The President

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Edição 33 | junho 2018 • rogerio salume

Edição 33 junho 2018

Rogerio salume CEO da Wine.com.br

Vinho

para todos

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a legião estrangeira

o country club do rio

um safári No quênia

por JR DURAN

Por JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS

Por TUCA REINÉS

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e d i to r i a l

R

ogerio Salume nasceu para vender e para se comunicar. Sempre foi assim, desde criança em Itabuna, sua cidade natal no sul da Bahia. Ele se lembra de que, aos 8 anos, já vendia frutas – ganhas dos vizinhos que tinham sítio – e balas num tabuleiro em frente de casa. Aos 12, Rogerio se mudou para Salvador. Nadador compulsivo, seguiu aos 18 para Vitória, no Espírito Santo. A ideia era ficar mais próximo das competições da região Sudeste. Data dessa época seu primeiro trabalho com carteira assinada. Novamente, o de vendedor de balas. Começou a pé, depois de ônibus. “Vendi até de bi­ ci­cleta, uma Caloi Ceci cor-de-rosa que minha prima me emprestou”, disse ele rindo a Luciana Lancellotti. “A primeira coisa que aquele que pretende se dedicar ao comércio deve aprender é a sorrir”, ensina um milenar ditado chinês. Rogerio, CEO da Wine.com.br, o maior e-commerce de vinhos da América do Sul, acredita nisso. Com 140 mil sócios, a empresa atende a 7 mil pedidos por dia e distribui 11 milhões de garrafas por ano. Faturou R$ 400 milhões em 2017 e pode chegar aos R$ 600 milhões em 2018. Este ano marca também o oitavo aniversário de THE PRESIDENT. Como você irá notar, a revista foi totalmente reformulada do ponto de vista gráfico. O design está mais leve, arejado, contemporâneo. Obra do diretor de arte Marcelo Rainho, um craque no assunto. Só não abrimos mão, evidentemente, da qualidade de nosso conteúdo. Ronaldo Bressane fala das sensuais heroínas da série La Casa de Papel, “o” hit da Netflix – e ainda aproveita para investigar o universo hard-core das bonecas infláveis. Silvio Lancellotti conta tudo o que você sempre quis saber sobre a mandioca – mas não tinha coragem de perguntar. O clima de aventura romântica das legiões estrangeiras (a francesa e a espanhola) é esmiuçado com humor e ironia por JR Duran. Joaquim Ferreira dos Santos, nosso atual Bruxo do Cosme Velho, sobrevoa e depois mergulha naquele que já foi tido como a agremiação mais fechada do Brasil – o Country Club do Rio de Janeiro. Enquanto isso, Tuca Reinés, recém-chegado do Quênia, mostra em imagens inesquecíveis por que o Segera Retreat oferece o melhor safári da África. Boa leitura e até setembro. andré cheron e fernando paiva Publishers

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e xpediente the president Publicação da Custom Editora edição 33

publishers André Cheron e Fernando Paiva

REDAÇÃO Diretor editorial Fernando Paiva fernandopaiva@customeditora.com.br diretor editorial adjunto Mario Ciccone mario@customeditora.com.br redator-chefe Walterson Sardenberg So berg@customeditora.com.br

PUBLICIDADE Diretor executivo André Cheron andrecheron@customeditora.com.br

ARTE Diretor Marcelo Rainho assistente Raphael Alves raphaelalves@customeditora.com.br prepress Daniel Vasques danielvasques@customeditora.com.br

executivOs de negócios Northon Blair northonblair@customeditora.com.br Marcia Gomes marciagomes@customeditora.com.br Marilu Neme marilu@customeditora.com.br

PROJETO GRÁFICO Marcelo Rainho COLABORARAM NESTE NÚMERO Texto Joaquim Ferreira dos Santos, Luiz Guerrero, Marcello Borges, Marina Moraes, Marcio Ishikawa, Marion Frank, Roberto Amado, Roberto Muggiati, Ronaldo Bressane, Silvana Assumpção, Silvio Lancellotti, Tom Cardoso e Ubiratan Leal Fotografia Angelo Pastorello e Tuca Reinés ilustração Ricardo van Steen Tratamento de imagens Daniel Vasques e Felipe Batistela Revisão Goretti Tenorio Capa Rogério Salume por Tuca Reinés THE PRESIDENT facebook.com/revistathepresident @revistathepresident

diretor comercial Oswaldo Otero Lara Filho (Buga) oswaldolara@customeditora.com.br

ADMINISTRATIVO/FINANCEIRO Analista financeira Carina Rodarte carina@customeditora.com.br Assistente Alessandro Ceron alessandroceron@customeditora.com.br REPRESENTANTES REGIONAIS GRP – Grupo de Representação Publicitária PR – Tel. (41) 3023-8238 SC/RS – Tel. (41) 3026-7451 adalberto@grpmidia.com.br CIN – Centro de Ideias e Negócios DF/RJ – Tel. (61) 3034-3704 / (61) 3034-3038 paulo.cin@centrodeideiasenegocios.com.br Tiragem desta edição: 12.000 exemplares CTP, impressão e acabamento: Bandeirantes Soluções Gráficas Custom Editora Ltda. Av. Nove de Julho, 5.593, 9º andar – Jardim Paulista São Paulo (SP) – CEP 01407-200 Tel. (11) 3708-9702 ATENDIMENTO AO LEITOR atendimentoaoleitor@customeditora.com.br Tel. (11) 3708-9702

www.customeditora.com.br

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28 VISÃO

Mulheres à beira de instaurar o matriarcado na série espanhola La Casa de Papel

Rogerio Salume, o homem que democratizou o vinho com a Wine.com.br

52 capa

94 memória

32 AUDIÇÃO

66 imprensa

100 aventura

Surgido há 70 anos, o disco de vinil ensaiou uma retirada. E voltou com peso renovado

36 paladar

O segredo da força de The Economist em tempos de baixa para o jornalismo impresso

A história e as histórias da Legião Estrangeira, o exército só de voluntários

A chama da grife britânica Dunhill, famosa pelos isqueiros e charutos, jamais se apaga

72 luxo

106 viagem

40 olfato

76 motor

120 CRÔNICAS

44 TATO

82 esporte

48 sexto sentido

88 estilo

Lembra-se das bonecas infláveis? Pois agora dá até para apresentá-las à família

Até mesmo empresários pragmáticos como Steve Jobs reconhecem o poder da intuição

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Há cem anos a Mitsubishi Motors começava a trilhar a sua trajetória de sucesso

Quem, afinal, ganharia as Copas do Mundo que não aconteceram, as de 1942 e 1946?

Entramos em um dos mais esclusivos clubes do país, o discreto Country do Rio de Janeiro

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Uma década sem o cantor e compositor Dorival Caymmi, um dos grandes

A nossa mandioca ganhou o mundo. Hoje, alimenta 500 milhões de pessoas

Andy Warhol sentia o cheiro das novidades. E montou sua coleção de perfumes

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Fizemos um safári em Segera Retreat, no Quênia, em meio a 40 tipos de mamíferos

Tom Cardoso e a Bela Gil do Mal. Marina Moraes e o rapaz do banho de touca


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co l a b o r a d o r e s qual foi o seu momento da virada? THE PRESIDENT muda. E eles contam como mudaram a própria vida

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CAPA | VIAGEM

CAPA

VISÃO | TATO

TUca reinés

luciana lancellotti

ronaldo bressane

“Transformações têm de acontecer para tudo e para todos. THE PRESIDENT só ganhará com isso. Minha grande trans­ formação ocorreu com a era di­gital. A cada dia surgem novas e fantásticas tec­no­ logias. Como fotógrafo, tenho de me es­ forçar para acompanhá-las. É algo de­ safiador e maravilhoso. Em especial para mim, que fiz a escola analógica completa.”

“Sem dúvida meu turning point aconte­ ceu quando encerrei meu ciclo como re­ pórter de factual na Rede Globo para me dedicar ao jornalismo de viagens e gas­ tronomia – uma decisão corajosa e muito bem pensada. Caí no mundo literalmen­ te e nunca me arrependi dessa decisão. Ganho bem menos, é verdade, mas o trabalho ganhou novo sentido.”

“Em 2000, senti que ser publicitário, no meu caso, não estava com nada. Resolvi abraçar a pobreza virando jornalista. De­ zoito anos e mais de mil textos depois, sinto que ter trocado um alto salário es­ crevendo anúncios pela vida de monta­ nha-russa na imprensa me trouxe, além de rugas e cabelos brancos, muitas histó­ rias divertidas para contar.”

OLFATO

sexto sentido

paladar

silvana assumpção

marion frank

silvio lancellotti

“Duas coisas que sei sobre a mudança. Uma é consultar o I-Ching, como faço des­ de os 15 anos. Outra é voltar aos livros que li muito tempo atrás. A perspectiva muda e descubro mais não só sobre a obra (isso também) mas sobretudo sobre mim mes­ ma. Uma coisa que não sei: qual seria a transição mais importante da minha vida. Mudança é a própria essência de viver.”

“Mudar faz parte do dia a dia. Mas a mi­ nha grande guinada pessoal aconteceu anos atrás ao me aproximar do budismo. Foi abrir um mundo dentro do outro, arejando os cantos mais escuros da alma (e do temperamento). Por essas e outras, fui parar na Califórnia, onde recarrego as baterias (e as ideias) a cada seis meses em um centro de estudos budistas.”

“Aos 73 anos de idade e meio século de jornalismo, posso dizer que a minha re­ formulação pessoal e profissional, hoje, acontece sempre que acordo, a cada novo dia, e me disponho, embora orgu­ lhoso do que já fiz, a aprimorar ainda mais o que aprendi e que nunca me será suficiente.”

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luxo

imprensa

estilo

marcello borges

roberto muGgiati

joaquim ferreira dos santos

“Todas essas mudanças na economia nos últimos anos levaram-me a trocar de lado no balcão. De editor de revista de vinhos, virei professor sobre o assunto. Passei também a escrever sobre enogastronomia, viagens e outros assuntos bacanas. Fazer isso numa revista como a THE PRESIDENT é algo que me deixa feliz.”

“Minha virada foi em 1968. De repórter especial de Manchete, no Rio de Janeiro, passei a editor de artes e espetáculos da Veja, em São Paulo. A revista foi lançada em 11 de setembro. Na sexta-feira, 13 de dezembro, chegou o AI-5. Como fazer uma revista de opinião sob censura total? Tivemos de criar artifícios. Orgulho-me de, antes de voltar ao Rio, no final de 1969, ter assinado a capa sobre Glauber Rocha premiado em Cannes.”

“Eu gosto muito de uma música do Kid Abelha, aquela de ‘transformar o rascunho em arte-final’. Seja no amor, no trabalho ou na vida cotidiana, essa é a única pos­ tura. Redesenhar, readiagramar, re­formar – e tentar fazer com que o projeto evolua. Pretendo passar a vida assim. Re­es­cre­ vendo os tropeços, acertando as vír­gulas do caminho. E quem escreve sa­be: o texto sempre pode melhorar.”

esporte

Memória

aventura

ubiratan leal

roberto amado

jr duran

“Estou como a THE PRESIDENT: em mu­ dança. É o que tenho notado. Sempre fui um jornalista mais tradicional, repórter e editor em meios escritos. Mas algumas oportunidades surgiram nos últimos tempos que me fizeram trabalhar principalmente com TV e até YouTube. Onde isso vai parar? Não sei. Toda mudança tem uma boa dose de aposta. Mas só se avança se alguns riscos forem assumidos.”

“Passei por várias transformações, mu­ dan­ç as radicais que me fizeram tomar novos rumos. Casamentos desfeitos, mo­­radia em outros países, hábitos que abandonei, a numeração das roupas, que só aumentou, novas profissões e desafios, novas imagens no espelho. Mas sempre restou a essência do escritor – uma inquietação na alma que, no fundo, é motivo de todas as transformações.”

“Só passei a dormir tranquilo depois que inventaram a fotografia digital. Antes, com filmes, tinha de esperar até o dia seguinte para saber se o trabalho havia ficado como esperávamos. Você podia ter fé (no mundo e na própria capacidade), mas isso só era confirmado quando voltavam os filmes do laboratório. Com a fotografia digital, as coisas certas e erradas aparecem na hora. Agora dá para dormir tranquilo.”

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A RQU iTE T U R A P o r Fer n a n d o pa i va

A prisão que virou arte Tai Kwun, em Hong Kong, onde ficou detido Ho Chi Minh, hoje é centro cultural

Tai Kwun. Por quase 180 anos, o nome inspirou respeito em Hong Kong, sul da China. Construída em 1841 e remodelada diversas vezes, “a cadeia grande” funcionou até 2006. O líder vietnamita Ho Chi Minh ficou preso ali de 1931 a 1933. Durante a Segunda Guerra Mundial, os japoneses a utilizaram como centro de tortura. Ao seu redor brotaram a delegacia e o tribunal centrais. E inúmeros prédios para funcionários. O tempo passou. Tai Kwun entrou em decadência. Até que, há dez anos, o Jóquei Clube e a prefeitura decidiram restaurar o enorme quarteirão de 30 mil metros quadrados. Meio bilhão de dólares foram gastos no recém-inaugurado Tai Kwun – Centre for Heritage and Arts. Cercados pelo centro financeiro, seus 16 edifícios históricos, novos como nunca, se alternam com espaços ao ar livre. Entre eles, destaque para o antigo presídio Victoria, que ganhou um auditório de 200 lugares e uma belíssima galeria de arte contemporânea. Ambos com a assinatura do festejado escritório suíço de arquitetura Herzog & de Meuron.

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A RTE

Modernos inauguram Casa Roberto Marinho

Muito além do naïf Ele era paupérrimo. Ainda jovem, perdeu a maior parte dos dentes. Mancava de uma perna, tinha problemas mentais. E também uma rica vida interior, como revelam seus quadros. Sebastião Theodoro Paulino da Silva (1923-2003), o Ranchinho, viveu como catador de papel em Assis, interior paulista, até os 24 anos. Foi quando, incentivado pelo escritor José Nazareno Mimessi, aprendeu a usar o guache e a tinta acrílica. Começava ali uma produção irregular. Ranchinho repetia-se. Nem sempre primava pelos cuidados. Podia ser indolente. Em seus melhores momentos, porém, ia muito além do naïf. Dava-se bem com a perspectiva e as cores. Sua obra tinha personalidade. Impressionava. Recebeu prêmios em salões. De 16 de agosto a 17 de setembro, a Ricardo Camargo Galeria de Arte, em São Paulo, fará uma exposição de 28 quadros de Ranchinho, incluindo “O Coelho” (1984), acima. É a chance de conhecer melhor um artista sem par – que o crítico Oscar D’Ambrosio chegou a comparar a Van Gogh. rcamargoarte.com.br

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Ismael Nery é um dos dez artistas da mostra de estreia do novo instituto cultural carioca

Roberto Marinho (1904-2003) começou a comprar obras de arte quando ainda era um jovem jornalista, herdeiro do jornal O Globo, fundado por seu pai. Adquiria quadros e esculturas diretamente dos artistas com quem convivia, sem nenhuma preocupação com investimentos. Comprava o que gostava. Para sua sorte – e agora nossa –, tinha ótimo faro. Sua coleção de 1.473 itens guarda parte significativa da arte moderna brasileira. A rigor, trata-se de um acervo monumental. Desde abril, a residência cor-de-rosa em que o proprietário da Rede Globo morou a maior parte da vida (desde 1939) foi transformada em sede do Instituto Casa Roberto Marinho, aberta ao público no bairro carioca do Cosme Velho – a meio quilômetro a pé da estação do trenzinho que leva ao alto do Corcovado. A mostra que inaugura o espaço expositivo de 1.200 metros quadrados, e se estenderá até 30 de setembro, reúne obras de dez artistas brasileiros modernos: Pancetti, Guignard, Tarsila do Amaral, Lasar Segall (lituano, mas radicado no Brasil), Ismael Nery, Djanira, Di Cavalcanti, Milton Dacosta, Burle Marx e Portinari. Para os quadros deste último foi reservado o antigo quarto do dono da casa. Além do espaço de exposição, a Casa Roberto Marinho tem sala de cinema, a livraria Pinakotheke e um café. Inaugurado pela iniciativa privada sem incentivos fiscais, o instituto pretende se tornar um centro de referência de pesquisas sobre o modernismo. Nos jardins, há esculturas de Raul Mourão e Carlos Vergara. casarobertomarinho.org.br

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pa r a íso

Cada vez melhor O hotel-spa Las Ventanas, no México, chega à maioridade

A localização é espetacular. O Las Ventanas al Paraiso, na península da Baja California, no México, está instalado diante do mar de Cortez. A poucos quilômetros, fica o Pacífico. Dá para surfar, velejar, jogar golfe, observar baleias e praticar pesca de oceano na região, conhecida como “capital mundial do marlim”. Diversões urbanas? O resort, do grupo Rosewood, fica perto da animada cidade de Cabo San Lucas. Um pouco de aventura? O deserto começa nas proximidades, e você pode desbravá-lo de quadriciclo ou a cavalo. Acima de tudo está o conforto. São 71 suítes. As menores com 90 metros quadrados. A maior, acredite, é uma casa de 2.600 metros quadrados, com duas piscinas e elevador privativo. É o lugar perfeito para namorar. Em caso de comemoração, por meio de um aplicativo você aciona uma queima de fogos personalizada. Quer mais? Ao completar 21 anos, o Las Ventanas acena com várias novidades, a começar pela expansão de seu spa. A vasta área de piscinas também aumentou. O mesmo vale para a gastronomia, que agora – além de restaurantes mexicanos e de cozinha internacional – conta com uma casa de culinária oriental, a Arbol. Pode acreditar: as ostras frescas, servidas no balcão do bar de entrada, são apenas o começo de uma noite inesquecível. (FP)

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Pelo belo Cantão de

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Dos 26 cantões da Suíça – que equivalem aos nossos estados da federação – apenas seis falam francês, entre eles o cantão de Vaud, também conhecido como região do lago de Genebra. Terra de cultura, patrimônio e excelência gastronômica, seus dois centros urbanos, Lausanne e Montreux Riviera, estão à beira do lindo lago Léman, o maior da Europa Ocidental. Neste país inundado de belas paisagens, a região se destaca por sua natureza. Nas encostas das montanhas suaves os vinhedos do Lavaux com suas vistas de cartã-postal e seus passeios românticos unem duas paixões: as bicicletas e os vinhos. Por isso, há programas adoráveis para pedalar, caminhar ou beber. Confira.

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Caminhando Para quem deseja percorrer o cantão de Vaud em caminhadas que exploram os terroirs viníferos da região, é possível baixar um app gratuito – o Vaud:Guide. Pelo smartphone, você recebe orientações para o passeio, descobrindo a história e os produtos da região. Três rotas novas levam ao coração do parque natural Gruyère Pays-d’Enhaut (a 80 quilômetros de Lausanne), a Côtes de l’Orbe (uma das apelações viníferas do cantão e a mais antiga região produtora de vinhos da Suíça) e ao vale de Joux, no parque regional do Jura. Ao todo, são sete itinerários, incluindo Morges e as áreas próximas. Os vinhos da Côtes de l’Orbe privilegiam variedades tintas como a Gamay e a Pinot Noir, ideais para o verão e para acompanhar um bom queijo gruyère.

Pedalando Pedalar até o espetacular castelo de Chillon, à beira do lago Léman, em Montreux, é uma maravilha. Tão ou mais delicioso é percorrer de bicicleta os cenários montanheses do cantão de Vaud. Não se assuste. Em áreas mais íngremes você pode recorrer a uma bicicleta elétrica. Ao fundo, em boa parte do caminho, veem-se os picos de neve eterna. Dos pontos mais altos avista-se o emblemático Mont Blanc. Pelo caminho, florestas, planícies e preciosidades como Les Mosses, Le Pillon e La Croix. Se você prefere mountain bike, busque o vale de Joux e os 32 quilômetros da Grand Risoud, rota que passa pela maior floresta de abetos (pinheiros muitas vezes azuis) da Europa. Outra dica é o parque natural do Jura, que leva à cidade medieval de Romainmôtier, com sua abadia milenar, a 34 quilômetros de Lausanne. Os programas guiados custam a partir de 190 francos suíços (€ 160). O preço inclui o transporte de sua bagagem. myvalleedejoux.ch

Bebendo Charlie Chaplin morou em Vevey de 1953 até sua morte, em 1977, numa casa transformada em 2016 no Chaplin’s World, museu que reúne objetos pessoais do artista e uma réplica de seu estúdio. Também em Vevey – colada em Montreux e a 34 quilômetros de Lausanne – acontece a Fête des Vignerons (Festa dos Viticultores). Com raízes no século 17, reúne os produtores de vinho da região, conhecida pelos rótulos à base da uva nacional, a Chasselas. Sua próxima versão ocorrerá entre 18 de julho e 11 de agosto de 2019 e terá como diretor artístico Daniele Pasca, responsável pela cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno de Turim. Desde dezembro de 2016, o Festival faz parte da lista de Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco. Boa pedida para conhecer vinhos brancos singulares que acompanham muito bem as trutas arco-íris do lago Léman. fetedesvignerons.ch

fotos: istock, divulgação

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g a r ag em P o r M a r i o Ci cco n e

O hipercarro McLaren Senna é um carro de corrida homologado para as ruas

Motor V8 Twin Turbo 800 cv

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Velocidade máxima 340 km/h

Aceleração De 0 a 100 km/h em 2,8 segundos

Ao encomendar uma McLaren, não há dúvida: o seu nível de exigência está no grau mais elevado. Foi com isso em mente que a Eurobike negociou por dois anos para ter a divisão automotiva do Grupo McLaren no seu portfólio de marcas. A loja aberta em São Paulo já tem sete veículos vendidos – seis deles na pré-venda. A meta para a boutique brasileira é chegar a 20 por ano. O modelo mais exclusivo é o McLaren Senna. Duas unidades deste hipercarro foram vendidas no Brasil, de um total de 500 produzidas. Trata-se de um bólido de corrida homologado para as ruas. “Um carro extremo inspirado no piloto mais extremo que já existiu”, estabeleceu a marca. E foi Bruno Senna, sobrinho de Ayrton, quem ajudou a desenvolver este foguete. O condutor tem o recurso do controle de drift variável para escolher o ângulo que o carro pode sair de traseira, antes que o controle de tração seja acionado. Já os faróis são pensados para servirem de entradas de ar. A bordo, destaque para o painel, que se vira para mostrar um letreiro com as informações básicas. Assim, o motorista fica apenas concentrado no volante.

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Um nobre aventureiro Rolls-Royce apresenta seu primeiro SUV para passar por terra e lama, sem perder a elegância

Motor V12 6.75L de 563 cv

Velocidade máxima 250 km/h

Aos 92 anos, é IMprovável que a rainha Elizabeth 2ª testará o novo Rolls-Royce Cullinan. Mas não deve lhe faltar vontade para colocar à prova o primeiro SUV da marca. Ele é bem apropriado para as tradicionais caçadas ao redor do Castelo Balmoral, na Escócia, casa de férias da família real. A Rolls resolveu desbravar o terreno dos utilitários. Sem brincar em serviço, produziu uma fortaleza 4x4 de 2,6 toneladas. Cullinan é uma referência ao nome do maior diamante bruto já encontrado. Este utilitário é capaz de superar qualquer terreno: terra, cascalho, lama e neve. Entre seus recursos, destaque para a suspensão. Se uma das rodas perde tração, uma bolsa de ar se expande para que o pneu consiga tocar o solo. Ao abrir o porta-malas, uma atração à parte. Junto com os 560 litros de espaço, há duas cadeiras e uma mesa retráteis presas ao carro. Constitui-se um lounge para apreciar a paisagem. No interior, os detalhes de madeira e couro dão os toques palacianos a este SUV de luxo, que se rendeu à tela sensível ao toque. O modelo deve chegar ao Brasil no segundo semestre.

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Potro domado Enfim entre nós, o Mustang alterna entre o espírito dócil e a agressividade ao toque de um botão Por Marcio Ishikawa

Motor V8 de 466 cavalos

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Velocidade máxima 250 km/h

Aceleração de 0 a 100 km/h em 4,5 segundos

Lançado em 1964, o Mustang nasceu para ser um esportivo potente e de linhas musculosas, que fez sucesso imediato e vendeu mais de 1 milhão de unidades em menos de dois anos. Para os brasileiros, até 2018, restava o tortuoso caminho da importação independente. Mas a espera acabou: o Mustang, em sua sexta geração, já é vendido oficialmente pela Ford no Brasil. O modelo que aceleramos no autódromo de Interlagos é equipado com motor V8 de 466 cavalos e transmissão automática de dez marchas. Na pista, oferece acelerações e frenagens vigorosas, além de desenvoltura nas saídas de curvas. Graças ao controle de tração e estabilidade, é possível pisar no acelerador sem sustos. Sem eles, a história seria outra. Nas ruas, é possível conduzi-lo com tranquilidade no trânsito - mérito da eletrônica embarcada, que oferece, ao toque de uma tecla no console, seis modos de condução, que alteram o nível de agressividade das respostas de acelerador, transmissão e volante. É um carro que abraça a tecnologia sem deixar a tradição para trás. Ele faz jus à sua história.

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sh ot P o r WA LT ERSO N SA R D EN B ERG Sº

Breve história do mé

Tiziu branco Qual a melhor branquinha do Brasil? Entendase: a cachaça incolor, que não descansa em barris de madeira. Pergunta difícil num país

1635 É proibido por lei o consumo da cachaça. Os portugueses temiam a concorrência com a bagaceira.

que produz 4 mil rótulos da bebida. A resposta veio de Belo Horizonte. Em sua 28ª temporada, a Expocachaça reuniu 17 especialistas. Eles provaram 238 marvadas – incluindo aquelas sem madeira. O veredito: entre as branquinhas, venceu a Tiziu, nome do conhecido pássaro negro. Produzida em Salinas (MG) por Tito Moraes, é perfeita pura. E tão boa quanto na caipirinha.

Tiziu preto Do sul do México até a Argentina. Este é o território do tiziu (Volatinia jacarina), a ave preta da família Thraupidae. No Brasil, pode ser encontrado em todas as regiões. De novembro a abril, ele migra para o Planalto Central.

Receita de mestre

Segundo Derivan Ferreira de Souza, nosso mais conhecido barman, convém usar o limão taiti na caipirinha. “O galego tem sementes e um zest que pode amargar a bebida”, diz. Ele indica cortar o limão de cima para baixo em quatro frações, retirando as laterais da casca. O talo central também deve ser removido, antes de introduzir o limão no copo, com a polpa virada para cima. Acrescenta-se açúcar, e pressiona-se com delicadeza. Por fim, adicionam-se o gelo, em cubos, e a cachaça.

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“Eu já tirei mais do álcool do que o álcool tirou de mim.” WINSTON CHURCHILL

1661 A rainha regente de Portugal, Luísa de Gusmão, libera a produção de canjebrina por aqui. 1994 A bebida é decretada “produto cultural do Brasil”. 2012

Os Estados Unidos reconhecem a cachaça como produto tipicamente brasileiro. O que facilita as exportações.

2018 Os EUA são, hoje, o maior importador, seguidos pela Alemanha, Paraguai, Uruguai, França e Portugal.

Keith Richards adora Em 1994, a caipirinha foi enfim admitida da lista da International Bartenders Association (IBA), a entidade criada em 1951 para bebemorar o pós-guerra e padronizar os coquetéis. Na ocasião, preparou-se um dossiê, com testemunhos de apreciadores. Entre eles, a modelo Linda Evangelista e o guitarrista Keith Richards.

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OS 5 sentidos v i s ã o

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LA CASA DE PAPEL O talento das atrizes espanholas Alba Flores, Úrsula Corberó e grande elenco

FOTO: divulgação

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v i s ã o Na mesma moeda As incendiárias heroínas da série La Casa de Papel, da Netflix, enfrentam o machismo de cara Por ronaldo bressane Não é o roteiro, mais cheio de furos que a catedral da Sagrada Família. Tampouco a direção visual, tão elegante quanto as chicas de Madri e tão quente quanto as de Barcelona. Não é, também, a concepção da série, tão repleta de referências quanto um filme do Tarantino (aliás, Cães de Aluguel é homenagem direta). Nem são as máscaras de Dalí, nem a trilha sonora que contém sacadas como Bella Ciao, o hino dos partigiani italianos na Segunda Guerra Mundial, ou as reviravoltas da narrativa. Ou, ainda, o misterioso charme nerd do Professor (Álvaro Morte). Nem mesmo o idioma original da série, o espanhol, em que palavrões soam como poesia. Nada disso: o sucesso da série La Casa de Papel, da Netflix, só pode ser explicado pela força de suas protagonistas. “Empieza el matriarcado!”, anuncia a ladra Nairóbi, em uma sequência épica, quando destrona seu chefe Berlim – cena que viralizou, virou gif, grafite e estampa camisetas, bonés e calcinhas. Embora o assalto à Casa da Moeda espanhola seja centrado no enigmático Professor, são as personagens femininas que fazem avançar a narrativa. Afinal, de forma muito sutil, La Casa de Papel nos apresenta muitas camadas das complexas estruturas do machismo (estupro, intimidação, abandono, tráfico de mulheres, exploração) e revela como cada uma das personagens se vira para brilhar. Mais: o elenco escolhido de modo meticuloso é o que mais cintila nesta série de duas partes – que acaba de emplacar a próxima temporada. Quinteto sangue quente: da esquerda para direita, Itziar Ituño (que interpreta Raquel), Alba Flores (Nairóbi), Tóquio (Úrsula Corberó), Maria Pedraza (Alison) e Esther Acebo (Mónica)

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a personagem Nairóbi olha para a câmera e diz: “Comece o matriarcado!”. A julgar pelas mulheres da série, já começou

Esther Acebo (que interpreta Mónica) tem cenas bem calientes na série. Alba Flores vive Nairóbi, falsificadora mas bom coração

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“Foram quatro anos de muita explosão hormonal: dez jovens bonitos, com trabalho, dinheiro e fama. Transávamos todos com todos e ninguém se entediava”, declarou Úrsula Corberó em 2016 sobre os bastidores da série Física y Química, que a lançou na TV. À época, as palavras tiveram enorme repercussão. Agora que está no centro de La Casa de Papel e é considerada a atriz mais quente da Espanha, Úrsula, uma catalã de 28 anos, tem ainda menos papas fritas na língua. “A polêmica me chateou: se fosse um homem falando isso não diriam nada”, disparou. “Recebi mais críticas das mulheres – são mais machistas que os homens! Seria bom se as pessoas transassem mais!” Sua personagem Tóquio narra a série do começo ao fim. Magra, ágil e sexy, basta entrar em cena para a ação calentar.

As sequências de sexo mais incandescentes são protagonizadas por ela e seu par romântico, o jovem Rio (Miguel Herrán). Armada de metralhadora ou só com sua língua afiada, o arquétipo de Tóquio é o da femme fatale. Maldita, já levou namorado e mãe para o túmulo por causa de suas estripulias fora da lei. Embora todos digam que Úrsula se inspirou na Mia Wallace de Pulp Fiction, seu visual foi copiado de Mathilda, personagem de Natalie Portman em O Profissional, de Luc Besson. Sucesso no Instagram em imagens que deixariam Cléo Pires corada, Úrsula saiu da pista: está namorando o ator Chino Darín – sim, filho do maior astro hispânico, o argentino Ricardo Darín. Do outro lado do roubo está a representante da lei e da ordem, a inspetora Raquel Murillo. Ela chefia toda a investigação – cercada de colegas machões e machistas. É a personagem mais complexa do seriado. Mesmo policial, sofria abusos violentos em casa, de seu ex-marido, pai de sua filha – e também colega de trabalho. Outro colega de trabalho a assedia, e chegaram a ter um caso. Mora com a filha e a mãe, uma senhora com problemas de saúde. Com tantas tretas, é, na prática, uma equilibrista. E, para se enrolar ainda mais, se envolve com ninguém menos que o Professor. A inspetora Raquel sintetiza tudo o que uma mulher aguenta vivendo a vida toda sob as leis da opressão estrutural masculina: consegue gerenciar a vida profissional, mas sua intuição não funciona bem e a combinação de sensibilidade e vulnerabilidade a conduz ao paradoxo de se apaixonar pela pessoa errada: o criminoso que está caçando. Atriz de teatro, a basca Itziar Ituño tem 43 anos, é cantora e bailarina no Plaza de Dantza Danguilisike, grupo especializado na cultura vasca, e protagonizou Loreak, fita espanhola que quase levou o Oscar de filme estrangeiro em 2015. Além de feminista de carteirinha, Itziar é bem engajada politicamente. Luta pela independência do País Basco e planeja dirigir uma série em Bilbao toda falada em euskera, a língua local.

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Embora estejam em tramas secundárias, duas outras personagens chamam atenção: Alison Parker e Mónica Gaztambide. A primeira simboliza o tesouro encantado: a polícia só não entra na Casa da Moeda por temer o que pode acontecer com a filha do embaixador inglês. Embora seja rica e mimada, vemos que foi vítima de bullying e de uma porn revenge, ao ter fotos vazadas na internet por um boy-lixo. Alison, uma das personagens que mais mudam na progressão da série, descobre a força no fim da trama. Bailarina de dança clássica desde os 8 anos, Maria Pedraza, madrilena de 21 anos, mostra no Instagram toda a paixão pelo balé – ali é que foi descoberta, debutando no cinema em Amar, de Esteban Crespo, em que se desnuda psicológica e fisicamente. Outra bombshell nos perturba os sentidos, por variados motivos: Mónica Gaztambide. Secretária do infame diretor da Casa da Moeda, descobre estar grávida dele – mas se revolta contra o amante, que é casado e não quer assumir o filho. Assim, se volta para outro sequestrador, por quem desenvolve uma ambivalente síndrome de Estocolmo. A cena em que ambos transam num cofre-forte e são surpreendidos pelo diretor é das mais apimentadas e hilariantes da série. Sua intérprete é a madrilena Esther Acebo, 35 anos. Célebre na Espanha como apresentadora de um programa infantil, diversos telejornais e o show de música Non Stop People, ela abandonou o jornalismo por causa do sucesso. Hoje estrela duas peças de teatro e, ao lado de alguns parceiros de La Casa de Papel, vai protagonizar Elite, outra série espanhola da Netflix. Por fim, a simpática Nairóbi é personificada pela também madrilena Alba Flores, 32, cuja beleza peculiar lembra uma heroína de Almodóvar. Um dos personagens mais cativantes, a preferida dos reféns por seu bom coração, espírito de equipe e

fotos: reprodução

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liderança é a responsável pela impressão de um bilhão de euros. Falsifica moeda desde os 13 anos. Mas, apesar da euforia contagiante, esconde a melancolia e o arrependimento pelo abandono de um filho após ter sido presa. A frase-ícone da série foi ideia de Alba: ela pediu aos roteiristas para introduzir um leve momento brechtiano e quebrar a quarta parede ao se dirigir ao espectador, como Frank Underwood, e ordenar: “Empieza el matriarcado!”. Ao que indicam as estrelas de La Casa de Papel, o matriarcado começou mesmo – e é bom já ir se acostumando.

Úrsula Corberó, no papel da espivetada Tóquio, em três cenas: beijando a personagem Alison, na rua (em trajes menores) e com Raquel

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AU DIç ÃO Tinindo, trincando O disco de vinil, quem diria, completa 70 aninhos em grande estilo Por WALTERSON SARDENBERG So

Uma velha piada dizia que tudo na vida tinha um lado bom – menos os discos de Agnaldo Timóteo. O nome do cantor, diga-se, podia ser trocado conforme o gosto do piadista ou da plateia. Mas a brincadeira foi perdendo o prazo de validade. Até que, em 1997, já não fazia o menor sentido. Naquele ano, as gravadoras no Brasil prensaram o que parecia ser o derradeiro disco de vinil. A partir daí, tudo levava a crer que o reinado do compact disc, o CD, seria absoluto. Especialistas garantiam: a novidade, lançada em 1982 na Alemanha, viera mesmo para ficar. Mas não. O CD perdeu espaço para outras plataformas, como o MP3 e o streaming. E aos poucos o LP, que come-

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mora agora 70 anos de vida, ganhou de novo um lugar na prateleira. Como é próprio dos septuagenários, ele está mais rechonchudo. Pesa 180 gramas, contra os 130 ou 140 de seus antepassados. Também está bem mais caro, destinado à elite. Coisas da maturidade. Tornou-se, com a idade, mais conservador. Prefere se dedicar a relançamentos de décadas passadas em vez de priorizar as novidades. Por isso, um dos campeões de vendas no Brasil é o LP A Tábua de Esmeralda, lançado originalmente em 1974, quando até o nome do autor era mais magrinho: Jorge Ben. Embora com silhueta arredondada, o vinil mantém o corpinho saudável. Requer apenas, vez por outra, uma lava-

gem com sabão neutro. Assim ocorre desde que foi concebido por um húngaro radicado nos Estados Unidos e de nome profético: Peter Goldmark (ao pé da letra, “marca de ouro”). O primeiro disco de vinil, material desenvolvido como evolução do plástico, chegou às lojas americanas no pósguerra. Para ser exato, em 21 de junho de 1948. (Outras invenções daquele ano: o transístor e o velcro.) O tal disco trazia o selo da gravadora Columbia (hoje, Sony Music), onde Peter Goldmark imprimia a sua marca dourada. Era uma gravação de Sinatra: The Voice of Frank Sinatra , abrindo com a faixa “You Got to My Head”, de J. Fred Coots e Haven Gillespie.

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Funcionárias da gravadora EMI embalam o Rubber Soul dos Beatles, em 1965. Ao lado, os primeiros lançamentos, nos Estados Unidos e Brasil

O vinil chegava para substituir com amplas vantagens o velho disco de 78 rotações por minuto, fabricado com goma-laca e, eis a curiosidade, lançado exatos 60 anos antes, em 1888. Um dos insumos para a goma-laca, a cera de carnaúba, vinha, veja só, de Parnaíba, no sul do Piauí. Por causa dessa matéria-prima, a cidade ganhou no início do século passado um requintado casario de arquitetura britânica, ainda preservado. Sim, ali moravam os ingleses, responsáveis pela exportação da mercadoria – a palavra commodity ainda não havia entrado em uso. Embora demorasse a pegar, o vinil era muito melhor, em todos os sentidos, que o velho 78. Este padecia de uma fragili-

fotos: getty, reprodução

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fomos o quarto país a lançar um LP. Mas a novidade demorou a emplacar por aqui

dade brutal. Quebrava-se a qualquer encontrão. Se caísse no chão, se espatifava. Além disso, permitia apenas a gravação de uma única faixa, com menos de quatro minutos, de cada lado. Ao passo que os primeiros vinis, de 10 polegadas de diâmetro, já ostentavam a sigla LP – long-playing ou longa duração – e possi-

bilitavam ao comprador ao menos o dobro do tempo de audição. O espaço aumentou com o formato clássico de 12 polegadas, permitindo a inclusão de até 25 minutos em cada face. O melhor de tudo: o vinil, com 33 rotações por minuto, tinha uma qualidade sonora espantosamente superior. Entre outros motivos graças às ranhuras mais estreitas, o microssulco – groove, em inglês, que virou gíria para bacana. O Brasil foi o quarto país a fabricar discos de vinil, atrás dos EUA, Inglaterra e França. Isso ocorreu em 1951, com o lançamento da Capitol – selo representado no país pela carioca Sinter – da antologia de música carnavalesca Carnaval em Long-Playing. Trazia como

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a era de ouro do vinil durou de 1965 a 1975, apesar da crise mundial do petróleo

faixa inicial “Marcha do Neném”, de Klecius Caldas e Armando Cavalcanti, na voz do comediante Oscarito. Apesar do louvável pioneirismo, somente em 1964 os discos de vinil ultrapassaram a venda dos de 78 rpm no Brasil. VAGINAS CAMUFLADAS Por essa época o LP já concedia aos músicos e à indústria fonográfica ousadias até então inimagináveis. As novas técnicas de gravação incluíam o som estereofônico e o overdub – que possibilitava adicionar vozes e instrumentos a posteriori. Os primeiros LPs não passavam de coletâneas de faixas avulsas. Em meados da década de 1960, porém, os números musicais passaram a ser programados de forma minuciosa para serem reproduzidos em sequência. Em 1965, por exemplo, a longa duração do LP possibilitou a gravação de

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intricadas suítes jazzísticas com vários movimentos, casos de A Love Supreme, de John Coltrane, e Coisas, de Moacir Santos. Os músicos da segunda geração do rock britânico levariam essa abertura às últimas consequências em complexos “discos conceituais”. Que o diga o álbum Thick as a Brick, colocado na praça em 1972 pelo grupo Jethro Tull, com uma única faixa, dividida em um lado de 22:54 e outro de 21:05. A década de ouro do vinil durou de 1965 a 1975. Embora em 1973, com a crise mundial do petróleo, algumas gravadoras, para economizar, tenham prensado discos com menos vinil. A RCA até criou uma tecnologia para isso, a Dynaflex, que não vingou. Seja como for, de 1965 a 1975, assentar um LP no tocadiscos era uma envolvente experiência sensorial. Quatro sentidos se viam atiçados, incluindo o olfato. Basta men-

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Ousadias dos anos 1970: o disco-isqueiro dos Wailers e o álbum-carteira escolar de Alice Cooper, que trazia uma calcinha de brinde

cionar o fortíssimo cheiro de cola das capas de papelão dos discos da CBS, subsidiária da Columbia americana. Ah, sim, as capas dos LPs. Encomendadas a grandes artistas gráficos, foram as mais criativas da história. Chegaram a se transformar em outros objetos, como o tríptico de Transa, de Caetano Veloso (1972); o isqueiro de Catch a Fire, dos Wailers (1973); e a carteira escolar de School’s Out, de Alice Cooper (1972) – que, de quebra, trazia uma calcinha de brinde. O amplo espaço de 31 x 31 centímetros das capas (contra os míseros 12,5 x 12 centímetros do CD) dava aos ilustradores a chance de se esmerar nos detalhes. Caso das vaginas camufladas no álbum de estreia da banda Mom’s Apple Pie (1972). Já o Their Satanic Majesties Request, dos Rolling Stones (1967), trazia, na área interna, um pedaço do mapa

da América do Sul, com destaque para o Rio Grande do Sul e o estado de São Paulo (lá estão as cidades de Marília, São Carlos e Catanduva, por exemplo). DUAS FÁBRICAS NO BRASIL Foi assim até que surgiu o CD, a prometer uma qualidade sonora bastante superior. No começo parecia mesmo uma panaceia. Até surgirem as críticas. As primeiras alertavam: na passagem de discos analógicos para os digitais perdia-se a profundidade dos graves – fato gravíssimo. Geoff Emerick, engenheiro de som dos três melhores LPs dos Beatles – Revolver, Sargent Pepper’s e Abbey Road –, é taxativo: “Não sou fã de nenhum dos lançamentos em CD dos Beatles”, diz, observando que as canções foram gravadas para serem lançadas em vinil. “Essa é a maneira como devem ser ouvidas.”

Ao contrário do 78 rpm, o vinil sempre teve defensores. A partir de 2000, eles passaram a somar um contingente tão expressivo que a Sony, desde 1989 sem prensar um só LP, voltou a fabricá-los. No Japão, sede da gravadora, 800 mil unidades de vinil foram vendidas em 2016. Nos EUA, uma pesquisa da Nielsen Music revela que em 2016 os americanos compraram 13,1 milhões de vinis, número que subiu para 14,3 milhões no ano seguinte. Isso significa 8,5% de todas as vendas de disco naquele país. O Brasil tem hoje duas fábricas – a Polyson e a Vinil Brasil. Esta última tem uma história curiosa. O músico Michael Nath e o ex-técnico da RCA Luís Bueno encontraram máquinas de prensagem num ferro-velho. Haviam pertencido à gravadora Continental e estavam havia 20 anos paradas, enferrujando. Agora, graças ao vinil, estão de volta. E tinindo.

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PA L A DA R Saudação da mandioca A comida dos índios do Brasil ganhou o planeta – e alimenta hoje meio bilhão de pessoas Por SILvio lancellotti Aipim frito é uma das receitas mais prestigiadas da cultura de botequim nacional

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De acordo com os compêndios de botânica, se trata de uma planta da família das euforbiáceas, que engloba 290 gêneros e cerca de 7,5 mil espécies. Nativa da América do Sul, batizada com o nome científico de Manihot esculenta, tem as folhas membranáceas, as inflorescências ramificadas e os frutos capsulares, caracterizados por sua raiz tuberosa, muito rica em amido e, embora eventualmente venenosa, de precioso emprego nutricional, tanto pelo seu conteúdo como para a produção de farinha e de ração animal. Rebuscado e sinuoso em demasia? Sem problemas. Aqui no Brasil existem diversos nomes que favorecem a sua imediata identificação: aipim, macaxeira, castelinha, maniva, maniveira, pão-de-pobre, uaipi. E ainda diversos sobrenomes como amarga, brava, dulce, mansa, silvestre. Mas de que importam um RG e um CPF no caso de uma preciosidade nativa dos meandros da Amazônia e que a nobre carruagem do tempo transformou, depois do arroz e do milho, na terceira maior estirpe de carboidratos e no item fundamental da dieta de meio bilhão de pessoas? Pois é, sem formalismos. Mergulhemos na fantasia. Diz uma lenda cinematográfica que, quando uma lenda é maior do que a história, imprime-se a lenda. Pois até hoje

através dos lagos de Santarém, Pará, o folclore recorda a desventura da filha de um morubixaba que um cari, um homem branco, teria engravidado. Claro que o cacique, ofendidérrimo, mobilizou a sua tribo inteirinha atrás do garanhão. Sem sucesso, só lhe sobrou a possibilidade de pressionar a garota e exigir dela o nome do rapaz. Outra inutilidade. Mesmo debaixo da ameaça de bordunas e de tacapes a moça jurou que ninguém lhe fizera mal. Passaram-se as semanas, cresceu a barriga da cunhatã e o morubixaba, ainda intrigado, até pensou em sacrificar a moça. Determinada noite, porém, em sonho, lhe apareceu um homem branco com uma revelação: a rapariga havia falado a mais absoluta verdade. Daí, ao final de nove luas cheias, a cunhatã pariu uma menina lindíssima e de pele absurdamente alva, a quem chamou de Mani.

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Brasileiríssima, sim. Os maiores produtores mundiais, porém, são a Nigéria e a Tailândia

Espalhou-se que representava uma dádiva dos céus e a sua oca se tornou um ponto de romaria. Precocemente, com 1 ano Mani já corria. E já conversava. Também precocemente, todavia, depressa faleceu, e sem sintomas de doença. Um hábito da sua gente, a mãe enterrou Mani no centro da sua oca e, num outro costume, a cada novo crepúsculo regava a sepulturazinha. Certa manhã, constatou que, no lugar, havia brotado uma ramagem. Atônita, não deixou que ousassem sequer tocá-la. E a planta se desenvolveu e deu bagas que os pássaros comeram até se embriagarem de felicidade. Então, noutra manhã singular, de repente a terra se fendeu e do vazio surgiu uma raiz no formato do corpinho de uma criança. Atônitos com o fenômeno, que atribuíram às benesses da prateada Jaci, a deusa das luas, os nativos assaram e comeram a raiz que se converteria em um alimento primordial de boa parte do planeta. Mani. Na oca. Manioca. Mandioca. Muito além da lenda, uma planta que fascinou Pero Vaz de Caminha, escrivão da expedição do Cabral descobridor, e que, no evoluir dos séculos, magnetizou colonos, imigrantes e até mesmo os chefes de cozinha profissionais. Uma planta sossegada de se cultivar e de se colher, que não se incomoda com a aridez do solo, que se adequa ao clima seco e que resiste a uma infinidade de pragas. Uma planta que não precisa de equipamentos mecânicos para o seu manejo ou para a sua apanha. E que por isso, do Brasil, se espalhou através de quase uma centena de nações a ponto de, no momento, serem a Nigéria, na África, e a Tailândia, na Ásia, as suas geradoras principais – ah, quem poderia imaginar... Muito melhor, dos salgados aos doces, das saladas às sobremesas, a versatilidade da mandioca proporciona à culiná-

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ria uma imensidão de alquimias: beijus, bolachas, balas, bolos, biscoitos, caldinhos, casadinhos, ensopados, escondidinhos, farofas, maniçobas, pães, pirões, pudins, purês, sagus, sorvetes, tapiocas, tacacás, tortas etc. E se isso já parece bastante, atenção, agreguemos à sua lista de utilidades também aquelas do verbete não alimento, de extração ou de aplicação estritamente industrial: colas, cosméticos, papéis e inclusive as pastas de dentes. Nada, entretanto, parece sobrepujar a mandioca na sua condição admirável de farinha. Nos tempos dos césares e dos romanos, o sal era tão raro que serviu de mote para a criação de um novo meio de pagamento, o salário. Cá no Brasil, no final dos Setecentos, por causa da gravidade da estiagem que, em ciclos, assolava algumas regiões do Nordeste, especuladores estocavam toneladas de farinha para negociá-las a preços absurdos, durante as crises. Um crime que compeliu os governantes do período a medidas extremadas, da prisão dos negociantes ao confisco da sua mercadoria – que daí se entregava às populações menos privi-

Fácil de plantar, de cuidar e de colher, tem ainda outras vantagens, como a resistência às pragas

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legiadas por valores acessíveis. Rojões anunciavam a chegada da logo apelidada de farinha-de-foguete. E a esculenta, saiba, também abençoou a Constituição do Império que Dom Pedro 1º outorgou em 1824, depois da Independência. Na época, não se mediam as posses ou as fortunas pelo volume de moedas ou de metais valiosos, mas pela quantidade de alqueires de farinha de mandioca. Só podia votar numa paróquia eleitoral quem ostentasse o patrimônio equivalente a 150 alqueires. Numa província, o montante crescia a 250. Para quem se candidatasse ao posto de deputado se exigiam 500. Ao de senador, 1.000. E a Lei Magna virou “A Constituição da Mandioca”. Perpetravam-se, então, três tipos de farinha de mandioca. E sempre graças ao mesmo procedimento basilar. Depois do seu descascamento, cada raiz enfrentava uma espécie primitiva de ralador, uma haste de madeira em que havia dentes de bichos, lascas de pedras e de conchas. Sobrava um creme, que daí se espremia em um trançado de folhas, geralmente de guarimã, para eliminar o excesso líquido, e enfim se passava numa peneira ainda mais fina. Aquilo que restava era desidratado numa pedra ultra-aquecida a fogo vivo. E às vezes ainda se torrava a farinha. Ótimo, o milagre que os nativos tinham descoberto de maneira empírica: com o calor, se volatilizava o perigoso ácido cianídrico, aquele que deixava a mandioca tóxica e até venenosa. O primeiro dos tipos era a farinha carimã, crua, bastante fina, até hoje encontrável nos moinhos venerandos que sobrevivem nas várias ilhotas indígenas que circundam Ilhabela, no litoral de São Paulo. O segundo é a uy-tinga, levemente cozida em água e ervas, perfeita para pirões. E, por fim, a

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uy-atá, resiliente, resistente às intempéries e ao tempo uma farinha de fato torrada, ou de batalha, que os nativos carregavam como um farnel nas viagens mais demoradas. Hoje, é lógico, se usam máquinas para a moagem e para a desidratação. Do monte Caburaí ao arroio Chuí. Afinal, já são cerca de 20 milhões de toneladas a cada 12 meses. Calcula-se que perto de 18 mil pequenas propriedades, em geral de monoagricultura familiar, se dediquem à mandioca no Brasil. Faça as contas: numa boa safra, a um preço médio de R$ 590 por tonelada, essa maravilha pode render a bagatela de cerca de R$ 12 bi. Nada mau para uma hoje commodity que, 200 anos atrás, se trocava pelo direito ao voto ou pela chance de obter um lugar na Câmara dos Deputados ou no Senado do Império. Ou que os tupis ou os guaranis, em guerra, levavam nas suas bagagens como um preenche-bucho ou um mata-fome. Seguramente uma bela obra de Mani.

Farinha pura ou transformada em beiju: muita versatilidade na cozinha

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O L FATO O NARIZ DE ANDY WARHOL O irrequieto platinado da The Factory não produziu arte apenas para o olhar. Também criou uma Coleção Permanente de Aromas Por SILVANA ASSUMPÇão Andy Warhol, grande conhecedor de perfumes? Isso pode surpreender muita gente boa. Mas não quem sabe da intensidade com que o artista americano viveu seus 58 anos (1928-1987). “Ser pop é gostar de tudo”, já disse Caetano Veloso, com sabedoria. Ninguém melhor que o próprio papa do pop para ilustrar essa definição. Ao longo de sua performática vida, o artista gráfico, pintor, escultor, fotógrafo, cineasta de vanguarda e dono de outros múltiplos talentos disparou frases como “Eu amo o plástico” e “Fazer dinheiro é arte”. Além disso, ficou famoso por representar uma quantidade de objetos triviais em sua obra. Alguns exemplos são as 32 pinturas da sempiterna série das latas de sopa Campbell’s, de 1962, ou as serigrafias de garrafas de Coca-Cola, caixas de sabão Brillo (estas construídas em três dimensões), retratos de Marilyn Monroe, Elvis Presley, Che Guevara, Mao Tse-Tung e outros ícones midiáticos. Aliado à banalidade das figuras que aludiam à explosão do consumismo e ao culto às celebridades nos Estados Unidos de sua época, o próprio uso da técnica de reprodução mecânica em serigrafia, que Warhol adotou por excelência, replicava o espetáculo da produção em série para o mercado. Por que não perfumes?

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Mais pop, portanto, é impossível. Mas o decantado profeta de um futuro em que todos teriam seus 15 de minutos de fama foi além. Na arte como na vida, Andy Warhol tornou-se uma espécie de “arquivista” da cultura de seu tempo, juntando uma enormidade de bugigangas. Entre elas, toda a sua correspondência privada e de negócios, cartas de fãs, recortes de jornais e revistas, convites para recitais de poesia, uma tiragem inteira da revista Interview (fundada por ele em 1969) e mais de 3 mil fitas de áudio – estas acu­muladas na fase em que registrava, de modo compulsivo, todas as conversas que tinha e chamava seu inseparável gravador de “my wife”. Também fez coleções estranhíssimas (fotos de cenas de crime, moldes de próteses dentárias), e outras mais usuais, como peças de prata art déco, memorabilia de feiras mundiais ou louças tradicionais do estado da Virginia.

Ele fazia coleções estranhíssimas. A de perfume é uma das menos extravagantes

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ilustração: raphael alves

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Mas festas, ele fuçava no banheiro os perfumes preferidos do anfitrião

E aqui chegamos ao olfato do artista. O platinado criador da The Factory – como chamou as várias encarnações, em diferentes endereços, de seu estúdio em Nova York – também teve um poderoso nariz (o qual, por sinal, retocou com cirurgia plástica, aos 29 anos, para tirar uma batatinha incômoda). Uma de suas coleções menos conhecidas, apesar de cultivada desde o início dos anos 1960 até sua morte, foi a de frascos semiusados de perfume e de alguns outros produtos aromáticos de higiene. Fez isso não só por gosto pelos aromas, mas no que parece ter sido um afã de eternizá-los como documentação histórica e gatilho de memórias. CÁPSULAS DO TEMPO O próprio Warhol descreveu essa paixão no livro The Philosophy of Andy Warhol: From A to B and Back Again (todas as citações que seguem são traduções livres): “Antes de começar a colecionar, os perfumes em minha vida eram qualquer um que por acaso atingisse meu nariz. Mas então percebi que tinha de fazer uma espécie de ‘museu do aroma’, para que certos deles não se perdessem para sempre”. Em outras passagens, conta e reflete: “Eu troco de perfume o tempo todo. Se usei um por três meses, me forço a abandoná-lo, mesmo que ainda tenha vontade de usá-lo, de modo a poder recordar esses três meses sempre que voltar a sentir aquele cheiro. Nunca volto atrás no uso de um perfume. Ele se torna parte da minha coleção permanente de aromas”; “Dos cinco sentidos, o olfato é o que tem a coisa mais próxima do poder do passado. Ele realmente transporta. Ver, ouvir, tocar, saborear simplesmente não é tão poderoso se você quer que seu ser inteiro volte atrás por um momento, para alguma coisa.”

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Warhol também se referiu várias vezes à sua mania olfativa em seus célebres Diários (publicados no Brasil pela L&PM). Numa delas, admitiu ter o hábito de escapar do ambiente social nas festas para ir fuçar e experimentar, nos banheiros e toucadores dos anfitriões, o que estes apreciavam como perfume. Ele garantiu não bisbilhotar nada mais de suas intimidades – apenas era compulsivo quanto a descobrir, eventualmente, algum aroma obscuro que nunca tivesse sentido. Não se sabe ao certo o tamanho da Permanent Smell Collection de Warhol. Ela ainda existe, estimada em centenas de unidades que, em conjunto com a enorme miscelânea já descrita acima, mais todo o material de arte e biblioteca particular, cartazes e catálogos de exposições próprias e de outros artistas, suas roupas e as perucas branco-prata (mais de 30) características de seu visual – Warhol quase não tinha cabelos – e ainda muitos outros itens, formam uma coleção à parte no Andy Warhol Museum em Pittsburgh, a cidade em que ele nasceu, na Pensilvânia. Trata-se da Archive Collec-

Algumas das estrelas do acervo do artista: Blenheim Bouquet, Devin de Aramis, Braggi International, Halston em spray e Paris

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tion, que ocupa 226 metros cúbicos do acervo do museu – por sinal o maior dos EUA dedicado a um único artista. Entre as colônias e perfumes colecionados por Warhol estão a Halston em spray, a Penhaligon’s Blenheim Bouquet, a Braggi International, a Devin de Aramis, o Ma Griffe de Carven e o Paris de Yves St. Laurent. Parte da coleção se distribui pelas curiosas “cápsulas do tempo” criadas pelo artista como um legado para a posteridade, e que também integram a Archive Collection. CAMISA DE VÊNUS Durante os 13 últimos anos de vida, Warhol recolhia miudezas pinçadas de modo aleatório e as depositava no que veio a somar 610 caixas lacradas e datadas. Quando o museu de Pittsburgh começou a exumá-las e a catalogar seu conteúdo, descobriu-se que continham de artigos de jornais a cortadores de unha (e até mesmo uma camisa de vênus usada), fotografias que serviram de fonte para seus projetos, recibos de encomendas de trabalhos, obras de arte não vendidas e, claro, frascos de perfumes e outros produtos aromáticos. A última “cápsula do tempo” de Warhol foi aberta em 2014 por um comprador anônimo, que pagou US$ 30 mil pelo privilégio. O artista também representou seu gosto por perfumes na sua produção visual, inclusive em serigrafias feitas sob encomenda para as perfumarias Chanel e Halston. E usou-o como

tema em alguns trabalhos, como os desenhos “Gato com Frasco de Perfume”, de 1950, “Frasco de Perfume”, de 1953 e a gravura “Frascos de Perfumes e Batom”, de 1962. Até além da vida Andy Warhol carregou sua fascinação olfativa. Quando foi enterrado, um amigo jogou alguns exemplares da Interview e um frasco de Estée Lauder Beautiful em sua sepultura aberta.

Warhol fez serigrafias para a Halston e a Chanel. Na sua sepultura, um amigo jogou exemplares de Interview e um frasco de Beautiful

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TATO Valley of the dolls As antigas bonecas infláveis chegaram muito mais longe do que imaginamos. Até na hora H Por ronaldo bressane

Uma mulher que o ampare, o incentive, que concorde com tudo o que você quer. Uma mulher que fica de boa se você está de boa. Que fica de boa se você está deprezão. Que fica de boa se você quer ficar na sua. Que fica de boa se você acordou pronto pro crime. Uma mulher que encarne todas as suas fantasias mais selvagens - até mesmo se aventurar na mitológica posição do canguru perneta. Sim, a mulher dos seus sonhos existe. Só não é uma mulher - trata-se de uma boneca. Ela não tem rugas nem celulites; não come, bebe ou fuma. Não trai você, não fala mal de você para as amigas, não dá em cima dos seus amigos. Não tem mãe. Torcerá sempre pelo seu time. Jamais vai acordar naqueles dias e nunca vai querer filhos. Seja pragmático, guerreiro: uma boneca sexual pode trazer mais boas indicações do que efeitos colaterais. Esqueça aquelas antigas imitações infláveis, rudimentares e baratas. As bonecas chegaram a um patamar assombroso. Talvez a entrada mais acessível para este admirável mundo novo sejam as criações da Silicon Wives, que custam em média 1.500 dólares. Há negras, brancas, asiáticas, de bunda grande, peito pequeno, altas, baixas, gordas, magras. São criadas em Nova York e manufaturadas na China em silicone e TPE, elastômero termoplástico, bem mais flexível que a borracha, cujo toque é aveludado. Não são porosas, e, como o silicone não perde o formato, sua pele é macia como a de uma fêmea real. Você pode vesti-la, penteá-la, espalhar cremes em sua pele, maquiar seu

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rosto, passar batom em seus lábios e chantilly em sua língua, untar suas fendas com lubrificantes - e voilà, guerreiro. Calcula-se que 10 mil bonecas já estejam aquecendo os colchões de homens solitários (e mulheres também). Dependendo dos cuidados, duram uns dez anos. Mais que a maioria dos casamentos. Dez anos atrás, Ryan Gosling estrelou o péssimo filme Lars and the Real Girl, sobre um cara que se casa com uma boneca e desfila com ela por aí, para o assombro dos parentes. Hoje esta é uma situação mais rotineira que ter uma lhama ou um javali como bichinho de estimação. Além do objetivo final – o coito –, as bonecas são boa companhia. Ganham cada vez mais personalidade e proporcionam um afeto que muitas vezes uma mulher não pode oferecer. Guys and Dolls é um documentário da BBC abordando a vida de homens que assumiram relacionamentos com bonecas. São sujeitos de meia-ida­de ou da terceira idade, solitários, tímidos, com baixa autoestima, que sentem dificuldades em se relacionar com mulheres reais. Eles ficam mais à vontade com uma boneca, que nunca os deixará na mão. O jovem Davecat, que ainda vive com os pais, confessa: seu maior prazer é acordar e ver a luz do sol iluminar os olhos da boneca ao seu lado. Enquanto

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Harmony: a criatura mais prรณxima do que seria uma mulher de carne e osso

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Lars and the Real Girl era ficção. Mas Ernie e Davecat são caras de verdade, que vivem com bonecas. Na foto maior, o cérebro de uma Harmony

faz massagens nos pés dela, conta que no começo só fazia sexo com sua companheira artificial, mas agora o sentimento evoluiu para um amor genuíno. “Ela é a âncora da minha vida.” O programador Everard coleciona aeromodelos e réplicas de veículos militares e soldados de chumbo. Diz que ter uma boneca é melhor que as mulheres que conheceu, pois elas não queriam usar roupas camufladas. Everard morou com a mãe até a morte dela, e conserva o quarto do modo como ela o deixou – incluindo a cadeira de rodas, que ele empurrou por anos. Um de seus passatempos é fotografar cenas domésticas ao lado de sua Virginia. Já o baterista Ernie, colecionador de armas de fogo, explica que o pai abandonou a família quando o filho era bebê. Para ele, relacionamentos com pessoas são efêmeros, ao contrário do convívio com objetos inanimados. Além disso, Ernie tem problemas de pele. Isso afastou pretendentes. Sua boneca Kelly, porém, não tem preconceitos. Também se sente mais seguro

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com ela: não vai engravidá-la nem pegar doenças. Kelly não esteve com outros homens - nem finge estar com Ernie por culpa ou compaixão. Ele diz que controla tudo em casa: ao lado de suas bonecas (sim, há outras), com quem sonha ser enterrado quando morrer, está nos céus. Não há como não sentir empatia por esses solitários guerreiros do amor. Sotaque francês ou pênis japonês Bem-vindo ao Vale das Bonecas, mais conhecido como Vale Sinistro. Em inglês, a expressão uncanny valley se refere à curva entre objetos inanimados que achamos aceitáveis e objetos inanimados muito parecidos com humanos mas não suficientemente iguais. Por isso, despertam aversão, repulsa e nojo. Esse sentimento de horror por uma réplica humana tem sido descrito desde o primeiro ser criado pelo homem – ou melhor, pela mulher, uma vez que a primeira ficção científica da literatura é o romance Frankenstein, escrito por Mary Shelley em 1818. (Aliás, antes mesmo de Frankenstein já havia relatos de capitães que velejavam grandes distâncias tendo uma boneca marota na cabine.) Conforme a tecnologia avançou, nos acostumamos com seres humanoides a ponto de dissipar esse repúdio. O objetivo dos criadores de sexdolls é dizimar o uncanny valley. Os homens que se relacionam com bonecas ultrapassaram o Vale Sinistro: transformaram a aversão em atração.

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São 18 formatos de corpo, 30 tipos de rosto, cabelos e olhos de todas as cores, 42 espécies de mamilos O exemplar mais avançado de uma sexdoll é Harmony, a obra-prima de Matt McMillan, um talentoso designer que cria bonecas há 20 anos – ele é o sujeito que chega mais perto de Eldon Tyrrell, o Pigmalião inventor das deliciosas Pris, Zhora e Rachael do filme Blade Runner. Dono da empresa Realdolls, McMillan modelou uma sexbot cujos olhos piscam com suavidade. Ela move a cabeça de modo quase natural, tem variações de temperatura em regiões diferentes do corpo e sensores que a permitem perceber se seu mestre está com tesão. Como as bonecas são feitas sob encomenda, podem ter qualidades surpreendentes. Há aquelas sem umbigos, com pênis (modelos asiático, judaico ou afro), sem pelos, totalmente peludas, sem ânus, com duas vaginas, sem braços, sem seios. São 18 formatos de corpo, 30 tipos de rosto, cabelos e olhos de todas as cores, 42 espécies de mamilos - e já houve pelo menos um cliente que pediu uma Harmony com cauda. Só faltam falar? Nem isso. Deixando na poeira o filme Her, de Spike Jonze - em que Joachin Phoenix namora uma inteligência artificial com a voz de Scarlett Johansson –, Harmony foi projetada para ser a companhia perfeita para solitários, excêntricos ou os que buscam um modelo alternativo de relacionamento. “Nosso objetivo não é substituir as mulheres”, afirma o inventor. Na verdade, seu objetivo é substituir os humanos: McMillan também criou incríveis androides masculinos. PERSONALIDADE PROGRAMÁVEL Lançada este ano por valores entre 10 e 30 mil dólares, Harmony já vem com cérebro - programado pela empresa Realbotix, um computador conectado a um aplicativo (baixável no celular ou tablet) que customiza o caráter de sua sexdoll. O usuário, mestre ou, vá lá, marido da Harmony pode programar sua personalidade, seus gostos e desgostos, seus sonhos e vontades. Com toda uma WikiPedia em seu HD, a boneca é capaz de recitar poesia barroca, discorrer sobre futebol boliviano, falar sobre vinhos da Califórnia, contar piadas do Ary Toledo. Pode parecer tímida, sensual, brincalhona, maternal ou até ciumenta.

Uma das louras da Silicon Wives, boneca, digamos, de entrada. Custa cerca de US$ 1.500

A empresa que criou essa inteligência artificial para a Realbotix, a NextOS, é dirigida por um brasileiro, o engenheiro paranaense Guille Lindroth. Ele equipou Harmony com uma doce voz de sotaque escocês - que, dependendo do gosto do freguês, pode ser trocada por um sussurrante chiado parisiense. Ou até um másculo acento russo. “Existe um grande mercado para bonecas transgêneros ou de qualquer outra preferência sexual”, revela Lindroth. Sua inteligência artificial é um exemplar acabado de learning machine: a sexbot vai aprendendo a personalidade do dono conforme as interações crescem, a ponto de - jura Lindroth até mesmo sentir que ele está chegando lá e simular acabar juntinho, gemidos e gritinhos inclusos. Um tonificante remédio para a insegurança masculina. O que é mais relaxante, guerreiro: conviver com a eterna dúvida sobre se você levou sua dama ao êxtase ou ter a certeza total de que ela está mesmo fingindo um orgasmo de verdade?

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se x to senti do P o r m a r i o n fr a n k

Eureka! Algo lhe dirá que a intuição deve ser levada muito mais a sério do que costumamos fazer. E esse algo chama-se ciência

A arquiteta Candida Tabet é capaz de resolver problemas estruturais “batendo o olho”. Diz ela: “Consigo com facilidade ter noções de volumetria. Nem preciso pensar”. O empresário multimídia Brian Paul Johnston segue vez por outra o feeling de agir fora do padrão, como em dezembro passado. “Decidi abrir vaga na agência, contrariando a regra que desaconselha investir no final de ano.” Já a atriz Thaia Perez, depois de decorar o texto que lhe cabe, admite que se joga às cegas na personagem. “É assim que crio, não faço ideia para onde vou”, confessa. Casos similares poderiam preencher páginas e páginas. Mesmo porque não é preciso ser famoso para ter sido beneficiado pela intuição. Basta sintonizar a “estação de rádio” pessoal, digamos assim. Dessa forma, Candida acionou o canal de conhecimento mais íntimo, enquanto Johnston ganhou segurança para ir atrás do profissional em falta no seu negócio, mesmo em época de retração. Nessa sintonia, Thaia soube dar atenção à voz interior. No palco ou longe dele, é assim que funciona essa atriz multifacetada – aos 71 anos, também é pintora e terapeuta corporal. “Segundo a medicina ayurvédica, a gente vai até os 120 anos”, diz. “Tenho caminho pela frente, preciso só saber me ouvir.” Houve discussão na web quando alguém atribuiu a Albert Einstein estas aspas: “A mente intuitiva é um dom sagrado e a mente racional um servo fiel. Nós criamos uma sociedade que honra o servo e se esquece do dom”. Mas é polêmica de pouca monta, visto que o físico alemão, em 1929, deu uma chacoalhada no mundo científico ao afirmar que a imaginação era mais importante que o conhecimento. Ou de como

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deveria ser usada como ferramenta para promover esse conhecimento. “Não há um caminho prescrito para seguir e alcançar a nova ideia. Você tem de dar o salto intuitivo.” Quem disse? Stephen Hawking, outro cientista magistral, morto em março de 2018. “A intuição é algo poderoso, muito mais do que o intelecto. Ela teve grande impacto no meu trabalho”, revelou – pasme! – Steve Jobs. Por trás da tal centelha luminosa – também chamada de insight, pressentimento ou palpite – há quase sempre uma longa história de pesquisa e estudo. A consultora de empresas e escritora Bernadette Jiwa, em sua obra Hunch – Turn Your Everyday Insights into the Next Big Thing (Palpite – Transforme suas Percepcões Diárias na Próxima Grande Conquista), registra: “Einstein, aos 60 anos, vinha namorando a velocidade da luz fazia tempo, o que acendeu a sua curiosidade até chegar à formulação da teoria da relatividade. Alexander Fleming conduziu pesquisas ao longo de uma década, antes de ‘descobrir’, num momento de inspiração, a penicilina. E Steve Jobs já tinha experiência no mundo do design para

Albert Einstein chegou a afirmar que a imaginação é mais importante que o conhecimento

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ilustração: raphael alves

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“A mente intuitiva é um dom sagrado e a mente racional um servo fiel. Nós criamos uma sociedade que honra o servo e se esquece do dom” EINSTEIN

computadores, quando teve os insights que iriam revolucionar a tecnologia do mouse, apresentando-o às massas”. Ainda no livro de Bernadette Jiwa, a educadora Pauline Boss, da Universidade de Minnesota, confirma: “Descobertas científicas acontecem não por mágica ou método, mas sim por se estar aberto a descobrir, ouvindo as emoções e respondendo com a intuição”. Ao que a autora da obra acrescenta: “Os exemplos de genialidade, depois de anos e anos de tentativas, sempre seguiram o caminho da curiosidade e da imaginação para vir à luz”. JUNG, O PIONEIRO Lançado em 2017, Hunch, promovido a obra de referência entre empreendedores e CEOs ao redor do mundo, chega a detalhar exercícios de como fazer um bom palpite pipocar com regularidade na panela das ideias de uma empresa. Imagina-se, no entanto, ser o tipo de leitura que não causa frisson especial no japonês Tadao Ando, um dos nomes luminosos da arquitetura mundial – e que, aliás, nunca frequentou escola de design. Em entrevista ao site THNK, ele diz que a função do arquiteto é descobrir a essência de um lugar. Por isso, usa a intuição para “ouvir” o que a terra sugere. E só então coloca as ideias no papel. Recomenda-se apreciar um de seus projetos mais famosos, Water Temple (na ilha de Awaji, no Japão), que honra o equilíbrio entre o construído e o natural. O francês Henri Bergson (1859-1941), cuja obra influenciou luminares do pensamento do século 20 (casos de Jean-Paul Sartre e Merleau-Ponty, entre outros), teve na intuição seu método de trabalho. Em Introdução à Metafísica, ele afirma que há dois modos de se conhecer um objeto: o relativo e o absoluto, cada um vinculado a um modo de agir. Segundo Bergson, o conhecimento relativo se utiliza da análise, enquanto o absoluto, da intuição. Porque é a intuição, segundo ele, a experiência que permite ao indivíduo entrar na essência das coisas.

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Em discurso no final do século 19, Bergson chamou de “genial” a intuição superior, que consiste em um “sutil pressentimento do verdadeiro e do falso, que tem permitido descobrir entre as coisas, bem antes da prova rigorosa ou da experiência decisiva”. Bonito, não? E bastante inspirador. Quer ver isso na prática? Eis a narrativa pessoal de Geraldo Rufino, negro, 59 anos, que já viveu em favela (a do Sapé, na zona oeste paulistana). Rufino foi catador de lixo, office boy e hoje é dono da JR Diesel, especializada no desmanche legalizado de caminhões. Um negócio que começou no desespero, em 1985, quando um acidente destruiu os dois caminhões que então possuía com um irmão. Veículos cuja compra, lógico, ainda não tinha sido quitada, obrigando Rufino a sacar da cartola a inspiração genial (e assim driblar o pior dos cenários, “o de ficar com o nome sujo na praça”): vender peça a peça o que tinha sobrado. Deu muitíssimo certo. “Logo abrimos mais uma por­ta, o negócio do desmanche cresceu e continua até hoje saudável”, conta, referindo-se ao faturamento anual em torno de R$ 50 milhões. A receita? “Já recomecei quatro vezes na vida, usando a intuição e outro tanto de razão”, conta. “Sempre dá para arregaçar as mangas e acreditar. Só não pode reclamar.”

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O psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) diria que Geraldo Rufino é um tipo intuitivo extrovertido. “Aquele sujeito que consegue trabalhar no exterior com a gama intuitiva de informações que de alguma forma carrega dentro dele”, diz João Bezinelli, terapeuta junguiano há 40 anos em atividade em São Paulo. Foi Jung, é bom lembrar, o primeiro a sistematizar as quatro funções da nossa consciência, onde aparece a intuição (e também o pensamento, o sentimento e a sensação), aplicando as categorias de introvertido e extrovertido a essas funções. Outro exemplo próximo de Rufino? “Olacyr de Moraes, que chega no meio do cerrado, tem um palpite, vai atrás de pesquisa e se torna o maior produtor de soja no mundo”, lembra Bezinelli. E como seria o tipo intuitivo introvertido? “O caso do artista genial, mas incapaz de cuidar da venda de sua obra.” A LIÇÃO DE STEVE JOBS Em julho de 2008, o CEO da Airbnb, Brian Chesky, ofereceu a sete nomes de proa do Vale do Silício a possibilidade de adquirir 10% das ações da sua empresa por apenas US$ 150 mil. “Cinco rejeitaram e dois não deram retorno”, conta

Bernadette Jiwa. “O valor dessas ações, em oito anos, seria de US$ 2,5 bilhões. Ninguém enxergou a enorme oportunidade do mercado.” Porque há quem permaneça avesso a contatar o que lhe vai por dentro para tomar decisões, preferindo não arriscar. Deixa, com isso, de tirar proveito da “ciência intuitiva” – como Bergson (e, antes dele, o filósofo Baruch Spinoza, do século 17) nomeou essa forma mais elevada de conhecimento. “Se você for só ego, só intelecto, vai se afastar de tudo o que transmite sabedoria e dá sentido à vida”, alerta Bezinelli. Ou ainda, como segredou Steve Jobs, um apaixonado pelo tema: “Tenha coragem de seguir seu coração e sua intuição, eles já sabem o que você realmente deseja. O resto é secundário”. Dá até para fazer disso um mantra, encantando o cotidiano. Experimente.

Hunch – Turn Your Everyday Insights into the Next Big Thing (Palpite – Transforme suas Percepcões Diárias na Próxima Grande Conquista): bestseller nos Estados Unidos

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Vinho para todos

Rogerio Salume apostou alto na venda de brancos, tintos, rosés e espumantes: criou a Wine.com.br e acertou a mão. De brinde em brinde, soma hoje 450 mil clientes ativos, entre eles 140 mil sócios que todos os meses recebem seus produtos, encorpando o maior e-commerce de vinhos da América Latina

Por Luciana lancelLotti retratos tuca reinés


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oqueca é baiana ou capixaba? Tente fazer essa pergunta em público a um baiano que se estabeleceu há décadas no Espírito Santo. Você sofrerá as consequências por tê-lo deixado em saia justa. A não ser que o baiano em questão seja Rogerio Salume, fundador e CEO da empresa de e-commerce de vinhos Wine.com.br, sediada em Vitória. Ele vai tirar a resposta de letra, como você lerá nesta entrevista. Natural de Itabuna, no sul da Bahia, Rogerio, 45 anos, mudou-se para a capital capixaba em 1989, prestes a concretizar um desejo: nadador apaixonado, passaria a morar na região Sudeste para poder treinar e competir profissionalmente. Se a natação estava na mira, na bagagem Rogerio trazia tantos outros sonhos. Empreendedor nato, desde cedo almejava desbravar novos mares, sonhando enquanto dobrava barcos de papelão ou navegava nas páginas do livro Cem Dias Entre Céu e Mar, de Amyr Klink. Vendeu balas e chicletes de porta em porta, organizou de excursões de ônibus a blocos de Carnaval, sonhou ser médico mas se formou em jornalismo, especializou-se em marketing, depois em finanças, buscou investimento e acumulou ainda mais conhecimento sobre vendas. E foi depois de muitos erros e acertos que se encontrou, focando em um mercado que começava a aguçar olfatos e paladares dos brasileiros: o do vinho. Assim, em 2004 abriu, com o então sócio Anselmo Endlich seu primeiro e-commerce no segmento, a Estação do Vinho. Mas somente em 2008, com o mesmo parceiro, fundou a loja virtual que concentraria suas ideias mais modernas sobre uma das bebidas mais antigas da história. Nascia, assim, a plataforma Wine.com.br. O primeiro passo: tirar a cultuada bebida do pedestal. “Era uma época em que todos queriam falar de uva, região, aquela frescura toda”, diverte-se. “Ninguém conhecia tanto, mas falava que conhecia, porque tinha que fazer parte daquele universo. A gente desmistificou isso.” A loja virtual chegou ao mercado proporcionando ao consumidor conhecimento sobre variedades e estilos, antes inimagináveis, a um público muito interessado em se aprofundar no tema. “Naquela época, ninguém comprava um vinho produzido na África do Sul, em uma região desconhecida da Espanha, ou um grego que ninguém indicasse”, recorda-se.

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Quem hoje escuta Rogerio contar sobre a própria trajetória deduz logo que, desde o início, o jovem empreendedor já previa (e apostava alto) que aquele site se tornaria um gigante do comércio eletrônico menos de uma década após sua fundação. Com a Wine.com.br nasceu o Grupo W2W, que, como um bom tinto longevo, ganhou corpo e estrutura e hoje administra também a recém-lançada Vinho Fácil, loja virtual de descontos permanentes, a Wine 2B, voltada a restaurantes, hotéis, supermercados, entre outros, a Wine Eventos, que fornece vinhos para casamentos e festas em geral, e a beer.com.br, plataforma que concentra 75% do mercado de clubes de assinaturas de cervejas no Brasil. Quando o assunto são números, aliás, a companhia capixaba vê a rolha voar pelos ares: com 500 funcionários e mais de 2 mil rótulos de vinhos no catálogo, a Wine.com. br contabiliza 7 mil pedidos diários e distribuição de 11 milhões de garrafas anuais. O faturamento em 2017 registrou R$ 400 milhões, com estimativa de crescimento para 2018 entre R$ 550 e R$ 600 milhões. Tal desempenho alavancou ainda mais a companhia. Desta vez ao posto de maior e-commerce de vinhos da América Latina, figurando entre os três maiores clubes de vendas do mundo no segmento, com 140 mil sócios em todo o Brasil. O sucesso atraiu, de quebra, uma das maiores referências empresariais de Rogerio: em 2016, o empresário paulistano Abilio Diniz tornou-se sócio da empresa capixaba por meio de sua companhia de investimentos, a Península Participações, sediada na capital paulista, com aporte de capital, estima-se, de mais de R$ 100 milhões. Com participação acionária entre 30% e 40%, Diniz juntou-se a uma sociedade que, além de Rogerio e do primeiro investidor da empresa, Fernando Optiz, já conta com o fundo E.Bricks, do Grupo RBS, dono de 40% do capital. A aquisição mais recente foi a Bodegas, importadora e distribuidora de vinhos para o mercado B2B, que atua há 15 anos no Brasil. Com a compra, a operação da Wine.com.br comemora o sucesso de uma nova safra, tornando-se multicanal. A estimativa é de inaugurar lojas físicas inicialmente nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo, chegando a 100 estabelecimentos em cinco anos em todo o país. “Porque hoje não existe off-line e on-line”, dispara Rogerio. “Existe o mercado. E a Wine é uma empresa all-line.”


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THE PRESIDENT: Você nasceu na Bahia, mas muita gente acha que é capixaba, não? Sim, nasci em Itabuna em uma segunda-feira de Carnaval, e saí de lá aos 12 anos. Meu pai era funcionário do Banco do Brasil e minha mãe, professora, mas do lar. Ele, sempre muito preocupado em proporcionar o melhor da educação para a gente, decidiu que eu e meus irmãos [Patrícia e Raflei] estudaríamos na capital. Mudamos para Salvador por isso, em 1984. E por quanto tempo morou em Salvador? Até 1989, quando decidi vir para o Espírito Santo. Mas antes fiz um intercâmbio na Grande Phoenix, no Arizona, Estados Unidos, com 17 para 18 anos. A essa altura eu já nadava de 10 a 13 quilômetros por dia. Adorava treinar. Aliás, sou fissurado por treinamento, equipe, time. Acordar cedo, treinar por horas seguidas? Sim, eu curtia muito acordar às 5 da manhã, treinar até as 7, ir para a escola, voltar, almoçar, estudar um pouco e voltar para o treino à tarde. Ao contrário da maioria dos jovens, eu não perdia noites com bebidas. Estava muito focado em treinar. Meu primeiro contato com o vinho foi depois dos 18 anos. E foi a natação que o trouxe ao Espírito Santo? Sim. Em 1989 conheci um pessoal em um campeonato brasileiro que acontecia em Salvador. Daí começou: “Por que você não vai treinar com a gente em Vitória?” Eu já andava bem motivado a ir para região Sudeste por conta dos clubes que despontavam na época. Queria estar próximo a quem estava fazendo diferente e se destacando.

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“Vender balas na rua, AINDA MENINO, me ensinou a importância de trabalhar com paixão e sorrindo” Como foi a sua infância em Itabuna? Eu fui muito sortudo. Tive uma infância numa família maravilhosa. Família de classe média e bem estruturada. Morávamos em um bom bairro. Brinquei muito em campo de barro, subindo em jaqueira. E fazia meus carrinhos de rolimã. Já era um empreendedor [risos]. Ah já! Fazia barcos com caixas de leite Parmalat. Também organizava campeonatos de video game. Os vizinhos tinham fazenda ou sítio e distribuíam jaca, manga, mamão, pera, cana. Aí eu montava uma banca na frente de casa e vendia. Assim ganhava um dinheirinho. Mais tarde, ia para o centro da cidade, comprava uma caixa de chicletes ou de balas e vendia. No Carnaval, comprava pulseiras de plástico, de cordão. E vendia também. Adorava! Que sonhos ambiciosos você tinha quando menino? Ter um barco. E sabe aquelas casas bacanas que aparecem nas revistas? Eu sempre juntei recortes e pensava: “Pô, um dia eu vou comprar uma casa dessa aqui para os meus pais ou vou morar em uma delas”. E guardava. Raspei o fundo do carpete do meu quarto para fazer um esconderijo e colocava tudo ali, guardadinho. Já tinha uma criatividade. Seus pais eram rígidos? Tive aquela educação de meu pai falar uma ou duas vezes, e na terceira o pau

comia mesmo, Ave Maria! Apanhei, sim. Mas não fiquei com problemas psicológicos por isso. Apanhei porque aprontava, tal como meus dois irmãos. Sou o caçula... Você foi bom aluno? Eu tinha altos e baixos. Houve uma época em que era da turma do fundão. Em outra, estava no meio da sala, quando precisava de nota. Nunca fui um aluno nota 10, nunca fui CDF, mas sempre passava de ano. E era líder de turma em quase em todas as classes em que estudei. Gostava e me comunicar, de estar com todo mundo. Também fazia teatro na escola. Se ninguém queria um determinado papel, eu me habilitava. Lembro de uma peça do Sítio do Picapau, em que ninguém queria ser a Emília. E eu, com 12 ou 13 anos, disse: “Ah, eu vou ser a Emília”. E me maquiava, usava aquela peruca colorida [risos]. Criei até uma banda cover do Menudo. Não tinha frescura mesmo! Ah, não tinha não! É pra fazer? Vamos nessa. Já era assim na minha infância e juventude. Nunca tive vergonha de fazer o que queria, sabe? Em uma de suas palestras você disse que ter sido vendedor de balas trouxe vários ensinamentos. Qual foi a principal lição? A importância do sorriso no rosto. Tanto naquela época como hoje, faço tudo com muita paixão. Eu não precisava vender balas. Meu pai e minha mãe me davam todo o


“É para fazer? Vamos nessa. Já era assim na minha infância e juventude. nunca tive vergonha de fazer o que queria”

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suporte. Mas eu adorava me comunicar. Via alguém fazendo compras e brincava: “Você não quer comprar bala, não? Leve para o seu filho”. Isso com 8, 9 anos. Curioso é que, em Vitória, com 18 anos, seu primeiro emprego com carteira assinada foi como vendedor de balas. Foi mesmo. Eu morava em uma pensão porque queria. Tinha tios na cidade, mas falava para o meu pai: “Vou morar na pensão, quero construir minha vida”. Eu queria era me relacionar, conhecer pessoas. E foi o que fiz. Entrei nessa empresa para vender balas. Não tinha carro, trabalhava de ônibus e depois pedi para a minha prima uma bicicleta emprestada. Era uma bicicleta Ceci cor-de-rosa. Fiquei conhecido como o vendedor da Ceci [risos]. Na frente da bicicleta ficava tudo na cestinha, com meu bloco de notas, capa de chuva. Acho até que as pessoas muitas vezes compravam por pensar: “Cara, esse bicho é muito doido” [risos]. Eu tirava pedidos em três vias, com carbono. E nunca voltava para casa sem pedido. Nunca. Porque bala é um produto que todo mundo gosta, você usa até para troco. Eu entrava até em farmácia para vender! Andei por morros, padarias, mercados. Abordava o cara que estava no ponto de ônibus… As pessoas deviam perceber sua paixão pelo que você fazia. Sim, e foi muito gratificante. Quando alguém vê que você está fazendo algo honestamente, com dedicação e sorrindo, é natural que admire essa atitude. Sempre acreditei nisso. Quando criança, você sonhava em cons-

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truir um barco. Seu livro de adolescência é Cem Dias Entre Céu e Mar, do Amyr Klink. E nas conversas, você também usa muito o termo “navegar”. Que ligação é essa com o mar e a água? Pois é, não tinha reparado ainda, sempre uso o termo navegar! Meu signo é aquário. Fui nadador, gosto de surfar, de velejar. E há todo o meu lado místico com o mar. Tenho um respeito enorme por Iemanjá. Você estudou jornalismo, certo? Sim, mas eu queria ser médico pediatra. Tentei e tomei pau. Tentei, tomei pau de novo. Um dia pensei: “Sabe de uma coisa? Não vou ser médico, não”. E decidiu estudar jornalismo? Sim. Nessa época, de vendedor me tornei supervisor, gerente e tal, e resolvi estudar Comunicação Social. Passei na FAESA [Faculdades Integradas Espírito-Santenses]. Queria ser âncora da Globo, nada menos que o William Bonner. Mas não me via como aquele foca [jargão do jornalismo que designa profissionais recém-formados] saindo pra cobrir polícia. Tanto que o tema do meu trabalho de conclusão de curso foi comunicação empresarial. Era um vídeo, explicando como você se prepara para uma coletiva de imprensa. O que você mais gostou de estudar na faculdade? Gostei de filosofia, história da comunicação. E adorei aprender a técnica de falar com propriedade e eficiência em poucas palavras, sem enrolar. Eu me tornei presidente do diretório acadêmico. Descobri que não era um cara de jornalismo, mas de comunicação e marketing. No trabalho, dava aulas para os times de vendas. Comecei a gostar

muito de falar em público, não tinha problema nenhum em falar para 3 mil pessoas sobre vendas. Eu ia lá e dava o recado. O que você fez depois de se formar? Fiz um MBA em marketing na FGV [Fundação Getúlio Vargas] e, depois, especialização em finanças, para ganhar mais profundidade e conhecimento nos termos finan­ceiros. Eu era gestor de equipe, de projeto. Tinha que conhecer um pouco mais. Terminada a especialização, decidi empreender. Foi quando você montou uma empresa de food service? Sim, em 2002. Na época, minha ideia de empresa era uma sala com galpão, computador, tudo certinho. Me juntei a uma amiga querida, Fátima, que conheci no MBA. O pai dela tinha um terreno. Juntamos as economias e construímos. Quando terminou a obra, tudo bacana, com depósito, ar-condicionado, tapete com o nome da empresa, logomarca lá em cima, caímos na real: não tínhamos um real sequer para comprar um baldinho de azeitona. E o que você pensou naquele momento? “Você é burro mesmo, não é?” Pelo amor de Deus! Já comecei quebrado. Daí peguei dinheiro aqui, dinheiro ali, pedi em banco, pedi para parente. Entrei em uma roda-viva alucinante. Você já estava casado? Foi bem nessa época que conheci a Ana Lúcia e a gente começou a namorar. Ela engravidou da minha filha Luana, e resolvemos juntar os trapos. Se vamos ter um filho, vamos ter juntos, não é? Mas fui pai pela primeira vez com 26 anos, da Victória. Na verdade, tive um primeiro casa-


mento antes da Ana Lúcia. A mesma coisa: namorou, engravidou, casou. Mas não deu certo. O primeiro casamento durou dois anos. Com a Ana Lúcia, minha mulher até hoje, casei aos 31 anos. Ela também me deu um filho, o Bruno. Fazendo as contas, a Victória está hoje com 19 anos, certo? Sim, ela mora em São Paulo, estuda administração na FGV. Bem, mas voltando ao food service, é verdade que a Ana Lúcia bancou o início da empresa? Ela já era empresária e eu não tinha um puto na manga. Ana Lúcia bancou a nossa vida familiar durante dois anos. Ela sempre esteve ao meu lado, dizendo que eu ia conseguir: “Você é muito doido mas vai conseguir”. E, olha, cometi vários erros empresariais. Virão outros erros ainda, mas novos. Nunca os mesmos. Como foi a transição do food service para o mundo do vinho? Aconteceu naturalmente. Um amigo, Ricardo Buteri, que hoje é diretor de operações na Wine, importou uns vinhos da Austrália e começou a vender. Ele sabia que eu era vendedor e me deu a oportunidade de também vendê-los. Eu tinha 29 anos. Depois, o Ricardo me apresentou ao Adolar Hermann, dono da importadora Decanter. Então, um outro conhecido me indicou um cara em Portugal que estava com um lote de vinhos que ninguém conseguia vender. E eu peguei também. Queria vender! E você já tinha algum conhecimento sobre vinhos? Nenhum. Depois, comecei a gostar, porque vi

que era um negócio interessante. Li, estudei, participei de confrarias e fui me aprofundando. Até que me deu o estalo: “Vou acabar com esse negócio de food service para trabalhar só com vinho”. E foi o que aconteceu. A Wine.com.br completará uma década este ano. Como a empresa nasceu? Se a Wine tem hoje dez anos, o Anselmo Endlich, meu ex-sócio, participou de cinco anos dessa história. E história a gente não apaga, a gente valoriza.

cios. Criamos e construímos esse negócio juntos e tivemos sucesso juntos. Em 2014, o Anselmo decidiu trilhar um caminho sozinho, empreender em outro segmento fora do Brasil. Está morando em Miami. A gente se fala, troca ideias. Mas a Wine não nasceu já como clube de vinhos, mas como e-commerce, certo? Antes da Wine existia outra empresa, a Estação do Vinho, em São Paulo, um ecommerce que durou de 2004 a 2008. Era

“estudei jornalismo porque pretendia ser o william bonner. mas descobri que sou um cara de marketing” Como vocês se conheceram? Em uma outra empresa em que fui vendedor, depois gerente comercial, a Yara Hanna [uma das maiores importadoras de frutas do país, onde Rogerio implantou o segmento de vinhos]. O Anselmo trabalhava como consultor na área de tecnologia. Mas trocamos ideias, mesmo, quando eu já estava fora dessa companhia, e indo para uma feira em São Paulo. Sentamos juntos no avião. Eu disse: “Cara, eu preciso de uma pessoa como você. Tenho essa ideia assim e assado pra fazer um negócio, mas não entendo nada de tecnologia”. E completei: “Você é o cara”. E como ele recebeu a ideia? A resposta foi: “Pô, cara, já estou de saco cheio de trabalhar para os outros”. E em um voo de 1h10 a gente desenhou o projeto da Wine.com.br e nos tornamos só-

só uma loja, a gente não importava. Comprávamos e vendíamos. Saímos em 2008 e a empresa ficou com os investidores-anjo na época. E como ficava a vida familiar, com a empresa sediada em São Paulo? A gente ia para São Paulo todo domingo à noite e voltava para Vitória na sexta. Então resolvemos sair para montar o projeto da Wine em 2008. Tínhamos divergências estratégicas com os investidores. E resolvemos seguir nosso caminho. E como surgiu a ideia de criar o clube de vinhos, em 2010, com a Wine já estabelecida? Veio com a necessidade de atender a uma demanda dos nossos clientes. Muitas vezes eles pediam indicações de vinhos, harmonizações. Estudamos o que seria um modelo de indicação recorrente e começamos a

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entender um pouco do que já existia. Havia clubes de vinho no exterior. Alguns poucos até no Brasil, ainda começando. Dissemos: “Cara, esse pode ser o caminho”. E qual seria o diferencial? Ir além da indicação de vinhos, oferecendo aos clientes conteúdo, inovação, criatividade. Ou seja, ninguém vai comprar apenas o vinho. Naquela época, em 2010, ninguém comprava um vinho da África do Sul, ou de uma região desconhecida da Espanha, um grego que ninguém indicasse. Tentamos fazer uma parceria com os clubes que já existiam no Brasil. Não conseguimos. Então resolvemos criar o nosso. Desde então, nosso clube não para de crescer. Hoje o Clube Wine tem quantos sócios? Hoje temos 140 mil pessoas degustando e conhecendo vinhos, vinícolas, regiões, uvas, cortes, varietais. É bem mais difícil descobrir tudo isso sozinho. Porque sozinho vou tomar o que já conheço ou o que alguém me indicou. Com o clube, tudo se torna mais fácil. O sócio confia na curadoria feita pela Wine. Há a figura do winehunter, o cara que viaja o mundo em busca de novos vinhos. No início, era você que exercia essa função? Sim, em 2012 eu fazia essa curadoria. O Anselmo me ajudava muito. Fiz muito hunter. Gosto, adoro e continuo fazendo. E hoje o Clube Wine se subdivide em seis experiências, para diferentes perfis de consumidores. Exato. Com o tempo surgiu a necessidade de diversificar para atender aos anseios dos clientes. Uns gostam de espumantes, outros curtem brancos, rosés... Os sócios têm

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“quero estar presente não só na internet. mas no supermercado, na loja. onde o meu cliente quiser” faixas de preço e momentos de consumo diferentes. Diversificamos nossa linha para atendê-los no momento e na faixa que eles desejarem. Mas uma coisa não elimina a outra. Tem sócio que assina o clube de experiências Exclusividades Notáveis [uma das modalidades com vinhos pontuados e/ou produzidos em edição limitada] e também o de experiências Refrescantes Espumantes. Tudo se complementa. E, com todo esse sucesso, chegou o momento de investir em cerveja. Como foi? Quando decidimos, pensamos no seguinte: a maior parte das pessoas que gosta de vinho também curte cerveja, não é? Vivemos em um país quente, cervejeiro, e precisamos navegar nessas duas avenidas de negócios. Nascemos como vinho. A cerveja pode complementar uma compra. A operação é a mesma, é tudo muito similar. Seria uma oportunidade a mais para os clientes. Mas daí, em vez de começar do zero, vocês criaram o clube de cervejas adquirindo a operação do e-commerce Have a Nice Beer. Sim, e no ano passado adquirimos a Clubeer. Então todo esse negócio de cervejas se transformou em beer.com. br. A gente acredita muito no potencial do mercado de cervejas. Vamos falar de outra iniciativa, o e-commerce Vinho Fácil, com vinhos para con-

sumo imediato, de valor acessível. O site nasceu para enfrentar a concorrência? Nós percebemos uma oportunidade de trabalhar nesse segmento, de bons produtos com preços muito competitivos, promoções diárias. Era importante para a gente, como líderes de mercado. No fim do ano passado decidimos entrar, mas com um conceito diferente dos concorrentes. Trazemos vinhos com DNA, com história. São marcas e produtores reconhecidos internacionalmente. Não nos aventuramos com produtos desconhecidos. Você se refere aos VSIG, os vinhos produzidos na Comunidade Europeia, mas sem indicação geográfica? Sim. Não trazemos vinhos “da Comunidade Europeia”. Importamos vinhos de origem. Um vinho que é feito no Leste Europeu e é vendido como Château não sei o que de Paris não é um vinho francês. O cara foi lá, criou um rótulo e vendeu como se fosse. A aquisição mais recente do Grupo W2W foi a importadora e distribuidora Bodegas, no mercado há 15 anos. Na prática, o que muda para a Wine e os sócios? Nós temos que estar presentes onde nosso cliente quiser comprar. Não só na internet. Se é no site, na loja, no restaurante, supermercado ou parceiro, quero estar lá. Se ele gosta dos nossos produtos, preciso estar disponível.


No Brasil, esse é um grande desafio. Sim, porque é um país muito grande. Mas estamos nos propondo a fazer o passo a passo. O mercado do B2B é bem maior do que o B2C. Demoramos três anos para estudar, conhecer, aprender, errando e acertando. Concluímos que temos que estar presentes em todos os pontos de contato. Para isso, precisávamos de uma empresa que já tivesse conhecimento, que já distribuísse. Buscamos quem já estava fazendo isso bem, e que tivesse os nossos valores. Não queríamos comprar apenas uma empresa, mas atrair um empreendedor, um time de sucesso. Assim adquirimos a Bodegas, que, além de ser especializada no B2B, já navegava no universo de lojas. Porque não existe off-line e on-line. Existe o mercado. E a Wine é uma empresa all-line. Combinando todos os canais. Sim, porque a Wine já mudou o varejo. Queremos uma nova mudança agora. Seremos a única empresa deste país a ser 100% all-line, de fato omnichannel [usando todos os canais simultaneamente]. A Wine Eventos acaba sendo outro braço importante nesse movimento de expansão? Sem dúvida. É um outro segmento dentro da Wine, especializado em festas e eventos. Começou pequenininho, mas vem crescendo a cada mês. Temos os distribuidores espalhados pelo Brasil. São 700 pessoas envolvidas nessa venda direta por meio dos aplicativos e do site da Wine Eventos. Estamos presentes em uma infinidade de casamentos, formaturas, festas de empresas e tal. Começamos a gerar receita para essas mais de 700 pessoas, o que é muito legal em um país com mais de 12

“não existe off-line e on-line. Existe o mercado. e a wine é uma empresa all-line” milhões de desempregados querendo empreender, trabalhar, se realizar. Quais empreendedores você admira? Meu pai não foi exatamente um empreendedor. Mas foi o cara que me colocou no mundo e me ensinou. É o maior cara, não é? E, bem, falar do Abilio Diniz, que é meu sócio, talvez seja clichê demais. Mas se você o admira, qual o problema em admitir? Olha, admiro o Abilio. Assim como admiro o Jorge Paulo Lemann. Quando eu e o

Anselmo começamos nesse negócio – isso até já comentei com o Abilio – colocamos como meta sermos sócios de um ou do outro. Quando fechei com o Abilio, fiz questão de contar essa história para ele. Outro cara que admiro é o Richard Branson, da Virgin. E também acompanho o Larry Ellison, da Oracle Corporation. Em suas palestras e workshops você costuma dar shows de improviso. Como chegou a esse timing? Para prender a atenção de uma pessoa em uma palestra, conto a minha história. E é

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muito mais fácil fazer isso sem roteiro. Não pode ser aquela coisa de passar slide, ler. Poxa, se você vai falar de algo, procure falar sobre aquilo que realmente te dá tesão, te apaixona. É o que faço. Não vou falar sobre tecnologia. Posso falar sobre o que fizemos na Wine para gerar momentos de prazer e fidelizar nosso cliente. A Wine tem um dress code bem informal. Os funcionários devem adorar, não? Olha, teve gente que contratamos e que, duas semanas depois, confessou: “Cara, não consigo trabalhar em um lugar onde vejo as pessoas de bermudas, chinelos. Preciso trabalhar de blazer, arrumado, sou mais formal”. A gente tem que respeitar o outro como ele é. A Wine tem uma cultura empresarial muito própria, não? Sim. Todas as pessoas que estão ou que passaram por aqui – os wineanos, como chamamos – depositaram um pouquinho de coisas bacanas no pote de cultura da Wine. E isso vem se fortalecendo, se modernizando a cada dia. Há uma frase sua bem conhecida: “O cliente não está em primeiro lugar”. Ela te gera problemas? Quando digo isso, tomo porrada sempre. Tenho que tomar muito cuidado nas palestras. Mas, gente, por que o cliente está sempre em primeiro lugar? Quem inventou isso? Ainda mais hoje em dia, com o cliente extremamente empoderado. Ele entra nas mídias sociais e, e se não for bem atendido, fala e senta o pau. E a gente, muitas vezes, não tem nem condições de se defender, porque aquilo viraliza e faz um estrago grande. O cliente é fundamen-

“não, o cliente não está em primeiro lugar. quem está é o funcionário, para poder atender bem ao cliente” tal, é único. Mas quem está trabalhando para fazer esse cara receber o produto, ser bem atendido? O funcionário vem bem antes do cliente. É um ser humano que tem que trabalhar respeitado, feliz, motivado, em um ambiente agradável.

que cada um está vivendo. E, naquele momento, a gente tem total condição de analisar e tomar decisões. Claro que pode errar, mas aí corre atrás de novo. Devemos aprender com erros e acertos, sem arrependimento. Aliás, não gosto dessa palavra.

Tem outra frase importante para você: “Um dia é preciso parar de sonhar e partir.” Nossa, coloco isso em prática em tudo o que faço. É do livro Cem Dias Entre Céu e Mar, do Amyr Klink. Sou um sonhador nato, acredito que posso ajudar a mudar o mundo. Quero colocar meus sonhos em prática. E para que isso aconteça, é preciso parar de sonhar e partir. Vejo aí essa garotada envolvida com projetos que nunca saem do papel. “Ainda tem que fazer isso, aquilo...” Digo: “Amigo, 70% estão sob controle e 30% você não conhece? ‘Vambora’. É hora de partir”. Vamos errar, mas fazendo a coisa acontecer. Esses 30% são a parte que a gente não conseguiu planilhar. É o mercado quem vai nos mostrar. Não aceito que um projeto nasça 100% preparado. É mentira. Vai dar errado porque já nasceu errado.

Na Wine, trabalha-se com um produto de vidro, frágil, pesado e líquido, distribuído em um país de dimensões continentais dentro de um prazo prometido. Qual é o maior desafio de logística da empresa? Uma empresa de e-commerce é uma operação de entrega, porta a porta. São tantas variáveis jogando contra e a favor que temos que saber navegar nesse ambiente tão dinâmico. Operar logística no Brasil é um desafio. Mas somos apaixonados por desafios e, também, por logística. Não dormimos quando algo não dá certo, quando um pedido não foi entregue ou atrasou. Queremos entender o que levou àquilo, onde podemos melhorar, que ferramentas precisamos criar ou desenvolver. Nosso time de operações viaja o mundo todo, o ano inteiro. Onde tem operação logística, vamos conhecer, tirar proveito, ver como podemos aplicar no Brasil.

Com que erro você aprendeu mais? Acho que em muitos momentos não ouvi os mais experientes. Você se arrepende de algo em sua trajetória? Nada! [enfático]. Ninguém deveria se arrepender de nada. As decisões são tomadas dentro de um contexto, de um momento

Qual a importância da WineBox, a caixa preta onde chegam os vinhos adquiridos no site ou pelo clube, para alavancar essa logística? A WineBox é nosso cartão de visitas, nosso bebê. Um produto que torna a Wine palpá-

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vel. É quando o cliente recebe o pedido, a hora da verdade, a primeira etapa do momento de prazer. Uma embalagem que muita gente chama de caixinha. Você se irrita com esse termo? Mas é claro! “Caixinha” [risos]. É um produto pensado pra ter alma. Ao abrir a WineBox, deve sair aquele vento em direção aos cabelos, ao rosto. E então começa a segunda etapa de prazer, que é tocar o produto, tomar aquele vinho. Muitas vezes é com ele que os sócios vão comemorar datas especiais, ou apenas relaxar. Temos paixão por essa embalagem.

As maiores paixões: os filhos Victória, Bruno e Luana (no Beco do Batman, em São Paulo), a mulher, Ana Lúcia (em Beaujolais, na França), e o esporte (snowboard)

Você participou pessoalmente do desenvolvimento da WineBox? Sim. Na época, exigia-se que os vinhos fossem entregues em caixas de madeira. Imagine! Hoje entregamos mais de 8 mil pedidos por dia e mais de sete garrafas em média por pedido. Se fôssemos entregar tudo isso em caixas de madeira, eu teria que contar com uma floresta de reflorestamento aprovada pelo Ibama. Criaria um depósito de caixas enorme, altamente inflamável e contraproducente. Não faz sentido. O jeito foi atrasarmos alguns meses o lançamento da Wine e, aí, sim, eu e o Anselmo nos dedicamos a criar a WineBox. Desenhando, testando, homologando a querida WineBox. Tão querida que virou referência para a concorrência. Sim, e para as transportadoras. Todas imitando a WineBox. Se é para democratizar o consumo do vinho no Brasil, OK, que sigam o caminho e copiem a Wine. Outro grande diferencial é a importância que a Wine.com.br dá ao conteúdo, com

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revista própria, site e blog com informações sobre produtores, uvas, curiosidades. O vinho é um produto que deve ser desmistificado, democratizado e bebido da forma que qualquer um quer beber. Quer tomar o seu de canudinho? Tome! Você não tem taça? Beba no copo e seja feliz. Aliás, beba o que você gosta e quer na hora em que você quiser. Mas é claro que o conhecimento ajuda. Por exemplo: saber que aquele determinado vinho combina com ingredientes da mesma região onde foi produzido. O conteúdo da revista é muito bacana. Vai desde a saga da família do produtor até informações sobre regiões, economia, política. Estamos falando de um produto com 8 mil anos de história. Levar o conteúdo do vinho é parte do nosso negócio porque é parte da divulgação da cultura do vinho. E como é sua relação pessoal com o vinho? Tomo vinho há praticamente 20 anos. Estudo, leio, tiro prazer disso. Mas tenho amigos que dizem: “Cara, desculpe, eu só quero abrir a garrafa e tomar meu vinho”. Nada contra. O importante é ser feliz. Quem disse que só pode tomar vinho quem entende, lê e se aprofunda? Para com isso! Há também aquele cara que gosta de se mostrar. Como você vê a figura do enochato? O enochato é chato mesmo [risos]. Só toma o vinho em taça de cristal, decanta, e, quando senta para conversar, só quer falar de vinho. Na hora de beber: “Ah, o que você está sentindo? Quais aromas você encontra?”. A gente desmistificou isso. O vinho é uma bebida social, de prazer. Quer falar a respeito? Ótimo, vamos conversar. Mas vinho é para ser bebido. Vamos conversar sobre a vida.

“quer tomar vinho de canudinho? tome. Não tem taça? Beba no copo. o vinho precisa ser democratizado” Como é a sua rotina? Olha, eu gostaria de equilibrar mais a vida empresarial e pessoal. Mas lidero uma empresa extremamente dinâmica. Tenho compromissos muitas vezes fora da cidade onde moro com a família. Viajo o Brasil, viajo o mundo, em eventos, reuniões. Minha felicidade é dividida com a família. Ela sabe que sou feliz com meu trabalho. Procuro estar presente muito profundamente em cada minuto em que estou com a família. Adoro cozinhar para todos. Toda quinta-feira, jantamos juntos. Que vinhos você tem tomado em casa? Muitos californianos e italianos. Ando navegando muito pelos Chardonnay, Pinot Noir americanos Também pelos Chianti da Toscana. E estou tomando muito vinho do Piemonte. Vinho é fase. Toda a família gosta muito de vinho. Mas o meu grande parceiro de taça, hoje, é o meu sogro, Ed, que tem 82 anos. Um cara que trabalha, estuda, está em sua sexta especialização em geriatria. Qual é sua palavra favorita? Nossa, agora você me pegou. Qualquer uma? Ah, sonho. Porque o sonho é o começo da realidade. Se hoje você não fosse CEO da Wine, que profissão gostaria de exercer? Medicina? Não. Isso era lá atrás. Se hoje eu não fosse CEO da Wine, eu queria ser um wineano.

E qual profissão jamais exerceria? Poxa, essa é bem difícil, mas sou muito chorão. Não conseguiria exercer qualquer profissão em que tivesse de lidar com gente em estado debilitado de saúde, sobretudo crianças. Também não trabalharia sozinho. Não seria um radiologista ou dentista. Qual foi a última vez que chorou? Ontem. Assistindo a um filme romântico na Netflix com a minha esposa. Nem me lembro o nome. Pretende escrever um livro? Pretendo. E, esse sonho, tenho que parar de sonhar e partir. Eu preciso partir. Quem é Rogerio Salume? Um cara que acredita no ser humano e que acredita que é capaz de realizar as coisas. Um cara do bem, de família, que acredita em educação. Sou um otimista. Por fim, moqueca é baiana ou capixaba? Olha só! Ambas são moquecas. Uma baiana e uma capixaba. Como com mais frequência a capixaba, que não leva dendê nem leite de coco, porque vivo em Vitória. E todo mundo que vem à Wine quer comer moqueca. Devo comer umas quatro vezes por semana [risos]. E adoro, como com o maior prazer. Eu diria que não existe moqueca baiana, nem capixaba. Existe a moqueca feita na Bahia e a moqueca feita no Espírito Santo. E as duas são deliciosas.

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I M PR ENSA P o r RO B ERTO M U G G I ATI

É

uma revista como as outras? É um jornal? Não. Mais do que isso, é o The Economist, o supersemanário fundado há 175 anos que, na contracorrente da mídia impressa, vende mais de 1 milhão e meio de exemplares por semana. O primeiro número da publicação londrina saiu num sábado, 2 de setembro de 1843, ao preço de 6 pence. O cabeçalho dizia: “The Economist ou o jornal político comercial, agrícola e do livre-comércio”. Foi o escocês James Wilson, ex-fabricante de chapéus e ex-banqueiro, quem, num acesso de raiva contra a injustiça econômica, fundou a revista. Tinha 38 anos e, ao longo dos próximos 16, se viu promovido a faz-tudo. Era o editor e proprietário único, bem como o redator de quase todos os textos. Sua meta principal era defender o livre-comércio contra o protecionismo crescente que, segundo ele,

O FA R O L promovia a pobreza e a fome na Inglaterra. Respeitado estatístico, Wilson via a economia como uma maneira otimista e racional de mediar um futuro socialmente sustentável. A época era de prosperidade, turbulência política e agitação cultural. Prometia grandes novidades e mudanças. Vejamos alguns acontecimentos daquele ano de 1843. Ada Lovelace, a filha de Lord Byron, escreveu o primeiro programa de computador para a máquina analítica de Charles Babbage, precursora do computador moderno. O fabricante de armas americano Charles Thurber patenteou a primeira máquina de escrever. Joseph Krug iniciou sua companhia de champanhe para encher de borbulhas a vida dos ricos e famosos. Em sua longa carreira, The Economist assistiu de perto às maiores conflagrações por que passaria o mundo. De cara, acompanhou as primeiras manifestações do proletariado,

Aos 175 anos, a revista The Economist deixa os economistas de boca aberta, ao vender 1,5 milhão de exemplares por semana em tempos de baixa para o jornalismo impresso

Em 2013, o semanário britânico criado por James Wilson (no alto) não foi exatamente benevolente com a crise brasileira

fotos: getty, reprodução

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The Economist antecipou a Grande Depressão que se seguiria à quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929

com as Revoluções de 1848 (ou a Primavera dos Povos), o mesmo ano em que Marx e Engels (ambos fiéis leitores da publicação) lançaram o histórico Manifesto Comunista. Depois vieram a Comuna de Paris (1871) e a onda dos movimentos anarquistas e niilistas. Mais tarde, a Revolução Russa, as duas Grandes Guerras, o crack da Bolsa, a Depressão, e assim por diante. O obituário de deus The Economist se pronunciaria sobre todos esses acontecimentos com uma coerência ideológica invulgar. Alguém já a chamou “o farol do liberalismo”. Sua atual posição editorial, alinhada com o liberalismo clássico e econômico, defende o livre-comércio, a globalização, a liberdade de imigração, a proteção do meio ambiente, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a descriminalização das drogas. The Economist descreveu a mudança global iniciada nos anos 1990 e acelerada no início do século 21 como uma “nova era de Inteligência de Massa”. O que ecoa, de certa forma, o preceito proposto por James Wilson no início da jornada: “Participar de um severo combate entre a inteligência, que puxa para frente, e uma ignorância desonrosa e tímida que obstrui nosso progresso”. Amostras: Primeira Guerra Mundial (em 2010, no seu tom mais descontraído dos dias atuais, The Economist tentou explicar o

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conflito como uma briga de bar. Segue o início do texto:) • “A Alemanha, a Áustria e a Itália estão bebendo de pé no meio de um pub quando a Sérvia tromba com a Áustria e derrama sua caneca de cerveja. A Áustria pede à Sérvia que compre um terno novo porque as pernas das calças foram salpicadas de cerveja. A Alemanha manifesta seu apoio à reivindicação da Áustria. A Inglaterra recomenda que todo mundo tente se acalmar um pouco.” Crack de 1929 (antecipando a Depressão) • “Algumas quebras de bancos deveriam ocorrer e alguns bancos podem não possuir as reservas suficientes para financiar empreendimentos comerciais e industriais. A posição dos bancos é a chave da situação e o que vai acontecer é imprevisível.” Guerra Fria (revisitada em 2018) • “Não há nada de novo sobre as fake news ou as campanhas de desinformação da Rússia. Em 1983, uma história extraordinária apareceu no desconhecido jornal pró-soviético Patriot. Ele alegava ter provas de que o Pentágono havia criado a aids como arma biológica e pretendia exportar o vírus, sobretudo para países emergentes, a fim de ganhar controle sobre eles. O texto foi reproduzido em publicações importantes de mais de 50 países.” 11 de setembro (na edição antecipada de 13 de setembro de 2001) • “Seis décadas atrás, uma geração de americanos alarmados acordou para descobrir que seu país estava sendo

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Um índice econômico fácil de digerir

“Kim Jong Venceu”, diz a chamada de capa de uma edição em junho

marx e engels eram leitores fiéis do semanário, que, desde o início, mirou-se no liberalismo clássico

atacado. Pearl Harbor mudou a América e, em consequência, o mundo. Agora os filhos e os netos dos americanos que foram à guerra em 1941 sofreram seu próprio dia da infâmia, não menos memorável. As atrocidades chocantes do 11 de setembro – atos que devem ser vistos como uma declaração de guerra não só à América como ao mundo civilizado – foram mais cruéis em sua concepção do que o que aconteceu no Havaí. Milhares de inocentes jazem nos destroços do World Trade Centre; outras centenas morreram no Pentágono e no avião que caiu na Pensilvânia. Esta semana mudou a América e, com ela, o mundo, uma vez mais.” Deus (em 23 de dezembro de 1999, na edição do Milênio, uma retomada do debate milenar sobre a existência de Deus, com um obituário) • “Depois de uma longa carreira, o Todo-Poderoso recentemente passou para a história. Será mesmo?”. Os textos em The Economist não são assinados. Nem sequer o nome do diretor da publicação aparece (a atual, desde 2015,

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Para tornar mais apetitoso o jargão da economia, The Economist criou em 1986 o Índice Big Mac. Ele é calculado sobre o preço do sanduíche Big Mac, da cadeia de fast-food McDonald's, em mais de cem países. Foi elaborado para explicar o conceito da paridade do poder de compra. The Economist levou em conta o fato de que o Big Mac é feito com os mesmos ingredientes em quase todos os países pesquisados. Se houvesse paridade, o preço de um Big Mac deveria ser igual em todo o mundo em dólares. Se um Big Mac em determinado país for mais barato do que nos EUA, a moeda está desvalorizada em relação ao dólar. Se o sanduíche for mais caro que nos EUA, a moeda está valorizada. Existe também uma forma alternativa de analisar o índice Big Mac: observa-se o tempo de trabalho necessário em diferentes países para se comprar um Big Mac. No Brasil, por exemplo, para comprar um Big Mac, o trabalhador médio precisaria trabalhar por aproximadamente 40 minutos. Na sua apuração de janeiro de 2018, The Economist verificou que o país com maior poder de compra é a Suíça, onde um Big Mac custa 6,76 dólares. O Brasil vinha em nono lugar, com um Big Mac ao preço de 5,10 dólares. Abaixo da Suíça e antes do Brasil figuravam, pela ordem: Noruega, Suécia, Finlândia, Canadá, EUA, Itália e França.

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The Economist e “The Brazils”

As bancas ainda são a força, embora a edição online vá ao ar religiosamente às quintas-feiras

é “Zanny” Minton Beddoes, a primeira mulher no posto). Segundo uma longa tradição, o editor só assina um texto uma única vez: sua carta de despedida quando deixa o cargo. A edição online da revista, paga, vai à nuvem toda quinta-feira às 19 horas, horário do Reino Unido. Antes da versão impressa. Um breve histórico das tiragens do semanário: em 1870, sua circulação era de 3.700 exemplares; em 1920 cresceu para 6 mil; no pós-guerra a tiragem teve um aumento significativo, chegando a 100 mil em 1970. Veio então um salto espetacular: para 1 milhão em 2000 e para 1,3 milhão em 2016. No momento, The Economist vende em média mais de 1,5 milhão por semana em mais de 200 países, por assinatura e nas bancas. Para isso, montou uma estrutura de porte, com escritórios co­mer­ciais em Londres, Paris, Genebra, Frankfurt, Nova York, Chicago, San Francisco, Los Angeles, Hong Kong e Sin­gapura. Nenhum na América Latina. Embora seja uma operação global, cerca de dois terços dos jornalistas contratados estão baseados em Londres. O número total de funcionários do grupo é estimado em 1.500 pessoas espalhadas pelo mundo. The Economist admite que a circulação caminha no sentido inverso da receita publicitária. Por isso, em 2015, quando o Grupo Pearson, que detinha 50% das ações da empresa – por estatuto, ninguém pode deter mais do que essa fração –, resolveu vender sua participação, houve

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A primeira matéria de capa de The Economist, no remoto ano de 1843, intitulava-se Our expiring commercial treaty with the Brazils (Nosso tratado comercial expirante com os Brasis). Sim, éramos tratados no plural. Talvez pelo território muito grande. Ou pelo completo enigma que representávamos. E o que acontecia por aqui na época? Por uma coincidência histórica, no mesmo sábado, 2 de setembro, em que a primeira edição de The Economist ia às bancas, chegava ao Rio de Janeiro, a bordo da fragata Constituição, a princesa Teresa Cristina Maria de Bourbon e das Duas Sicílias, esposa (casara-se por procuração em Nápoles) do imperador D. Pedro II, que estava a três meses exatos de completar 18 anos. Mas o casório não interessou a The Economist, que, fiel ao seu nome nesses tempos iniciais, se concentrava em matérias mercantis. Em 2009, numa das capas favoritas de sua equipe de criação gráfica, The Economist mostrava o Cristo do Corcovado decolando como um foguete, com o título Brazil takes off (O Brasil decola). Quatro anos depois, nova capa, desta vez com o foguete abortando o voo e despencando. A manchete é Has Brazil blown it? (O Brasil estragou tudo?). Aquela visão otimista de 2009 era corrigida pela realidade dos fatos. Escreveu The Economist: “O Brasil necessita urgentemente de reforma política... mas convencer aqueles que se beneficiam do atual esquema a concordarem em mudar vai requerer mais habilidade política do que a Sra. Rousseff tem demonstrado”. The Economist também não deixou a Operação Lava Jato passar em branco. Ao contrário: “O sistema de justiça criminal do país é antiquado e estranho, assim como a atuação do juiz responsável pela Operação Lava Jato, Sergio Moro”.

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a receita publicitária vem caindo. houve até quem desconfiasse da saúde financeira da revista

A primeira edição, de 1843, o ano homenageado no nome da revista cultural da editora

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quem desconfiasse da saúde financeira da revista. Com rapidez, o Grupo Exor, da família italiana Agnelli, elevou sua participação de 4,7% para 43,4%. Isso não lhe permite, contudo, comandar as decisões editoriais. Um conselho administrativo indica o diretor editorial da publicação, que não pode ser removido sem a sua permissão. Mas não é só a organização gerencial que explica o sucesso de The Economist, com sua expansão fantástica numa época em que a mídia impressa está encolhendo e lutando para sobreviver. A qualidade do produto conta – e muito. O semanário inglês foge do jornalismo pasteurizado de seus congêneres, abomina os burocráticos “manuais de redação” e, embora seus redatores trabalhem no anonimato, eles o fazem com opinião, humor, colorido e precisão. Às vezes mais com o coração do que com a cabeça. Também não se dobra à “histeria da atualidade” – afinal, a TV e a internet estão aí para isso. Outra: não pretende fazer um jornalismo “científico”. Ao contrário, é empírico e intuitivo, no melhor sentido. Em 2007, The Economist lançou uma revista cultural. Atualmente bimensal, circula com o título de 1843, homenagem ao ano de nascimento da nave-mãe. Recentemente, sua editora, Emma Duncan, escreveu: “The Economist mostra a você o que precisa para navegar no mundo moderno; 1843 vai ajudá-lo a desfrutar o mundo um pouco mais. The Economist cobre o mundo lá fora; 1843 toca em coisas mais perto de casa – design, estilo, tecnologia pessoal, bem-estar, viagem, comida e bebida. Mas as duas revistas têm dois elementos cruciais em comum: um interesse insaciável em como as vidas estão mudando e uma rede soberba de correspondentes ao redor do mundo”.

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LUXO P o r M A RCEL LO BO RG E S

O número de fumantes diminuiu violentamente. Mas a Dunhill, célebre por seus isqueiros, diversificou seus produtos – e continua firme

Alfred Dunhill (1872-1959) pode ter sido tudo. Menos preguiçoso. Na Londres de 1887 ele tinha 15 anos – e já trabalhava duro na fábrica de arreios do pai, Henry. Cinco anos depois, Alfred herdou o negócio e começou a fornecer acessórios para automóveis – paixão que siderava os ingleses à época. O rapaz combinou as palavras motorist e priorities e fundou a Dunhill’s Motorities. Possuído pelo bicho-carpinteiro da criatividade, ele entrou no mercado do tabaco com uma invenção sui generis: a cachimbo com para-brisas. Sim, você leu certo: era para ser usado ao volante. No catálogo da Dunhill Motorities, outro item chamava atenção – o Bobby Finder. Precursor do detetor de radares, esses óculos-binóculos – garantia a propaganda – ajudavam o piloto a localizar um guarda de trânsito a mais de 800 metros. “Mesmo se estiver disfarçado de homem respeitável.” Capitalizado, Alfred abriu uma tabacaria. Mas não uma qualquer. Na esquina de Duke e Jermyn Streets, ponto elegante da capital inglesa, a loja oferecia uma novidade: misturas personalizadas para fumantes de cachimbo. O sím-

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bolo de status que faltava surgiria em 1912 – seus cachimbos de raiz de roseira selvagem passaram a exibir um pequeno ponto branco na piteira. Para quem sabia ler, aquele pingo era letra. Comprovava que o eleito integrava os few, happy few, band of brothers of Alfred Dunhill. Em 1918 terminou o horror daquela que viria a ser conhecida como Primeira Guerra Mundial. Alfred viu ali a oportunidade para expandir os negócios e diversificar os produtos masculinos que até hoje formam o núcleo da marca – abriu filiais em Nova York e Paris, e, segundo alguns, criou assim o mercado de luxo internacional. Alfred era adepto da escola de estilo Winston Churchill, que se contentava apenas com o melhor. “Precisa ser útil, con-

O isqueiro Broadboy e uma loja da marca em Londres. Tudo é uma questão de estilo

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“A qualidade será lembrada muito tempo depois de terem esquecido o preço”

fiável, bonito, duradouro e o melhor de sua espécie”, rezava o seu credo sobre os objetos que fabricava. Certa vez lhe perguntaram por que seus cachimbos custavam o dobro. “Porque sua qualidade será lembrada muito tempo depois de terem esquecido o preço.” Simples assim. A aristocracia logo passou a frequentar a loja. Em especial depois que Edward, o príncipe de Gales – mais tarde famoso por ter renunciado ao trono para se casar com a americana plebeia Wallis Simpson –, emprestou sua nobre chancela à tabacaria em 1921. Naquele mesmo ano, Alfred desenvolveu o protótipo do isqueiro Unique. O nome fazia sentido: era o primeiro que se podia acender com uma só mão. A família real começou a dar esse isqueiro de presente a visitantes ilustres, tradição que a rainha Elizabeth 2a ainda mantém. OS PUROS DE CHURCHILL “A empresa que transformou o ato de fumar cachimbo numa diversão para cavalheiros.” Assim o New York Times saudou, numa resenha de 1924, o recém-lançado The Pipe Book , a história do cachimbo assinada por Alfred Dunhill. Seu filho Alfred Henry (1898-1971), diga-se a bem da verdade, também seguiu os passos do pai nesse terreno. The Gentle Art of Smoking, embora mais genérico e lançado em 1954, incluiu cigarros e charutos. É uma referência entre os apreciadores do tabaco. Mas voltemos à saga de nosso herói. Em 1929, por alegados motivos de saúde e como que pressentindo o annus horribilis que terminaria com o crash da Bolsa de Nova York, Alfred pai, com o perdão da expressão, resolveu chutar o balde. Passou o comando da empresa para Alfred filho, se aposentou e deixou a mulher. Foi para a praia. Mais especificamente para Worthing, no litoral sul da Inglaterra, na companhia de Vera Mildred Wright, sua amante de longa data.

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A coleção de canetas surgiu em 1931, em uma fecunda parceria com a Namiki, do Japão

A marca continuou diversificando seus objetos. Nesse aspecto a década de 1930 foi gloriosa. Havia no Japão uma manufatura respeitada por suas canetas de alto luxo – a Namiki. Produzia peças artesanais, com desenhos trabalhados em laca no corpo do instrumento. Namiki e Dunhill fizeram uma parceria a partir de 1931 e suas canetas-tinteiro se tornaram cobiçadas peças de coleção. A grife inglesa também produziu relógios como o Facet, de 1936, inspirado nos desenhos dos faróis dos carros vendidos pela Dunhill. Naquele ano a Dunhill abriu uma fábrica em Walthamstow, na Grande Londres – era sua entrada na manufatura de malas, pastas e demais objetos de couro. E 1936 ainda viu Pablo Picasso entrar na Dunhill da rue de la Paix, em Paris, e comprar um isqueiro Tallboy. O artista andaluz entalhou na tampa o rosto de Dora Maar, sua mulher na época, que o ganhou de presente. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Londres se tornou o alvo preferencial das bombas voadoras alemãs V-1 e V-2, temidas por sua potência. Na madrugada de 17 de abril de 1941, às 3h10, a loja da Jermyn Street, juntamente com a Fortnum & Mason,

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A modernidade da camisa de hoje e o tradicional tuxedo de Sinatra no Baile de Máscaras do Plaza de Nova York: a mesma assinatura

o hotel Cavendish e os banhos turcos Hammam, foi atingida. Num episódio que só poderia acontecer no Reino Unido, um impassível Alfred Henry Dunhill toma do telefone às 4 da manhã e assegura a Winston Churchill que nada acontecera ao estoque particular de charutos do primeiro-ministro. “Your cigars are safe, Sir.” Como se não bastasse tanta fleugma, Alfred filho apareceu nos jornais do dia sentado diante das ruínas – vendendo tabaco e charutos aos clientes, como se nada houvera. O SMOKING DE SINATRA O negócio de charutos, aliás, foi um dos principais e mais visíveis da marca. Num leilão especializado em março de 2018, uma caixa com 16 charutos Dunhill Varadero produzidos na década de 1980 foi vendida por £ 3.220 – ou quase R$ 1.000 cada um. Esse ramo da empresa, porém, terminou adquirido pela British American Tobacco. Em matéria de tabaco, a Dunhill ficou apenas com os isqueiros. E, já que o assunto é business, fato relevante foi a aquisição da Dunhill pelo grupo Richemont – leia-se Cartier, Piaget, Panerai, IWC, Jaeger-LeCoultre etc. –, hoje com 220 lojas e 3,5 mil pontos de venda. Em 2005, numa campanha de revitalização da marca na área de moda masculina, foi contratado o ator Jude Law. “É mais uma associação amigável do que um patrocínio”, explicou Simon Critchell, CEO da Dunhill à época. E em 2008 a Dunhill anunciou que substituiria a italiana Brioni como fornecedora dos costumes de James Bond.

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A presença da grife na moda, no entanto, não vem de hoje. Blazers, paletós e acessórios Dunhill sempre encontraram espaço nos guarda-roupas de Elvis Presley e Frank Sinatra. E, mais recentemente, nos closets de Tom Jones, Colin Farrell, Orlando Bloom e do próprio Daniel Craig, mesmo fora de sua persona como 007. Em 1966, o escritor Truman Capote comandou o célebre Black and White Ball, baile de máscaras do hotel Plaza em Nova York, em homenagem à dona do Washington Post, Katharine Graham. Detalhe: Sinatra envergava um smoking Dunhill feito sob medida. Até hoje, por falar nisso, a marca oferece esse serviço individualizado. Basta visitar um dos alfaiates instalados nas Alfred Dunhill Homes, legítimos clubes ingleses com barbearia, bar completo e lounge para charutos – tudo conforme o figurino do velho Alfred.

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M OTO R P or Lu iz gu err ero

MITSUBISHI

Do histórico Model A de 1917, criado para atender à elite japonesa, ao novíssimo Eclipse Cross, conheça os principais carros da marca 12 vezes campeã do Rally Dakar

O Japão prosperou depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Aliado dos vitoriosos, o país (que experimentara um boom econômico durante a era Meiji, de 1867 a 1912) ingressava na era Taishô como uma das grandes potências militares – assumiria assento permanente no Conselho da Liga das Nações e passaria a ser reconhecido como um dos cinco grandes do mundo. O ambiente, portanto, era propício para o surgimento de uma indústria automotiva local. Que viria um ano antes do fim da guerra, em 1917, por meio da Mitsubishi Shipyard and Engine Works, criada por Koyata Iwasaki, filho de Yanosuke, um dos fundadores da Mitsubishi Mail Steamship Company, pequena empresa de navegação fundada em 1870. Formado em artes em Cambridge, e influenciado pelo que viveu na Inglaterra, berço da Revolução Industrial, Koyata voltou ao Japão disposto a expandir os negócios da família. Assumiu a direção da Mitsubishi e percebeu que não havia automóveis de alto padrão feitos no país para atender a elite,

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MODEL A Luxo para sete ocupantes, com carroceria de cedro e motor 4 cilindros a gasolina, de 35 cavalos

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formada majoritariamente por funcionários públicos de primeiro escalão – os poucos carros que circulavam no Japão eram importados. Surgiu desse modo o Mitsubishi Model A, um automóvel de luxo de sete lugares com motor 4 cilindros a gasolina e 35 cavalos. Koyata uniu a expertise naval da empresa com sua sensibilidade artística. Determinou que a carroceria fosse esculpida em cedro com aplicações de laca fosca – técnica empregada nos navios e que, além de reduzir o peso do conjunto, tornavam o Model A imune à corrosão. Por dentro, bancos forrados de seda. O primeiro carro de produção em série no Japão era feito sob encomenda: em três anos, 20 unidades do Model A foram construídas e algumas ainda estão preservadas no museu da Mitsubishi Motors em Tóquio. Do A, a empresa saltou para o Model T, um caminhão com motor 4 cilindros de 30 cavalos e que resistiu bravamente aos severos testes de durabilidade impostos pelo governo japonês. O T1 só não resistiria ao alto custo de produção. Seu projeto foi abandonado. Tem-se, então, um intervalo de dez anos até que, em 1930, a empresa passasse a produzir caminhões e ônibus a diesel e equipados

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com tração integral. Só em 1937 surgiria algo mais próximo de um carro – um conversível denominado PX-33, para uso militar, considerado o primeiro carro japonês com tração 4x4. Depois da Segunda Guerra Mundial (19391945), a Mitsubishi criou uma divisão para montar utilitários sob licença. Mas só no começo dos anos 1960 voltaria a desenvolver e a fabricar automóveis, incentivada pelo Programa do Carro Nacional, campanha do governo para a motorização do país. Surgia então o Mitsubishi 500 (referência aos 493 cm³ de capacidade cúbica do motor), um sedã de quatro lugares montado sobre base de 3,1 metros. O M 500 era equipado com motor de 2 cilindros refrigerado a ar de 21 cavalos e tinha suspensão independente nas quatro rodas. Entrou para a história por ser o primeiro carro da categoria projetado em túnel de vento (no túnel de Nagoia, no qual a empresa esculpia o perfil de seus aviões) e por ter conquistado os três primeiros lugares na classe até 750 cc do Grande Prêmio de Macau de 1962. A prova marcou a estreia da Mitsubishi nas competições internacionais – prática, aliás, que a marca jamais abandonou.

M 500 EM MACAU Em 1962, três deles chegaram nos primeiros lugares no GP chinês, na classe até 750 cc. Na página ao lado, um Colt 600 1961 e o luxuoso Debonair de 1964

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O debonair foi o primeiro sedã de luxo da Marca, criado em 1964 para os emergentes executivos japoneses

MINICA Ele foi o símbolo do carro compacto japonês por excelência, num país onde espaço é vital. Acima, uma peruinha cupê de 1962

Econômico e robusto, o M 500 foi um campeão de vendas. Era oferecido por equivalentes US$ 3.500 e encorajou a fábrica a criar novos projetos. As novidades foram surgindo a cada ano: a perua 360, o Colt e suas variações (que incluem uma graciosa configuração conversível e uma arrojada carroceria fastback), o Minica, e logo a seguir o Debonair, um sedã de luxo com motor 2 litros e 105 cavalos que se tornaria a preferência dos emergentes executivos japoneses a partir de 1964. Em dezembro de 1969 é lançado um dos maiores sucessos da marca, o Galant, com mais de 5 milhões de unidades vendidas em todo o

mundo e ainda hoje, na décima geração, um dos sedãs de maior aceitação no Japão. Outro êxito foi o Lancer, de 1973, provavelmente o automóvel mais conhecido da marca em função das conquistas nos campeonatos de rali. Mas nenhum outro modelo Mitsubishi teve tanto prestígio – dentro e fora das pistas – quanto o Pajero. Lançado em maio de 1982, nove anos depois de ter sido mostrado como conceito no Salão de Tóquio, o Pajero foi um dos precursores do conceito utilitário esportivo ao oferecer resistência de um utilitário 4x4 com luxo e conforto de carro de passeio. Tinha bancos com amortecedores, clinôme-

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Logo no ano de estreia, 1982, dois pajero sem qualquer preparo enfrentariam o deserto africano no Paris-dakar

PAJERO E LANCER Em função de suas vitórias em diversos ralis, eles se tornaram lendas vivas do automobilismo de competição no mundo inteiro

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tro (aparelho que exibia o ângulo de inclinação do veículo), acoplamento automático da caixa de transferência. E mais: desempenho esportivo por força dos 95 cavalos gerados pelo motor turbo-diesel, solução até então inédita em um 4x4 no Japão. Havia ainda uma versão a gasolina. Era o tipo de veículo que tanto podia ser visto em algum bistrô em Paris como nos confins do deserto, dizia a propaganda da época. Logo no ano de estreia, dois Pajero sem qualquer preparo especial enfrentariam o deserto africano no Paris-Dakar, hoje Rally Dakar, a mais severa maratona sobre rodas de que se tem notícia. Levaram os dois primeiros lugares na corrida de maratona para carros de produção normal e o prêmio de “melhor equipe”, por ter concluído ileso o percurso. Ganhariam os mesmos títulos nos anos seguintes até que, em 1985, dois protótipos che-

gariam em primeiro em Dakar – a primeira de uma série inédita de 12 vitórias. Em 1991 o modelo sofre sua primeira grande reestilização, perde os ângulos retos e a aparência tímida. Ganha, ainda, recursos para facilitar a vida do motorista em terrenos acidentados, como o sistema Super Select 4WD, que permite a seleção do tipo de tração com o carro em movimento até 100 km/h. Ou como uma nova geração de ABS, o sistema que evita travamento das rodas em frenagens de emergência, apta a funcionar em qualquer circunstância de terreno. Em sua versão atual, embora maior, o SUV, sigla em inglês para veículo utilitário esportivo (sport utility vehicle), perdeu 100 quilos no peso total por conta da nova plataforma e ganhou, em contrapartida, recursos como a transmissão Invecs-II, automática de quatro velocidades com seletor para

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Eclipse Cross

Importado do Japão, ele chega ainda neste ano ao Brasil

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modo esportivo, ou como o motor diesel com injeção direta. A boa aceitação do modelo em todos os mercados mundiais levou a Mitsubishi a criar, em 1994, um filhote para o modelo. Surgia o Pajero Mini, que logo em seguida evoluiria para Pajero Jr. e depois para Pajero iO, lançado em 1998 com desenho de Pininfarina. O mesmo modelo seria fabricado e rebatizado no Brasil como Pajero TR4, segundo modelo da linha construído na fábrica de Catalão (GO), que iniciou suas operações há 20 exatos anos com a cabine dupla L200. Lançada no Japão em 1970, a L200 surgiu com o nome de Forte e era intermediária da versão picape do compacto Colt e do caminhão leve Delica. Dez anos depois do lançamento, receberia o sistema de tração integral seguido da primeira reestilização. O sucesso do modelo podia ser medido pelos números de venda: entre 1985 e 1987, 130 mil unidades, em média, foram vendidas para os americanos. Em 1991 foi rebatizada no Japão com o nome de Strada, mas foi como L200 que se popularizou em vários países. Principalmente na versão atual, a L200 Triton, cuja resistência fez com que ganhasse o apelido de “Casca Grossa” entre os brasileiros.

L200 No Brasil, ela é conhecida entre os fãs como "Casca Grossa" por causa de sua resistência. Acima, a versão Triton Sport 2019

mais recente modelo da Mitsubishi chega ainda neste ano ao Brasil. Lançado em 2017, o Eclipse Cross é um SUV de cinco lugares, linhas ousadas e acabamento de alto padrão. Com porte intermediário, o carro se posiciona entre o ASX e o Outlander. “Ele veio para conviver com os dois modelos, dando aos nossos clientes mais uma opção de produto”, explica o diretor de marketing Fernando Julianelli. “Chega com um motor de alta eficiência energética e alta performance, muita tecnologia e tração integral.” Importado do Japão, o Eclipse Cross é equipado com o eficiente motor 1.5 turbo de 163 cavalos, com 25,4 kgfm de torque. A transmissão que gerencia o conjunto é a CVT, continuamente variável, com seletor para trocas manuais por meio de aletas na coluna de direção e que simulam oito marchas. O Eclipse Cross é o primeiro modelo lançado pela Mitsubishi Motors desde sua incorporação à Aliança Renault-Nissan em setembro de 2016. O desenvolvimento do SUV, no entanto, foi integralmente feito pela Mitsubishi, cuja ambição de se reinventar e fazer os melhores carros do mundo é uma constante num grupo que fabrica foguetes, aviões, navios e eletrônicos. A incorporação da marca dos três diamantes à Aliança foi decisiva para que o grupo se tornasse o número 1 do mundo no ano passado, com vendas globais de 10,6 milhões de unidades.

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gin usta ima c o ã n s a e 1946. M 2 4 9 1 e ld e Futebo d s i a i d un zou os M ões? i l i b a i v in o campe A guerra d i s m a i es ter que país

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E SPO RTE P or U B I R ATA N L E A L

O Brasil de 1945. De pé: Norival, Rui, Domingos, Oberdan, Biguá e Jaime. Agachados: Tesourinha, Zizinho, Heleno, Ademir e Jorginho. Enquanto jogavam, a taça Jules Rimet estava guardada na sede da Fifa, em Zurique

Talvez não fosse o navio mais seguro do mundo naquele momento. O que não quer dizer nada. A embarcação atravessava o Atlântico com escolta e a garantia oficial de que nada ocorreria. Mas ninguém podia ter certeza de que tudo acabaria bem. Em seu trajeto da Europa até a América do Sul, o navio teria de passar por frotas das marinhas britânica, americana e alemã, além de sorrateiros submarinos. Nem mesmo a costa sul-americana era segura. Submarinos do Eixo já patrulhavam o espaço desde o ano anterior, quando o Brasil aceitou ser base para a Força Aérea dos Estados Unidos. Ainda assim, depois de desgastantes negociações diplomáticas, todos os lados concordaram em abrir uma exceção. A causa era maior. Ainda assim, havia o risco de alguém mudar de ideia por desconfiar que havia mais, a bordo, do que inocentes jogadores de futebol. Qualquer movimento em falso seria capaz de levantar a suspeita de que o cargueiro acobertava tropas, espiões e armamentos. Um perigo imenso. A cena descrita acima se trata de ficção. Mas ela ocorreria se o mundo do futebol decidisse – contra o bom senso e a segurança – manter o calendário programado e realizar a quarta edição da Copa do Mundo em 1942. A Segunda Guerra Mundial começara em 1939 e, em seus primeiros anos, estava concentrada na Europa e no Leste da Ásia. Mas em 1942 chegara ao auge, com o envolvimento definitivo dos Estados Unidos e a globalização bélica. O conflito foi mais forte que o esporte. Por isso, as edições de 1942 e 1946 do Mundial de Futebol (e de 1940 e 1944 dos Jogos Olímpicos) acabaram canceladas. Assim como vários campeonatos continentais e nacionais de diversas modalidades pelo planeta. Mas e se essas Copas tivessem acontecido? A suposição não chega a ser descabida. Por mais que a guerra tenha se espalhado pelo mundo, o futebol não parou de vez entre 1939 e 1945. Na América do Sul, competições domésticas seguiram normalmente no Brasil, Argentina e Uruguai. O Campeonato Sul-Americano (atual Copa América) teve edições

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em 1939, 1941 e 1942, quando a chegada dos conflitos à costa do continente forçou a interrupção até 1945. Mesmo na Europa a bola rolou. Para passar uma sensação de normalidade à população – e também para reforçar alianças diplomáticas –, houve vários amistosos de seleções. Também os campeonatos nacionais foram disputados dentro do possível. É viável fazer um balanço das forças que regiam o futebol daquele período, mas o resultado não seria dos mais animadores para o Brasil. Mazzola à frente

As potências sul-americanas O Brasil vivia um grande momento em campo. Para o jornalista Roberto Sander, autor de Anos 40 – Viagem à Década sem Copa e de outros livros sobre o período, muito do que entendemos do futebol brasileiro surgiu naquela época. “Ali se forjou a ideia de que o Brasil praticava ‘futebol-arte’. As transmissões da Rádio Nacional se tornaram populares e fomentaram a força das torcidas pelo país”, explica. “Além disso, o profissionalismo já havia se consolidado e os jogadores começaram a ganhar bons salários. O Leônidas tinha o carro do ano sempre. O Jair Rosa Pinto comprava um imóvel por ano.” A seleção teria um timaço, com nomes como Leônidas, Heleno de Freitas, Zizinho, Barbosa, Ademir, Jair Rosa Pinto, Danilo Alvim. “A Copa de 1950 foi a última dessa geração. Fomos vice, poderíamos ter levado o título naquele ano, mas o auge daquela geração foi em 42 e 46”, comenta Sander. Essa base ficou marcada pelo maracanazo, mas o Brasil já havia superado o Uruguai na hierarquia de forças do continente. Entre 1942 e 1949, houve 12 confrontos diretos, com seis vitórias brasileiras, incluindo duas em campo neutro, três empates e três vitórias uruguaias, todas em Montevidéu. O grande problema para o Brasil estava do outro lado do rio da Prata. O futebol da Argentina vivia o melhor momento de sua história. O técnico Guillermo Stábile, artilheiro da Copa de 1930, estava à frente de uma equipe espetacular. A base era o River Plate, que ficou conhecido como “La Máquina” pela forma bonita de jogar. A linha ofensiva com Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Loustau passou à história do futebol argentino. Para uma eventual Copa de 1946, esse time ainda teria o reforço de Alfredo Di Stéfano, um dos maiores jogadores de todos os tempos. O jogo apresentado pelo River era tão bonito que motivava declarações deslumbradas até de rivais. Ernesto Lazzatti, principal

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do Torino. Na outra página, o River Plate de Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Loustau

ídolo do Boca Juniors nas décadas de 1930 e 1940, confessou: “Você joga contra La Máquina com a intenção de vencer, mas, como um admirador do futebol, eu preferiria ficar nas arquibancadas e assisti-los jogar”. Das cinco edições do Sul-Americano entre 1941 e 1947, a Argentina conquistou quatro. Contando apenas o torneio continental, os argentinos fizeram 28 jogos, vencendo 24, empatando três e perdendo apenas um – a decisão de 1942 para o Uruguai em Montevidéu. Ainda registrou a maior goleada da história da competição, 12 a 0 no Equador em 1942. A seleção brasileira sofreu nas mãos desse time. Foram 13 jogos entre 1939 e 1946, com oito vitórias argentinas, quatro brasileiras e um empate. Um símbolo do domínio alviceleste foi a Copa Roca de 1940, realizada em Buenos Aires. No primeiro jogo, a Argentina fez 6 a 1, maior goleada da história do clássico. Cinco dias depois, o Brasil se recuperou e venceu por 3 a 2, mas os argentinos tiveram um pênalti polêmico a favor e, segundo alguns relatos, o capitão Suárez teria chutado para fora de propósito em nome do bom ambiente em campo. Esse cavalheirismo acabou no terceiro jogo, quando a Argentina voltou à carga e fez 5 a 1. O Brasil começou a se recuperar no final da dé-

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das cinco edições do campeonato sul-americano entre 1941 e 1947, a argentina conquistou quatro. tinha um timaço cada, com uma vitória por 6 a 2 em uma Copa Roca em 1945. Sinal de que a seleção era forte e até seria candidata ao título em 1942 e 1946, mas talvez os grandes adversárias da Argentina viessem da Europa. A resposta europeia A Inglaterra ainda era vista como a grande nação do futebol na época – imagem que só caiu na surpreendente derrota para os Estados Unidos no estádio Independência em 1950 –, mas, por vontade própria, não vinha disputando os mundiais. Não há como saber se estaria em campo em 1942 e 1946. Mas a Alemanha e a Itália apareciam como forças de respeito. Os alemães realizaram vários amistosos durante o período. Eventos pomposos com fundo nacionalista faziam parte da propaganda de Hitler e reunir seleções de futebol era um cenário perfeito para isso. Os resultados em campo eram tão simbólicos para os nazistas que as cenas de abertura do

game Wolfenstein: The New Order, que simula um mundo em que a Alemanha vence a Segunda Guerra, é um jogo da Copa de 1950 no Brasil, com o árbitro assassinando um jogador em campo como punição por fazer falta em um alemão. Essa seleção era reforçada por jogadores da Áustria e de outros territórios que os nazistas foram conquistando durante a Segunda Guerra. Se a Alemanha tivesse todo esse talento à disposição nas Copas canceladas da década de 1940, seria uma das grandes forças. Sinal disso é o retrospecto de 18 vitórias, três empates e cinco derrotas entre o segundo semestre de 1940 e o final de 1942, quando a guerra tornou impossível realizar novas partidas. Mas a grande oposição à Argentina era a Itália. A Azzurra havia conquistado o bicampeonato em 1934 e 1938 e seguia com uma forte seleção. O futebol doméstico estava em grande momento, com investimento forte do governo fascista de Mussolini e consolidação de grandes equipes nos principais clubes. E, se a Argentina tinha “La Máquina” do River Plate, os italianos apresentavam o Grande Torino.

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O Uruguai ganhou o Sul-Americano de 1942. Mas a Argentina (acima, contra o nosso Tesourinha, em 1946) venceu mais títulos. À direita, Itália x Alemanhã, em 1940

O ex-jogador e empresário Ferruccio Novo conseguiu a colaboração da Fiat – que, curiosamente, era ligada à rival Juventus – para financiar a montagem de um esquadrão no clube grená. A estrela era Sandro Mazzola, para muitos o maior jogador da história do futebol italiano. Depois, os grenás enfileiraram cinco títulos seguidos, feito repetido – e depois superado – apenas em 2016, pela Juventus. Entre o final da Copa de 1938 e 1946, a Itália fez 28 jogos, com 19 vitórias, três empates e seis derrotas. Nesse período, o Torino chegou a ter dez jogadores em campo com a camisa azzurra. “A Itália era muito forte nos anos 40 e derrotou quase todas as equipes europeias que enfrentou”, conta Paolo Pupillo, diretor de eventos do Museo del Grande Torino e della Leggenda Granata (Museu do Grande Torino e da Lenda Grená). “A exceção foi um 4 a 0 que sofreu da Inglaterra, em um jogo em que o técnico Vittorio Pozzo resolveu fazer uma experiência e deixou de usar jogadores do Torino.” Em 1946, esse time vivia um de seus melhores momentos e poderia bater de frente com a Argentina, ainda mais se a Copa

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do Mundo fosse realizada na Europa. Se o título viesse, seria o terceiro e a Itália ficaria com a posse definitiva da taça Jules Rimet. Ainda assim, os italianos não lamentam tanto a perda dessa oportunidade. Até porque seria algo pequeno perto do que aconteceu. Em 1949, o Torino voltava de um amistoso contra o Benfica em Lisboa quando o avião em que estava toda a delegação se chocou contra a colina de Superga, próximo a Turim. Ninguém sobreviveu e o mundo não pôde ver o que o Torino, ou melhor, a Itália poderia ter feito em uma competição internacional. Na Copa de 1950, os italianos não conseguiram passar da primeira fase. As Copas virtuais Em novembro de 1997, o jornal Folha de S.Paulo publicou uma reportagem especial em que projetava todos os resultados das copas de 1942 e 1946. A edição de 1942 seria na Argentina, país que vivia grande momento econômico e esportivo e já havia demonstrado interesse em receber o torneio. A de 1946 precisaria ter como sede um país europeu que tivesse ficado à margem da guerra. A escolha foi Portugal. Esse Mundial de 1942 da realidade alternativa se veria muito prejudicado. “Naquele cenário político, não seria viável imaginar a Copa com países que

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A Itália era fortíssima candidata aos dois mundiais. ganhando um, ficaria com a jules rimet para sempre estivessem diretamente envolvidos nos conflitos, em nenhum lado. A Fifa já naquela época tentava se colocar como neutra”, explica Rodrigo Bueno, um dos autores da reportagem da Folha, hoje comentarista da Fox Sports. “A Alemanha não jogaria, nem Itália ou Turquia. Do outro lado, Estados Unidos, Inglaterra, França e União Soviética também ficariam de fora. Seria uma Copa com o mundo neutro, ou que ainda estava neutro em junho de 1942.” Sobrou pouca gente. O Mundial imaginado teria apenas 11 seleções, sendo apenas cinco (Dinamarca, Espanha, Portugal, Suécia e Suíça) da Europa. Para definir os resultados, Bueno levantou todos os jogos entre seleções realizados no mundo entre 1938 e 1946, elaborando uma versão do ranking da Fifa com base nos placares da época. Foi a base da projeção do torneio. A Argentina ficaria com o título ao bater o Brasil por 3 a 1 na final. Suécia e Uruguai cairiam nas semifinais. Em 1946, a Segunda Guerra já havia acabado e todos os países poderiam disputar uma Copa.

FOTOs: getty, reprodução

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Todos, menos a Alemanha, que se reconstruía dos bombardeios e estava sob intervenção dos Aliados. Se nem para o Mundial de 1950 os alemães puderam reunir uma equipe, não teria sido em 1946 que isso ocorreria. Com equipes mais tradicionais como Itália, França, Inglaterra, Iugoslávia e Hungria de volta, o nível técnico subiria. A Folha imaginou um torneio com 5,5 gols por partida, a maior da história – no mundo real a melhor média é de 1954, com 5,38. Os argentinos de novo levariam o caneco, batendo a Itália em um estonteante 5 a 4 na decisão. O Brasil ficaria com o quarto lugar, perdendo o último lugar no pódio para a Suécia. Qualquer um dos cenários, seja considerando apenas as forças da época, seja projetando resultados em uma Copa realizada durante a guerra, o Brasil não se daria tão bem. O mais provável é que a Argentina tivesse dois títulos a mais no currículo, encostando nos brasileiros no ranking histórico (inclusive, teria ficado à frente entre 1986 e 1994). Mas, se os italianos impedissem um bi alviceleste, a Azzurra levaria a Taça Jules Rimet mais de duas décadas antes de Carlos Alberto Torres a levantar no estádio Azteca, consagrando a seleção brasileira de 1970 como uma das maiores equipes da história do futebol.

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E STI LO P o r J OAQU I M FERR EI R A D OS SA N TOS Aqua r el as R I c a r d o van steen

BOLA BRANCA Em tempos de menos glamour, o Country Club do Rio de Janeiro já não é tão exigente para admitir novos sócios. Mas por pouco não rejeita um sobrenome Guinle

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m 2018 quem gosta de ostentação é funqueiro de comunidade. Por isso não há hoje substituto equivalente para a cena cinematográfica, tão anos 1950, de Didu de Souza Campos, em black-tie, chegando de Rolls-Royce para tomar um café com os amigos na beira da piscina.

O Country Club do Rio de Janeiro em Ipanema, um dos endereços mais posudos e exclusivos do país, quer se juntar à impressão rotineira de que um clube é apenas um clube, uma piscina de tamanho discreto, meia dúzia de quadras de tênis, algumas salas de jogos, restaurante na varanda, aposentados jogando gamão e um punhado de verde para botar as crianças e ficar olhando, refletindo com os botões como é fácil ser feliz quando se está ligado nas coisas simples da vida. O chique entre os chiques de 2018 é ser discreto. Não está acontecendo nada, parece dizer uma noite de domingo qualquer quando os sócios e alguns convidados compartilham na varanda do clube o mesmo programa de enfrentar um rodízio de pizza que milhões de outros brasileiros estão curtindo naquele mesmo momento. O Country foi fundado em 1916 por 22 executivos ingleses e americanos, mais três brasileiros, todos amigos que queriam da vida após o trabalho apenas um canto para se armar uma rede de tênis e relaxar com um gim-tônica no bar. Jogavam antes no Copacabana Tênis, com apenas duas quadras, e sem chances de crescimento físico. Foram parar naquele fim de mundo que era o fim de Ipanema, quase Leblon. Um areal de coqueiros que ainda não tinha condição de ser chamado bairro (cerca de 300 casas) pois nem o bonde chegava ali. Há quem conte a história de Ipanema assim: os diretores da Light, que eram também diretores do clube, esticaram a linha do bonde em benefício próprio até as portas dele – e aos poucos, ao redor do Country, foi surgindo a civilização que deu Leila Diniz, Tom e Vinicius, a garota de Ipanema, Duda Cavalcanti, Carlinhos de Oliveira e a essência do charme carioca. Há muita curiosidade sobre o que acontece dentro daquele imenso muro de pedra, quase um quilômetro de extensão, um meio quarteirão que começa no portão da garagem da avenida Vieira Souto, contorna o quarteirão da

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rua Henrique Dumont e segue até a portaria da rua Barão da Torre, onde está a outra entrada de carros, aquela por onde seguia o Rolls-Royce de Didu. É quase um condado, de 12 mil metros quadrados, à beira-mar plantado. Ser sócio do Country era um direito exclusivo da mais fina sociedade carioca, dos sobrenomes tradicionais e ricos do Rio. Muitos tentavam esse título, o carimbo definitivo de êxito na aristocracia carioca. Como aconteceu ao colunista social Ibrahim Sued, alguns foram rechaçados por uma votação secreta e cruel. A artista plástica Adriana Varejão, de reconhecimento mundial pela qualidade de seu trabalho de vanguarda contemporânea, ao perceber que teria a mesma má sorte, retirou o nome. Vinte quatro sócios, vindos de algum ramo dos fundadores da instituição, reúnem-se mensalmente para avaliar as propostas de novas admissões. Primeiro compra-se um título, por algo em torno de R$ 400 mil. Depois paga-se cerca de R$ 200 mil pela transferência. O ingresso ao paraíso exclusivo ainda não está garantido. O passo seguinte do pretendente é ter o nome colocado no quadro de avisos – e aí o ti-ti-ti, contra ou a favor, espalha-se pelo clube. Só depois os conselheiros se manifestam. Munidos de bolas brancas (indiferença), cubos vermelhos (reprovação) e cilindros pretos (rejeição), eles avaliam o candidato. Aparecida Marinho e Guilhermina Guinle, sobrenomes poderosos, já foram gongadas com bolas pretas, num sistema complexo de avaliação que junta humores, relações antigas, disse me disse, cônjuges, projeção social, ressentimentos e toda essa gama de valores que torna o ser humano, mais que o futebol, uma caixinha de surpresas. São 850 sócios, um número definido na década de 1940, e para entrar é preciso que alguém saia. Aos interessados, à guisa de estímulo, diga-se que já foi mais difícil penetrar no muro de pedras. A aristocracia carioca, por motivos sobejamente conhecidos e que os jornais de

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Baile no clube comemorando a escolha da Glamour Girl de 1944. Traje de gala, noblesse oblige

amanhã ilustrarão com fatos ainda mais dramáticos, tem rareado com uma rapidez impressionante. Alguns precisam se desfazer dos títulos. Muitos também sofreram a indelicadeza do passar do tempo, envelhecer e vir a falecer. Os conselheiros perceberam que, se continuassem com o rigor d'antanho, rechaçando o dinheiro sem charme ou privilegiando sobrenomes da nobreza carioca, não preencheriam o quadro – e com que mensalidades pagariam as despesas da administração do clube? TOALHAS FLORIDAS Resolveram correr atrás do dinheiro mesmo que ele agora não viesse mais de grandes plantações de café, da indústria ou de outros baronatos passados. No final de 2006, abrandaram-se as regras de admissão. Um novo candidato, desde que parente de sócio, só é dispensado com cinco bolas pretas e não mais as três tradicionais. Para os não parentes surgiu a vantagem de o quadro de conselheiros agora ser de apenas 21 pessoas. Hoje o Country tem muito dinheiro sem pedigree (novos-ricos com os negócios das bancas advocatícias, do mercado financeiro, profissionais liberais) e sobrenomes sem o glamour da alta sociedade carioca da década de 1960. A classe do ambiente, decorada com móveis escuros, permanece a mesma – e sempre atualizada, sem mexer em nada importante, por designers da família

Vieira da Silva. Continua uma passarela de bom gosto e bons modos num cenário urbano cada vez mais rarefeito de civilidade assim. Numa das quadras de tênis pode estar jogando o discretíssimo empresário Jorge Paulo Lemann, um homem, segundo a Forbes, de nada tímidos 25 bilhões de dólares. Já houve tempos de bailes de Carnaval, Réveillons, jantares na temporada do Grande Prêmio Brasil de Turfe, e shows de Ella Fitzgerald, Charles Aznavour, Dizzy Gillespie e outros de igual quilate. Uma visita ao clube, para quem passou anos ouvindo as lendas de luxo e riqueza relatadas pelos colunistas sociais do passado, pode acabar com a constatação decepcionada de um “mas é só isso?!”. Com a exceção de um conjunto de sofás vermelhos, bem encaixado sobre a madeira escura do piso, tudo parece estar ali, embora bem conservado e com o valor agregado do passar do tempo, desde os primórdios ingleses de 1917. É uma sofisticação clássica, fundada muito antes da existência do circuito brega-rico Miami-Barra da Tijuca. Quem confunde sofisticação com brilho, dourado e grifes por todos os lados vai achar o Country “caído”. O clima respira elegância antiga. A iluminação é indireta, como se a diretoria quisesse impedir fotos e radicalizasse a impressão de se estar num ambiente fundado por ingleses em busca de um ambiente com sabor doméstico. Nenhuma extravagância ou grito de abastança deslumbra-

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da. As toalhas do restaurante são rusticamente floridas. O serviço de comida é assinado pelo chef Francesco Carli, o mesmo do Copacabana Palace, e aposta mais na qualidade dos produtos do que na sofisticação das receitas da alta cozinha, privilegiando uma gastronomia quase de índole caseira. Um cardápio está disponível, mas a maioria se serve no buffet disposto informalmente no meio da varanda. Depois de tantas décadas de agito, de Teresas e Dolores, Carmens e Tonys, em cenas registradas pela coluna do Zózimo Barrozo do Amaral, todos de black-tie ou longos longuíssimos, o Country Club quer viver na maior discrição possível. Há vários senhores aposentados, jogando o gamão de cada dia e procurando no ar alguma boa fofoca. Não tem tido. Na década de 1970, uma das mais famosas colunáveis apaixonou-se pelo professor de tênis, largou o diretor de um grande empresa internacional com que estava casada havia décadas e logo depois sofreu muito, divulgando sem pudor pelos corredores do clube a desdita de ter sido abandonada pelo amante. O grande patrimônio do Country é ter servido de décor para cenas do célebre Rio dos anos dourados, com seus ambientes exclusivos onde os Monteiro Aranha e os Mayrink Veiga conversavam com seus iguais. Um dos per-

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sonagens mais curiosos de sua história foi o cantor Mario Reis, inventor nos anos 1920 de uma voz moderna, um canto quase falado que seria dos primeiros pilares da futura bossa nova. Rico, da família proprietária da Fábrica de Tecidos Bangu, Mario Reis era um homem de grande elegância. Morava no Copacabana Palace. Se não estivesse lá, a residência mais chique para se ter no Rio de Janeiro, estaria no Country, quase sempre contando histórias de Carmen Miranda, Noel Rosa, Sinhô e outras glórias nacionais. São daquelas coisas com a cara do Rio. Um dos homens mais sofisticados da cidade, Mario foi dos responsáveis pela consolidação do samba, um gênero que surgia nos terreiros de filhos de escravos, criado por homens simples do bairro do Estácio. Mario era amigo de todos, sobretudo de Ismael Silva, fundador da primeira escola de samba, e vivia nas rodas da malandragem. Foi ele, por exemplo, quem lançou “Jura”, de Sinhô. O Country de hoje procura não ter notícias. No casarão de cor alaranjada da sede social, bem devassado pela vizinhança depois que Ipanema cresceu e os prédios foram se agigantando ao redor, são realizados poucos eventos para o público externo. De preferência que nada sobre eles, caso ocorram, sejam divulgados na imprensa. Jornalistas são

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cada um dos 850 sócios paga mensalidades de r$ 1.400. para que alguém entre, é preciso que outro saia

tratados com cuidado. Se candidatos a títulos, são candidatos também a quase certeiras bolas pretas. Quando estão a trabalho, repórteres são soterrados por recomendações de que as informações sejam publicadas com o respeito ao off, mantendo invisível e anônimo o declarante, mesmo que a curiosidade do jornalista seja apenas sobre trivialidades como o valor da mensalidade (R$ 1.400). UMA GUINLE NA PISCINA É uma relação delicada, a ponto de os associados não gostarem nem sequer do jeito de um colunista referir-se ao Country como “o clube dos bacanas”. Em 2017, um outro colunista publicou com ares de escândalo a “denúncia” de que as babás eram proibidas de frequentar os banheiros das sócias, devendo se restringir aos das crianças. A história não foi longe. O clube disse que era uma norma an-

Do quadro associativo, exige-se a mesma discrição dos jardins internos e do decór

tiga. As babás se mostraram desinteressadas da polêmica. Afinal, o banheiro das crianças do Country é coisa de bacana, ou melhor, de gente fina. Até o “escândalo” de ter gongado uma Guinle foi contornado. Numa segunda tentativa Guilhermina não teve qualquer bola preta, podendo ser vista com frequência, belíssima, ao sol da piscina. O conjunto de quadras de tênis, origem de toda a história e exclusivamente de saibro, é considerado o melhor do Rio. Além de Lemann, campeão nacional por cinco vezes entre os anos 1968 e 1975 (sendo o último título conquistado no próprio Country), tem passagens de outras lendas do esporte para contar. O inglês Bob Falkenburg, campeão de Wimbledon em 1948, veio em seguida morar no Rio, criou a rede de lanchonetes Bob's e se associou ao clube, onde passou anos disputando torneios. No feminino, brilhou Sofia de Abreu, considerada a melhor tenista brasileira depois de Maria Esther Bueno. Isso sem falar em amadores, jogadores sem maior expressão no ranking desportivo, mas que provocavam curiosidade ao se enfrentarem – como os embates que reuniam o cirurgião Ivo Pitanguy e o colunista Zózimo, dotados de pouca técnica mas que divertiam a plateia. Os dois, e mais uma multidão de outros jogadores do clube, foram treinados pelo professor José Agueros Filho, considerado o mais importante divulgador do esporte no Rio. A história do Country é feita desses smashes, lobbies, paralelas e winners. Se Ipanema mudou e hoje é uma multidão apressada saindo de duas bocas de metrô, ele não tem culpa. O clube mantém a mesma suavidade interna de quando ao redor do muro de pedras só havia a correria dos tatuís, hoje desaparecidos sob os pés de centenas de ambulantes gritando que vendem mate, biscoito e queijo coalho, no areal da praia em frente. Serão 102 anos em 19 de setembro de 2018. Ao mundo histérico dos modernos, o Country responde com o silêncio classudo de sua rotina intramuros. Bola branca.

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m em ó r i a P o r ro b erto a m a d o

Ainda criança, o escritor baiano Roberto Amado conheceu Dorival Caymmi. Aqui relembra seus encontros com o grande cantor e compositor, que morreu há dez anos

Meu amado

i m m Ca y Acontece que ele era baiano, embora tenha morado a maior parte da vida no Rio de Janeiro

fotos: folhapress

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A primeira vez que vi Dorival Caymmi foi na casa do meu tio Jorge Amado, no Rio Vermelho, em Salvador, Bahia. Eu tinha por volta de 8 anos e lancei um olhar curioso para aquele sujeito de largo sorriso, o autor da “Música da Vizinha”, que “mexia co'as cadeiras pra cá e pra lá”, sucesso da época que eu já sabia de cor. Lembro que a gente discordou sobre um assunto fundamental: ele disse que eu deveria chamá-lo de “tio”, e eu me recusava a fazê-lo porque, afinal, ele não era irmão do meu pai, Joelson Amado. A discussão durou pouco porque eu, já com uma precoce finura herdada da família baiana, soltei um palavrão e wme refugiei no generoso jardim da casa do tio Jorge. Hoje, passados dez anos da sua morte, ocorrida em agosto de 2008, aquela “briga” de causas tão nobres se tornou uma enorme admiração. Não só pelo músico, mas também pela pessoa, com quem tive o privilégio de conviver. Caymmi foi o sujeito mais

doce que conheci. Tinha um olhar bovino, a fala mansa e arrastada, efeitos da afetividade com que tratava todo mundo. Um estado puro e latente de amor pelas pessoas e pela vida. Isso, claro, contribuiu para sua obra musical perene, que atravessa as gerações encantando – embora o fundamental, nesse caso, seja a vocação e a entrega. Também havia aquele humor baiano, capaz de convencer de que a vida é uma boa piada – o que era uma característica daquela turma composta não só por tio Jorge e Caymmi, mas também pelos artistas plásticos Carybé, Mário Cravo, Jenner Augusto, Calasans Neto e outros brilhantes intelectuais e artistas da Bahia.

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Foi nesses encontros que conheci as histórias que inspiraram algumas das pérolas de Caymmi. Por exemplo, “Maracangalha”. A música tocava sem parar na vitrola dos meus pais e tios quando todos da família Amado moravam no Rio de Janeiro, no final da década de 1950 e começo da de 1960. Caymmi frequentava a roda familiar e sempre trazia presentes, digamos, estranhos: um abacaxi, um pedaço de queijo, uma compota de umbu e revistas sobre música e rádio nas quais, é claro, ele aparecia. Daí os “gordos” – meu pai, tio Jorge e Caymmi – sentavamse com suas barrigas proeminentes, se lambuzavam de mangas e falavam sobre comidas. Também faziam piadas sobre mulheres, casos amorosos dos amigos, histórias de alcova – para ser elegante e evitar palavras chulas. Os três riam, mas eram as risadas de Caymmi que me despertavam da sonolência do Rio 40 graus. Grave, profunda e longa. EX-FUTURO ADVOGADO Foi exatamente essa risada que ele disparou quando, cheio de curiosidade, eu enfim perguntei onde era Maracangalha. “É um lugar santo”, respondeu. Olhei para o meu pai, pedindo ajuda. “É a Bahia”, disse, querendo encerrar o assunto. E durante anos acreditei que essa era a resposta certa. Até que, em outra ocasião, já mais crescidinho, ouvi de Caymmi, também em uma situação familiar, a verdade sobre Maracangalha. A brincadeira havia sido criada por Zezinho, o grande amigo de infância de Caymmi, que fazia um tipo peculiar, vestido com

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chapéu de palha e terno branco. Ele tinha uma amante, a Anália, e, quando ia visitá-la, dizia que ia a Maracangalha, uma pequena vila no sul da Bahia, pertencente ao distrito de São Sebastião da Posse (cuja praça, aliás, tem o formato de violão, em homenagem ao músico). Zezinho nunca esteve lá, e nem o próprio Caymmi. “Maracangalha” foi criada em 1956 e, assim como muitos dos seus sucessos, firmou-se no conhecimento popular, mesmo no das gerações mais novas. Há quem diga que as músicas de Caymmi pertencem ao nosso folclore, tal é o modo com que traduz a alma do povo – e isso ele fez como ninguém. A canção “Marina”, por exemplo, sucesso de décadas, permite uma imediata identificação com a cultura brasileira – não só pela harmonia e ritmo, mas também pela letra. Mas Marina, ao contrário do que muitos pensam, não era uma mulher feita. Era apenas uma

Com Jorge Amado e retratado por Lan numa capa de disco: sempre Caymmi

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O mar e os pescadores foram inspiração. Não só. “Marina” é um samba-canção abolutamente urbano

criança que um dia apareceu com batom e rímel e provocou essa indignação musical em Caymmi. Para completar, seu filho Dori, quando criança, brigou com o pai e declarou que “estava de mal”. Naquele dia, Caymmi juntou uma história com a outra enquanto caminhava pelas ruas do Rio de Janeiro, e criou essa pérola ao mesmo tempo tão simples e tão linda. Aliás, era assim que ele compunha: caminhando, pensando alto, circulando pelas ruas da zona sul do Rio. Sim, porque, apesar de ser baiano (como diria uma de suas músicas), Caymmi viveu a maior parte da vida no Rio, onde chegou (depois de pegar “um Ita no Norte”) em 1938, aos 23 anos, para estudar direito, o que obviamente nunca aconteceu. Antes disso, em Salvador, fez concurso para escrivão e tirou o segundo lugar entre 250 candidatos. Jamais chegou a ser nomeado.

fotos: folhapress, agencia estado

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“Caymmi e meu tio riam muito falando sobre casos amorosos de amigos e histórias de alcova”

Achou melhor assim. “Nunca mais disputei coisa nenhuma, não quero passar na frente de ninguém”, disse ao escritor Fernando Sabino, outro amigo. Jorge Amado também tinha ido ao Rio, em 1930, com o mesmo propósito de estudar direito (e, de fato, se formou). A “Saudade da Bahia” (outra música de Caymmi) foi decerto um fator de identificação e aproximação entre os dois. O compositor baiano começou a cantar na Rádio Nacional logo que chegou e lá conheceu Carmen Miranda, que adotou a música “O Que É Que a Baiana Tem” – um sucesso internacional, marcado pela interpretação da cantora com aqueles gestos barrocos. Por sinal, sugeridos pelo próprio Caymmi. Foi assim que, de sucesso em sucesso, ele foi permanecendo no Rio, onde o mercado era mais favorável. Mas também houve um outro grande motivo para não voltar para a

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“De pura molecagem, Ele SUbtraía bibelôs das casas dos amigos e tinha uma coleção”

Bahia, e o nome dela era Adelaide Tostes, conhecida também como Stella Maris, uma cantora de jazz. Caymmi casou-se com ela em 1940, tendo, entre os padrinhos, Jorge Amado e o jornalista Samuel Wainer, dois dos muitos intelectuais de esquerda que, naqueles tempos sombrios de Estado Novo e início da Segunda Guerra Mundial, se agrupavam para discutir política e produzir a cultura engajada daqueles idos. Curiosamente, Caymmi nunca adotou nenhum tipo de posição política. Ele se dava bem com todo mundo e se manteve amizades com intelectuais de esquerda foi apenas porque gostava deles. De qualquer maneira, tinha preocupações sociais importantes, ligadas às dificuldades típicas do ambiente em que cresceu na Bahia – pobreza, preconceito racial, perseguição policial, exclusão. Foi numa sessão familiar que descobri outro grande talento de Caymmi. Minha mãe, já então mãe de três filhos, guardava uma beleza aristocrática e diferente. Judia, filha de ucranianos, olhos azuis, loura, educada e culta, arrancava elogios naquele ambiente carioca repleto de baianos desgarrados. Caymmi se embevecia por ela. Certo dia, estavam todos mergulhados no ócio no apartamento do tio Jorge, ali em Copacabana, na rua

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Rodolfo Dantas, depois de um fausto almoço dominical, e Caymmi resolveu fazer um desenho da minha mãe. Dividi a poltrona com ele, acompanhando cada traço. Ele descrevia o rosto dela enquanto deslizava o lápis sobre o papel. E eu negociava detalhes: o tamanho da testa, o formato do nariz, os cabelos curtos. Ficou um retrato perfeito. “Para a bela Fanny e meu irmão Joelson, com um abraço afetuoso”, escreveu sobre o desenho que sobreviveu por décadas em nossa casa. Até sumir nas mãos de algum admirador. Caymmi era um pintor talentoso, com conhecimento aprofundado das obras clássicas e modernas das artes plásticas. “Se eu tivesse tempo, ia ser pintor. Ganharia uma fortuna”, escreveu em carta para tio Jorge, que morava, na época, em Londres. “O que me falta é tempo para pintar. Tenho que visitar Dona Menininha, saudar Xangô, conversar com Mirabeau, me aconselhar com Celestino sobre como investir o dinheiro que não tenho... ouvir Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro.” Caymmi construiu essa imagem do ócio criativo que remete a uma “baianidade” artística ou a arte de viver bem. De fato, ele tinha um espírito sereno que tomava conta de todo o ambiente. Em

Caymmi dizia que faltava tempo para pintar, um de seus talentos

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especial, quando estava com Jorge Amado, que também tinha suas sabedorias de bom viver. Juntos pareciam irmãos gêmeos – o escritor com camisas floridas, bermudas, sandálias e um indefectível boné; o músico com camisas listradas, largas e roupa praieira. Conversavam em voz baixa, sussurrando travessuras baianas. Safadezas, histórias picantes, aventuras maliciosamente inocentes. Caymmi tinha fama de “subtrair” lembranças de seus anfitriões – bibelôs, enfeites, peças decorativas – e as colecionava como um peq u e n o m u s e u d e m o l e c a ge m . Divertia-se contando seus casos entre os amigos baianos. Não era de falar palavrões – parecia um lorde de hábitos e linguajar finos –, o que contrastava com Stella, sua mulher, que não tinha papas na língua. Quando a conheci, cheguei a me assustar (antes de rir muito) com o palavreado daquela ilustre dama. Tinha uma personalidade forte e um agudo senso de humor, debochado, irreverente, características que sua filha, a grande cantora Nana Caymmi, herdou. COMENDADOR FRANCÊS Quando já estávamos morando em São Paulo e eu era então um adolescente, lembro que Caymmi apareceu de surpresa em casa esbaforido, arfando sob o es-

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forço de carregar pacotes enormes de linhaça. Inundou a sala com o sorriso e o vozeirão para reclamar da exigência de tio Jorge: levar 2 quilos de farinha para o irmão Joelson aos quais o próprio Caymmi agregou mais 1 quilo de doce de manga e de ambrosia. Para o médico baiano (meu pai) exilado em São Paulo, aquilo era um manjar dos deuses, capaz de provocar mais felicidade que a visita do famoso bardo baiano. Ah, e ainda tinha o violão. Ele cantou duas músicas: “É Doce Morrer no Mar”, cuja letra foi inspirada pelo romance Mar Morto, de tio Jorge, e, a pedidos, “Marina”, minha favorita. Depois foi embora, deixando uma longa risada na sala. Um belo dia a família toda, incluindo os dois “meninos” Dori e Danilo, se viu convocada por Tom Jobim para fazer uma seresta, numa fusão de ritmos e musicalidade que marcou época. Era o ano de 1964 e o evento virou o disco Caymmi Visita Tom e Leva Seus Filhos Nana, Dori e Danilo, da gravadora Elenco, que decerto contribuiu para impulsionar a carreira de Caymmi fora do Brasil. (Detalhe: Stella canta em uma das faixas, “Canção da Noiva”, composição do marido.) Como é que um cantor das praias da Bahia poderia ser reverenciado na Europa e nos Estados Unidos? Pois foi. Em 1984, recebeu a comenda Ordre des Arts et des Lettres, das mãos do então ministro da Cultura da França, Jack Lang. Apesar da fama de preguiçoso, Caymmi compôs mais de 100 canções e gravou 23 álbuns. Morreu aos 94 anos reverenciado como um entidade divina da música brasileira.

Com os filhos Danilo e Nana e a mulher, Stella: uma família muito musical

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av ent u r a P o r J R D UR a n

meu nome é legião Criada na França há quase 200 anos, ela aceitava estrangeiros ‘‘sem fazer perguntas’’. Evoluiu e se tornou tropa de elite, mas manteve a aura de que a morte é romântica

Legionário desfila nos Champs-Elysées, Paris, durante o 14 de Julho

FOTO: getty

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Sabe aqueles dias em que dá vontade de sumir, desaparecer no mundo, largar tudo para trás? Pois é – existe uma excelente maneira de acabar com a monotonia, mudar de vida por completo, se evaporar. Basta um passaporte válido, a idade certa e boa aptidão física. Trata-se da Legião Estrangeira. A Legião francesa se popularizou, de maneira romântica, pelo livro Beau Geste, de P.C. Wren, publicado em 1924. Numa noite de tempestade na Inglaterra, durante um apagão, a valiosa safira Blue Water desaparece da mansão do falido lorde Brandon, onde os irmãos Geste – os órfãos “Beau”, Digby e John – viviam desde meninos. Beau e Digby assumem a autoria do sumiço da pedra, fogem e se alistam na Legião Estrangeira, na Argélia, então colônia da França. O caçula John logo se junta a eles. No deserto, Beau e Digby enfrentam não só os tuaregues como o sádico sargento Lejaune, comandante do forte Zinderneuf. Curioso notar que “beau geste”, em francês, significa “gesto nobre” – símbolo da atitude do trio ao arcar com uma responsabilidade que não lhes cabia. No fim, descobre-se que lady Patricia Brandon sumira com a pedra para saldar dívidas.

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O filme com Gary Cooper, de 1939, botou a Legião no mapa. Acima, a tropa sua nas areias do Saara. À direita, legionário com equipamento moderno

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Percival Christopher Wren foi um escritor inglês de imaginação extremamente apurada. Sua descrição da Legião impressionou os leitores. Pensava-se que ele servira durante anos, subindo e descendo dunas deserto do Saara afora, suando o uniforme sob o boné branco. Nada disso: embora professor na Índia, ele jamais botou os pés na África. Beau Geste foi filmado diversas vezes. A melhor versão é a de 1939. Dirigida por William Wellman, fez de Gary Cooper um astro no papeltítulo. O sucesso provocou um aumento substancial no número de candidatos à verdadeira Legião Estrangeira.

FOTOs: reprodução, getty, latinstock

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Batizada de La Légion Étrangère, ela foi criada por um decreto do rei Luís-Filipe 1o em 1831. O franceses precisavam aumentar suas tropas e alguém sugeriu que seria uma boa ideia criar batalhões que admitissem pessoas de outros países para lutar a serviço da França. Serviria, além disso, para esvaziar um pouco as prisões repletas de marginais; a estes foi oferecida a possibilidade de trocar sua condenação por um tempo de serviço, menor, na Legião. Desde então os legionários estiveram e continuam na linha de frente de todos os conflitos envolvendo a França: da Crimeia ao Afeganistão, passando pelas duas guerras mundiais, Marrocos, Indochina, Argélia. Além das vitórias, a Legião é celebrada por seus gestos heroicos – e desesperados. O melhor exemplo ocorreu em 30 de abril de 1863, quando os legionários foram enviados ao México para ajudar na luta do imperador Maximiliano contra os rebeldes. Naquele dia, 64 homens, comandados pelo capitão Jean Danjou, herói de guerra que perdera a mão esquerda na Guerra da Crimeia, enfrentaram três batalhões mexicanos, cerca de 2 mil soldados.

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Dois mil mexicanos versus 65 legionários (12 sobreviveram): eis o saldo da batalha de camerone, em 1863 Combateram durante dez horas e meia, garantindo a retaguarda para que uma coluna de 60 carroças e 150 mulas, com peças de artilharia, víveres, munição e muito dinheiro, chegasse a Puebla, escoltada por duas companhias de legionários. O combate aconteceu na sede de uma fazenda no povoado de Camarón Tejeda – daí o francês Camerone. A Legião combateu com toda a coragem e a munição disponíveis. Até que, no fim do dia, apenas 12 soldados estavam em condições de lutar. “Pero estos no son hombres, son demónios”, disse o coronel mexicano Francisco de Paula Milán. Comandante do ataque, ele aceitou a rendição imposta pelos legionários: manter as armas, socorrer os feridos e voltar para casa. Desde então, a cada 30 de abril se celebra na tropa o dia de Camerone, com a exibição da prótese de madeira do capitão Danjou – morto naquela data. E a expressão “faire Camerone” é utilizada até hoje para simbolizar o espírito de luta e lealdade. Por trás de uma porta verde-escura, no número 260 da rue de Pelleport, em Bordeaux, na França, se encontra um dos 10 postos de recrutamento da Legião. O trato que você fará com o sargento recrutador, sentado atrás de uma mesa de fórmica, é simples: alistamento de cinco anos. Vencido esse prazo, você sairá de lá uma outra pessoa, com um passaporte francês e um monte de histórias para contar aos amigos – se é que restou algum. O salário é de 1.280 euros mensais, e as férias, de 45 dias por ano. Ah, dois detalhes importantes: quem se alista não pode ter automóvel nem imóvel em seu nome. E deve ter entre 17 e 39 anos de idade. Entre as emoções durante o serviço, a maior delas será certamente a de desfilar pelos Champs-Elysées, em Paris, no dia 14 de julho, a data nacional francesa. Mais: cantando Le Boudin, a marcha da Legião, e marcando a cadência solene de 88 passos por minuto. Coisa para poucos, convenhamos.

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Só não cometa, por favor, o erro de um amigo meu de escola – muitos anos atrás em Barcelona. O rapaz se encantou com a leitura de Beau Geste, com o filme, com a mitologia romântica da Legião. E, ávido por sensações fortes, decidiu se alistar. Mas, desatento à semântica, entrou para a Legión Estranjera Española – que tem os mesmos princípios da francesa, mas com certas nuances, digamos, ideológicas. Os pais quase tiveram um enfarto. Não porque o filho tivesse sumido de casa. Mas porque, como catalães separatistas e de esquerda, conheciam bem o espírito ultradireitista da corporação. A última notícia que tive é que meu amigo desertara. Resolveu começar uma outra vida, a terceira, como gerente de bar numa praia da Tailândia. Irmã mais nova da Legião Francesa, a espanhola surgiu como Tercio de Estranjeros em 1920. A ideia era a mesma: alistar estrangeiros no Exército castelhano. Seu primeiro comandante, o sinist r o ge n e r a l J o s é Millán-Astray, participou das guerras em que as Filipinas e o Marrocos deixaram de ser espanhóis – e nas quais ele perdeu sucessivamente um olho, um braço e vários dedos da mão. Com o apoio da Legión, Francisco Franco conseguiu impor sua força no começo da Guerra Civil Espanhola, em 1936. Millán-Astray é o autor da tenebrosa frase “Viva la muerte, abajo la inteligencia”, em repúdio ao célebre discurso do escritor e catedrático Miguel de Unamuno na Universidade de Salamanca. “Este é o templo da inteligência e eu sou seu sumo sacerdote”, afirmou Unamuno. “Vocês estão profanando este recinto sagrado. Vocês vencerão, pois têm a força bruta. Mas vocês não convencerão. Para convencer, têm de saber persuadir; e para persuadir precisarão de algo

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Acima, legionário com a bandeira da Espanha. À esquerda, Millán-Astray e Francisco Franco

que lhes falta: razão e direito na luta. Me parece inútil pedir a vocês para pensar na Espanha.” Astray era fascinado pelo código japonês do bushido, o caminho do guerreiro. Era o que regia a conduta dos samurais que entregavam sua vida, lealdade e honra até a morte. “Uma vez que o guerreiro está preparado para morrer, ele vive sua vida sem a preocupação da morte e escolhe suas ações baseadas em um princípio e não no medo”, rezava o bushido. Esse culto à morte está presente em diversos rituais da Legión. Um dos hinos favoritos é o Novio de la Muerte. E durante os desfiles da Semana Santa em Málaga, na Andaluzia, os legionários desfilam com a imagem do... Cristo de La Buena Muerte às costas.

Alguns detalhes curiosos, porém, extrapolam essa liturgia. A mascote dos legionários espanhóis é uma cabra. Trata-se de tradição que vem do tempo em que as tropas levavam consigo animais para seu próprio sustento e alimentação. Macacos, papagaios, javalis e até um urso também desempenharam esse papel. O mais querido e famoso de todos eles foi o carneiro Pepe. Morreu depois de 12 anos de serviço, em 2005. Na ocasião, Pepe foi incinerado envolto em uma bandeira da Espanha – e milhares de pessoas acudiram para assistir à cerimônia. Os desfiles da Legión só perdem em animação e folclore para o dos bersaglieri italianos: são feitos a 160 passos por minuto. O que, convenhamos, requer muito fôlego e treinamento, considerando que os legionários têm de carregar um fuzil de assalto Cetme nas costas sem deixar cair o chapirri. Trata-se do gorro verde com uma borla vermelha – “tradicional e graciosa”, nas palavras de Millán-Astray. Uma última consideração antes de deixar para trás este mundo na busca de um outro melhor, mais aventureiro, onde em tese ninguém faz perguntas. Neste vaivém de existências, ao entrar para a Legião você pode até mudar sua identidade e desaparecer – mas sempre haverá o passado, para lembrá-lo de que você é quem sempre foi.

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A FAZENDA

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v i ag em Por fernando paiva fotos tuca reinés

AFRICANA

Ou como o empresário alemão Jochen Zeitz transformou uma propriedade rural decadente no melhor lugar para safáris do Quênia

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DE UMA FAZENDOLA CAINDO AOS PEDAÇOS EM 2005 AO REFÚGIO MAIS LUXUOSo DA ÁFRICA: EIS O SEGERA

I

sso aqui é um banquete para os sentidos. Ver o topo do monte Quênia, segunda maior montanha da África depois do Kilimanjaro, com seus 5.199 metros de altitude, recortado contra o azul do céu límpido, com as raras zebras de Grey em primeiro plano. Sentir o cheiro da savana molhada pelo orvalho da madrugada. Ouvir o bramido dos elefantes machos, sempre atentos à segurança da manada. Tomar chá no fim da tarde aconchegado num sofá de couro antigo, entre mapas, fotos e objetos do início do século 20. Depois do jantar, apreciar o céu, com bilhões de estrelas visíveis, ao calor da fogueira – enquanto se degusta um encorpado Pinotage sul-africano. Hakuna matata, my friend. Bem-vindo ao Segera Retreat, refúgio de 20 mil hectares no centro do Quênia, 20 quilômetros ao sul da linha do Equador. Trata-se da segunda área do país, depois de Masai Mara, em densidade de vida selvagem. Ou seja, um santuário para 40 tipos de mamíferos e mais de 350 espécies de pássaros. “Encontrei o lugar que fala à minha alma de aventureiro.” A frase é do alemão Jochen Zeitz, durante décadas CEO da Puma, ao descobrir em 2005 a velha sede de fazenda e um estábulo cercados de cáctus. Zeitz transformou o local num exuberante jardim tropical, com seis villas luxuosas, duas piscinas e um spa. Apaixonado por arte – inaugurou em setembro de 2017 o MoCAA (Museum of Contemporary Art Africa) na Cidade do Cabo –, transfigurou o estábulo em galeria, com peças de sua coleção particular. O planalto de Laikipia, onde fica o Segera, também foi impactado pela filosofia do empresário, a dos 4 Cs – conservação, comunidade, cultura e comércio, integrados de maneira holística e efetiva. Que o digam os samburu, os turkana e os borana, as três tribos de pastores de gado que vivem na região – e vão guiá-lo nesse banquete de sentidos.

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A DURA VIDA AFRICANA Um dia típico no Segera começa cedo, por volta das 6h30. Um lanche leve precede o primeiro game ride, passeio de 4x4 em busca dos animais: leões (direita), elefantes, búfalos, hienas, girafas, zebras. Na volta, cerca de 10h, toma-se o café da manhã e depois o almoço na Paddock House (acima). Há um segundo game ride no fim da tarde, seguido de jantar na Wine Tower (acima, em primeiro plano). Trata-se de uma adega em forma de silo, com mesa central e piso de cimento cravejado de cápsulas metálicas de champanhe. Entre os dois passeios, você a p rove i t a o co n fo r to d a s villas (página anterior).

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VISÕES DO JARDIM DO ÉDEN A altitude de 1.750 metros acima do nível do mar faz com que o Segera tenha um clima agradável o ano todo, e, melhor ainda, livre de malária. Ao longo dos córregos, os bosques de acácias atraem as zebras de Grey e os elefantes, em busca de água e de sombra. Manadas com até uma dúzia dos enormes paquidermes e até 40 zebras são comuns e atestam a densidade de vida selvagem no planalto de Laikipia.

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GIRAFA NA JANELA Há quatro espécies de girafa: do sul, masai, do norte e reticulada. O cruzamento entre espécies distintas gera filhotes estéreis, daí a queda de 150 mil para 100 mil em 30 anos. Mas no Segera as reticuladas (esquerda) são tantas que podem ser vistas até pela janela dos quartos.

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PERSONAGENS DA SAVANA Ele tem uma ferocidade lendária e pesa até 900 quilos. O búfalo-africano (acima) é temido até por manadas de leões, que só ousam atacar os mais velhos sempre em grupo. No Segera, essa e outras histórias da savana você ouve do garçom Andrew, enquanto toma um vinho branco.

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AVENTURAS – NO AR E EM TERRA No filme Entre Dois Amores (Out of Africa), baseado no livro da dinamarquesa Karen Blixen (vivida por Meryl Streep), Robert Redford faz o papel do piloto e aventureiro Dennys Finch-Hatton, amante da escritora. Voar no biplano amarelo Gipsy-Moth (direita), ano 1929, prefixo G-AAMY, o mesmo utilizado durante as filmagens, é uma aventura exclusiva que o Segera oferece. O avião foi adquirido por 300 mil euros em leilão em 2013 e completamente restaurado. Se você não fizer questão de voar, o almoço ao ar livre e os passeios com o guia Paul (abaixo) são obrigatórios.

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HUMOR P or TO M C A R D OSO

A bela gil do mal tro horas de pé no pátio fantasiado de agrião ou de tomate, dependendo do peso e da altura. Não estou brincando. É sério. A Vera Pimentão era uma ególatra. Toda segunda, a gente tinha que cantar o hino nacional, o de São Paulo e o da Mutirão, que começava assim: “De manhã ao sair para escola, lá se vai estudante feliz”... E terminava assim: “Graças aos professores e à diretora Ana Maria”. Eu odiava a Vera e o seu cheiro de grão-debico. Ela morava na própria escola, numa casa rodeada de plantas e flores. Desde que entrei na Mutirão, ouvi sempre a mesma história: a conexão da Vera com a natureza era tanta que ela era capaz de identificar qual aluno havia feito xixi em determinada planta ou flor, mesmo a quilômetros de distância. A história virou lenda e nunca ninguém ousou mijar no seu orquidário. Só eu. Sou mais curioso que medroso e um dia, após a aula de horta (sim, sei até hoje plantar um rabanete), descarreguei o suco de tamarindo inteiro no girassol predileto da Bela Gil do mal. Não sei se ela era paranormal, ou mantinha homens da KGB infiltrados no quintal. Só sei que, no dia seguinte, o bedel da escola me pegou pelo braço e me enterrou até o pescoço exatamente ao lado do girassol.

Ela nos obrigava a comer feijoada de soja em plenos anos 70

Sou filho de pais hippies. Meu pai abandonou a luta armada para ouvir Caetano. O Leãozinho e a Vaca Profana são responsáveis pela minha existência. Sou grato a eles. Mas juro que muitas vezes me deu vontade de nascer filho do Bolsonaro com a Marine Le Pen. Principalmente quando me lembro dos quatro anos em que estudei na Mutirão, escola semi-integral que se vendia como “alternativa” – mas que, na prática, estava mais para sítio dos Novos Baianos administrado por Josef Mengele. A diretora, chefe do campo de concentração de Cotia, era uma mulher mais conhecida por Vera Pimentão, que obrigava a gente a comer arroz integral e feijoada de soja em plenos anos 1970, numa época em que as crianças levavam fandangos de lanche. E não havia nem um tempo de adaptação para as crianças. Pior: quem não comia toda a comida do prato levava castigo, como ficar qua-

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crô n i c a Por marina mor aes

A TOUCA

para nascer de novo. Ele era o avesso do avesso do avesso do avesso e eu não conhecia poesia concreta nem a música. Quando de touca no chuveiro, deixava a barba ensaboada à mostra e me confundia com sinais tão contraditórios. Uma noite, em Campos do Jordão, deitados na grama de mãos dadas, o céu por testemunha, disse que estava apaixonado pelo amigo. Fiquei em dúvida se deveria recolher ou manter a mão. Mantive para não dar bandeira. Tentei parecer sofisticada e natural, fazer observações inteligentes para a situação e não sair rolando aos gritos pela grama como tinha vontade. Ele chorou. Continuamos a olhar para o alto, perguntei se me queria perto para ajudá-lo naquele momento difícil que eu mesma não compreendia e, quando ele se levantou sem responder, continuei ali imobilizada pelo susto até o corpo doer. Passou para quatro sessões de terapia por semana. Com inveja da complexidade do que ele vivia, decidi que poderia ser uma opção para mim também. Me emprestaria a profundidade e o mistério que eu não possuía. Com ares lascivos, aproximei-me de meninas bonitas, sensuais, delicadas. O cabelo, os olhos, o perfume, a personalidade, sobretudo a atenção que algumas me dispensavam num flerte imaginário. Toquei, cheirei e nada. Nenhuma sensação próxima das que eu conhecia com os homens. Eu era uma mulher comum, óbvia, cem por cento heterossexualmente resolvida. Não seria por ali a minha ascensão às profundezas da alma. Numa conversa, já sem sermos um casal e sendo, porque gente sofisticada continua sendo, deixei-o saber que eu também tinha passado por uma crise de gênero. Soou tão artificial e fora de contexto que ele fez uma vírgula e seguiu o raciocínio sobre um documentário que estava filmando. Nunca mais o vi. Soube que encaretou, tornou-se conservador, assumiu os negócios da família, mulher, sogra, filhos e tal. De tudo, o que me intriga é se ele manteve a touca no banho.

Tentei parecer natural e não sair rolando aos gritos pela grama, como tinha vontade

Era culto, educado, intelectual e tinha um sobrenome que me transportava para o Leste Europeu. Eu adorava fazer esse comentário. Fotógrafo. Conhecia o que era relevante no mundo. O resto, Bahia e afins, visitou pela literatura. Emocionava-se às lágrimas durante o concerto, no final do poema, diante da imagem pendurada no museu. Eu fingindo sensibilidade igual. Fazia análise três vezes por semana. Neurótico e atormentado como eu sonhava ser. Lindinho e perfumado. Tomava banho de touca quando não queria molhar o cabelo. Podia tudo. Tinha letra feia e escrevia muito bem. Articulado. Participava de intrincadas discussões sobre cinema e política quando ainda era de esquerda. A barba perfumada do charuto que ele fumava exalando inteligência. Eu tinha a tendência de idealizar as pessoas, sobretudo os homens, na época, mais poderosos, destacados nas suas áreas, um tom acima das mulheres. Com irracional atração machista, entregava a eles o coração e o meu desejo. A esse, aparentemente mais frágil, mas igualmente superior, entreguei também a autoestima. Sabia que para me aproximar daquela imagem encantadoramente imperfeita, os defeitos assumidos sem medo, eu escondendo os meus, teria que matar, não no sentido figurado, meus pais, meus professores, minha terapeuta e talvez a mim mesma

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