Revista Vide História n.4

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Editorial Pedindo perdão pelo atraso deste número, é com grande satisfação que lançamos a Revista Vide História nº 4. Trazendo o tema Sensibilidades buscamos instigar algumas reflexões sobre a complexidade de pensar as relações entre as subjetividades e a história. Sem nenhuma pretensão de esgotarmos o tema, nos esforçamos, principalmente, em destacar que diferentes processos históricos podem e são vividos de formas múltiplas, e muitas vezes imprevisíveis. A partir de algumas temáticas desenvolvidas aqui, buscamos propor algumas discussões e imaginações sobre como o tempo, o espaço, e as nossas diversas vivências e relações sociais constroem e reconstroem continuamente nossas sensibilidades, e em consequência, nossas formas de interação com o mundo. É exercitando esse campo múltiplo de interpretações que este número foi pensado. Materializado em diferentes formas de escrita, o objetivo é trazer uma edição agradável, diversa em temas, cores e formatos, e que chegue às leitoras e leitores como um convite à imaginação, à interpretação e à reflexão. Desejamos a tod@s uma deleitosa leitura. Esperamos que você goste e aguardamos seus comentários. Equipe Vide História

Imagens: Todas as imagens foram retiradas da internet, ou como indicado. Os direitos são reservados @s suas/seus respectiv@s proprietári@s.

Nos textos da Vide História utilizaremos o símbolo “@” para substituir as indicações de masculino e feminino quando fizermos generalizações de grupos humanos. Um exemplo: “todos” será escrito “tod@s”. Isso tem o objetivo de contemplar aos diversos gêneros ao mesmo tempo ao invés de considerar o gênero masculino como aquele que generaliza a humanidade.

Expediente Conselho Editorial: Gleidiane de Sousa Ferreira, Leandro Maciel Silva, Marcos Luã A. de Freitas e Tuan Roque Fernandes. Capa e Projeto Gráfico: Marcos Luã Contato: revistavidehistoria@gmail.com

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Índice Célia De quê rimos nós? O vento

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“Mulher só é completa quando é mãe” Será?

Ópio

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Sentidos e razões em Wisława Szymborska

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Os limites do aceitável 19

Célia Retravestir-se

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Vide História

Célia Célia sempre desejou uma vida diferente. Sempre desejou ter estudado, trabalhado fora, viajado mais e engravidado menos. Amava os filhos e aprendeu a amar o marido com o tempo. Não se arrependia de tudo, mas queria ter sido outra pelo menos por um instante. Aos 45 anos, sentiu pela primeira vez o impulso de ir embora. Planejou mudar-se para uma capital e estudar. Sem os filhos, sem o marido e sem os pais. Na hora, sentiu saudades de tudo. Receou. Repensou. Desistiu. Mudou.

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De quê rimos nós?

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artigo publicado em 1967, pelo antropólogo francês Pierre Clastres intitulado “De que riem os índios” e que compõe o livro “A Sociedade contra o Estado” de 1974, trata de examinar a relação entre o mito e o riso indígenas. Neste artigo, Clastres expõe as diversas facetas dos mitos contados para o riso d@s ouvintes. “No riso provocado aparece uma intenção pedagógica: enquanto divertem aqueles que os ouvem, os mitos veiculam e transmitem ao mesmo tempo a cultura da tribo.” Clastres destaca que as figuras escolhidas para a caçoada geral, são aquelas que despertam o medo, o respeito ou a ira dos índios: xamãs e jaguares. Como na realidade não podem caçoar dessas figuras, o fazem através de mitos em que elas aparecem como bobas e idiotas: “libera em sua narrativa uma paixão dos índios, a obsessão secreta de rir daquilo que se teme”, porém esses mitos que provocam o riso não desfazem a ideia que @s índi@s tem do jaguar e do xamã. O medo mantém-se, e na realidade do cotidiano, se for preciso, matam-se jaguares ou xamãs muito perigosos. A partir dessas observações

de Clastres, vem-me a pergunta: De quê rimos nós? Dentre as muitas coisas que despertam o nosso riso, compartilhamos com @s indígenas a paixão por rir daquilo que tememos, mas penso que nosso “senso de humor” está mais ligado com @ diferente/oprimid@, com aquilo que não se parece conosco ou que gostaríamos que não se assemelhasse. Casos polêmicos envolvendo humoristas tornaram-se comuns. Discussões acaloradas sobre piadas “politicamente corretas” ou não, também são cada vez mais comuns e demonstram que o nosso humor pode, e deve, ser debatido e questionado. Não é de hoje que as apresentações de humor utilizam estereótipos para produzir o riso. O caso do humor “blackface” é exemplar. “Blackface” foi um tipo de humor muito comum nos Estados Unidos e na Inglaterra no século XIX e que era feito por homens brancos que pintavam o rosto de preto (por isso “blackface”). Eram, grosseiramente falando, apresentações de “stand up comedy” que tinham esquetes musicais e monólogos. Dito isso, então, de quê rimos? Numa sociedade em que o “senso de humor” está ligado princi-

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Vide História palmente ao desejo de rir d@ diferente, d@ oprimid@, e que ao mesmo tempo, tenta caminhar no sentido da eliminação das diferenças que subjugam, excluem e muitas vezes matam, o humor passa por uma luta em que alguns insistem na fórmula tradicional (rir d@ diferente/oprimid@) e intitulam @s crític@s de politicamente corret@s, e outr@s que tentam produzir o humor rindo d@s que produzem ou mantém a opressão. Porque @ diferente é tão engraçad@? De uma forma geral, as situações que nos provocam o riso são aquelas em que as pessoas são mostradas como bobas, pouco inteligentes, afeminadas, ou que estão em situações inusitadas, geralmente pouco abonadoras. Essas situações são engraçadas porque embaraçosas. O medo do embaraço, de passar vergonha, causado por essas situações, nos faz rir delas quando vemos outr@s as vivenciando, ou quando as imaginamos. Porém, ao criarmos uma história para gerar riso, criamos um cenário e personagens que se adequem o máximo possível, e para aquel@s que riem d@ diferente, as personagens são geralmente baseadas em estereótipos que são vistos pelo preconceito e pelo senso-comum como burros, incapazes e/ou inferiores. Ou seja: mulheres, negros, gays, deficientes físicos, gordos, etc. 6

Assim como o humor Chulupi é construído e reforçado historicamente através da contação de mitos, nosso humor também se nutre dos mitos do fraco, do incapaz, do grotesco, do inferior, e se mostra cada vez mais parecido com o humor Chu-

Reprodução: Cartaz do show de “blackface” do norte-am

lupi, estudado por Clastres, por tratar daquilo que nos amedronta, porém com uma grande diferença: temos medo daquilo que questiona nosso lugar no mundo, que põe em xeque

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Vide História a nossa própria identidade e nossas próprias convicções, diferente do medo Chulupi que lida com a chacota à autoridade: pois jaguar e o xamã são a mesma entidade, já que para a cultura Chulupi um jaguar um dia foi um xamã.

mericano Billy B. Van no início do século XX

Quando se ri d@ homossexual, se está rindo de alguém que é diferente e que deve ser mantid@ enquanto tal, visto como uma aberração, como inferior. Está-se refor-

çando a ideia de que nossa cultura é assim, não questionamos a condição daquel@ que é alvo da caçoada. Esse tipo de humor não ri do que é considerado forte, normal, ou ideal. Para isso, existe o humor questionador, que se contrapõe ao primeiro quando tem como alvo não @s estigmatizad@s ou oprimid@s, mas @s opressor@s, aquel@s que criam lugares e papéis hierarquizados em que ocupam os estratos mais altos. O humor que questiona, ri e faz rir dos autoritarismos, dos preconceitos, dos estereótipos. Esse humor está cada vez mais ligado aos movimentos por direitos civis. Nos Estados Unidos, por exemplo, o humor “blackface” teve cada vez menos aceitação na medida em que @s negr@s estadunidenses obtiveram seus direitos civis. Os gays passaram a reivindicar um melhor tratamento no humor, quando passaram a ter cada vez mais direitos reconhecidos. Esse processo parece legitimar o humor como uma arma poderosíssima como produtora e mantenedora de visões sobre o mundo e sobre @ outr@, e o controle dessa arma deve ser disputado. O riso e o humor questionadores são como o riso dos Chulupi (fazem chacota com aquilo que temem) porém, temem aquilo que subjuga, exclui e mata!

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O vento

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“Mulher só é completa quando é mãe” Será? Por Gleidiane de Sousa Ferreira

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m novembro de 2012 tive a oportunidade de ouvir uma das intelectuais feministas mais importantes do Brasil atualmente, chamada Maria José Rosado Nunes. Essa mulher, militante do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, expressou como ninguém uma das maiores inquietações que existiam e ainda existem na minha cabeça de jovem feminista: O por quê de a maternidade ser considerada uma missão e não uma escolha. Ela inquietava o seu público dizendo: Quando uma mulher diz que está grávida, todas as pessoas dizem: “Parabéns!”, “Estou muito feliz por você!”; “porém, quando uma mulher diz que está grávida e que pensa realizar um aborto, grande parte das pessoas diz: “Você tem certeza disso?” “Precisa pensar bastante para tomar essa decisão”, ou mesmo são mais diretos e dizem: “Não faça isso, você pode se arrepender um dia”. Essas reações, que aqui se referem a uma generalização, mas que são, certamente, mais

frequentes do que as que apoiam as decisões das mulheres em relação ao aborto, aportam-se em uma construção histórica chamada: maternidade. Não seria melhor, talvez, se perguntássemos: “Você tem certeza que quer por uma criança no mundo?”, ou afirmarmos: “Precisas pensar bastante antes de decidir ter filhos!”. E também, poderíamos dizer para uma mulher que buscasse por um aborto algo como: “Que bom que tomou essa decisão já que não estás certa sobre ter o filho”, “Você tomou a decisão correta!” O que nos impede de pensarmos desse modo? Muitas são as questões... Do discurso proferido por muitas religiões que tendem a enxergar as mulheres, especialmente, como figuras reprodutivas em que a maternidade se confunde com a própria importância da existência delas; aos discursos oficiais do Estado, que respaldados pela medicina e pela justiça vincularam a cidadania feminina e a autonomia sobre o pró-

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Vide História prio corpo à sua “funcionalidade” procriativa; o certo é que o significado de gerar filhos, assim como a ideia de maternidade, mais do que algo natural foram construções históricas frutos de inúmeras disputas políticas. A sociedade industrial, em moldes burgueses, consolidou-se na Europa principalmente a partir do fim do século XVIII. Preocupada com a legitimidade da descendência e com a questão da herança – até então não tão disseminada como um modelo entre relações familiares e Estado – estabeleceu uma noção de maternidade extremamente vinculada ao “papel” que as mulheres deveriam assumir na sociedade: a de mulher-mãe. Os modelos de família fomentados nessa moralidade burguesa passaram a compreender a família como uma célula da sociedade, em que cada integrante assumiria uma “função social”, e que enquanto esta fosse cumprida, o equilíbrio e a estabilidade de uma “ordem social” – política, econômica e social - estariam garantidos. Para as mulheres, a função da maternidade honrada, ou seja, que garantiria a legitimidade dos filhos e das filhas alterou, profundamente, as possibilidades de vida da sexualidade das mulheres nas sociedades burguesas. A fidelidade conjugal, e a garantia de exclusividade 10

marital por parte das mulheres passaram a ser, mais sistematicamente, uma preocupação de regulamentação estatal, e não apenas uma condenação moral. É nesse momento também, que emergiu uma dupla moral estruturante das relações afetivas e sexuais da sociedade, que tendeu a qualificar as mulheres como “as boas para casar” e “as boas para fornicar”; garantindo a uma parcela destas a função de prover uma prole legítima, e à outra parte, a de saciar as vontades sexuais dos homens. Nesse sentido, a instituição do casamento fora se consolidando como um dos marcadores centrais das relações entre sexo, prazer, procriação e legitimidade social. A imagem de mãe ideal foi sendo composta em um mosaico que unia as ideias de sexo vinculado ao casamento, à procriação, ao recato e à obediência, ou seja, a mulher honesta. Paralelamente, a sensualidade, o gosto pelo sexo para a busca de prazer, a não dedicação primeira, total e exclusiva para com o casamento e @s filh@s, assim como o comportamento insubmisso diante da figura do “macho provedor” foram se constituindo como definições de mulheres prostituídas, figuras de oponentes às figuras maternas. Concomitante a esses valores de organização familiar, a Ciên-

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Pregnant woman - Alex Florschutz http://florschutz.com

cia, que nesse período se solidificava como um discurso cada vez mais forte nas sociedades industriais, e era respaldada por sua pretensa neutralidade, também tratou de relacionar a vida e a existência das mulheres à função procriadora. Foi em meados do século XVIII, que o corpo e a psicologia das mulheres começaram a ser entendidos como essencialmente relacionados a esta função, e cada vez mais construído pelos saberes científicos como oposições ao corpo e à psicologia masculina. As ideias de fragilidade, passividade, delicadeza

e subserviência passaram a compor o dicionário científico sobre o corpo e o comportamento das mulheres, como características intrínsecas, naturais e a-históricas. Adequando essas características ditas femininas a uma ordem social que buscava afirmar uma naturalização dos sentimentos de amor e dedicação materna, como forma de criar um “universo feminino” relacionado ao lar e ao ambiente doméstico, o discurso científico – materializado especialmente nas práticas médicas do ocidente desde o século XVIII – assumiu um papel fundamental na valorização e na definição das mulheres principalmente na sua possibilidade genitora. As oposições que demarcaram as diferenças sexuais, como as referências de que a mulher está para a natureza, assim como o homem está para a cultura, acabaram por elevar a maternidade – um conceito elaborado social, cultural e temporalmente – como algo que primeiramente definiria o que é ser mulher, e, portanto, a sua relação com o estático, com o pretensamente imutável. É nesse momento que os infanticídios e os abortos praticados secularmente e em diferentes sociedades, passaram a ser práticas fora da “ordem natural” das coisas, pois cada vez mais, a função reprodutiva era relacionada a um valor

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Vide História moral cujas mulheres “normais” teriam “naturalmente” em suas vidas. A ausência de “amor materno” ou a priorização da própria vida, ao invés da vida da prole foi – e ainda é – uma forma de qualificar algumas mulheres como doentes e/ou criminosas. Ou seja, a naturalidade do amor materno, e da ideia de que toda mulher só é completa quando é mãe constituiu e constitui como desviadas as figuras femininas que escapam ao que seria essa “verdadeira natureza” das mulheres.

sexualidade, reprodução e família é entender que nunca existiu uma forma a-temporal de demarcar a relação entre as mulheres e sua prole. É entender também, que a forma com que as leis, a ciência, as religiões e as moralidades concernentes a esse tema foram e são construções históricas, frutos de disputas políticas que buscaram e buscam ter a partir de vários fundamentos diferentes, o controle sobre o corpo feminino. Pensar desse modo é entender que as relações construídas en-

“Ainda hoje, as mulheres são definidas e tem as suas soberanias corporais em debate, pelo viés da procriação.” E é nesse discurso da “natureza”, do “essencial” e do “intrínseco” que os vários feminismos de desde o século XIX vem questionando a ideia de maternidade como uma missão, como o apogeu da existência feminina, e vem ressaltando que as mulheres possuíam e possuem anseios e objetivos para além do casamento e da maternidade. Anseios e objetivos que, inclusive, se confrontaram e ainda se confrontam diretamente com o imaginário da dedicação exclusiva ao ambiente familiar. E é nesta perspectiva crítica que este texto visa alocar-se, pois, pensar historicamente as relações entre mulher, 12

tre os seres humanos e humanas, sejam desqualificadas ou honorificadas, são sempre frutos de relações de poder e de desejos de controle que mais tem a ver com história, do que com biologia. Para o caso da naturalização da maternidade, o controle se exerce sobre as mulheres e seus corpos. Objetos de tabus e lugar de controle demográfico, os corpos femininos, possuidores da prerrogativa geradora, são ainda hoje alvo de construções discursivas que visam limitar, desqualificar e/ ou tornar anormal qualquer aspecto de soberania, autonomia e liberdade de ação destas, sobre o próprio

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Vide História corpo. Ainda hoje, as mulheres são definidas e tem as suas soberanias corporais em debate, pelo viés da procriação. Nesse sentido, entender que a maternidade é um conceito construído socialmente, é pensar que as relações entre mulheres e sua prole são múltiplas e contextuais. É entender que não se é mãe a priori, e que ter filhos é algo muito mais complexo do que um possibilidade fisiológica, mas é um campo de disputas políticas. Apesar de mais de um século de movimentos feministas que ressaltam esse caráter histórico do conceito de maternidade, ainda hoje, em diversos países do mundo, e especialmente no Brasil, essa ideia é vista como fator que fundamenta prévios comportamentos idealizados para as mulheres, e também para os homens. A mãe ideal e o pai ideal são recorrentemente explorados como modelos e não como campo de possibilidades. É bastante recorrente nos depararmos com expressões como: “instintos maternos”, “amor materno”, “mãe é mãe”; ou afirmações como: “minha felicidade é a felicidade d@s minhas/meus filh@s”. Essas expressões, aparentemente despretensiosas, carregam consigo aspectos que idealizam e naturalizam comportamentos relacionados

à maternidade. Elas “biologizam” relações, comportamentos e sentimentos que são históricos; como a dedicação absoluta da mãe para com um@ filh@, a ideia de amor incondicional, e muitas vezes a esperança de que a figura da mulher como indivídua autônoma, com desejos, anseios e objetivos próprios, se confunda com os objetivos, as vontades e a própria vida d@s filh@s. É mediante essas recorrentes reafirmações e tentativas de construção de uma maternidade concedente, doadora e contraposta à ideia de mulher soberana, que entendemos o por quê de ainda hoje nos escandalizarmos quando uma mulher sai de casa e entrega @s filh@s aos cuidados de outrem para viver um relacionamento amoroso; ou quando uma mulher pratica infanticídio; ou quanto um mulher prefere gastar seu tempo e dinheiro consigo e não apenas para com @s filh@s, ou quando realiza um aborto. É nessa ideia de maternidade a priori que olhamos para as mulheres e suas práticas amorosas, sexuais e procriativas. É nessa ideia de maternidade a priori que situamos as mulheres como indivíduas e corpos suscetíveis aos controles sociais. É no a priori que sentimos repulsas diferenciadas para um pai que abandona um@ filh@ e para

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Vide História uma mãe que faz o mesmo. E é ainda na ideia do a priori que deixamos de entender inúmeras formas de viver as relações entre mães e filh@s, e deixamos de perceber as diversas invenções e reinvenções de sentir a reprodução e suas afetividades. Assim, é interessante pensar que os sentimentos entre mães e filh@s não são algo dado biologicamente, e que nem os corpos e nem a psicologias das mulheres são construídas para culminarem no que seria esse momento “ápice” de suas existências, mas que são como qualquer outra relação humana, construídos e desconstruídos contextualmente. Ser mãe não é, e nem poderia ser uma missão, uma obrigação ou um caminho inescapável de vida para aquelas que não pretendem viver

uma gestação. Ser mãe é uma opção, de muitas mulheres nascidas ou não fisiologicamente com aparelho reprodutor feminino. É um conceito que implica disputas políticas e construções subjetivas. É uma relação que se aloca primeiramente no plano do sensível, do histórico, do sentimental, e nunca no modelo, na norma e no estagnado. Portanto, é preciso dizer que: É possível sim ser completa sem ser mãe. E mais ainda, é possível reinventar o sentido e as vontades de procriação, porque essas são questões eminentemente históricas e estão no plano das sensibilidades e das possibilidades, e tem o biológico talvez como um meio, e nunca como início ou fim.

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Sugestões de leitura: - Gênero e contracepção. Uma perspectva sociológica. Luzinete Simões Minella. Editora UFSC. 2005. - O corpo feminino em debate. Organização: Maria Izilda Matos e Rachel Soihet. Editora UNESP. 2003. - Ordem médica e norma familiar. Jurandir Freire da Costa. Edições Graal. 1993.

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Ópio Ópio após Ópio para dor Ópio para Sentir Ópio para Pensar Ópio para não Ser Ópio para Sonhar Ópio para Expressar Ópio para Enganar Ópio para Ópio para Ópio para Ópio para

a Razão.

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Sentidos e razões em Wisława Szymborska

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m pouco mais de cinco décadas de produção literária, a polonesa Wisława Szymborska (1923-2012) publicou apenas 12 pequenos volumes de poemas. Parece pouco, mas foi suficiente para conquistar o Nobel de literatura em 1996. Sua consagração não se deu apenas entre os literatos, pois sua poesia chegou a muitas pessoas por meio de uma linguagem extremamente acessível. Fazendo uso de uma linguagem coloquial, tratou de temas cotidianos, mas o cotidiano explorado nos poemas dela não circulava entre assuntos óbvios da vida. Tocava em questões como a guerra, o passado, o supérfluo, a astronomia, a matemática, a ciência, etc. Em 2011, a Editora Cia. das Letras lançou uma coletânea de poemas da autora, com seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. Destacamos abaixo três desses poemas, que exploram mais diretamente a questão das sensibilidades. 16

Certamente não é incomum ver poetas se debruçarem sobre sensações e sentimentos, mas o que se percebe em certos poemas de Wisława é uma reflexão acerca de seu valor social em relação a razão. Essa é a chave de leitura dos poemas selecionados. Estes poemas também podem ser compreendidos dentro de uma nova abordagem analítica que relativiza as consagradas explicações racionalistas dos acontecimentos. No poema “Retornos”, por exemplo, a dimensão racional de um indivíduo é sobrepujada pela sentimental. A personagem que o define socialmente (o intelectual) perde importância dentro da situação colocada. Retornos Voltou. Não disse nada. Mas estava claro que teve algum desgosto. Deitou-se vestido. Cobriu a cabeça com o cobertor. Encolheu as pernas. Tem uns quarenta anos, mas não agora. Existe - mas só como na barriga da mãe

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Vide História na escuridão protetora, debaixo de sete peles. Amanhã fará uma palestra sobre a homeostase na cosmonáutica metagaláctica. Por ora dorme, todo enroscado.

Em Certa Gente, as tradicionais explicações históricas, geográficas, econômicas e políticas sobre a guerra parecem não ser importantes. O que está em primeiro plano são as experiências emocionais das pessoas.

[quem, em quantas formas e com que intenções. Se tiver escolha, talvez não queira ser inimigo e os deixe com alguma vida.

Seriam todas as mulheres curiosas? O que diria A Mulher de Lot sobre sua própria experiência, se ela ganhasse voz e alguma identidade? Paremos para ouvir suas motivações. A mulher de Lot

Certa Gente Certa gente fugindo de outra gente em certo país sob o sol e algumas nuvens. Deixam para trás certo tudo que é seu, campos semeados, umas galinhas, cães, espelhos nos quais agora se fita o fogo. Trazem às costas trouxas e potes quanto mais vazios tanto mais pesados a cada dia. No silêncio alguém cai de exaustão, na algazarra alguém rouba de alguém o pão e o filho morto de alguém é sacodido. À sua frente uma estrada sempre errada, uma ponte, mas não a que precisam, sobre um rio curiosamente rosado. Ao redor uns disparos, ora mais perto, ora mais [longe, no alto um avião rodopiante. Viria calhar certa invisibilidade, uma parda rochosidade ou melhor ainda a inexistência por um tempo breve ou mesmo longo. Algo ainda vai acontecer, mas onde e o quê. Alguém vai lhes barrar o caminho, mas quando,

Dizem que olhei para trás curiosa. Mas quem sabe eu também tinha outras razões. Olhei para trás de pena pela tigela de prata. Por distração – amarrando a tira da sandália. Para não olhar mais para a nuca virtuosa do meu marido Lot. Pela súbita certeza de que se eu morresse ele nem diminuiria o passo. Pela desobediência dos mansos. Alerta à perseguição. Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter [mudado de ideia. Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo [do morro. Senti em mim a velhice. O afastamento. A futilidade da errância. Sonolência. Olhei para trás enquanto punha a trouxa no [chão. Olhei para trás por receio de onde pisar. No meu caminho surgiram serpentes, aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres. Já não eram bons nem maus – simplesmente [tudo o que vivia serpenteava ou pulava em pânico consorte. Olhei para trás de solidão. De vergonha de fugir às escondidas. De vontade de gritar, de voltar. Ou foi só quando um vento me bateu, despenteou o meu cabelo e levantou meu [vestido.

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Vide História Tive a impressão de que me viam dos muros de [Sodoma e caíam na risada, uma vez, outra vez. Olhei para trás de raiva. Para me saciar de sua enorme ruína. Olhei para trás por todas as razões [mencionadas acima. Olhei para trás sem querer. Foi somente uma rocha que virou, roncando sob [meus pés. Foi uma fenda que de súbito me podou o passo. Na beira trotava um hamster apoiado nas duas [patas. E foi então que ambos olhamos para trás. Não, não. Eu continuava correndo, me arrastava e levantava, enquanto a escuridão não caiu do céu e com ela o cascalho ardente e as aves mortas. Sem poder respirar, rodopiei várias vezes. Se alguém me visse, por certo acharia que eu [dançava. É concebível que meus olhos estivessem [abertos. É possível que ao cair meu rosto fitasse a [cidade.

Divulgação

Capa do livro - Wisława Szymborska [poemas]. Companhia das Letras, 2011.

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A mulher de Lot seria racional ou sentimental? Caso a resposta seja a primeira, essa racionalidade seria a que dizem ser do masculino? Caso seja a segunda, trata-se de uma sensibilidade atribuída ao feminino? Ou será que esta divisão não faz sentido no poema? Ou será que faz?

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Os limites do aceitável

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omer carne de cachorro é algo inimaginável para quase todo ocidental. A explicação que nos parece ser mais aceitável, ou pelo menos a que mais circula entre nós, é a de que em um período de grande escassez de alimentos as pessoas tiveram que se sujeitar a comer “qualquer coisa que se mexesse”. Este pensamento coloca parte da cultura alimentar chinesa como uma anomalia. É como se houvesse uma forma universal de se alimentar e só uma situação extrema pudesse levar as pessoas a “encarar” coisas que “normalmente” não se come. De fato, houveram períodos de grande escassez no oriente e nestas ocasiões a cultura alimentar sofreu algumas mudanças, mas muito desses alimentos, que para nós podem ser um tanto bizarros, fazem parte da alimentação chinesa há muitos séculos, seja pelo caráter religioso ou medicinal, ou puramente pelo sabor atrativo. Um dos documentos mais antigos que indica a ingestão da carne de cachorro, por exemplo, é o “Li Ji” (Clássico dos Rituais), um dos cinco livros clássicos da filosofia confucio-

nista. De acordo com este registro, a carne de cachorro está presente na culinária chinesa pelo menos desde a dinastia Qin, que dominou a região entre 221 e 206 a.C. Em outros documentos mais recentes, a “iguaria” é descrita como um alimento medicinal, eficaz contra os problemas de circulação, e assim é utilizado até hoje por parte das pessoas que a comem. É importante destacar que não é em todo oriente, e nem mesmo em toda China, que se come carne de cachorro. Neste país, a prática é muito comum no sul, mas em cidades como Hong Kong e Macau, por exemplo, além de ser um tabu, a ingestão de carne de cachorro é proibida. Para nós ocidentais, este comportamento é tão estranho que chegamos a ter repulsa quando vemos nas redes sociais imagens de cachorros sendo tratados em açougues ou sendo servidos em bandejas. Parte d@s indian@s devem sentir uma sensação parecida ao ver imagens de vacas sendo tratadas nos nossos açougues ou vendidas nas churrascarias. É difícil imaginar que alguém sinta nojo do nosso tão difundido bife assado, mas é exatamente isso que acontece em muitas partes

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Vide História Divulgação

Dona de restaurante e carne de cachorro antes do preparo

da Índia. E se o bife for de carne de porco, a repulsa se dará pel@s judias/judeus e muçulman@s, que consideram este animal impuro, assim como sua carne. Esses tabus alimentares são construídos, sobretudo, socialmente. Imaginemos, por exemplo, uma criança que desconhece o ambiente natural onde os alimentos são produzidos. Ela terá como referência apenas aqueles que chegam selecionados, higienizados e embalados do mercado. As suas preferências e 20

seus tabus serão construídos a partir dessa vivência. Por exemplo, ela poderá sentir aversão a um hambúrguer vendido na rua, mas comer sem preocupação um hambúrguer em um fast-food. Esta diferença se deve em parte aos discursos de higiene que estão embutidos nos produtos industrializados. As noções de higiene voltadas aos alimentos podem ser entendidas, como nos indica o pensador Norbert Elias, dentro de um “processo civilizatório” que impôs novos hábitos e cos-

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Vide História comidas. Apesar da importância desse processo, que tornou os hábitos de higiene um imperativo, esse aspecto deve ser compreendido nas suas limitações. Dito de outra forma, a higiene não é a única referência usada na construção das impressões contrárias ou favoráveis a um alimento. Há também fatores como a cultura familiar e o acesso ou a restrição a determinados alimento em decorrência de guerras, desigualdades sociais ou questões geográficas. As pessoas também podem adotar um novo paladar sob a pressão do fator biológico, entendido aqui, por exemplo, como um impulso que se impõe por causa de “carências

Divulgação

tumes na vida social urbana do mundo moderno. Esse processo histórico é marcado pelas transformações sociais e políticas que interferiram na organização social, tanto em termos da arquitetura quanto na forma como as pessoas deveriam se comportar no meio urbano. A cidade se tornou o ambiente social da higiene, colaborando para o ideal de saúde difundido sobre os diversos aspectos do urbano: disposição geográfica da cidade, higiene pessoal e alimentar, comportamento das pessoas nas ruas, etc. Esse parâmetro tem uma força tremenda sobre as nossas sensibilidades, interferindo em como tocamos, olhamos, cheiramos e degustamos as nossas

Buchada de boi

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Vide História nutricionais”. A despeito do fator higiene, portanto, podemos estabelecer relações negativas com alimentos que são amplamente aceitos em outros lugares. A construção de um paladar, ou seja, de um dicionário de gostos, cheiros e aparência alimentar é feita social, cultural e politicamente. Assim, cada região do planeta possui características alimentares que são praticamente inconcebíveis em outros lugares. Em Portugal se come uma espécie de caracol; na Itália se come um queijo com vermes vivos (Casu Marzu); na Alemanha se come carne de cavalo, etc. Mas para perceber reações tão discrepantes em relação a um alimento, não é preciso comparar pessoas geograficamente distantes umas das outras. No Ceará e em boa parte do Nordeste do Brasil, por exemplo, há uma comida que causa reações muito diferentes entre as pessoas: a buchada. Para quem não sabe, esse prato consiste em uma diversidade de miúdos de boi, ou de bode, cozidos dentro de um estômago costurado (também conhecido como bucho). É uma comida pesada, gordurosa e bem temperada. É apreciada por tanta gente, e a tal ponto, que se tornou um prato consolidado na culinária cearense e

hoje é apresentado aos turistas como um prato típico da terra. Acontece que a relação de boa parte das pessoas com a buchada não é muito boa. Comer buchada ou carne de cachorro é tabu para parte significativa da população das regiões onde essas iguarias são consumidas. É evidente que este comportamento possui uma dimensão subjetiva, mas há uma dimensão coletiva difícil de ser ignorada. Para além de simplesmente não gostar – como não se gosta, por exemplo, de chocolate amargo ou vinho seco –, as pessoas costumam ter nojo dessas comidas. E não importa as condições de higiene em que são preparadas, ou o aspecto visual e o cheiro, a repulsa é a mesma. Para essas pessoas, cortar, mastigar e engolir carne de cachorro ou estômago e miúdos de animais ultrapassa os limites do aceitável em termos de alimentação. O interessante é justamente que este limite é incompatível com os limites de muitas outras pessoas que vivem no mesmo período e no mesmo espaço. Quando falamos em sensibilidades, o “outro” pode ser um chinês que viveu no séc. II a.C, um mulçumano que vemos na televisão ou nossa própria mãe.

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Referência das imagens: http://blogs.estadao.com.br/bate-pronto/proibicao-a-carne-de-cachorro-fere-princ/ http://adorocomer.com/2012/06/26/este-e-o-lugar-boteco-do-momon/

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Vide História

Célia

A cidade grande era impessoal. Era como se tudo fosse escondido. Alimentava um gosto irrestrito pelo novo. Queria conhecer novos lugares, ter experiências diferentes, comer comidas diferentes, ir ao teatro, cinema, praia. Entrou na academia. Queria usar biquíni. Fez amizades com outras mulheres. Celinha, de agora em diante. Conheceu os bares e um novo mundo. Gostava de martini com cereja. As amigas flertavam. Ela ainda não tinha coragem para tanto. Falavam putaria com naturalidade. Ela só gostava de ouvir mesmo. Era novo. Numa das vezes, escutou atenta as meninas falarem sobre a descoberta do prazer. Lembrou que havia sido muito diferente com ela. Nunca havia se tocado assim. Em casa, pensou sobre isso em silêncio. Decidiu que aquele era o momento. Ligou o som, aumentou o volume e foi ao quarto. Trancou a porta, desligou a luz, deitou-se na cama e fechou os olhos. Tocou um corpo novo, nascido naquele momento e, pela primeira vez, gozou.

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Vide História

Retravestir-se

Num entardecer nublado de Janeiro, o senhor Julio Bandeira se travestiu. Tateou-se todo, trêmulo, enquanto mirava maravilhado sua imagem no espelho. Cinco minutos depois, caminhava lentamente pelas ruas do bairro, retravestido com sua boina, seu cachimbo e a velha tristeza estampada nos olhos.

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“Uma hora não é uma hora, é um vaso cheio de perfumes, de sons, de projetos e de climas.” Marcel Proust



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