COMPRA presenta certas dificuldades: A terra, como património em situação de crise, ten as veces preços inassumibles, e economicamente inviáveis, e também há uma reduzida capacidade financeira pelo tamanho das explorações. Por outro lado, tambem há dificuldades para mobilização por ARRENDAMENTO: Temor à perda da titularidade do capital territorial, risco de demoras no pagamento e falta de pagamento, e mesmo prevenção do proprietario diante do deterioro do património arrendado. UM BANCO PÚBLICO DE TERRAS ? O governo posse intervir criando um banco que faça as gestões necessárias para mobilizar as terras mediante ARRENDAMENTOS. Um banco onde possamos inscrever as nossas quintas permitindo que sejam arrendadas. Um banco onde os agricultores possam solicitar quintas em aluguer para ampliar a sua base territorial. Este Banco deve ser público, co respaldo do governo, para que possa estabelecer determinadas garantías: Garantia de devolução ao proprietário acabado o período


Conservação da Superficie Agrária ÚMl

de arrendamento, garantia de cobro do preço estabeà transacção: Garante o cumprimento dos prazos, faDe forma paralela, o governo deve estabelecer mecanismos tendentes à conservação da SAU com lecido e garantia de devolução das terras em normal zendo-se responsável pelas relaciones contratuais. Asactuações mediante procedimentos sancionadores estado de uso. sobre as quintas incultas ou abandonadas, segura a cobrança da renda por parte do proprietário quando estas situações possam causar prejuízos a terceiros. Ao mesmo tempo, possa estabelecer No caso da Galiza, criou uma sociedade gestora do independentemente do cumprimento do pago por parbeneScios t ributários com o o bjec9vo de p roteger e conservar a SAU, com uma isenção às quintas Banco de Terras, de carácter público, o BANTEGAL, te do arrendatário. Faz-se responsável subsidiário dos trabalhadas e aquelas estejam incorporadas Público decausados Terras, no incen9vando que para o que absorve o peso do marco que contratual, existindo sem- ao Banco possíveis danos prédio, assegurando preaqueles proprietários que por uma ou outra causa não estejam a trabalhar as quintas, ao menos dois contratos: Proprietário -Bantegal por um lado proprietário a recuperação da quinta em condições equie Bantegal pelo Os aspectos princi- que necessitem paráveis no pontoada suabincorporação ao Banco. ponham -eAgricultor stes prédios à doutro. isposição das explorações alargar sua ase territorial. pais são o tempo de cessão (entre 5 anos mínimo e 30 O gmáximo) overno tem portanto de intervenção. Não pode permanecer inac9vo, e deve tomar anos e a renda, parapoossibilidades que se estabelecem uns CONSERV AÇÃO DA SUPERFÍCIE medidas que permitam a ampliação da base territorial das explorações agrárias, de modo que se preços de referência. Quando o proprietário incorpoAGRÁRIA ÚTIL convertam n um f actor d e r iqueza c olec9va. ra um prédio ao Banco de Terras, autoriza ao Bantegal De forma paralela, o governo deve estabelecer mea cedê-lo a terceiros por um prazo máximo de 5 anos canismos tendentes à conservação da SAU com actua(excepto consentimento expresso de prazo diferente) ções sobre as quintas incultas ou abandonadas, mediante O Bantegal assume os custos de garantia associados procedimentos sancionadores quando estas situações

VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010

[49] SOCIALISMO 2010

possam causar prejuízos a terceiros. Ao mesmo tempo, possa estabelecer benefícios tributários com o objectivo de proteger e conservar a SAU, com uma isenção às quintas trabalhadas e aquelas que estejam incorporadas ao Banco Público de Terras, incentivando que aqueles proprietários que por uma ou outra causa não estejam a trabalhar as quintas, ao menos ponham estes prédios à disposição das explorações que necessitem alargar a sua base territorial. O governo tem portanto possibilidades de intervenção. Não pode permanecer inactivo, e deve tomar medidas que permitam a ampliação da base territorial das explorações agrárias, de modo que se convertam num factor de riqueza colectiva.


OCIALISMO 2010

A RECEPÇÃO É A ARMA DO POVO? JOÃO TEIXEIRA LOPES

VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010

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A RECEPÇÃO É A ARMA DO POVO? POR JOÃO TEIXEIRA LOPES | SOCIÓLOGO

A RECEPÇÃO É UMA «ARMA»? EM CONCRETO, é a arma simbólica dos oprimidos? A questão ganha particular sentido num contexto de proliferação das práticas culturais doméstico-receptivas (apesar de esta categoria englobar uma série de actividades que vão das apropriações mais passivas dos media tradicionais às emergentes práticas amadoras propiciadas pela panóplia de novos media, passando pela apropriação sem produção de cariz convivial e crítico). Além do mais, não raras vezes se falou, em particular nos estudos empíricos dos cultural studies, na interpretação como uma espécie de ferramenta de contradominação dos pobres, particularmente quando destituídos de capital escolar e simbólico. Tratava-se, até um certo ponto, de superar uma gama de caracterizações de pólo negativo em que as culturas populares, seguindo um certo legitimismo radical, surgiam invariavelmente, em determinadas pesquisas sociológicas, como estando eternamente «aquém», numa espécie de essência ou fixismo de subalternidade (o que denunciava implícitos evolucionistas e etnocêntricos, por referência a um ponto avançado de um arbitrário cultural cultivado) ou sepultadas na terra do «não»: não cultivados, não legitimados, não letrados. Ou, finalmente, brotando na quintessência de algum inconsciente do pensamento es-

trutural que actualizava formas primitivas na alegórica interpretação de dicotomias ou pares binários, classificando tais práticas como a «cultura de baixo». Ainda assim, convém explicitá-lo, pretendo falar neste artigo mais de «recepção» do que de «interpretação». Ambas, é certo, recolocam o «leitor» (falaremos aqui de «autor», «leitor» e «texto» em amplo sentido e não no estrito código do campo da leitura) numa posição activa de quem acciona apropriações, usos, «artes», modos de relação. Mas a recepção cultural engloba a interpretação como um acto de um processo estético mais vasto que inclui também a percepção e toda uma cadeia dialógica de construção, difusão e reconstrução dos textos e da própria praxis social. A recepção estética em particular, tal como Hans Robert Jauss propõe, concilia a história literária com a história propriamente dita, a hermenêutica, a fenomenologia e a sociologia. Desde logo, porque se é impossível deduzir o processo criativo/receptivo de um fétichismo do económico ou de um formalismo imanente (que levaria a uma análise puramente interna das obras) ou mesmo de um estruturalismo que se reduz à constatação da actualização de invariantes sociais, importa resgatar a recepção enquanto experiência, como o momento em que, de alguma forma, tornamos nosso o horizonte de

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expectativa da obra e do seu autor. A arte só alcança a sua dimensão histórica quando considera o jogo potencialmente infinito de perguntas e respostas; problemas e soluções; inquietações e propostas que enlaça autor e receptor, produzindo uma mudança no “horizonte da vida quotidiana” (Jauss, 1993) deste último (ou daquele, quando também é receptor – os papéis são frequentemente intermutáveis), ligando, ainda, ética e estética, texto, arte e comportamento. Jogo em que ambos acreditam e investem, credibilizando-o. Por outro lado, não se compadece a análise sociológica da arte com um sociologismo objectivador que, colocando as obras em estreita homologia com o espaço da criação e da recepção, esquece o desvio e o hiato frequentes entre os textos, os autores e os seus públicos, bem como as correspondentes descoincidências entre posições e propriedades disposicionais que resultam da inserção no espaço social. Como explicar – questão que atormentou Marx – que tantas obras perdurem, nos seus efeitos sociais, bem para além das condições materiais do seu modo de produção e dos contextos originais de recepção, ultrapassando, de igual modo, numa multiplicidade de usos e de apropriações, estritas barreiras classistas, quando encaradas enquanto a variável determinante por excelência? Ou, como questiona ainda


Madureira Pinto, ao aventurar-se pelos terrenos da psicologia da percepção: “a criação artístico-cultural, uma espécie de invasão benévola de luz num mundo de luz, propõe aos seus públicos fronteiras novas, jamais estabilizadas, entre campo visual e mundo visual (…) talvez seja, em parte, por isso (….) que as artes e as culturas se coloquem mais do lado da transformação do que da reprodução social” (Pinto, 2004: 28). Se a recepção estética permite mudanças de horizonte que ultrapassam um campo social de possíveis definido de forma sociologista, então uma vez mais se justifica considerar tal indução sociologista como inimiga da complexidade da análise propriamente sociológica. Se a arte é criadora de realidade, analisemos, então, os efeitos que daí advêm no campo político, no exercício das funções comunicativas das esferas públicas profanas e nas práticas sócio-culturais. Para tentar avançar um pouco na discussão do complexo processo de recepção estética, proponho o seguinte esquema analítico (ver página seguinte) Como se perceberá, estabelece-se, antes de mais, uma relação institucionalmente enquadrada entre autor, obra e leitor. A recepção não é imune ao conjunto de liames e regras sociais mais ou menos sedimentados onde se actualizam estruturas de recursos e oportunidades, bem como relações de poder e enjeux diversos que condicionam a dupla produção do agente e da estrutura. Nos tempos que correm, as inserções institucionais podem mesmo sobrepor-se (basta pensar nos níveis territoriais diversos – e por vezes cumulativos – em que se movem as actividades culturais e artísticas – do local ao translocal ou na crescente multiplicação, especialização e diversificação dos art worlds). As instituições, bem entendido, não são entidades metafísicas, arquitecturas distantes,

ou ainda molduras decorativas. Elas agem, no seu sentido próprio e relativamente autónomo. A recepção não é imune, igualmente, à materialidade da obra enquanto objecto (os objectos socializam e despertam ou inibem esquemas de acção), nem tampouco ao poder diferentemente interactivo dos meios e suportes (sistemas complexos de mediação com os seus sentidos e efeitos próprios) em que encarnam os textos (Hennion, 1993). Os agentes sociais, por seu lado, movem-se entre constrangimentos estruturais que não se resumem, como já mencionámos, à origem e pertença social (definida, aliás, neste esquema, de forma multidimensional, seguindo as pisadas de Weber e Bourdieu – englobando componentes de diferenciação económica, política, social, cultural e simbólica, em permanente interacção), incluindo o género, a etnia, a orientação sexual e não esquecendo o lado dinâmico dos percursos e trajectórias (cruzando, uma vez mais, na diacronia, instituições, agentes de socialização, espaços, actividades e ciclos de vida), bem como o vector estratégico dos projectos, instância de monitorização reflexiva da própria acção e, ainda, em modo mais pragmático, a rede de papéis sociais que fundam identidades crescentemente trabalháveis, embora longe da maleabilidade mole da plasticina. O projecto une-se à memória mas também à metamorfose, como aponta Gilberto Velho, enquanto adaptação activa do self aos mundos da vida que fazem do nosso quotidiano um trânsito não esquizofrénico (como pretenderiam certas versões do pós-modernismo identitário), antes permanentemente negociado e exercitado como um dos factores constituintes da condição social contemporânea (somos diferentes, em distintas cenas, sem deixarmos de ser o mesmo)

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Agentes plurais, em suma, inseridos em múltiplas pertenças e esferas de actividade, constituídos e constituintes de disposições diversas, com génese e força diferenciada, umas mais fortes, algumas activadas, outras em vigília, inibição ou mesmo regressão. Agentes plurais, ainda, face aos contextos de interacção (quadros de interacção como lhes chama António Firmino da Costa (2004), salientando os seus parâmetros físicos e humanos, estruturais e culturais, institucionais e propriamente interaccionais). Agentes plurais, finalmente, pela actualização de disposições estéticas em mutação e de índole múltipla (cognitiva, sensorial, emocional, mental, sensorial). Daí a referência – em que Madureira Pinto tantas vezes insiste – de que a recepção é sempre um encontro entre dois corpos socializados – que não deixam, por isso, de ser corpos, portanto intersubjectivos, interhabitus em dupla contingência, corpo a corpo comunicados e comunicantes (as disposições estéticas inscrevem-se no corpo, mas este, longe de ser uma tabula rasa activando-as e transformando-as). Assim, o horizonte de expectativa, conceito proposto por Jauss (e que Popper e Gadamer também utilizam), leva-nos a pensar na possibilidade de uma fusão entre o sistema de referências de autor e de leitor – a altura em que a obra actua pela compreensão a partir de um espaço-tempo presente que não ignora, todavia, toda a história da relação entre aquela obra e outras; as cadeias sucessivas de anteriores recepções; as relações e analogias entre as obras e os processos de constituição dos géneros artísticos e também o grau de identificação ou contraste com os esquemas da experiência quotidiana (como Diz Proust, em À Procura do Tempo Perdido, “os meus leitores são os leitores deles mesmos”).


CULTURAL RECEPTION “ I n s t i t u t i o n s ” – S e t o f e s t abl i s h e d s o c i a l r e l at i o n s a c r o s s s p a c e - t i m e [ d e p e n d i n g o n b r o a d e r s o c i e t i e s a n d s o c i a l c o n f i g u r at i o n s ]

fusion vs separation

Horizon of expectation

Social Class

Aesthetical reference system + Life experiences capital

Total Capital Economical Cultural Social Poli2cal Gender Symbolical

Gender Ethnicity …. + Pathway + Project (s) + Social Role

Sender “Author”

TEXT

Past Questions Problems

Receiver “Reader”

Present Answers Solutions

code/Medium/ Canal

socialized bodies in

[INTERACTION SETTINGS]

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Horizon of expectation

Social Class Total Capital Economical Cultural Social Poli2cal Symbolical

Gender Ethnicity …. + Pathway + Project (s) + Social Role

Aesthetical reference system + Life experiences capital


A obra, como realça Teresa Cruz (1993), existe na sua virtualidade, apelando à execução e à performance. De igual modo as estruturas, relembra Giddens (2003), possuem uma existência virtual, concretizando-se (instantaneizando-se) na sua activação rotineira (nos seus hábitos). Não esquecemos, contudo, os frequentes e inquietantes casos de despossessão cultural e de desentendimentos perceptivos. Como avaliar, por conseguinte, do ponto de vista da teoria da recepção e da escola da recepção estética, modos de relação com a obra concebidos como iconoclasmo perceptivo, iconoclasmo radical, familiaridade esquiva ou equívoca, conformismo divergente ou confirmativo, mutismos vários de significados plurais (Conde, 2004)? Surgem-me três atitudes possíveis perante tais situações, aliás recorrentes. Uma delas consiste em encontrar argumentos para reforçar a insuficiência instrumental da recepção cultural e estética enquanto arma de reposição da pluralidade simbólica das formas de estruturação e representação do mundo. A segunda, procura razões de legitimação da reflexividade pericial do campo artístico, defendendo, pela autonomia do velho preceito da arte pela arte (oposto à arte para a vida ou à arte para o povo), condições de criação e experimentação desligadas das interferências dos processos de recepção. Outra, a que perfilho, opta por consubstanciar em políticas públicas democráticas (sem conteúdos de violência simbólica) as condições de superação da vergonha, inibição e desentendimentos culturais. A descoincidência entre horizontes de expectativa, longe de constituir fatalidade insuperável, é parte integrante da

história. Na verdade, não existem «não-públicos». É-se sempre público em alguma esfera de actividade ou mundo da vida. Daí a proposta de reconhecimento de uma pluralidade de esferas públicas profanas pelas quais vamos circulando (Calhoun, 1993). Reconhecer a pluralidade dos públicos e a própria diferenciação interna de cada público conduz-nos à desessencialização de alegorias etnologizadas como a de «povo» ou «massas» e permite compreender que os fenómenos de dissonância cultural e desentendimento receptivo se encontram em vastas franjas do espaço social. Entre outros motivos, por questões que se prendem com a falta de criação (a montante) ou de activação (a jusante) de disposições que não se esgotam na mera relação erudita com a obra, antes reivindicam modos de entendimento de apropriações vernaculares enraizadas nas experiências de vida. Ou pela míngua de «detonadores» institucionais (e entramos já no domínio das políticas públicas e da necessária implementação de um reformismo democrático de que também fala Madureira Pinto – as «reformas» institucionais não têm fatalmente de significar retrocessos quase civilizacionais). Ou pela ausência de comunidades interpretativas onde se trabalhe em conjunto, de forma convivial, a relação com as obras, construindo intersubjectivamente sentidos partilhados. Ou, ainda, pelo défice de dessacralização da relação com os próprios objectos (livros, quadros, partituras, esculturas, instalações…). Porque, entendamo-nos, as disposições estéticas não podem ser definidas como a prioris kantianos. Elas são, antes de mais, gramáticas de conexão entre o passado e o presente das experiências de vida. O pressuposto do grau zero de poder do «cultural dope» ou do sonâmbulo social destrói a própria pos-

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sibilidade de análise sociológica. Desconheço teórica e empiricamente a existência de não-públicos. Pelo contrário, deparo-me frequentemente com públicos à espera de vez.


BIBLIOGRAFIA CALHOUN, Craig (1993), Habermas and the Public Sphere. The Mit Press. CONDE, Idalina (2004), “Desentendimento revisitado”. In AAVV, Públicos da Cultura. Lisboa: Observatório das Actividades Culturais. COSTA, António Firmino da (2004), “Dos públicos da cultura aos modos de relação com a cultura: algumas questões teóricas e metodológicas para uma agenda de investigação”. In AAVV, Públicos da Cultura. Lisboa: Observatório das Actividades Culturais. CRUZ, Teresa (1993), “Prefácio”. In Hans Robert Jauss, A Literatura como Provocação. Lisboa: Veja. Giddens, Anthony (2003), A Constituição da Sociedade. 2ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes HENNION, Antoine (1993), La Passion Musicale. Une Sociologie de la Médiation. Paris: Métailié. JAUSS, Hans Robert (1978), Pour Une Esthétique de la Réception. Paris: Gallimard. JAUSS, Hans Robert (1993), A Literatura como Provocação. Lisboa: Veja. LOPES, João Teixeira (2004), “Experiência estética e formação de públicos”. In AAVV, Públicos da Cultura. Lisboa: Observatório das Actividades Culturais. PINTO, José Madureira (2004), “Para uma análise sócio-etnográfica da relação com as obras culturais”. In AAVV, Públicos da Cultura. Lisboa: Observatório das Actividades Culturais. PINTO, José Madureira (2010), “A sociologia no terreno como criação social”. In Maria de Lourdes Lima

dos Santos e José Machado Pais, Novos Trilhos Culturais. Práticas e Políticas. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais VELHO, Gilberto (1994), Projecto e Metamorfose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor LAHIRE, Bernard (2002), Homem Plural. Os Determinantes da Acção. Petrópolis: Editora Vozes.

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RAPS Ó DIA

CONTO «A MÁQUINA DE PENSAR», POR PEDRO EIRAS

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A MÁQUINA DE PENSAR

PEDRO EIRAS

QUANDO O CRIADO TROUXE A CORRESPONdência, o Duque deu um saltinho de alegria. Numa caixa de papelão, entre plásticos e esferovites, chegara finalmente a máquina de pensar. – Estupendo, estupendo! – disse o Duque, com aquele nervosismo infantil que tão bem o caracterizava, e que dava um picante especial às conversas de salão. A máquina de pensar vinha numa caixa enorme, que incluía sete caixas menores. Cada uma destas caixas, por seu turno, trazia várias peças maiores encaixadas em formas de esferovite, e peças menores envoltas em plástico com bolsinhas de ar. Com imenso gozo, o Duque tirou da caixa maior os bocados da máquina; e não sem contemplar o design de cada peça, porque a verdade deve ser verdadeira, mas convém que seja também um pouco bela, e portanto gerada por uma bela máquina (do mesmo modo que uma criança bela deve ser filha de belos pais, pensou o Duque). Ora: como era bela e aerodinâmica a máquina de pensar! Tirou, peça a peça: as bases de dados das Ideias platónicas, os grandes discos de conceitos de Ramon Llull, a estrutura maior da máquina de Leibniz, fragmentos de Novalis, peças descontinuadas de Turing. Tudo devidamente revisto e anotado, como assegurava uma etiqueta na caixa maior, por Umberto Eco. Quando o chão de madeira do salão ficou atulhado

de peças, o Duque notou que faltavam as instruções de montagem. Mandou o criado ligar para o fornecedor; e o fornecedor respondeu que a caixa estava completa, e que nunca trazia instruções de montagem. Ainda hoje o Duque anda a tentar construir a máquina. Mas não consegue. Os criados espreitam-no, cada serão, frustrado e melancólico, a rebentar as bolhinhas de ar nas bolsas de plástico.

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FOTOS NESTA EDIÇÃO:

REVISTA VÍRUS #11 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010

SOCIALISMO 2010 PAULETE MATOS SOCIALISMO 2010 PAULETE MATOS FAST FLOEING

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