The President

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PARA DAR E VENDER Surpreende sempre lembrar que os tais tesouros da arca foram produzidos em curto espaço de tempo, não mais do que oito anos. Uma prodigalidade espantosa. Surpreende também saber que Noël teve, devidamente registrados como tal, algo como 60 diferentes parceiros e, ainda assim, mais de metade de sua produção é assinada apenas por ele. E a surpresa aumenta ao percebemos que a obra de Noël foi com certeza muito maior. Afinal, naquele período proliferavam os “comprositores”. É esclarecedor esse depoimento de Noël ao jornal O Globo, em 31 de dezembro de 1932: “Pergunta-se na cidade constantemente: há compositores que compram samba? Eu posso afirmar que há. Falo por experiência própria. Já vendi muitos sambas. Você achará graça quando eu disser que vendia os sambas exclusivamente pelo prazer de vê-los gravados (...). Dizia-se nas ruas: ‘O samba de fulano é ótimo’. Eu me enchia de orgulho (...) O meu maior freguês de sambas era Gomes Júnior, da Casa Viúva Carneiro. Eu os vendia por uma verdadeira bagatela e eles davam lucros. Naquele tempo eu era otário. Agora sim é que eu estou começando a compreender a vida. Também não os compro porque, graças a Deus, não preciso disso.” Noël Rosa é sempre chamado “poeta da Vila” e centenas e centenas de seus versos revelam a justeza do epíteto. Lembremos apenas destes, em “Pela Décima Vez”, samba de 1935 que Noël chegou a mencionar como o seu preferido, dizendo que “ele acorda em mim o desejo de sonhar”: Joguei meu cigarro no chão e pisei Sem mais nenhum aquele mesmo apanhei e fumei Através da fumaça neguei minha raça chorando, a repetir: Ela é o veneno que eu escolhi pra morrer sem sentir O que com frequência se esquece, no entanto, é que Noël Rosa era ao mesmo tempo excepcional como melodista e tinha invejável sentido rítmico. Não se podendo esquecer, ainda, que era ótimo músico, tocava violão muito bem. O resultado de sua extraordinária capacidade de articulação entre os ingredientes da canção – o “modo Noël” de combinar melodia, ritmo, letra, pausas, acordes – é que fez do compositor não apenas um dos maiores nomes da música popular brasileira de todos os tempos, mas também um dos grandes cronistas do Brasil de sua época. Criador de uma galeria de tipos, era um talentoso cronista do cotidiano do Rio de Janeiro. Cantava seu bair-

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Personagem singular na história da música brasileira, de verve e genialidade incomuns, produziu centenas de tesouros em curto espaço de tempo, não mais do que oito anos

ro, sua cidade, traduzia o espírito de tudo o que via em canções marcadas pelo humor e pela veia crítica. Sobre o tema, vale citar o próprio Noël em mais um fragmento da já referida entrevista a O Globo: “Antes, a palavra samba era sinônimo de mulher. Agora já não é assim. Há também o dinheiro, a crise. (. . .) Agora , o malandro se preocupa , no seu samba , quase tanto com o dinheiro como com a mulher. A mulher e o dinheiro são, afinal, as únicas coisas sérias deste mundo.” E também trecho de texto assinado pelo jornalista e pesquisador João Máximo: “Foi Noël Rosa quem demonstrou – com suas letras inspiradas no linguajar do povo, nos episódios do dia a dia, nos personagens de sua cidade, nos temas de sua época e ao mesmo tempo de todas as épocas, como os maus governos, a falta de dinheiro, a fome, o crime, a mendicância, a marginalidade, a boêmia – que tudo cabe numa canção ‘séria’, ainda que haja lugar também para o humor e a crítica irreverente. (...) Até em suas canções de amor, Noël desce das alturas do poeta derramado para o chão do homem comum. E o faz de forma admirável, única.”


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