Revista Vírus #10

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vírus #10 — setembro/outubro 2010

isto não é europa pré-publicação

capítulo do livro “os donos de portugal” , de jorge costa, luís fazenda, cecília honório, francisco louçã e fernando rosas

Maria José Casa-Nova

Cultura maioritária, cultura cigana e cidadania: um triângulo (im)possível?

Patrick Vassort

O futebol como forma do político

Jaap Draaisma e Patrice Riemens

A ocupação clandestina na Holanda a partir de 1945


A GESTÃO POLÍTICA DOS MEDOS OU O FIM DA EUROPA

editorial | João Teixeira Lopes

1. É conhecido o “poema pouco original do medo” de Alexandre O’Neil: “O medo vai ter tudo…”. É dele que me lembro neste tempo em que a ideia de Europa se desmorona perante as sucessivas derivas autoritárias. Quem expulsa os ciganos ou quem equipara os beneficiários do rendimento mínimo e do subsídio de desemprego a ladrões, prevaricadores e/ou preguiçosos, criando uma espécie de essência ou natureza que, no fundo, tenta definir um exército de pobres a abater, joga com a degradação social e humana como arma de arremesso. Em alturas como esta, em que um após um se rasgam os contratos sociais fundadores das ideias de redistribuição e desmercantilização, é uma Europa de ratos que se oferece aos vindouros. Os Direitos Humanos, a fraternidade, a liberdade de circulação ou a igualdade soam como venerandos vocábulos, etéreas ideias de uma constelação apagada.

A igualdade dos lugares e das posições sociais, por seu lado, eclipsa-se em favor de uma mirífica “igualdade de oportunidades”, tão ao sabor das vagas individualistas e do fervor competitivo da meritocracia. Não importa que nasçam iguais os cidadãos; o que importa é que possam concorrer ao elevador social…Os ciganos não sabem aproveitar as oportunidades que se lhes oferecem. Os desempregados não fazem o suficiente para ultrapassar a sua condição. Os beneficiários do rendimento social de inserção não pretendem inserir-se socialmente, etc. É a velha/nova divisão entre a”boa” e a “má” sociedade que regressa em força, para punir na santa aliança entre economia e moral os vencidos da competição. Com uma nova função: ao engrossarem as fileiras dos empobrecidos, dos”vulneráveis” e dos excluídos, em boa medida devido à disseminação da precariedade e à compressão de lugares ocupáveis no mercado

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de trabalho, impõe-se que uma parte de entre eles tenha medo dos demais, criando uma fronteira face à qual se julgam do “outro lado”. É entre os desfavorecidos que os medos mais se agitam, pois são eles que convivem lado a lado com a miséria, a violência, a insegurança. Paira sobre nós uma nuvem poluidora de estereótipos e estigmas que visam legitimar políticas fundadas no medo. 2. A Europa só terá futuro se for capaz de se assumir como um lugar onde a igualdade coexista com a diferença. Stephen Stoer e António Magalhães propõem a metáfora do bazar. Para além da sugestão de hibridação, mestiçagem e cosmopolitismo, no “bazar não se discute a legitimidade das diferenças, apenas se negoceia as formas de convivência e as regras de convivialidade comum (…) esta negociação não é uma fase a ultrapassar, mas um estado permanente”1 em que nós somos o outro


do outro. Em suma, um espaço público regulado de cidadania permanentemente reclamada. O contrário de tudo isto é a violência: das expulsões de ciganos, ditadas por Sarkozy; da estigmatização dos beneficiários do Rendimento Social de Inserção reiterada por Paulo Portas (em plena época de incêndios queria colocá-los a limpar as matas, como se fossem devedores ilegítimos do Estado); da ostracização dos desempregados proclamada por Passos Coelho, que gostava de os obrigar a trabalhar gratuitamente, ou do brilho burocrático do Secretário de Estado do Governo “socialista” que mostra ufano à comunicação social o trabalho feito: num só mês pouparam-se 10 milhões de euros consubstanciados nos cortes a 44% dos beneficiários do Rendimento Social de inserção e a 7% dos que usufruem do Subsídio Social de Desemprego. 3. Este número da Vírus dedica um especial destaque aos textos de Maria José Casa-Nova sobre a situação dos ciganos em Portugal onde coexiste um racismo social com um racismo institucional, desconhecedor dos códigos culturais ciganos. Contra a ideia da existência de sub-cidadãos, a autora defende uma política da diferença onde a aceitação do outro não seja um exercício paternalista e descendente, mas sim um ofício sistemático de conhecimento da alteridade a partir do seu “do seu sistema classificador e ordenador do mundo. O primeiro texto, no entanto, é de autoria de Jorge Costa, Luís Fazenda, Cecília Honório, Francisco louça e Fernando Rosas, que antecipam um capítulo de um livro a publicar proximamente sobre a génese e a morfologia da burguesia portuguesa. Mostrando os equívocos de António Sérgio e de todos os que defenderam uma po-

lítica do Fomento e da Fixação (por oposição à política de Transporte), ao desejarem uma burguesia industrial “adequada”, os autores revelam os contornos da “burguesia realmente existente”: ltradependente do Estado, do autoritarismo, do empréstimo e de um modelo de modernização conservadora e rentista. Patrick Vassort, por seu lado, no balanço do Mundial de Futebol, desmistifica a imagem do “Desporto-Rei”, mostrando como interesses políticos, económicos e ideológicos se articulam na função da “festa”, uma vez que, sob a sua égide e em seu louvor, todas as oposições e conflitos são violentamente reprimidos. Para quem quiser saber mais sobre esse gigante chamado FIFA, bem como sobre as estreitas relações que mantém com as grandes corporações transnacionais, este texto é vivamente recomendado. O último texto, da autoria de Jaap Draaisma (activista do movimento squatter em Amesterdão nos anos 70 e 80 e fundador da iniciativa “urban resort”) e de Patrice Riemens (geógrafo e investigador na universidade de amesterdão e redactor da revista multitudes) apresenta a ocupação clandestina na Holanda como uma resposta popular à crise do estado na habitação, promovendo, ao mesmo tempo, a diversidade social e cultural constitutiva dos bairros populares e do espaço público urbano. Em suma, uma ilustração de formas alternativas de fazer política. 4. Contra o medo, o nosso dever falar. nota: 1 - Vd. S. R. Stoer e A. Magalhães (2005), A Diferença Somos Nós. Porto, Afrontamento.

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os equívocos de sérgio

jorge costa, luís fazenda, cecÍlia honório, francisco louçã e fernando rosas VÍRUS setembro/outubro 2010

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Os equívocos de Sérgio

jorge costa, luís fazenda, cecília honório, francisco louçã e fernando rosas | dirigentes do bloco de esquerda e autores de “os donos de portugal“. a revista vírus Pré-publica um dos capítulos deste livro com lançamento previsto para breve.

1. Introdução António Sérgio (1883-1969) trouxe à história de Portugal o contributo precioso de uma “interpretação sociológica”, como se lhe chamou. Sem a pretensão de historiador, a leitura histórica das épocas carreou o rigor de análise para um discurso de legitimação política. Essa “interpretação sociológica” foi feita à contramão da historiografia narrativa e/ou épica, ou da historiografia justificativa do império colonial. A influência estruturante que desempenhou nos meios intelectuais da oposição ao Estado Novo é altamente significativa. Não menos importante foi o encorajamento que proveu a um impulso académico dos vários olhares sobre o país, fora da alçada salazarista. A formação historiográfica das fileiras antifascistas muito ficou a dever a obras como os “Ensaios” ou a “Breve Interpretação da História de Portugal” ou, ainda, às “Considerações Histórico-Pedagógicas”. Se se destaca este facto, tal acontece por menor relevo que lhe tem sido concedido. Isto apesar das críticas do menor “rigorismo” histórico que Orlando Ribeiro lhe dirigia (Ribeiro, 1977: 119-81), sem invalidar contudo as teses do ensaísta. Sérgio formulou uma teoria explicativa para o desenvolvimento do país, seus fracassos e atraso. O termo comparativo eram as potências europeias, o tema axial

o lugar perdido na revolução industrial após a expansão marítima. A “interpretação da história” definia duas grandes linhas, “as duas políticas nacionais”, moldando a economia e o poder, a política do Transporte e a política da Fixação, vias adversas e opostas. Por política do Transporte entendia todo o quadro de navegação, colonialismo, comércio. Na política da Fixação destacou o fomento da produção agrícola e industrial, a formação do trabalho, o avanço do mercado na metrópole do império. Segundo ele, já a oposição destas duas políticas se manifestou no conflito entre os infantes de Avis, D. Henrique e D. Pedro. Para D. Pedro havia a prevenção do perigo da “onda atlântica”: «Sacrificar a política da produção às puras empresas de comércio – era trocar (pensava ele) uma boa capa por um mau capelo». Diz Sérgio: «Poderemos chamar às duas escolas, portanto, a política da Fixação e a política do Transporte; a política da produção e a política de circulação; a política da estabilidade e a política do aventureirismo; a política nuclear e a política periférica; a política de D. Pedro e a política de D. Henrique; a política da boa capa e do mau capelo» (Sérgio, 1925: 70). Remontando, com grande minúcia, à edificação política da nacionalidade as intermitências do predomínio de uma e outra orientação, Sérgio situa claramente o do-

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mínio quase absoluto do Transporte após as navegações e o estabelecimento das feitorias e colónias. Esse domínio do Transporte, só entrecortado por breves períodos, normalmente associados a desastres do império e do Estado português. Desastres do império comummente ligados à perda do comércio do Oriente, das “Índias”, à perda da colónia brasileira, e desastres do Estado nos conturbados séculos XVIII e XIX, com as invasões napoleónicas e o protectorado britânico sobre o rectângulo europeu e as guerras civis que se lhes seguiram. Na “Breve Interpretação da História de Portugal”, o autor estrutura a sua leitura das épocas em três partes: a incorporação e a organização da metrópole, expansão marítima e colonial, e tentativas de remodelação metropolitana, que correspondem grosso modo aos períodos da pré-nacionalidade até Aljubarrota, dos descobrimentos à revolução liberal, da Constituição ao Estado Novo. Na primeira parte, a Fixação foi o sentido, na segunda o Transporte, e na terceira a hesitação da encruzilhada e do conflito entre as duas vias. Ao vaticinar como desígnio nacional a política da Fixação, chegamos ao coração do objectivo de fomento produtivo. O Fomento, transposto a categoria, tornouse numa ideologia. No simples e geral sentido que explicava os atrasos de Portugal e previa uma solução com-


pleta para a retoma da vanguarda histórica dos povos: cuidar da terra, em sentido lato. O Velho do Restelo, personagem camoniana da antítese épica, era reduzido a herói do discurso da Fixação, contra a aventura e o desperdício: «O que quero com a política da Fixação é que a riqueza que se obtém nas colónias se não fixe toda nos demais países: que se fixe também no nosso país e sobretudo no nosso país» (Sérgio, 1929: 191). A ideologia do Fomento era a bandeira da evolução social, por contraposição a séculos de colonialismo dependente de terceiros. E aí ia toda a admiração pela Holanda e pela Inglaterra, cujas burguesias tinham aproveitado o comércio marítimo para desenvolver, portas adentro, a manufactura. Assim insistia: “Os Holandeses, sem preocupações sectárias, atraíam as simpatias dos orientais; vendiam-lhes objectos seus; e não se contentavam, como nós, com trazer aos seus portos os produtos asiáticos, esperando que os clientes aí viessem para buscá-los: iam distribuindo-los aos mercados, ganhando o frete correspondente e sustentando a sua marinha. O português, especializando-se no tráfico em prejuízo da produção, não revelou a capacidade de organizar o comércio em grande; e a perseguição dos Judeus veio agravar esta desordem”. (Sérgio, 1923: 40) Esse percurso tornava o processo histórico num hiato: “A orientação exclusivamente guerreira foi causa de que as nossas conquistas não produzissem uma burguesia rica e afanosa […], mas uma fidalguia corrompida e um populacho de mendi-

gos; e uma vez bem definida a estrutura social a que nos leva, ei-la representando uma força de inércia persistente e multiforme.” (Sérgio, 1914: 14-5) Romper esse domínio era a tarefa inacabada da revolução liberal, porventura o erro da República: “Temer as indústrias por maléficas ao comércio; matar a Produção para proveito da Circulação: eis a que chegou, entre nós, o delírio do Transporte” (Sérgio, 1925: 83). 2. Na onda de Antero, no esquadro de Oliveira Martins Há uma fonte implícita no pensamento de Sérgio: a decadência. A decadência era uma reflexão antiga, cuja ideia já discutimos em capítulo anterior. Não por acaso, o ensaísta nutria uma admiração olímpica pela leva “estrangeirada” de seiscentos a oitocentos, Verney, Ribeiro Sanches, Ericeira, Alexandre de Gusmão, Luís da Cunha: “No entanto, os espíritos superiores percebiam muito bem que a riqueza ultramarina, sem uma base metropolitana, sem actividade criadora e organizadora em Portugal – pervertia, amolentava, emparasitava, o velho reino: e assim o vemos manifestado nos pensadores do seguinte século [ao de Luís Mendes de Vasconcelos, Severino de Faria e Duarte Ribeiro de Macedo], desde os Gusmões, os Luíses da Cunha, até a plêiade de economistas da Academia das Ciências” (Sérgio, 1925:86). Ou o destaque a Mouzinho da Silveira, o legislador da revolução, que mostrou “nos seus decretos, quais eram as condições normais da economia social, e como a riqueza estava em casa, na libertação e trabalho da própria terra” (Sérgio, 1914: 36), materializando a or-

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dem mais progressista da revolução liberal, ou o legado de Alexandre Herculano. Alexandre Herculano foi mais celebrado como historiador do processo secular do “Terceiro Estado” em Portugal, municipalista, soldado da guerra liberal. Adepto de Kant, do industrialismo inglês, do livre-câmbio como doutrina económica, era um intelectual liberal da Europa do seu tempo. Repudiava tanto a Inquisição e o Absolutismo como a Democracia. Defensor da monarquia constitucional (“tão ilegítimo acho o direito divino da soberania régia, como o direito divino da soberania popular”, escrevia numa carta a Oliveira Martins, cit. in Martins, s.d.), dois anos depois da Comuna de Paris, em carta a Oliveira Martins, dizia-lhe: “Cada vez me convenço mais da utilidade do socialismo como crítica e da sua inutilidade como teoria constituinte. Acho o Comunismo mais atroz, mas incomparavelmente mais lógico” (1873). Herculano, revolucionário e mestre desiludido da Regeneração de 1851, a que Oliveira Martins chamará o capitalismo português, espelhou a produção e a troca não como propriedade e poder, mas como empresa, originou a ideologia do Fomento como uma ética social, a do capitalismo liberal contra a parasitagem crónica. Nas condições de Portugal da segunda metade do século XIX, o liberalismo radical, o socialismo romântico ou os precursores do republicanismo confundiam-se na frente de combate contra “a decadência”. Daí que o legado de Herculano lhes tenha sido transversal. Toda esta genealogia do pensamento da Crítica e do Fomento culminam emblematicamente em Antero de Quental. Antero, passional e intemerato, marcou pela listagem das causas da decadência peninsular: a influ-


ência do catolicismo inquisidor, o absolutismo anti-liberdades, o primado das colónias – força da oligarquia. A decadência, tem-se insistido, claro está, aparece reportada aos séculos XV e XVI, ao pioneirismo da navegação, à visão dos hemisférios até aí indesenháveis, ao surto de conhecimento. A auto-imagem do Renascimento português. A decadência endémica enriquece o estrangeiro fabricante, que vende cá o que Portugal não produz e o que Portugal negociou. Cativando no poder dos privilégios a aristocracia rentista do comércio marítimo e das possessões coloniais, um original “feudalismo de Estado”, em que os proventos são redistribuídos aos senhores da Terra, à fidalguia. Quando Sérgio propugna a industrialização e a reforma agrária, é ainda sob o estandarte de Antero. Antero, mais que a doutrina, era a bandeira trágica da insubmissão. Como notou, com forte convicção, Eduardo Lourenço: “Pela seriedade e gravidade com que Antero confrontou as exigências do seu ideal socialista sob o signo da Justiça, concebida à maneira de Proudhon como o farol da História, e as de um pensamento trágico, incapaz de acreditar num sentido positivo da Existência, o seu combate espiritual constitui um acontecimento sem precedentes na nossa Cultura. A bem dizer, marca o início da Modernidade entre nós, se admitirmos que essa Modernidade se acompanha de uma tomada de consciência histórica de carácter trágico. Sobre todos os planos, salvo o da escrita poética, a aventura intelectual de Antero instaurou entre nós uma experiência de ruptura cultural, tanto mais virulenta quanto é mais tardia em relação a to-

Sobre todos os planos, salvo o da escrita poética, a aventura intelectual de Antero instaurou entre nós uma experiência de ruptura cultural, tanto mais virulenta quanto é mais tardia em relação a todos quantos o ocidente europeu conhecera desde Lutero. eduardo lourenço, 2007

dos quantos o ocidente europeu conhecera desde Lutero.” (Lourenço, 2007) Se de Antero e Herculano provinha o rasgo cultural, de Oliveira Martins procedia a tese. Nesta onda, e precursor, a elaboração em jeito de compêndio de Oliveira Martins constitui o sistema solar para a geração da Seara Nova e de Sérgio. Oliveira Martins, da geração de 70 como Antero de Quental, autodidacta, historiou o “Portugal Contemporâneo”, a “Civilização Ibérica”. Antero recomendou-o porque estudava “as sociedades como organismos vivos (…) uma interpretação científica” (Quental, 1987: 302), escrutinou a história lusa dos “Mares”, e divulgou, muito a seu modo, o “Socialismo”. Tudo isso era o manual de intervenção. Na carência de obras de formação geral, era praticamente a bengala do cego. Oliveira Martins, que se correspondia com Herculano, rivalizou com ele na ordenação historiográfica. Martins procurou uma explicação para o processo nacional, imbuído nas causas económicas e situando os conflitos sociais como natureza de cada Estado. Sem prejudicar conclusões de ordem política, como as que extraiu no “Portugal Contemporâneo”:

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“Por enquanto a Nação prescindiu do cérebro, isto é, do Estado, manter-se-á acéfala; enquanto o Estado não tiver como pensamento a igualdade, ou enquanto, mantendo-se uma ficção de poder, se obedecer de facto às ordens dos patronos das várias clientelas políticas, bancárias, industriais; enquanto esses novos barões fizerem de povo: a democracia será uma quimera, por isso mesmo que a Nação demonstrará não ter capacidade para ser senão o que é. À sombra de uma liberdade sempre crescente, dia a dia, com o crescer da riqueza irá crescendo a cisão dos pobres e dos ricos, em virtude dessa lei simples que dá a vitória a quem mais pode.” (Martins, 1881: 328) Oliveira Martins inaugurou aquilo que Sérgio continuou, uma “interpretação sociológica” da história, como aliás precisamente lhe chamou Victor de Sá. Como observou Miriam Halpern Pereira a propósito do Projecto de Lei do Fomento Rural, de Martins: “o que há de mais notável neste projecto de Martins é o carácter global, que o aproxima do que hoje designaríamos de reordenamento do território rural, e o facto de se inserir num


Em 1910 abolia-se enfim a realeza. Fez-se então uma verdadeira República? Não se fez. Fora prematuro, sem dúvida alguma, o socialismo de Antero de Quental, pois que, antes de revolucionar de uma maneira profunda o regime social da produção, é necessário possuir-se algum que produza com um mínimo de eficácia, e era isso o que faltava entre nós. antónio sérgio VÍRUS setembro/outubro 2010

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projecto global acerca da economia (…) Nas conclusões do relatório que precede o articulado da lei reitera a sua crítica à política económica do fontismo, a identificação exclusiva entre desenvolvimento e viação” (Pereira, 2001: 148). E cita Oliveira Martins: “Despertou-nos do sono histórico o silvo da locomotiva e estonteados por ele supusemos que o progresso estava em construir estradas e caminhos de ferros, esquecemos tudo o resto. Não pensávamos que as facilidades de viação, se favoreciam a corrente de saída dos produtos indígenas, favoreciam igualmente a corrente de entrada dos forasteiros, determinando internacionalmente condições de concorrência para que não estávamos preparados e para que não soubemos preparar-nos” (ibid.). Esclarecidos, a ferrovia não era só por si Fomento. Sérgio, martiniano, foi em demanda do agente político. Sérgio não só bebeu a inspiração de Martins sobre o vírus nacional do anti-produtivismo como lhe tomou o programa, exposto em 1885: «As linhas gerais desse programa (…) era a colonização do sul do reino, despovoado e inculto, derivando para aí a emigração agrícola minhota e açoriana; e protecção pautal à indústria fabril, desenvolvendo a produção interna para nos libertar das importações; a instrução técnica ou profissional e o regulamento do trabalho nas suas relações com o capital; o fomento das instituições cooperativas de crédito, de seguros de produção e consumo; a protecção às pescarias nacionais, explorando convenientemente a riqueza das costas e preparando também o viveiro de mareantes; a restauração da marinha mercante nacional, e finalmente a ordenação do sistema colonial» (Martins, 1881: 12). António Sérgio foi muito além de vagas incursões pelo socialismo cooperativo baseado no crédito popular,

um remake tardio de Proudhon. Transporta esse espírito crítico para a revista Seara Nova, que fundou com Raul Proença e muitas outras figuras da nova intelectualidade dos anos 20. Curiosamente, na Seara Nova, no seu primeiro número (Outubro de 1921), escrevia-se, pela pena de Proença, que: “Todas as suas simpatias vão, pois, para os que lutam dentro da ordem, dos métodos democráticos e desse espírito de realidades sem o qual são inteiramente ilusórias quaisquer reformas sociais, pelo triunfo do socialismo” (cit. in Santos, 1979: 23). Mas muito mais do que divulgar o seu “arremedo de socialismo”, o ensaísta tinha a ambição de sugerir a burguesia adequada para o Fomento. E essa seria aquela que impusesse ao Estado a política de Fixação, a produção, para além do comércio ultramarino, visto como complementar. “Desgraçadamente”, na óptica do seareiro Sérgio, a perda do Brasil como colónia não tinha sido suficiente para dinamizar a produção interna do país. Entre a perda do Brasil e a legislação africana de Sá da Bandeira, mediaram apenas catorze anos. Sá da Bandeira legislou o fim da escravatura em África e lançou as bases da colonização e administração das possessões africanas. A juntar a isso, as remessas dos emigrantes, a dívida externa do fontismo, e o comércio colonial, prolongaram a agonia do modelo em que a classe dominante, fundada na finança e no negócio ultramarino, ditava a sua lei. O colonialismo africano era incipiente, como seria, mas mesmo assim a burguesia vivia do capitalismo agrícola e da dívida, na idolatria do livrecâmbio. Essa era a burguesia execrada. E a adequada? Qual seria?

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Afinal, a burguesia “adequada”, de natureza industrial, só se alavancou na República e, verdadeiramente, apenas no fascismo. E no pós segunda Guerra Mundial triunfou, aproveitando o proteccionismo aduaneiro e a compressão dos salários, garantismo da Ditadura. Não é por acaso que Salazar e Caetano adoptam os conhecidos Planos de Fomento. Como já depois do 28 de Maio reconheceria António Sérgio: “Em 1910 (5 de Outubro) abolia-se enfim a realeza. Fez-se então uma verdadeira República? Não se fez. Fora prematuro, sem dúvida alguma, o socialismo de Antero de Quental, pois que, antes de revolucionar de uma maneira profunda o regime social da produção, é necessário possuir-se algum que produza com um mínimo de eficácia, e era isso o que faltava entre nós; a propaganda, porém, surgira abstracta e atrasada, não somente em relação a Antero, mas em relação a um Herculano e um Garrett. Não passava de formalismo político (de simples negação, por assim dizer, da monarquia e do clericalismo) sem conteúdo concreto reformador na economia e na educação. (…) reformas que favorecessem, enfim, a passagem do oligarquismo e comunitarismo do Estado a um regime progressivo de que beneficiasse o povo.” (Sérgio, 1929: 144-5) Essa visão precisava de uma “boa” burguesia. Para desconsolo da tese, saiu a burguesia “errada”. 3. A sopa do Sidónio É sempre muito falível projectar cenários não acontecidos. Sérgio, apesar da sua aproximação ao sidonismo, foi um homem da República. Ministro da Instrução na


sua ponta final, almejava o Fomento juntamente com as liberdades cívicas. Intelectual exilado e perseguido pela Ditadura, foi até preso em provecta idade por apoiar Humberto Delgado, no “reino cadaveroso”, no “reino da estupidez”, como chamava ao rincão pátrio. António Sérgio projectava um cenário de fomento em democracia. Chegou a apresentar um projecto de programa político ao Movimento de Unidade Nacional Antifascista (MUNAF), no pós segunda Guerra Mundial. Contudo, os equívocos sobre a natureza do regime político foram de tomo. Fernando Rosas pôde escrever que “os discípulos liberais de Martins, como Basílio Teles, António Sérgio e vários Seareiros dos anos 20 (…) admitiram uma espécie de parênteses autoritário, uma «ditadura das competências» temporária, para regenerar financeira, económica e politicamente a República” (Rosas, 2000: 46). A atracção pelo major Sidónio Pais fez vingar em um escasso ano o seu pronunciamento militar, a queda do gabinete, a censura e a repressão, a sua eleição como Presidente do que nomeava como “República Nova”, com apoio compósito, mas marcadamente de direita. O seu assassinato, em Dezembro de 1918, fechou esse episódio reaccionário, mas deixou no ar o ensaio do 28 de Maio que aí viria. A pergunta vai por si: seria possível essa burguesia do “empreendimento”? E a resposta é dada pela História: não havia burguesia “adequada” para a industrialização que tivesse interesse num regime liberal do tipo anglo/francês. Ao pânico e horror que mesmo Sérgio demonstrou pela revolução russa de 1917 correspondia um ódio decuplicado nos capitães da indústria do tempo, que face

Apenas a ilusão poderia afiançar a ideia de um caminho de progresso num quadro democrático. No estertor da República não havia sujeitos políticos bastantes para o efeito. A burguesia industrial, tendo vivido a crise da monarquia e a agitação da república, escolheu o “estado forte”

à agitação social na primeira República, pretendiam o autoritarismo puro e duro. Daí que os mentores da ideologia do Fomento, na virada do século XX, se confrontam postumamente com alguns paradoxos. Primeiro paradoxo, já referido: a burguesia “adequada” era “autoritária”, completamente imbricada com o poder político que condicionava as empresas, que condicionava o mercado interno. Este proteccionismo do Estado foi erigido não apenas com as condições gerais do regime autoritário, mas especificamente com a legislação do “condicionamento industrial”, tendente a impedir a concorrência aos fabricantes instalados. Apenas a ilusão poderia afiançar a ideia de um caminho de progresso num quadro democrático. No estertor da República não havia sujeitos políticos bastantes para o efeito. A burguesia industrial, tendo vivido a crise da monarquia e a agitação da república, escolheu o “estado forte”. É uma conclusão a posteriori, exactamente. Contudo, é forçoso deduzir que as alegações de Sérgio e dos seus notáveis Seareiros não tinham plano próprio alternativo. Plano alternativo seria plano de poder diverso, nunca gizado.

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Segundo paradoxo: a burguesia “adequada” corporizou o Fomento, relativo ao quadro europeu da época, sacrificando as condições de vida do campesinato e do operariado. O Fomento trouxe as condições materiais de sobrevivência popular ao nível do pauperismo absoluto. Bem longe da ideia de um progresso material das classes populares. Terceiro paradoxo: o fortíssimo fluxo emigratório fez colidir a Fixação do investimento com o Transporte do povo. Talvez fosse a subversão do conceito, mas era a dura realidade. Pensou-se que o desenvolvimento da produção interna limitaria a sangria populacional do país que era uma constante histórica. Tal não aconteceu, mantendo-se forte emigração para os mares do Sul e, inesperadamente, para a Europa nos anos de sessenta. António Sérgio reflectia as cicatrizes pátrias quando escrevia a propósito dessa matriz nacional: “a exportação do gado humano” (Sérgio, 1915: 50). Quarto paradoxo: a industrialização realizou-se sem reforma agrária, a menina dos olhos dos Seareiros. Sérgio tinha apoiado com entusiasmo o projecto de lei da Reforma Agrária de Ezequiel de Campos, em 1925. Essa lei, tributária de um “Projecto de Lei do Fomento


apesar da máquina repressiva fascista – do corporativismo e da PIDE, anti-sindical, imposta aos trabalhadores da indústria, redundando numa compressão brutal dos salários – o sector industrialista do regime só triunfou após 1945. Só no final dos anos 50 o país teve o seu rendimento interno maioritariamente oriundo do sector secundário

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Rural”, de 1887, da autoria de Oliveira Martins, a que se fez já referência, não foi adiante. Mas, naturalmente, despertou o ódio dos agrários que, com a implantação da Ditadura no ano seguinte, impediram qualquer aplicação dessa intenção distributiva e produtiva. Essa ânsia pela divisão dos latifúndios ficou bem marcada quando António Sérgio dedica o seu ensaio emblemático “As Duas Políticas Nacionais” aos “companheiros da Seara Nova e a Ezequiel de Campos”. O mesmo Ezequiel de Campos que, nessa sopa de Sidónio, viria a ser ministro do Estado Novo. Estes paradoxos só enunciam os limites políticos das perspectivas centradas apenas na Política de Fixação. Mas isso devia-se a uma ideia estratégica demasiado nacionalista e pouca atenta à evolução internacional. Os enredos do atraso interno inviabilizaram que Portugal tomasse qualquer linha da frente do industrialismo europeu, que progredia aceleradamente, apesar das guerras. Ferreira Dias e seus prosélitos deram então o rosto da indústria ao debate estratégico interno à burguesia instalada no fascismo, combatendo os sectores agraristas e a banca comercial. Isto, sob a administração da ditadura e o esteio conservador e militarista do Estado. Praticamente, sob a arbitragem do Ditador. Ferreira Dias encabeçou a “Junta de Electrificação Nacional” nos anos 30. O papel de combate que aí desempenhou pelo progresso da indústria e os seus escritos, em especial com o livro “Linha de Rumo” de 1945, guindam-no à designação comum de “pai da indústria”. O engenheiro assumiu o expoente dos industrialistas. “Lídimos continuadores de um autoritarismo modernizante que radica no pensamento de Oliveira Martins,

os industrialistas viam no Estado forte e esclarecido as condições pioneiras do desenvolvimento económico do país” (Rosas, ibid.: 43). Daí que se deva sublinhar que apesar da máquina repressiva fascista – do corporativismo e da PIDE, antisindical, imposta aos trabalhadores da indústria, redundando numa compressão brutal dos salários – o sector industrialista do regime só triunfou após 1945. Só no final dos anos 50 o país teve o seu rendimento interno maioritariamente oriundo do sector secundário e só nos anos 60 se começou a reduzir o peso da agricultura para níveis europeus. Os industrialistas perceberam, ainda assim, os limites da possível industrialização, no confronto com o mercado externo. Nos anos 60, verificou-se a entrada acentuada de capital estrangeiro na indústria da metrópole e na exploração de matérias-primas nas colónias. Estes factos pressionaram o regime à negociação da EFTA, zona de comércio mais liberal e ancorada na Europa. A ideia de Europa como alternativa a África desponta aí. 4. Cunhal e a reciclagem do Fomento Quando, já em 1964, Álvaro Cunhal formula a proposta de “revolução democrática e nacional”, tinha em vista uma aliança anti-monopolista, abrangendo, para além dos trabalhadores, o campesinato, a pequena e média burguesia do comércio e da indústria. A Revolução não visava apenas substituir a ditadura fascista pela democracia. Iria mais além. O Estado, sob coligação de forças progressistas, tomaria conta dos grupos económicos industriais e financeiros e expropriaria o capital estrangeiro.

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Percebe-se hoje que essa seria a última hipótese do projecto de Fomento, daquilo que se convencionou chamar o “projecto nacional desenvolvimentista”, do desenvolvimento da indústria, da reforma agrária, da substituição de importações, já sem colónias, nem o sorvedouro da guerra colonial, em vidas e orçamento. Um Estado auto-suficiente, com a revolução industrial clássica completa. Da mina à máquina complexa. Curiosamente, mesmo que se tome apenas o enunciado, era o desfazer da utopia equívoca de Sérgio e a chamada do proletariado à primeira linha da ideologia do Fomento. Apontando para uma etapa de democracia progressiva, prévia a um esperado e ulterior regime socialista, cuja transição era indefinida e indefinível. Até porque «a liquidação do poder dos monopólios terá de ser acompanhada por uma política de rápido desenvolvimento industrial, onde a direcção superior do Estado não só não exclua como anime a iniciativa das empresas privadas» (Cunhal, 1964: 37). Parcialmente, a perspectiva política foi realizada em 1974/1975, embora por escasso período. A reforma agrária não foi completa e ficou localizada no Alentejo; o capital estrangeiro ficou intocado, mas, êxito maior, o sector nacionalizado pela revolução de Abril liquidou o capital privado dos grandes grupos. Mas a revolução falhou na estratégia: os trabalhadores não asseguraram a direcção e as classes intermédias viraram-se contra o PREC (“Processo Revolucionário em Curso”), sobretudo aquelas de quem se esperava serem a “gema do bolo” anti-monopolista. A pressão político-militar das potências EUA, Alemanha e outras, escreveu a derrota de um poder progressista muito frágil.


Assinale-se que desde o pós segunda Guerra Mundial que os textos de Cunhal, documentos partidários ou pessoais, acentuam bastante a questão do progresso nacional, do desenvolvimento acelerado dos recursos próprios do território. Cunhal fê-lo a propósito do estudo da “Questão Agrária”, também no relatório ao II Congresso (ilegal), em Julho de 1946, e noutros artigos. O que terá sequência desenvolvida no “Rumo à Vitória”, de 1964. Esse foco no desenvolvimento não se alimentava apenas do imperativo marxista do crescimento da produção para aproximar uma sociedade abundante, cavando o antagonismo máximo com a burguesia que se apodera do excedente. Essa insistência bebia muito na inconformação pelo declínio e na avaliação, fundamentada, diga-se, de que a classe dirigente traía o progresso nacional. A refutação da ideia de Portugal como um país pobre por natureza e a defesa da exploração dos recursos pelas obras de infra-estruturas e pela indústria pesada aproximam objectivamente o dirigente comunista dos “industrialistas”. Ferreira Dias nunca pensara que a classe operária poderia cumprir o programa dos engenheiros. Como escreveria Cunhal, directo ao alvo: “O conveniente aproveitamento das riquezas nacionais, a industrialização, a modernização da agricultura, a libertação dos encargos parasitários do Estado, são condições para se produzir o necessário para o bem-estar do povo e a independência do país. Essa obra não pode porém ser realizada na actual ordem económica e política. E não pode sê-la porque, se Portugal se encontra no último lugar da escala europeia, próximo apenas

A privatização das empresas nacionalizadas na revolução de Abril, iniciada com o cavaquismo e continuadas no guterrismo e seguintes governos, restabelece os grandes grupos económicos. Com algumas novidades, esse restabelecimento é também o regresso das dinastias imperantes sob o fascismo.

da Espanha fascista e da Grécia reaccionária, mas a grande distância dos restantes países, se Portugal tem uma indústria incipiente e uma agricultura indigna do nosso século, isso não se deve à pobreza irremediável dos recursos naturais, mas ao facto de que Portugal é dominado por um pequeno número de grupos monopolistas e latifundiários que em benefício próprio sacrificam os interesses do povo e do país.” (Cunhal, 1964: 19) À alvorada de Abril correspondeu um compasso crepuscular depois da crise revolucionária: ainda assim, mais de uma década de “normalização”. 5. Finados pela decadência A privatização das empresas nacionalizadas na revolução de Abril, iniciada com o cavaquismo (1985 a 1995), e continuadas no guterrismo (1995-2002) e seguintes governos, restabelece os grandes grupos económicos. Com algumas novidades, esse restabelecimento é também o regresso das dinastias imperantes sob o fascismo, como temos vindo a demonstrar ao longo deste livro. E esses grupos, no quadro do mercado europeu e do sub-

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mercado atlântico, rapidamente liquidaram a indústria pesada nacional, aceleraram uma “desindustrialização” de tudo o que não fossem unidades ligeiras de consumo, montagens e fábricas ligadas a serviços. Esse cenário já tinha sido antecipado, logo em 1977, por Francisco Pereira de Moura: “O regime anterior (Estado Novo) procurava responder a este desafio da integração europeia pelo fortalecimento, rápido e por todos os processos e com as maiores ajudas oficiais, dos grandes grupos – a ver se surgia, a tempo, uma estrutura portuguesa que aguentasse o embate internacional. Ora para os trabalhadores portugueses teria agora interesse a rápida consolidação dessas grandes empresas nacionalizadas (…); a finar-se, ressurgirá ou em mãos de estrangeiros, ou reconstruindo-se como grandes grupos económicos portugueses – e então reaparecerá a tendência para a sucção que existiu até 1974.” (Moura, 1977: 46) As “privatizações” terminaram brutalmente o ciclo do “desenvolvimentismo” nacional. A grande burguesia


É justificada a interrogação sobre a crónica mediocridade da elite económica e o seu ciclo de finados, vendendo a propriedade ao capital estrangeiro. Ou de súbita aportação a Angola, sem retorno de capitais lusos, residentes em paraísos fiscais.

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acabou por fazer uma nova síntese entre a Fixação e o Transporte, claramente dimensionada pelo Transporte. Aqui filia-se a finança e a distribuição, o turismo, o entreposto europeu, a emigração, os serviços. O país foi apresentado como modelo de serviços, superando a etapa comercial, agrícola e industrial. A integração europeia desterritorializou o espaço nacional, mercado periférico da eurolândia. Esse “modelo” de serviços depreciou o factor trabalho, fez regredir o quadro das profissões especializadas, manuais e intelectuais. Longe de ser uma etapa mais avançada, diminui os ganhos de produtividade no quadro do comércio externo. A estrutura económica fornece reduzidos serviços de gama de valor elevado, sobretudo que conduzam a incorporação acelerada de ciência e técnica. Não são por isso de estranhar as lamentações gerais sobre a estagnação portuguesa, que quase constituem já um novo género documental. Os avanços educativos do regime democrático trouxeram uma maior literacia do povo. Contudo, corresponde-lhe a maior indiferenciação de perfil de trabalho. Como todo o debate de Sérgio parece aqui deslocado, e no entanto ainda vizinho deste ciclo histórico. Os equívocos de Sérgio foram, em grande medida, também os equívocos das gerações que fizeram a transição do regime colonialista fascista para a democracia. Não havia capitalistas em Portugal para o país saltar no trampolim mundial para a linha da frente das economias modernas. E face à integração dos mercados e às escalas requeridas pelas novas tecnologias, mesmo que tivesse sido conduzido pelo proletariado e pela Constituição socializante, deixara de ser possível a um pequeno país ter a produção de A a Z da indústria pesada e ligeira.

Nem mesmo estas gerações esperavam as mudanças da globalização financeira e económica na dimensão actual, tampouco julgavam ser possível que uma potência como a China desafiasse a liderança económica mundial. Faz-se ainda, hoje por hoje, o luto de uma burguesia que não logrou ser potência na divisão internacional do trabalho. Curam-se ainda as saudades do proletariado e seus aliados sociais que não tiveram tempo, nem condições políticas, para ensaiar uma via autónoma. Tivemos a modernização, sem evolução, do capitalismo dependente e rentista, tão ao século XIX. O adeus à grande indústria, o adeus à potência perdida, foi também o adeus à carpida decadência de um ex-império. Outros dirão que enterrado o salazarismo, distante o nacionalismo serôdio, já longe da pressão material das colónias africanas, foi-se a “mania das grandezas”. Hoje ninguém proclama, como Sérgio, em 1926, a vontade de “irmos reatar sob forma nova (para além de três séculos de um viver sem alma, no Reino Cadaveroso da Estupidez) – a faina augusta dos Descobridores” (Sérgio, 1926: 57). A interpretação da realidade nacional passou a interrogar-se, agora e mais, sobre a viabilidade do país. É uma versão neo-decadentista e pessimista muito ligada à questão de saber se na Europa mora Portugal, aonde e como. É justificada a interrogação sobre a crónica mediocridade da elite económica e o seu ciclo de finados, vendendo a propriedade ao capital estrangeiro. Ou de súbita aportação a Angola, sem retorno de capitais lusos, residentes em paraísos fiscais. António Sérgio costumava citar uma frase, já exausta, de Antero: “A nossa fatalidade é a nossa história”. Estamos em condições, hoje navegantes das redes de dados, de olharmos a história como factor de liberdade.

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O atraso a vencer situa-se nas relações sociais, na ordem da propriedade concentrada. A oportunidade é o trabalho complexo, destinado aos mercados envolventes em primeiro lugar. Sem fantasmas de iberismos ou de europeísmos. Sem preconceito acerca do socialismo ou da democracia parlamentar. Espaços largos, onde pode funcionar a conquista dessa geminação política. A necessária e futura produção industrial local tende a centrar-se nas vantagens comparativas da oferta. No caso português, a intuição é que seja o mar, a referência, não a exclusividade. Ironia das ironias, poderá ser a política da Fixação no mar, no mesmo mar que sempre lhe foi adverso. O mar é recurso de indústria, energia, ciência e tecnologia. O mar territorial ocupa uma área considerável, fazendo dele o espaço económico saliente. Sérgio não lhe chamaria a “última colónia” mas a conquista de “novo solo” a trabalhar. Hoje não temos de escolher a burguesia adequada. Só podemos escolher a propriedade social, a maioria dos interesses organizados democraticamente. A mini-propriedade, a média iniciativa individual, não perturbam, antes desenvolvem o primado do que é comum. Sérgio talvez lhe chamasse utopia. Mas não vamos perder mais um século. Já gastámos todas as estirpes de domínio. Os cobardes alti-falantes da imutabilidade da geopolítica não se cansam de ver que a geopolítica se rompe onde se cumpre a intencionalidade popular. E é essa soberania que é constituinte das transições históricas: isto também pertence a uma política da Fixação.


cidades invisíveis

“Cultura maioritária, cultura cigana e cidadania: um triângulo (im) possível?

Maria José Casa-Nova

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“Cultura maioritária, cultura cigana e cidadania: um triângulo (im)possível? Maria José Casa-Nova | Professora E INVESTIGADORA do Instituto de Educação da Universidade do Minho

Ao longo dos séculos de permanência das comunidades ciganas em território português, temos assistido a processos continuados de expulsão, reclusão e exclusão, alguns dos quais visíveis ainda na sociedade portuguesa actual, quer no que diz respeito à tentativa de construção de turmas escolares unicamente para crianças ciganas - exclusão-reclusão - como a comunicação social tem noticiado nos últimos anos, quer na inclusão-excludente resultante da frequência escolar sem sucesso académico, quer na recusa de acesso a contextos sócio-profissionais fora do seu campo tradicional de trabalho. Este tipo de processos, fazendo ainda parte da sociedade portuguesa actual, significa a recusa de acesso a direitos consagrados em lei (a uma cidadania outorgada, da responsabilidade do Estado), a pretexto de diferenças culturais dificilmente conciliáveis com a cultura da sociedade maioritária. O direito de acesso à educação escolar, o direito de acesso a habitação condigna, o direito de acesso ao mercado de trabalho fora das ocupações tradicionais ciganas…, são direitos frequentemente negados através de processos de contorno da Lei sem no entanto entrar em confronto com ela, não sendo por isso passíveis de acção judicial. Por essa razão, quando confrontados com situações que percepcionam como inibidoras de direitos consagrados em Lei, os ciganos portugueses argumentam com um tipo

específico de poder, simbolizado no medo que provocam na sociedade maioritária, utilizando-o como uma mais valia nas relações de força que tecem o seu quotidiano: o exercício do poder simbólico. O exercício deste tipo de poder, constituindo-se frequentemente na linguagem possível entre diferentes, nomeadamente na relação com instituições estatais, tem possibilitado o acesso a determinado tipo de direitos que, de outra forma, lhes seriam negados, não tanto (ou somente) pela existência de um ‘racismo institucional’, mas pelo desconhecimento e/ou incompreensão dos códigos culturais ciganos. O exercício da cidadania, mesmo apenas no que diz respeito a uma cidadania outorgada, tem sido dificultado a estas comunidades pelas razões acima apontadas, encontrando-se também condicionado pela necessária descodificação dos códigos linguísticos e dos códigos de leitura da realidade da sociedade maioritária. O desconhecimento e/ou incompreensão dos códigos linguísticos e de leitura do real, estão frequentemente na origem de monólogos paralelos entre cultura maioritária-cultura cigana, linhas que frequentemente apenas se interceptam para conflituar e perpetuar estereótipos negativos e cujo resultado é um auto (resultante de um hetero) fechamento das comunidades ciganas, condicionador das suas relações de sociabilidade e de processos de integração não subordinada. Fazendo parte de sistema cul-

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turais estruturalmente diferenciados, cada cultura faz uso dos argumentos dos respectivos universos culturais, frequentemente não inteligíveis pela outra cultura, mas que são produtores de sentido dentro de cada universo cultural e, por essa razão, constituem-se em argumentos legítimos face à cultura do ‘outro’. A inexistência de uma frequência escolar prolongada das comunidades ciganas, constituindo-se numa regularidade secular, tem condicionado o acesso a e o domínio dos códigos linguísticos e dos códigos de leitura do real da sociedade maioritária, possibilitadores do uso de uma argumentação intelegível e, por essa razão, aceitável, por parte da sociedade maioritária. Com efeito, a frequência escolar prolongada é percepcionada por elementos ciganos como uma forma de aquisição de conhecimentos e competências linguísticas e discursivas possibilitadores de uma defesa sustentada da sua diferença cultural e de reivindicação de direitos perante o ‘outro’ diferente e, consequentemente, do exercício de uma cidadania activa, crítica e emancipatória, apresentando-se como uma instituição cuja frequência prolongada com sucesso proporcionará diferentes oportunidades de acesso e de sucesso nas diferentes esferas do social, embora evidenciem uma dificuldade estrutural de permanência prolongada na mesma e que se manterá enquanto as condições actuais da sua construção não sofrerem pro-


cessos de reconfiguração e de mudanças significativas, nomeadamente ao nível da construção do habitus primário no que diz respeito aos processos de socialização e educação familiares e comunitária e à configuração da educação escolar. Cabe-nos perguntar se é possível a construção de uma escola pública enquanto espaço de inclusão de múltiplas diferenças, lugar de vários mundos, espaço sócioculturalmente desterritorializado de construção de diálogos entre a diferença que se perspective enquanto tal e não a diferença perspectivada pela cultura da sociedade maioritária, ignorando-se a si própria nessa diferença. Viver em conjunto contextos e processos de construção de cidadanias implica conhecer para compreender, mesmo que esse conhecimento e essa compreensão por vezes apenas nos consciencializem dos nossos limites de aceitabilidade da diferença na quotidianeidade dos nossos universos relacionais. O conhecimento e compreensão da (in)comensurabilidade das diferenças, constitui-se em ponto de partida para a construção de diálogos entre diferentes, condição fundamental a um exercício de uma cidadania nas suas múltiplas dimensões: civil, política, social e étnico-cultural. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA DIFERENÇA Viver juntos e partilhar os mesmos espaços de trabalho, de educação escolar e de sociabilidade, implica uma aceitação do ‘Outro’. Aceitar o ‘Outro’ implica conhecêlo e procurar compreendê-lo à luz do seu sistema classificador e ordenador do mundo. A cultura do grupo de pertença, incorporada nos processos de socialização primária, no grupo familiar e

O “racismo diferencialista” constitui a forma mais acabada de racismo de que os cidadãos e cidadãs ciganos são alvo na sociedade portuguesa, ao contrário dos oriundos dos PALOP, sobre os quais continua a ser visível na sociedade portuguesa práticas incompatíveis com os direitos de cidadania

na comunidade, constitui-se numa dimensão fundamental da (in)inteligibilidade dessa diferença. Com efeito, a cultura, enquanto elemento unificador do grupo pela inteligibilidade da produção discursiva com origem num mesmo sistema classificador, é, ao mesmo tempo, um elemento de diferenciação face a outro grupo sociocultural, a outro sistema classificador de representação e percepção do mundo. Sendo ao mesmo tempo um elemento unificador (para dentro) e diferenciador (para fora), a cultura constitui-se actualmente no elemento mais marcante na relação entre diferentes. E se a ‘cultura de superfície’ (a música, a gastronomia, o vestuário) é um elemento identificador e diferenciador face ao ‘Outro’, é no entanto a ‘cultura profunda’ (o sistema de valores, as regras de conduta, os sistemas classificadores e ordenadores do mundo), que origina critérios de classificação e lógicas de distinção e se constitui na diferença que ‘incomoda’ ou na diferença que se ‘aceita’, o que significa que, mesmo quando o aspecto exterior não é denunciador de uma diferença, é a cultura profunda que se constitui nesse elemento diferenciadordenunciador na base do qual se constrói o que Wieviorka (1995[1992]) designou de “racismo diferencialista”

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que, olhando o ‘Outro’ como culturalmente diferente, o segrega na sua diferença, afastando-o dos espaços privados e públicos de sociabilidade. O “racismo diferencialista” constitui a forma mais acabada de racismo de que os cidadãos e cidadãs ciganos são alvo na sociedade portuguesa, ao contrário dos cidadãos e cidadãs oriundos dos PALOP, sobre os quais continua a ser visível na sociedade portuguesa práticas incompatíveis com os direitos de cidadania, expressas em comportamentos de cariz racista, evidenciados de forma mais ou menos subtil. Este último racismo é normalmente um tipo de racismo que Wieviorka (Ibid.) designou de racismo desigualitário, de origem biológica, que se baseia e sustenta nas características fenotípicas (cor da pele ou outra) dos grupos racizados e é tanto mais evidente e frequente quanto as características físicas desse ‘Outro’ se apresentarem como mais distintas do grupo cultural maioritário, como foi evidenciado por um estudo realizado a nível nacional por Fernando Luís Machado (2001) com imigrantes guineenses. Como referem Castaño, Torrico y Martínez (1999:136), este é o tipo de racismo onde “as desigualdades socio-políticas ou as explorações económicas são


qualquer diferença só existe em relação e por comparação e a regularidade consiste em comparar por relação a uma norma em que tudo o que foge a essa norma passa a ser classificado como anormal no sentido negativo e não como algo que difere do que acontece com regularidade. E é aqui que reside o problema: nesta anormalidade entendida não como o que difere da norma mas como o que fere a norma. VÍRUS SETEMBRO/OUTUBRO 2010

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explicadas [e portanto, legitimadas] a partir de supostos biologicistas que justificam umas e outras.” Ainda de acordo com os autores (Ibid.:142) “tanto uma como outra forma de racismo revestem roupagens (biológicas ou culturais) debaixo das quais se esconde a intenção de legitimar uma ordem social do mundo, uma tentativa de organizar a diversidade humana em termos de desigualdade e diferença”, negando na prática direitos de cidadania, ainda que apenas de uma cidadania outorgada, da responsabilidade do Estado. Vive-se em Portugal (como em outros países) uma igualdade perante a Lei e práticas onde a diferença, de ordem fenotípica ou cultural, é hierarquizada, dando origem a vivências cidadãs hierarquizadas e, portanto, subordinadas, seja pela discriminação na convivência tendo por base as diferenças biológicas racismo desigualitário, seja pela segregação do culturalmente diferente (racismo diferencialista ou neo-racismo). E se a igualdade perante a lei significa a universalização dos direitos, tratar as pessoas com igualdade significa ter em atenção a sua diferença e as especificidades que daqui possam derivar. E este processo implica o conhecimento do ‘Outro’, mas um conhecimento para compreender e não um conhecimento para dominar ou para inferiorizar. A diferença, qualquer diferença, só existe em relação e por comparação e a regularidade consiste em comparar por relação a uma norma em que tudo o que foge a essa norma passa a ser classificado como anormal no sentido negativo e não como algo que difere do que acontece com regularidade. E é aqui que reside o problema: nesta anormalidade entendida não como o que difere da norma mas como o que fere a norma. E a norma, entendida como universal, o padrão de

referência, é a cultura ocidental e os valores subjacentes a esta cultura. Quando o grupo socio-cultural maioritário se defronta com o diferente, defronta-se com todo o seu sistema classificador, ordenando a diferença a partir daí. Procura-se ‘ler’ os sistemas classificadores do Outro à luz dos sistemas classificadores próprios, mas considerando-os melhores, falhando assim no seu conhecimento e na sua compreensão e tentando a partir daqui ‘domesticar a diferença’ ou exclui-la dos espaços de sociabilidade, mesmo quando estes espaços de sociabilidade são espaços de frequência pública. E excluí-los não significa expulsá-los desses espaços ou verbalizar estranheza ou repúdio, mas significa o desenvolvimento no outro de uma sensação de incomodidade na própria diferença, frequentemente através da linguagem corporal, do olhar de estranheza-censura e não de estranheza-admiração ou de estranheza-curiosidade, impondo com esse olhar os padrões de estética próprios, sejam estes de ordem física (expressos em padrões de beleza) ou de ordem olfactiva ou de outra ordem qualquer, transformando assim espaços públicos em espaços privados, apropriáveis apenas por determinados grupos socio-culturais. Como refere Montenegro (2007:32) “há que zelar pelos espaços públicos naquilo que eles têm de verdadeiramente democrático, porque são de TODOS”. Todas as culturas constroem categorias para conhecer, classificar e pensar o ‘Outro’. Não é aqui que reside o problema. O problema reside na construção de categorias para inferiorizar esse Outro. Quando o Outro interioriza a norma que o inferioriza, acaba por se percepcionar como inferior, o que leva a que viva efectivamente como insulto o que o ‘Outro’, que se pensa como superior, usa como forma de o inferiorizar.

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Enfrentar este ‘Outro’ que o inferioriza pode passar por estratégias de evitamento e/ou de submissão ou estratégias de fechamento sobre si próprio e de altivez e/ ou arrogância no contacto que são também formas de esconder a percepção da sua inferiorização, como é o caso dos ciganos com quem trabalhei, onde as estratégias activas de manutenção dos valores culturais inerentes à Lei Cigana se tornam significativas e fundamentais para inverter a lógica de dominação e as categorias mentais construídas para pensar essa dominação, proporcionando uma ilusão de superioridade, mas que em contexto lhes permite inferiorizar o ‘Outro’ maioritário. Se a diferença é indissociável ao ser humano, os esquemas e os critérios mentais construídos para pensar e operacionalizar essa diferença, baseados em estruturas históricas de dominação, contribuem para a naturalização e continuidade da dominação, “eternizando o arbitrário” (Bourdieu, 1998) que encontra a sua força nos processos de conhecimento e reconhecimento (Ibid.) que estão na base da “violência simbólica”, onde os ciganos, embora não possuindo formas de desconstrução dessa violência, constroem práticas pontuais de inversão das lógicas de dominação, constituídas em processos de desnaturalização não consciencializada dessas mesmas lógicas, construindo o seu ‘lugar’ dentro de cada sociedade: um lugar marginal mas não de marginalidade; um lugar estruturalmente subalterno, mas não de subalternidade contextual; um lugar de confronto na diferença construída também nesse confronto (Barth, 1969) e que nega a mesmidade com o ‘Outro’ pertencente ao grupo socio-cultural maioritário, mantendo assim a baixa permeabilidade à assimilação cultural que lhes tem permitido continuar como grupo cultural diferenciado.


O contacto entre diferentes, mesmo entre diferentes que partilham o mesmo código cultural, o mesmo sistema classificador, é frequentemente gerador de interpretações, de leituras que não correspondem à mensagem que o ‘Outro’ pretende transmitir. Quando os sistemas classificadores e ordenadores do mundo são diferentes e frequentemente hierarquizantes, a probabilidade de errar nessa leitura, de efectuar uma leitura em ‘contramão’, é significativamente maior, contribuindo para confirmar estereótipos e percepções que constroem a diferença do ‘Outro como incomensurável e inconciliável. A construção de centralidades periféricas, de periferialidades centralizadas ou de múltiplas centralidades nem sempre centrais, nem sempre periféricas, em torno da diferença depende do jogo das relações de poder tecidas no quotidiano que, embora estruturalmente condicionadas, são marcadas também pela agencialidade dos sujeitos (uma agência com consciência), capaz de inverter lógicas de dominação/subordinação. Se a diferença não é uma escolha, viver na diferença e entre diferentes, interagindo com o “Outro”, trazendo-o para dentro dos nossos quotidianos de vida, é uma escolha, construída de reciprocidades e de enriquecimentos, de (des) entendimentos, de construção de múltiplas normas, normais mas não normativas na medida em que a normatividade se torna hegemónica e, por isso mesmo, frequentemente castradora e claustrofóbica. Um dos desafios actuais consiste em pensar a diferença, qualquer diferença, a partir da própria diferença sem que isso implique uma inferiorização ou uma dominação do ‘Outro’. Esta é uma das utopias que falta concretizar para que cada sociedade, em cada momento socio-histórico,

se construa moralmente da forma mais abrangente possível, perspectivando o ‘Outro’ como um elemento cujo lugar de pertença possa ser (também) aquele que, de forma livre ou constrangida, se tornou o seu lugar de (con)vivências.

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nota: Publicado no livro Etnografia e Produçao de Conhecimento – Reflexões Críticas a partir de uma investigaçâo Com Ciganos Portugueses , Lisboa, ACIDI, 2010


O futebol como forma do político

Patrick Vassort

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[22] CONTRATEMPOS


O futebol como forma do político

Patrick Vassort | Professor de ciências e técnicas das actividades físicas e desportivas da Universidade de Caen

A organização da Taça do Mundo na África do Sul serve de ocasião para desenvolver fantasmas múltiplos sobre a força democrática da instituição futebolística. Principal manifestação desportiva, a Taça do Mundo de futebol seria ocasião, como há quinze anos a Taça do Mundo de râguebi (1995), para oferecer a imagem duma possível reconciliação do povo sul-africano em todas as suas componentes. A proposição é, apesar de tudo, invertida e são os Brancos que são convidados a regozijar-se em volta do desporto praticado pelos Negros. Por detrás desta reconciliação suposta são reiteradas as ideias mais comuns e mais adequadas sobre os benefícios potenciais duma tal organização para a economia local, para o sistema político e social, para a integração do país no seio do mercado mundial. Esta dimensão política do desporto, sustentada pelo discurso das pessoas mais influentes do país, Nelson Mandela, Desmond Tutu, Frederik de Klerk [1], é revezada através de todo o mundo pelos «media», as instituições políticas e económicas e muitas vezes doravante pelos próprios intelectuais. A situação de crise que a África do Sul conhece desde há alguns anos desaparece nas festividades preparadas que fazem calar as oposições. O futebol como necessário instrumento de governo anti-democrático, eis sem dúvida uma das hipóteses mais predominantes destes últimos anos.

A força do discurso As reiterações discursivas têm, tanto no meio político como no do desporto, força de prova. Assim é cada verso, respeitante à prática desportiva, na postura mais vulgar, afirmação dum por assim dizer desejo colectivo geral e unânime. O último exemplo deste estado de facto, e que pode servir de analista do sistema, é constituído pela escolha do país que organizará o Campeonato da Europa das nações de futebol 2016. Para esta ocasião, 28 de maio de 2010, Nicolas Sarkozy, perante o comité de selecção da UEFA (Union of European Football Associations), argumentou e favor da candidatura francesa à organização deste Campeonato. Esta nomeação parece, como recordou o próprio Sarkozy, ter sido objecto de um estudo estratégico em função de meios e fins visados, económicos, políticos e ideológicos. Assim, declara: «Nós em França pensamos que o desporto é uma resposta à crise. É precisamente porque há uma crise, porque há problemas, que é preciso mobilizar todo o país para a organização de grandes eventos», declarou «e que há de mais forte do que o desporto e, dentro do desporto o que há de mais forte que o futebol? […] É uma decisão estratégica para nós, que compromete todo o país face à crise [...]. Não é um compromisso da Federação, não é um compromisso da Liga, é um compromisso de todo um povo. Tem-se vontade de receber

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na França. [...] Não há esquerda e direita, não há norte e sul, não há leste e oeste, há um país inteiro mobilizado para o evento» [2]. Para entender o que constitui uma Taça do Mundo, como a que decorre na África do Sul, é preciso entender a postura de Sarkozy face ao desporto, particularmente ao futebol. A banalidade do discurso é igualada apenas pela sua eficácia política e sem dúvida pela sua perigosidade. Quando Sarkozy declara: «Nós em França pensamos que o desporto é uma resposta à crise. É precisamente porque há uma crise, porque há problemas, que é preciso mobilizar todo o país para a organização de grandes eventos», percebemos a necessidade de criar uma identidade baseada num desejo colectivo de transformação da sociedade para responder às dificuldades que a crise económica e política faz emergir, especialmente entre as populações mais vulneráveis. Mas é sem dúvida necessário, para interpretar este discurso, mergulhar no contexto político francês e na estrutura das respostas à crise trazidas por Nicolas Sarkozy e pelo governo de François Fillon. O que devemos entender por «é precisamente porque há uma crise, porque há problemas, que é preciso mobilizar todo o país para a organização de grandes evento»? Sem dúvida, teremos de admitir que o país, entrado em recessão, vai conhecer um período de austeridade económica e orça-


mental susceptível de atacar uma parte não negligenciável da população. Não é este o sentido das decisões tomadas no âmbito da LOLF (lei orgânica das leis financeiras) e da RGPP (revisão geral das políticas públicas) que visam, sob o pretexto de economias orçamentais, a destruição dos serviços públicos de educação, saúde, transportes, energias, gestão da água? O mesmo vale a respeito do debate sobre a idade da reforma e o número de anuidades de contribuição. Neste contexto, nesta dimensão política, os «grandes eventos» são os eventos desportivos evocados por Guy Debord, que escrevia que «o espectáculo não é uma colecção de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens» [3]. Existe, portanto, através dos acontecimentos, da sua espectacularização, não só imagens que estariam fora da vida, mas um processo, «uma relação social» que as imagens permitem dar a conhecer e desenvolver. A acumulação de imagens/espectáculo concorre para o afastamento do vivido pela reiteração permanente da situação espectacular o que faz com que doravante, «toda a vida das sociedades em que reinam as condições modernas de produção se anuncie como uma imensa acumulação de espectáculos» [4]. O espectáculo produz portanto sociedade ao mesmo tempo que é uma parte dela e, como assinala Guy Debord, participando nela, instrumentalmente, na sua unificação. Mas, «enquanto parte da sociedade, é expressamente o sector que concentra todos os olhares e todas as consciências. Pelo facto mesmo de que este sector está separado, é o lugar do olhar abusado e da falsa consciência»[5]. Do olhar abusado à falsa consciência [6], o espectáculo dissimula a essência societária por trás de imagens que se substituem à realidade quotidia-

na do homem moderno e ao fundamento do processo capitalista de produção. Este homem torna-se então o objecto passivo do quotidiano porque «o espectáculo se apresenta como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Não diz nada mais do que ‘o que aparece é bom e, o que é bom aparece’. A atitude que exige por princípio é esta aceitação passiva que de facto já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência» [7]. Esta passividade é o instrumento indispensável para a elaboração dum olhar abusado, da falsa consciência e da falsa identidade. O desvio da realidade só é possível na passividade aceite face ao espectáculo. É enquanto entretenimento, portanto desvio, que os «grandes eventos» desportivos, particularmente o futebol, participando na sociedade do espectáculo, acontecem como instrumentos de elaboração ideológica, activa e passiva. Nesse sentido, a sociedade do espectáculo e a ideologia do entretenimento não repousam no modelo da peça de teatro – ainda que seguindo as teorias de Siegfried Kracauer, de Walter Benjamin, de Max Horkheimer e de Theodor W. Adorno, temos uma ideia mais clara de que se podem tornar a arte e cultura na era da reprodução industrial - mas na mercadorização da vida na sua globalidade. O poder ideológico do espectáculo é tal que Nicolas Sarkozy evoca antes do mais o apoio de «todo um povo», acelerando a mercadorização ideológica das populações e depois afirma, com razão, que o país, em tais ocasiões, já não conhece direitas nem esquerdas o que, para o pessoal político parece confirmado pelas declarações do presidente de câmara socialista de Paris, Bertrand Delanoë. Este último, depois de todos os eleitos do UMP, espera que este evento seja «de convivialidade, de festa,

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emoções e valores partilhados» [8], enquanto Martine Aubry entende que esta designação é «uma honra» [9]. É repousando nestas bases que o país se prepara para utilizar orçamentos públicos para a renovação ou construção de estádios. 1,7 milhares de milhões de Euros parecem ser necessários para esta operação, mas a história mostra que essas estimativas são frequentemente subavaliadas [10]. É provável que as despesas totais subam mais do que o razoável (3, 4 milhares de milhões ou mais). Nicolas Sarkozy teria isso em mente quando emparceirava com os antigos jogadores de futebol, Zidane, Karembeu ou Djorkaeff ? Arnaud Lagardère, amigo do presidente, filho de Jean-Luc e presidente do grupo Lagardère, não o esqueceu ao declarar a 1 de Junho que a organização do Campeonato Europeu das Nações «cai realmente bem» nos seus negócios [11]. O mercado desportivo é avaliado hoje em dia em mais de 100 milhares de milhões de dólares, é, como observou Lagardère, «um dos raros mercados em crescimento». Não se trata mais, portanto, para os homens de negócios de agir como mecenas mas de fazer do desporto um dos ramos mais activos, proporcionalmente um dos mais rentáveis na economia global. O futebol, especialmente a Taça do Mundo, possui uma dimensão política de despolitização das massas e permite uma apropriação pelo capital de todas as áreas económicas, geográficas e sociais. Parece portanto lógico que as instituições políticas envolvidas no desenvolvimento capitalista participem no desenvolvimento futebolístico. Nesse aspecto o discurso sobre o desporto participa das estratégias de dominação. A exploração africana A organização da Taça do Mundo 2010 na África


do Sul não é portanto fruto do acaso. País rico que tem uma população pobre, representa o ideal de exploração do homem pelo homem para a apropriação dos recursos naturais. O mito da nação «arco-íris», sociedade democrática pós-apartheid saiu pela culatra e, agora, a sociedade sul-Africana reproduz, num contexto diferente do do apartheid, os «crimes bárbaros, a flagelo das violações, dos roubos e fraudes, o enriquecimento indecente dum pequeno número, a reconversão como forma de impunidade, as funções oficiais como exercício de recuperação, o colapso dos serviços indispensáveis, o reforço e a continuidade do racismo, a ausência de moral pública e mesmo de senso comum» [12]. Se a situação política e económica não é suficiente para permitir ao país encontrar uma nova via, a instituição desportiva está lá ainda para fazer acreditar no surgimento de uma sociedade nova, mais justa e mais aberta. Era o caso da Taça do Mundo de Râguebi em 1995 que se disputou na África do Sul. Sobre a Taça do Mundo de futebol de 2010 repousam os mesmos discursos e as mesmas estratégias de desenvolvimento económico, político e social e da eterna reconciliação dos povos sul-Africanos. No entanto não nenhum desses «sectores» beneficiará dum efeito Taça do Mundo. Que África pode beneficiar com uma tal organização? Aquela cuja pobreza explodiu no decurso das últimas décadas? Aquela cuja terça parte dos habitantes vive com menos de meio dólar por dia? Aquela que vê multiplicarem-se as guerras civis? A dos filhos dos ditadores e assassinos Mobutu, Taylor, Idi Amin, Mugabe ou Bokassa? A devastada pelas fomes, como a de 2002 que no Malawi, na Zâmbia, no norte da África do Sul, no Botswana, no Lesotho, em partes do Zimbabué e de Angola ameaçava mais de 14 milhões

A Taça do Mundo de futebol realiza-se entre as espingardas da polícia, do exército, das milícias privadas e do arame farpado das áreas protegidas, inacessíveis à maioria da população. A segregação social que substituiu a segregação racial participa do desenvolvimento de toda a criminalidade.

de crianças, homens e mulheres de «morte imediata» [13]? A da SIDA? De que Taça do Mundo se trata? A da violência, da pobreza, da xenofobia e das violações? A das grandes empresas ocidentais, do capitalismo triunfante? A Taça do Mundo de futebol realiza-se entre as espingardas da polícia, do exército, das milícias privadas e do arame farpado das áreas protegidas, inacessíveis à maioria da população. A segregação social que substituiu a segregação racial participa do desenvolvimento de toda a criminalidade. A cidade de Joanesburgo - uma das «capitais mundiais do crime» [14] distingue-se particularmente pelas suas disparidades económicas e sociais e pelas atrocidades que aí ocorrem. «O célebre bairro de Hillbrow perto do centro de Joanesburgo, um dos poucos bairros que depois de ter sido totalmente branco até o início dos anos 1980, se tornou inteiramente negro hoje em dia. Junta durante cerca dum quilómetro quadrado quase todos os males da sociedade urbana: pobreza, promiscuidade, tráfico de droga, prostituição, corrupção, crime a que se juntou a pandemia da SIDA» [15]. Esta «violência» restringe as liberdades de movimentações, o desenvolvimento económico local e o dos

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laços sociais harmoniosos e equilibrados. «Todos os dias registamos mais de 300 assassinatos ou agressões violentas no país. Segundo a muito séria revista alemã Der Spiegel, contam-se cada ano na África do Sul, 18 500 assassinatos, 20 500 tentativas de assassinato, 55 000 violações, 227 000 assaltos violentos e pelo menos 5000 raptos» [16]. Philippe Gervais-Lambony nota que, com um leque de 20 000 a 25 000 assassinatos por ano, isso corresponde a uma taxa 25% mais alta do que a dos Estados-Unidos [17]. Da mesma forma, o autor faz notar que existem no país quatro milhões de licenças de porte de arma e talvez mais de um milhão de armas de fogo ilegais, o que representa oito vezes mais armas do que o exército e a polícia reunidos possuem. Mas por trás dessas violências criminais esconde-se o desânimo duma população que vê crescer as desigualdades e que, por vezes, produz ela mesma estas violência colectivas e políticas. Assim, em 2008 e 2009, declararam-se motins, com grupos de homens a decidir limpeza étnica em bairros deserdados e fazendo dos estrangeiros os responsáveis pelo desemprego endémico. É assim que o capital organiza a divisão dos trabalhadores e das populações vulneráveis. «Milícias» armadas com lanças, facas, ar-


A Taça do Mundo, desde os primeiros dias de competição, redobra as violências recorrentes do país. Como estava previsto, os descontentamentos são esmagados. Como no caso das manifestações de stewards (que vêem o seu salário cortado a metade nos dias sem jogo, enquanto que as horas de trabalho não diminuem) que degeneraram e a polícia anti-motim interveio atirando balas de borracha e gás lacrimogéneo.

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mas de fogo apresentaram-se em frente às residências de estrangeiros. A situação destes últimos é contudo duma precariedade absoluta, no entanto, os habitantes ocasionais foram mesmo assim pilhados por estas milícias auto-proclamadas, portas foram metidas dentro, barracas feitas de chapas metálicas, de caixas de madeira e plástico destruídas e os seus habitantes lançados à rua, se não foram mortos [18]. Nesse ambiente, a Taça do Mundo é uma oportunidade, como em todas as organização desportiva de nível mundial para aumentar a ordem policial e a militarização do espaço para que «os criminosos não tentem aproveitar-se do evento, 40 mil polícias foram recrutados: no total 190 000 homens de azul estarão presentes, sem contar com os guardas privados de segurança. O director da polícia, Bheki Cele, prometeu [...] que ‘não estará aos criminosos senão um espaço muito, muito pequeno, e nós vamos cortar o oxigénio nesse espaço’. As despesas com segurança atingirão 1,3 milhares de milhões de rands (117 milhões de euros) e os tribunais de excepção tratarão lidar de todos os casos ligados ao Mundial» [19]. Jerome Valcke, secretário geral da FIFA declarou mesmo que «o chefe da polícia [lhe] veio agradecer dizendo que nunca teria recebido tantos fundos para ter mais helicópteros, mais sistemas de protecção submarina, mais sistemas de protecção das fronteiras, mais espingardas de assalto, mais snipers[20], sem a Taça do Mundo. A África do Sul é incapaz de investir para reduzir a segregação, mas, pelo efeito do futebol, poderá investir na militarização do espaço. O que se organiza aliás numa estranha harmonia, uma vez que a cooperação internacional, que tem tanta dificuldade para pôr em prática ajudas para lutar contra as grandes pandemias,

a extrema pobreza, as fomes, ou em apagar a dívida dos países mais pobres, funciona perfeitamente quando se trata de futebol e poder de policial, já que as forças da ordem da África do Sul se formaram entre as forças policiais europeias [21]. Mesmo assim, isso não conforta nada uma vez que a violência emana frequentemente das próprias forças da ordem, como lembra a jornalista francesa, Sophie Bouillon, prémio Albert Londres 2008 que, detida em Joanesburgo na companhia dum amigo Zimbabueano, sofreu toda a violência policial. O seu amigo foi atingido a pontapé e murro, depois foram pulverizados com spray de pimenta, detidos e aprisionados. Foram submetidos a insultos racistas e ao poder quase ilimitado de guardas brancos porque serem estrangeiros e um deles vir do Zimbabué [22]. A segurança é uma das principais inquietudes, mesmo para os jornalistas ou equipas nacionais de futebol. Assim alguns jornalistas são acompanhados por guarda-costas armados [23] que deixam as armas na entrada dos campo de treino das equipas de futebol. O hotel onde permanece a equipa da França está protegido por arame farpado electrificado, e uma vez nas instalações do estabelecimento, para ver a equipa, tem ainda de se tomar de uma navetee passar por três barragens sucessivas de polícia e guardas a patrulhar em volta do terreno de futebol do hotel [24]. Isso não impede que jornalistas, dois portugueses e um espanhol, sofram uma agressão à mão armada durante o sono num hotel em Magaliesburg. A polícia pensaria a partir daí pôr em prática escoltas para os jornalistas quando a noite cai [25]. A Taça do Mundo, desde os primeiros dias de competição, redobra as violências recorrentes do país. Como

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estava previsto [26], os descontentamentos são esmagados. Como no caso das manifestações de stewards, que vêem o seu salário cortado a metade nos dias sem jogo, enquanto que as horas de trabalho não diminuem (de 26 a13 euros para dias que começam às 6 horas da manhã para acabarem à meia-noite sem solução para regressar para dormir), que degeneraram e a polícia anti-motim interveio atirando balas de borracha e gás lacrimogéneo. Vários stewardsteriam sido hospitalizados e uma mulher morrido, mesmo se a FIFA (porquê ela?) desmente esta informação [27]. Por medo do contágio das reivindicações e manifestações, a FIFA pediu que a gestão dos estádios fosse assumida pela polícia o que foi feito em quatro estádios entre os dez da competição. Por isso os trabalhadores foram despedidos, entendendo os responsáveis da FIFA que isso não lhes dizia respeito. Longe da Taça do Mundo, mas contudo tão perto, à saída de Joanesburgo, a township Diepsloot, como muitos outras, é pobre, muito pobre e conhece grande violência. Aqui não há nenhum vestígio dos milhares de milhões de dólares gastos para o evento, não há trabalho, apenas um ecrã gigante foi instalado sem que o público possa lá ir depois do anoitecer, porque «ainda nos matavam» [28]. Assassinatos por cigarros, violações, e para os polícias uma constatação: «À noite, não podemos fazer nada. Não somos em número suficiente e não vemos nada nas ruelas. De dia, as intervenções são demasiado delicadas e ainda mais perigosas» [29]. Desde há algum tempo a população organiza-se e faz reinar a justiça da populaça, a lei da multidão. Uma vítima designa um culpado e a população lincha-o na rua. O culpado ainda o será? Por isso, «à noite deve-se ter cuidado com os rapazes maus e de dia deve-se ter cuidado para não ser confundido


com um rapaz mau» [30]. A Taça do Mundo organiza portanto o espaço das violências e a ordem policial sem nunca permitir qualquer «reconciliação» que seja, excepto nas fantasias dos jornalistas desportivos que frequentam os estádios (e contudo a equipa da França em 2010 não é propriamente um modelo de reconciliação), mas não a rua sul-africana. A FIFA : um capitalismo antidemocrático A África do Sul, desde o período do apartheid, construiu a sua reputação sobre a existência dos bairros de «separação», alguns bairros são construídos como todos os bairros de lata do mundo, de «bric-à-brac», de materiais que as populações encontravam para «construir» um abrigo para si. A sua pobreza é muitas vezes o resultado da «separação» racial que perdura por causa da segregação social. Cada cidade conhece esses bairros pobres ou muito pobres. A taxa de desemprego do país estagna em cerca de 40% da população activa e, contrariamente ao que haviam anunciado líderes do Congresso Nacional Africano (ANC), não somente não há mais trabalho para os desmunidos, como de 1994 a 2007 o país perdeu um milhão e meio de empregos [31]. Desde 2007, a situação não melhorou e os motins de 2008 e 2009, que se reproduzirão talvez depois da Taça do Mundo, evento que participa da degradação social e económica do país, são o resultado dum novo empobrecimento das populações das townships que não vêem mais na política dos líderes do ANC a garantia de sair do marasmo e de todas as formas de segregação. O País que perdeu, sob o golpe da crise económica generalizada, quase 300 mil empregos entre Janeiro e Agosto de 2009

A Taça do Mundo organiza portanto o espaço das violências e a ordem policial sem nunca permitir qualquer «reconciliação» que seja, excepto nas fantasias dos jornalistas desportivos que frequentam os estádios, mas não a rua sul-africana.

viu a sua situação estranhamente ensombrar-se [32]. O Fundo Monetário Internacional (FMI), que raramente se engana neste caso, decidiu, desde há alguns anos, investir na África sub-sariana e uma nota informativa datada de Dezembro de 2000 [33] deixa claramente compreender quais eram as estratégias dessa instituição humanista. Entre as recomendações encontra-se esta última: «[...] instaurar um clima mais propício à produção e ao investimento no sector privado. Isso permitirá a esses países melhorarem a sua produtividade e a sua competitividade e melhor tirar partido da mundialização da economia» [34]. Eis o que é claro, a África é terreno de jogo para o capital mundializado. Os investimentos e a produção não se entendem, portanto, senão por causa do sector privado e os efeitos só podem ser efeitos de crescimento, nenhuma outra via é encarável pelo FMI. Neste quadro a FIFA está perfeitamente à vontade. A sua história, a sua implementação planetária demonstram que a sua própria existência está inteiramente determinada pelo desenvolvimento capitalista e pelo seu crescimento global. As inter-relações mantidas pela FIFA com as corporações transnacionais e supranacio-

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nais revelam a natureza do capitalismo e do desenvolvimento concomitante do desporto mundial: em cada área geográfica e entre cada uma delas instituíram-se intercâmbios financeiros que visam a produção e o crescimento do capital da instituição futebolística. O que só pode ser feito através da exploração recorrente de recursos e populações, com uma chantagem real e pressões permanentes. Este poder, deve-o a FIFA aos seus 207 membros e a um formidável volume de negócios. Em 1998, o volume de negócios gerado pelo futebol através do mundo era cerca de 185 milhares de milhões de Euros [35], em 2010 seria cerca de 889,5 milhares de milhões [36]. Entre 2003 e 2006, a FIFA teria sem dúvida aspirado junto dos seus parceiros quase 1384,34 milhões de Euros para despesas que se elevam a 1269,15 milhões, a diferença representando o resultado positivo de uma associação com fins não lucrativos. O que permite ao seu presidente ocupar durante a Taça do Mundo 2006 na Alemanha uma sumptuosa suite de 420 m2 por 20 000 Euros por dia. Hoje, «os vinte e quatro membros do comité executivo e os os sete vice-presidentes da FIFA são provavelmente mais bem retribuídos do que os de qualquer empresa multinacional do sector


Estas infraestruturas sobredimensionadas, tendo em conta a capacidade económica dos sul-africanos, são chamadas a ser subutilizadas e portanto a tornar-se uma carga séria para a população. A organização que, como de costume, parece ser economicamente interessante para o organizador, permitirá lucros para o sector privado e será deficitária para a economia pública.

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competitivo. O seu presidente, Sepp Blatter, cuja remuneração permanece «segredo de estado» firmaria cerca de quatro milhões de dólares por ano» [37]. A Taça do Mundo 2010 joga-se em dez estádios diferentes, dos quais alguns são construídos para a ocasião e outros renovados. O mais importante será o de Joanesburgo cuja capacidade poderá atingir 94 000 lugares e o mais pequeno acolherá 40 000 pessoas. Estas infraestruturas sobredimensionadas, tendo em conta a capacidade económica dos sul-africanos, são chamadas a ser subutilizadas e portanto a tornar-se uma carga séria para a população (15 milhões de euros por ano [38]). Até porque, como denuncia o ex-companheiro de Mandela, Dennis Brutus, «quando se constroem estádios enormes, desvia-se recursos [...] que poderiam ser usados para construir escolas ou hospitais» [39]. A organização que, como de costume, parece ser economicamente interessante para o organizador, permitirá lucros para o sector privado e será deficitária para a economia pública. O sociólogo Ashwin Desai acha que «o drama é que os fundos públicos foram pilhados durante todo um período da nossa história. As pessoas continuarão a viver em bairros de lata, os empregos não serão duráveis. É um grosseiro desvio de fundos» [40]. Mas, aparelho da falsa consciência [41] enquanto aparelho estratégico capitalista (AEC) [42], alguns podem ainda acreditar, como o prémio Nobel Desmond Tutu, que a Taça do Mundo servirá a unidade e a reconciliação [ 43]. Entretanto a FIFA, Estado-futebol, impõe a sua lei nos perímetros de que se apropria: impõe contratualmente um «acesso exclusivo aos seus parceiros comerciais que, em contrapartida, contribuíram com 1 milhar de milhão de dólares em royalties em 2010 [44] e exclui

os trabalhadores sul-africanos deste mercado potencial. Os estádios tornaram-se locais de alta vigilância económica. Assim, algumas jovens mulheres com vestidos laranja, cor da marca de cerveja holandesa Bavaria, mas também do equipamento dos Países Baixos, foram detidas durante várias horas nos escritórios da FIFA, suspeitas de fazer concorrência desleal. Duas delas devem ir a tribunal. O ornamento das massas O embrutecimento generalizado das populações constitui-as em massa, ou, como escreveu Hannah Arendt, em «populaça moderna cada vez mais numerosa - quer dizer os desclassificados de todas as camadas sociais [45] que só se reencontram na gregarização da vida que se espalha através dos estádios, de festivais alucinados (rave-parties) ou em festas do Estado (Nuits Blanches, Festa do Cinema, Festa da Música, etc...). Hoje em dia a Taça do Mundo na África do Sul faz cair algumas máscaras. A equipa da França de futebol pluriétnica e unida é apenas uma pobre fantasia. Os jogadores rasgam-se ao ritmo dos seus interesses individuais e isso lança as luzes sobre os erros conceptuais dos que tentam coser a mordedura aberta que a violência da competição institui e dos sociólogos que, numerosos, não imaginavam que a competição, por desportiva que fosse, permanecesse capitalista. A caça ao bode expiatório vítima, participa deste espectáculo, dando às feras mediáticas a substância que permite digerir tudo o resto. O espectáculo, ornamento da massa, como o designou Siegfried Kracauer, pode ainda federar de maneira gregária, mas a lucidez não pode estar ausente dos desvios políticos que este ornamento assume para gerar uma dominação cada

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vez maior em França como noutros lugares. A África do Sul acordará sem dúvida, no final da competição, com «ressaca». As despesas efectuadas, os poucos resultados financeiros terão empobrecido o país, participado no aumento das disparidades económicas, sociais e políticas. Mas, mais grave sem dúvida, em 1995 o râguebi, desporto de brancos, tinha levado o país à vitória. Se em 2010 o futebol, desporto de negros, devia ver a equipe nacional eliminada na primeira volta, então todos os velhos demónios soltar-se-ão talvez com maior virulência do que hoje, porque os boatos já estão a circular: «os sul-africanos prometeram retomar a violência contra os estrangeiros a partir do fim do Mundial» [46]. O racismo não tem cor nem pátria, mas continua a repousar numa competição real ou fantasiada.

Tradução de Paula Sequeiros artigo publicado na revista contretemps


notas [1] Ver sobre o assunto, Ronan David, Fabien Lebrun, Patrick Vassort, Footafric.Coupe du monde, capitalisme et néocolonialisme, Montreuil, Éditions L’Échapée, 2010.

[15] Richard Samin, « Populisme et xénophobie dans Welcome to Our Hillbrow de Phaswane Mpe», in Cécile Perrot, Michel Prum et Thierry Vircoulon (sous la direction de), L’Afrique du Sud à l’heure de Jacob Zuma. La fin de la nation arc-en-ciel ?, Paris, L’Harmattan, 2009, p. 132.

[32] Ibidem, p. 118. [33] Fonds monétaire international, « Accélérer la croissance et réduire la pauvreté en Afrique Subsaharienne. Le rôle do FMI », Note de synthèse, décembre 2000. A consulter sur www.imf.org. [34] Ibidem.

[2] www.lepoint.fr, 28 mai 2010.

[16] L’Express. L’hebdo des francophones do grand Toronto, 24 au 30 avril 2007.

[3] Guy Debord, La Société du spectacle, Paris, Gallimard, 1996, p. 4.

[17] Philippe Gervais-Lambony, L’Afrique du Sud, Paris, Le Cavalier Bleu, 2009, p. 94.

[4] Ibidem., p. 3.

[18] Le monde, 19 mai 2008.

[37] Jérôme Jessel et Patrick Mendelewitsch, La Face cachée du foot Business, Paris, Flammarion, 2007, p. 37.

[5] Ibid., parágrafo 3, p. 4.

[19] www.liberation.fr, 5 décembre 2009.

[38] Le monde, 10 juin 2010.

[6] Joseph Gabel, La Fausse conscience, Paris, Les Éditions de Minuit, 1962.

[20] www.lemonde.fr, 19 janvier 2010.

[39] www.lepoint.fr, 14 décembre 2009.

[21] Jeune Afrique, 31 décembre 2009.

[40] www.lepoint.fr, 14 décembre 2009.

[22] Libération, 19 janvier 2010.

[41] Joseph Gabel, La Fausse conscience. Essai sur la réification, Paris, Les Éditions de Minuit, 1962.

[7] Guy Debord, La Société do spectacle, op. cit., p. 7. [8] L’Équipe, 29 mai 2010. [9] Ibidem. [10] Patrick Vassort, Sexe, drogue et mafias. Sociologie de la violence sportive, Bellecombe-en Bauges, Le Croquant, 2010. [11] L’Équipe, 1er juin 2010. [12] Breyten Breytenbach, Le monde do milieu, Arles, Actes Sud, 2009, p. 45.

[23] L’Équipe, 9 juin 2010.

[35] Le monde, 1er juin 1998. [36] Le monde, 10 juin 2010.

[24] L’Équipe, 8 juin 2010.

[42] Ver Patrick Vassort, Épistémologie. Le cas de la sociologie du sport, Paris, L’Harmattan, 2007.

[25] L’Équipe, 11 juin 2010.

[43] www.lepoint.fr, 14 décembre 2009.

[26] Ver sobre o assunto, Ronan David, Fabien Lebrun, Patrick Vassort, Footafric. Coupe du monde, capitalisme et néocolonialisme, op. cit.

[44] Le monde, 10 juin 2010.

[27] Libération, 17 juin 2010.

[13] Jean Ziegler, L’Empire de la honte, Paris, Fayard, 2005, p. 291.

[28] Le Figaro, 11 juin 2010.

[14] Patrick Bond, «Johannesburg. De l’or et des gansters », in Mike Davis et Daniel B. Monk, Paradis infernaux. Les villes hallucinées du néo-capitalisme, Paris, Les Prairies Ordinaires, 2008, p. 168.

[30] Ibid.

[46] Libération, 14 juin 2010.

[29] Ibidem. [31] Philippe Gervais-Lambony, L’Áfrique du Sud, op. cit., p. 117.

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[45] Hannah Arendt, Les Origines du totalitarisme. Eichmann à Jérusalem, Paris, Gallimard, 2002, p. 228.

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A ocupação clandestina na Holanda a partir de 1945 Jaap Draaisma e Patrice Riemens

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A ocupação clandestina na Holanda a partir de 1945

Jaap Draaisma | activista do movimento squatter1 em Amesterdão nos anos 70 e 80 e fundador da iniciativa “urban resort” Patrice Riemens | geógrafo e investigador na universidade de amesterdão. redactor da revista multitudes

Na Holanda, país muito densamente povoado, a pressão sobre a procura de terrenos e sobre a construção é, inevitavelmente, muito forte. O sector imobiliário, onde os lucros são potencialmente altos, desempenha um papel importante na economia e na política. Mas a Holanda é um dos raros países onde a ocupação clandestina é legalmente possível – em algumas circunstâncias bem definidas. O pós-guerra e a crise do alojamento (1945-1970) “A era da reconstrução” do país, durante os vinte anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial e à ocupação nazi, foi marcada por uma actividade de construção muito forte, com picos superiores a 100.000 novas habitações construídas por ano, quase todas em bairros novos. Mas a crise da habitação permaneceu grave. Para fazer face a isso, as autoridades, reforçadas pela

(“Woningwet”) de 1901, implementaram um sistema rigoroso de distribuição de licenças de habitação (“woonvergunning”). Os serviços municipais da habitação (GDH, Gemeentelijke Dienst Herhuisvesting) controlavam estritamente o acesso às residências modestas, quer estas estivessem nas mãos de particulares ou de associações e de grémios. Os critérios de obtenção da licença para habitação são muito convencionais: só os casais com filho(s) têm direito a ela. O chefe de família tem de ter, pelo menos, 23 ou 25 anos, um salário baixo, e trabalhar na zona. As associações e lei da habitação

grémios da habitação (“woningbouwvereenigingen” et “woningcorporaties”) acrescentam ainda os seus próprios critérios de índole religiosa ou política consoante o sistema de “compartimentação” cultural (“zuilensysteem”) prevalecente na época. Nas grandes cidades, onde a procura de alojamento é muito forte, desenvolveram-se nos bairros populares algumas formas de ocupação. Era trabalho de associações de bairro, do Partido Comunista ainda poderoso, ou mesmo de “grandes famílias proletárias”, que tomavam conta das unidades do sistema de habitação social. Desde que cumpram os critérios de adjudicação, estas ocupações são geralmente legalizadas após o facto consumado. O sistema de habitação social começa a desintegrarse na década de sessenta. A Holanda vive a experiência duma revolução cultural de que o movimento Provo se tornará símbolo. A burocracia da habitação ganha força enquanto a política começa a descartar-se de responsabilidade em questões sociais. A ocupação clandestina de habitações (“distributiewoningen”) avança ao mesmo tempo que a construção de novos edifícios estagna. E a ocupação clandestina vai-se tornando cada vez mais uma questão política: o movimento Provo lança, por exemplo, o seu “plano de habitações brancas (de utilização temporária) que se assemelha ao seu “plano de bicicletas brancas” que acabará por ser implementado em grande escala … em Lyon e em Paris!

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[33] CONTRATEMPOS

Juridicamente falando, não existe nesse momento nenhuma lei que trate especificamente da ocupação clandestina. Como princípio condutor mantém-se o respeito pela propriedade privada mas os juízes pronunciam-se caso a caso e levam em conta o contexto social. Segundo o princípio bíblico do necessário usufruto dos bens, o proprietário que deixa os seus bens ao abandono não poderá contar com a compreensão da justiça perante ocupantes clandestinos em necessidade. Tanto mais que a ocupação clandestina se efectua principalmente em prédios abandonados e velhos, muito frequentemente declarados oficialmente inabitáveis e que, por isso, estão fora do sistema de atribuição e já não estão contemplados pela lei da habitação. Os anos de boom do movimento de ocupação clandestina: 1970-1990 Após a construção de novos bairros no pós-guerra, é a vez de implementar a renovação de habitações antigas no início dos anos 70. Os velhos bairros operários construídos à pressa no século XIX são “higienizados”. Tudo quanto é velho é quase sempre arrasado sem distinção para dar lugar ao novo monótono e monofuncional (unicamente para fins de habitação). Esta “renovação” está sujeita a críticas, tanto mais que a maior parte da produção está longe de ser ideal: destrói-se mais do que se


constrói. A crise imobiliária não é reabsorvida, é agravada pela chegada ao mercado da juventude dos baby boomers que formam os agregados familiares com uma ou duas pessoas (sem filhos não têm direito a habitação social). As ocupações aumentam e tornam-se cada vez mais “normais”. O ministro da Justiça Andries van Agt propõe então uma lei anti-ocupação (1976). Esta passa na Câmara Baixa (“Tweede Kamer”) mas é rejeitada pela Câmara Alta (“Eerste Kamer”) que critica os métodos bruscos em prejuízo da via judicial. A justiça entretanto continua a tratar os assuntos respeitantes à ocupação caso a caso ainda que o ministério público tente impor directivas uniformes. A principal arma dos ocupantes clandestinos é o anonimato porque, para serem desalojados é obrigatório que sejam identificados e convocados pela Justiça. É um jogo do gato e do rato entre os ocupantes clandestinos encobrindo a sua identidade, e os proprietários procurando descobri-la (procura nos caixotes do lixo, denúncias, etc.) Mas os comportamentos endurecem-se no sector imobiliário e os proprietários recorrem com mais frequência aos bandidos para desalojar os ocupantes clandestinos. É nessa época que aparece o fenómeno da protecção contra-ocupante (“anti Kraak “), uma espécie de ocupação ao contrário em que a habitação e/ou a utilização de um edifício é concedida a título temporário, geralmente através de um intermediário especializado que se encarrega de recrutar os habitantes-guardas. Os anos 75-85, são os tempos dos despejos de ocupações em larga escala, muitas vezes acompanhados, nomeadamente em Amesterdão, de motins violentos. O auge é atingido durante a coroação da rainha Bea-

Os anos 75-85, são os tempos dos despejos de ocupações em larga escala, muitas vezes acompanhados, nomeadamente em Amesterdão, de motins violentos. O auge é atingido durante a coroação da rainha Beatrix, em 1980, onde mais de 8.000 polícias mal chegam para conter os manifestantes

trix, em 1980, onde mais de 8.000 polícias mal chegam para conter os manifestantes reunidos sob o lema “Não há habitação, não há coroação! “ (“Geen Woning Geen Kroning!“) . Estes eventos ajudam a colocar a crise da habitação e da ocupação clandestina na mira da lei. Estes anos, particularmente o período de 1978-1983 são também os de uma grave crise económica na Holanda. As taxas de desemprego e de inflação registam-se com dois dígitos. As vagas multiplicam-se e o sector da construção desmorona. O governo opta por pacificar a vaga crescente do desemprego, particularmente entre os jovens licenciados, abrindo generosamente, a válvula do subsídio social de renda (“Bijstand”). O resultado é um movimento de ocupação clandestina cada vez mais bem organizado e mais influente, constituído sobretudo por estudantes, activistas e geralmente jovens sem emprego: a ocupação clandestina transforma-se num modo de vida e numa actividade a tempo inteiro e desenvolve toda uma economia paralela apoiada por uma ideologia política mais ou menos anarquista. Em Amesterdão e em muitas outras grandes cidades o movimento de ocupação clandestina torna-se uma componente da paisagem social a não negligenciar.

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O governo Den Uyl (centro-esquerda, 1973-1977) concede o direito à habitação aos jovens, aos agregados de uma e duas pessoas, assim como aos agregados numerosos (“woongroepen”) (“decreto van Dam”, 1975). As autarquias têm de alargar substancialmente os critérios de atribuição e vêem-se igualmente constrangidas a fornecer ou construir apartamentos adaptados a esta nova procura. As autoridades decidem reduzir a amplitude do fenómeno de ocupação clandestina com a construção de habitação social nova e a retomada da renovação urbana, com um nível de realização muito melhor do que antes. O antigo é reabilitado, sempre que possível, em vez de ser demolido. Inúmeras ocupações são “legalizadas”: as autarquias negoceiam com os ocupantes, compram os edifícios e revendem-nos, ou colocam-nos à disposição dos grémios que transformam os ocupantes em locatários “sociais”. 1981 vê também a adopção de uma nova lei-quadro sobre a habitação (e a ocupação) chamada “a vagatura” (“Leegstandwet”). Ela impõe aos proprietários que declarem os prédios e os locais vagos. A ocupação clandestina é declarada ilegal no ano seguinte à declaração. Os ocupantes passam a poder ser convocados anonimamen-


O movimento de ocupação clandestina foi um dos principais motores dos trabalhos de renovação da habitação social dos anos 80-90, contribuindo em simultâneo em grande medida para a salvaguarda da diversidade económica, social e cultural dos bairros populares. É também principalmente a ele que se devem os inúmeros teatros e ateliers de bairro, assim como a aceitação de novas formas de (co-)habitação.

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[35] CONTRATEMPOS


te pela justiça. Mas, por outro lado, o proprietário perde a protecção jurídica se o edifício se mantiver inutilizado e sem projecto futuro concreto durante mais de um ano. A ocupação clandestina consegue assim um estatuto legal. No entanto, esta lei tem, sobretudo, o efeito de dar um impulso sem precedentes à “contra-ocupação”, que se transforma num completo sector imobiliário e abriga cinco vezes mais “locatários” do que as ocupações ilegais (e com “alugueres”, que de (quase) zero inicialmente, se aproximam do sector comercial ...). Este é o período em que o movimento de ocupação clandestina consegue um amplo apoio entre a população. O movimento de ocupação clandestina foi um dos principais motores dos trabalhos de renovação da habitação social dos anos 80-90, contribuindo em simultâneo em grande medida para a salvaguarda da diversidade económica, social e cultural dos bairros populares. É também principalmente a ele que se devem os inúmeros teatros e ateliers de bairro, assim como a aceitação de novas formas de (co-)habitação. A recessão na década de 90 e até os dias actuais Impulsionada pelo crescimento sucessivo da tecnologia e das finanças, uma direita revanchista e populista ganha terreno rapidamente. A dos governos sucessivos dos liberais conservadores e dos socialistas liderados pelo ex-sindicalista Wim Kok 1994-2002 sucedem-se três governos da direita linha-dura liderados pelo democrata-cristão Jan Peter Balkenende. A Lei “da vagatura” foi reformulada e integrada numa nova lei-quadro em matéria de habitação (“Huisvestingwet”) em 1993. Contém disposições mais rigorosas em matéria de ocu-

pação clandestina. A ascensão da economia reduz o número de edifícios “ ocupáveis” ameaçando as ocupações existentes. As expulsões, inúmeras e musculadas, dão origem a cenas de violência que transferem a simpatia do público para os ocupantes. Em 2003, um deputado democrata-cristão lança o primeiro projecto de lei para tornar a ocupação clandestina completamente ilegal em qualquer circunstância, mas esta tentativa falha. Em 2006, o segundo governo Balkenende propõe legislação no mesmo sentido, mas enfrenta a oposição interna do Ministro da Justiça Pechthold do Partido Democrático (centrista) , assim como os presidentes da câmara das grandes cidades, que temem o aumento da agitação. E, finalmente, em 2009, três deputados, um dos quais da oposição (!), apresentam mais uma vez um projecto de lei que transformaria em crime qualquer forma de ocupação. Não surpreende que este projecto seja apoiado pelo PVV (Grupo Wilders, extrema direita), mas também, após agitadas discussões internas do Partido Trabalhista (PvdA), cujo porta-voz afirma que “o Estado tem mais poder para combater que os coproprietários”. A Câmara Alta mostra-se muito cautelosa (tanto mais que os municípios, a quem caberá gerir as medidas que desencorajem as ocupações, assim como as desordens subsequentes à aplicação da lei, não vão receber nenhum apoio financeiro suplementar), mas não havendo nenhum imprevisto, (como em 1976), a lei parece ter de ser adoptada desta vez.

expulsão. Em caso de expulsão, evitam-se sistematicamente os confrontos. Os prognósticos sobre o futuro da ocupação clandestina após a previsível adopção da lei que a criminaliza não são, em última análise, fundamentalmente pessimistas. Os burgomestres (presidentes de câmara, nomeados, não eleitos) nas grandes cidades já decidiram contra a sua aplicação rigorosa e sem distinção. Não será a ocupação clandestina a principal vítima da nova lei, mas o sector do “contra-ocupação” que se tornou a solução por excelência – se bem que precária – de habitação para os jovens artistas e estudantes. Fazendo passar a ocupação clandestina do plano cível para o penal, a lei transforma a ocupação clandestina em problema de manutenção da ordem, o que o torna mais fácil de “assumir” pelas autoridades. De facto, agora que elas têm imperativamente de fazer cumprir uma sentença pronunciada contra os ocupantes num processo cível, podem, no penal, fazer uso do seu poder discricionário para adiar como bem entenderem. A nova crise económica e financeira trouxe um vazio sobre o mercado imobiliário facilitando a implementação de alternativas de “substituição” à ocupação como as “incubadoras culturais”, os “bancos de ensaio de novas formas de habitação” e outras inovações. A ocupação clandestina toma posição e está forte e bem organizada, nomeadamente em Amesterdão.

A situação actual (2010) Nos processos em tribunais, os ocupantes ainda conseguem ganhar cerca de metade dos processos contra eles e, assim, evitar pelo menos temporariamente, a

Notas de tradução

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Tradução de Deolinda Peralta

O termo squat é amplamente empregue no uso comum em língua portuguesa mas, como não está ainda consagrado em nenhum dicionário, optou-se por traduzi-lo no texto como “ocupação clandestina”. 1


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[37] ficha técnica


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