Sula. Edição n° 1 Um novo nome surge na cena artística pessoense: Hicor Expressões culturais e a ressignificação da estética negra Ancestralidade e religiosidade africana em João Pessoa Perfil: “Os diferentes caminhos de Guilherme Semmedo”
Na medida em que pretos e pardos ainda sofrem com os efeitos de um processo histórico de desamparo e discriminação, sua presença na composição cultural da cidade de João Pessoa é, por vezes, negligenciada ou inexplorada em sua potencialidade.
A revista Sula registra o cotidiano de diferentes indivíduos da comunidade negra como uma memória patrimonial pessoense e como uma ferramenta importante para o reconhecimento de suas contribuições à movimentação sociocultural paraibana.
A primeira edição da revista conta com duas reportagens, uma entrevista e um perfil jornalístico, abrangendo artes visuais, religiosidade e espiritualidade africana, e relações entre cabelo e identidade. Tudo isso dentro de uma captura das expressões culturais e artísticas de pessoas negras em João Pessoa.
Para cumprir com o seu objetivo de oferecer um ambiente de publicização dessas contribuições, a Sula foi até diferentes pontos da cidade com a intenção de ouvir histórias e vivências de pessoas que compartilham, dentro de suas expressões individuais, a experiência afrocultural em João Pessoa.
Esta revista é uma produção experimental idealizada para o meu Trabalho de Conclusão de Curso. No projeto, as linguagens visual e textual são unidas para representar a abrangência temática da revista. Os registros fotográficos dão vida às histórias contadas em textos jornalísticos, que buscam destacar o senso de contato, aproximação e conectividade entre os assuntos abordados.
Editorial
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O cabelo e a ressignificação da estética negra 4 Entrevista com o artista visual Hicor 10 As fronteiras sensíveis dos territórios de fé 18 Os diferentes caminhos de Guilherme Semmedo 26
Sumário
O cabelo e a ressignificação da estética negra por Mariani Pontes
E Em diferentes momentos da civilização humana, os penteados e cortes de cabelo fo ram utilizados para indicar classe social, esta do civil, idade, religião e gênero. Para comuni dades afrodescendentes ao redor do mundo, existem conexões especialmente intrínsecas entre cabelo e identidade. A noção do cabe lo como símbolo identitário negro atravessa questões de reconhecimento e pertencimento social, assim como, desafia as percepções es tabelecidas sobre beleza e sobre quem é belo.
No período escravista, a estética serviu como uma ferramenta indispensável para a aplicação e propagação de teorias eurocên tricas, o que impactou, de maneira sistemáti ca, as próximas gerações de pessoas negras nos países colonizados. Os africanos escravi
zados, por exemplo, tinham suas cabeças ras padas em meio a um processo forçado de assimilação cultural e apagamento identitário. O cabelo assume, assim, um lugar im portante no recorte histórico da vivência negra, com a ascensão de diferentes movimentos po líticos de ressignificação estética e empodera mento da identidade afrodescendente. Nesse sentido, o conhecimento ancestral negro - ar ticulado em distintas comunidades - é também transmitido pelos cortes e penteados, que carre gam uma carga própria ritualística e de tradição.
Para a trancista e cabeleireira negra Nina Pontes, há uma função social primor dial exercida pelos profissionais da área, que se relaciona com a autoestima da comunida de negra. Ela falou sobre o senso de libertação
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Felipe Alves, à esquerda, atendendo um cliente.
Nina Pontes, à esquerda, atendendo uma cliente.
proporcionado pela jornada pessoal de cada pessoa preta que descobre a conexão entre o cabelo e a sua autenticidade e individualidade.
“Ao longo da vida, a autoestima nos foi privada com a ditadura do alisamento e do corte militar. Nos entender como pessoas distintas e es pecíficas, que não tentam se encaixar ao padrão eurocêntrico, é uma girada de chave. A partir do momento que você se enxerga com autoestima, as possibilidades se abrem e você tem força para galgar seu espaço. Se ver bonita ou bonito é tam bém uma forma de resistir”, afirma a cabelereira.
Nina é co-proprietária do salão de be leza Kilombo Studio Afro, fundado juntamen te com seu marido, o barbeiro Felipe Alves, no bairro de Mangabeira, em João Pessoa. A empreendedora de 28 anos explica que o pú blico do salão é composto majoritariamente por pessoas negras, em especial mulheres em transição capilar, processo em que os proce dimentos químicos do cabelo são interrompi dos para que ele cresça em sua forma natural. “Proporcionamos a possibilidade de pas sar pela transição de uma maneira mais leve, seja com uma trança ou com um corte mais curtinho e estiloso. Ter alguém que conver sa com você durante o processo, te acalma e exalta a sua beleza não tem preço. E é essa a nossa missão. Chega muita gente fragiliza da para sentar nas nossas cadeiras e precisa mos estar preparados para isso”, pontua Nina. Os produtos carro-chefe do Kilombo são as tranças nagôs e box braids. Já entre os cortes, tapered e pixie cut são os mais procurados. Feli pe, de 26 anos, especifica que, para a barbearia, o corte mais escolhido é o fade. “É um degradê, uma técnica de corte americano que é bem cul tural nas barbearias da periferia. Já é um estilo tradicional nessas áreas que são influenciadas pela cultura preta dos Estados Unidos”, informa. Na barbearia há quase três anos, Felipe comenta que, desde o início de sua profissiona lização, a intenção era se especializar em ca belos crespos e cacheados. Ele ressaltou como o núcleo familiar é uma peça determinante no processo de ressignificação da estética negra.
“Depende da bolha que você vive. Cresci dentro de uma família em que todas as pesso as têm cabelo cacheado. Depois que a minha mãe assumiu o cabelo natural - após procurar um salão especializado -, todos nós também paramos com o alisamento. Quando a gente
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tem uma rede de apoio para reforçar a nos sa escolha sobre determinada característica, não há medo de se assumir. Isso é uma forma de autopreservação”, reflete Felipe. Segundo o barbeiro, diante das diferenças étnico-cultu rais presentes nos grupos sociais, as pessoas de cabelo crespo e cacheado tentam se encai xar dentro de um padrão fabricado de beleza.
“Quando a gente permite que o nos so cabelo natural floresça, a nossa personali dade e identidade vem junto. Eu acredito que existe, sim, uma ditadura que impõe esteti camente nossas características físicas, e pre cisamos de pessoas que desenvolvam uma nova percepção. É possível se sentir bem sendo quem você é, com o seu cabelo natu ral, respeitando a sua curvatura”, diz Felipe.
Ele completou que o objetivo principal do Kilombo Studio Afro é levar a informação liberta dora de noções preconceituosas para as áreas mais periféricas da cidade, além de capacitar mais profissionais para trabalhar com esse mercado.
De acordo com Nina, o proje to representa a humanização de pesso as negras pela valorização de seus tra ços naturais em um ambiente acolhedor.
“Nosso atendimento não pode ser ro botizado, não podemos medir todo mundo com a mesma régua porque cada proces so é único. Isso transforma nossos clientes e nos transforma também, enquanto pro fissional e pessoa”, esclareceu a trancista.
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Para Ailton Vieira Júnior, criador de con teúdo digital de 23 anos, o cabelo é um meio de comunicação com a sociedade, que simboliza, além de estilo, uma representação de si. Segundo o jovem formado em Rádio e TV, o cabelo é uma das ferramentas que o homem negro pode ter no país para desestigmatizar leituras sociais racistas.
“Quando criança, nunca tinha vivido a experiência de ‘sentir’ o meu cabelo porque o meu pai sempre me levava para barbearia para ‘cortar na zero’. E, infelizmente, isso é algo bem comum para diferentes gerações de ho mens negros no Brasil. Por ele não ter tido a vivência com esse cabelo, ele queria que eu tivesse a mesma experiência”, Ailton explica.
Ele falou sobre a experiência traumática que o ambiente da barbearia representava para ele na infância e como o espaço foi ressignificado durante a vida adulta. Ailton comenta que muitas pessoas não tiveram acesso a uma curadoria de cabelo, então é necessário disponibilizar um catálogo acessível para que mais pessoas pos sam diversificar seus estilos capilares e de vida.
“Eu fugi um pouco do esperado e sempre quis ter cabelo grande. Me lembro da última vez que fui para barbearia quando era pequeno, eu só fazia chorar, já que não era aquilo que eu que ria. Assim que saí da casa dos meus pais, consegui realizar o grande sonho de ter um cabelão. Isso lá em 2017 e, desde então, adoro ter ele natural todo crespo, pintado ou trançado”, conta Ailton.
Já a jornalista Gleyce Marques de 24 anos encontrou no processo de transição ca pilar um momento pessoal de ressurgimen to. Ela frequenta há um ano o Kilombo Studio Afro e relata que, apesar de ter crescido den tro de uma família que sempre valorizou o seu cabelo, a jovem enfrentou, desde cedo, pro blemas de socialização e inclusão na escola.
“A partir do momento que alisei meu ca belo, ainda criança, me senti mais aceita nos espaços que frequentava. No ensino médio, comecei a estudar sobre relações raciais no Brasil e foi quando foram despertados alguns incômodos no que se refere a essa ‘camufla gem’. De certo modo, eu não estava me enxer gando mais naquilo, mas também não possuía autoestima para assumir meu cabelo natural, que é enorme, crespo e volumoso”, ela detalha.
A transição capilar de Gleyce aconteceu somente quando ela ingressou na universidade, e raspou seu cabelo por completo. Ela descre
veu a experiência como prazerosa e alarmante.
“Foi uma descoberta, não só sobre acei tação, mas sobre orgulho. A transição foi um passo importante para me entender como uma mulher negra e construir meus discursos e pau tas em cima disso. E no Kilombo, por exemplo, pude completar esse sentimento de acolhimen to e bem estar. Eu sinto muita falta de mais locais como esse em João Pessoa, espaços reais que valorizem nossa autoestima”, pondera Gleyce.
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Entrevista com Hicor
Por Mariani Pontes
Felipe Silva, conheci do artisticamente por Hicor, é um pintor de 22 anos de João Pessoa, criado no bairro de São José. As obras, trabalha das em telas e murais, se co nectam às relações raciais no Brasil. Mas, para além disso, as artes de Hicor são represen
tantes de sua própria consci ência, dentro de uma coleção de memórias e convicções.
Eu me encontrei com ele uma semana antes da es treia de sua primeira exposição individual, que ficou aberta no Sesc Cabo Branco, em João Pessoa, de 8 de setembro até
27 de outubro de 2022. O artis ta, que estava nos preparativos para finalizar todas as pinturas, expressava ansiedade em con seguir entregar tudo a tempo.
Hicor falou sobre como é possível compreender o vínculo entre o senso de co munidade e a individualidade
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dentro de suas expressões artísticas. Ele destacou como o lugar onde cresceu norteia a sua percepção do mundo e como ele navega as expe riências da vida, o que é re fletido nas obras produzidas.
Em seu ateliê - que também é o seu quarto -, Hi cor acorda na presença dos quadros que pintou e dos que ainda vai pintar. As peças ar tísticas, marcadas pelas cores quentes e pelos personagens familiares, se apropriam das paredes do cômodo, de mandando atenção. O artista captura as boas e más me mórias soltas em sua men te ainda enquanto criança.
Sula: Existem metas dentro de uma obra ou projeto? Um ponto de partida e um ponto de chegada?
Hicor: Cara, depende. Depen de de qual seria a proposta. Quando eu pego um traba lho fechado para alguma empresa ou algum cliente, eu gosto de juntar as referên cias. Mas, agora, o trabalho que eu estou fazendo é sobre mim. É sobre o que vi, sobre o que eu vivi, perdi e ganhei. É sobre a minha caminhada. Quando pego um trabalho que tenho que fazer algo es pecífico, preciso sentar para planejar o que vai ser feito. Mas essa produção toda que eu estou fazendo agora é algo livre. É sobre memória.
Sula: Qual foi o seu primeiro contato com a pintura e a arte visual?
Hicor: Aos sete anos de ida de, brincando com carvão. Minha avó vendia churrasco e minha irmã raspava o car vão e misturava com água. Nós começamos a pintar o carvão sobre papelão. Depois
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disso, comecei a coletar pape lão para comprar a minha pri meira caixinha de tinta. Assim, eu continuei estudando e de senvolvendo meus desenhos. Com 17 anos, conheci um pro fessor de arte, que foi a pessoa que me ajudou a desenvolver minha capacidade criativa.
Sula: Quando o seu conhecimento artístico foi aprofundado?
Hicor: Eu passei a minha ado lescência estudando técnicas. E quando comecei a soltar a minha cabeça, eu percebi que não precisava de tanta téc nica. É só se expressar. Passei minha vida estudando técnica para chegar nisso, nesse ponto.
Sula: Há conexões entre as suas obras e o bairro de São José. De que modo o lugar em que você cresceu influenciou na sua arte?
Hicor: Tudo o que eu pinto é uma consequência das minhas experiências na infância, envol vendo capitalismo, discrimina
ção racial, falta de afeto. Eu gos to de mostrar a realidade. Tento juntar tudo isso de maneira que um assunto aborde o outro.
Sula: Quais são as dificulda des em se manter como artista?
Hicor: Então, né. [risos] Eu tô nessa luta. Estou nessa luta para manter isso. Quando era moleque, isso era mais incen tivado. Depois que se torna um trabalho, o negócio é compli cado. Para se manter como um trabalho, você precisa ter todo um preparo: cuidar do seu espírito para, depois, cuidar da sua arte. Quando o seu espíri to não está bem cuidado, não tem como cuidar da sua arte. Existe esse conflito. Não ter que se preocupar com comida, com estudo ou com trabalho para poder simplesmente fo car na sua produção artística. É um privilégio que eu não tenho. Sula: Você acredita que há um senso grande de comunidade entre artistas
pretos no cenário artístico de João Pessoa?
Hicor: Com certeza. A cena no Nordeste está crescendo muito e eu sou a prova disso. Sula: É possível definir seu trabalho enquanto artista?
Hicor: Quando você cresce e vê, como adulto, as conse quências do que você pas sou, você tenta imaginar uma vida melhor para as pessoas que vão vir depois de você, seja seus filhos, primos, sobri nhos… Essa percepção come ça a ser criada. É o que estou fazendo e trazendo para as telas. É o que eu imagino que seria uma formação em que alguém como eu é criado para ser feliz e acreditar em si. Sula: Influências?
Hicor: Guto Oca, meu curador. Foi ele que expandiu minha perspectiva de comunidade, de trabalhar em conjunto e de como a arte chega a ser algo religioso para o artista.
Hicor em seu atêlie.
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O que você quer representar com as suas exposições?
Hicor: Minha história. Especificamente, eu re trato o que eu vi, o que eu vivi e o que o outro passou também. É o que eu gosto de retra tar, para que o outro também se identifique.
A ideia é trabalhar a autoestima. Essas cenas pintadas nas obras são coisas que eu vejo todos os dias aqui na comu nidade. É algo curioso crescer nesse ambiente e ainda ter sua autoes tima mantida. Colocar essas pessoas sobre a camada do ouro é uma forma de exaltar o en tendimento de que nós não estamos abaixo da moeda. Nós não so mos inferiores a ela, por mais dependente que sejamos desse sistema.
Sula: Quais são seus próximos objetivos a serem alcançados no cenário artístico?
Hicor: Eu quero fazer o melhor que eu puder. As portas que forem abertas para mim, eu vou aproveitar como sempre. Como sempre.
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As fronteiras sensíveis dos territórios de fé
por Mariani Pontes
Diferentes contribuições socioculturais são sinalizadoras da presença de pessoas ne gras no Brasil. As religiões de matrizes africa nas, mediante doutrinas e hierarquias próprias, atuam na transmissão de saberes ancestrais e indicam a capacidade de sobrevivência de uma população em resposta à colonização europeia.
As matrizes africanas representam, nesse contexto, o zelo espiritual de tradições, que originaram diversas manifestações sa gradas no Brasil. A espiritualidade é cultuada por meio de cerimônias ritualísticas nos terrei ros, que são organizados pelos seus dirigentes.
Por meio de princípios vinculados à co munhão, proteção e cura, a religiosidade afro estabelece uma conexão comunitária dentro dos territórios que ocupa. Compreender a re
ligiosidade africana também é compreender a historiografia e a socialização de pessoas e lugares. Registrar como ela é identificada em João Pessoa possibilita um olhar mais cuida doso e atento à composição social da cidade.
Para o babalorixá Joelson de Iemanjá, a sua religiosidade abre caminhos que atraves sam o passado para revelar o presente, além de servir como um agente conector de grupos e indivíduos. Ele acredita que os terreiros, que ambientalizam esse suporte espiritual, são re presentantes físicos de pertencimento e união.
Joelson Silva Cruz — nome de batis mo — tem 43 anos e é dirigente da casa de candomblé Asé Colinas, localizada no bair ro de Colinas do Sul, em João Pessoa. Além da assistência espiritual, o dirigente busca re-
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Pai Joelson de Iemanjá no Asé Colinas.
cursos para colocar em prática um projeto so cial e oferecer, no ter reiro, cursos de capo eira, dança, culinária baiana e cantos africanos.
“Temos prazer em atender pessoas. Mui tas delas chegam aqui passando pelos mes mos problemas que eu passei enquanto jovem”, recorda o Pai Joelson.
Natural de Cabe delo, ele é filho de feiran tes evangélicos. Para o pai de santo, sua religião exi ge, além de fé, resistên cia. Joelson teve que sair de casa ainda criança ao enfrentar preconceito re ligioso por parte de fami liares. Ele optou pela sua religião e iniciou uma tra jetória extensa de luta e mobilização por meio da fé, iniciando no candom blé aos 23 anos, quando se formou babalorixá.
Ele conta que teve sua primeira casa de axé demolida, em 2015, pela prefeitura de Cabedelo, precisamente, no bair ro de Jacaré, e aponta o caso como um exem plo sólido de intolerân cia religiosa implemen tada pelo poder público.
“Somos vítimas do preconceito. A prefeitura demoliu minha casa de candomblé, onde sete filhos de santo moravam. Ficamos sem prédio e sem horizonte. Eles demoliram um espaço sagrado. Sofri muitos ataques nessa época, mas não perdi o foco, nem perdi a fé”, afirma o dirigente de terreiro.
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H Há sete anos, Joelson se mudou para o Co linas do Sul, onde construiu sua casa novamente. O babalorixá descreve sua chegada na comuni dade pessoense como um momento mais pací fico e tolerante dentro de sua jornada religiosa. “Quando cheguei no Colinas, não recebi ataque de nenhuma forma. Nem eu, nem meus filhos. Pelo contrário, fomos apoiados pela comu nidade. Quando faço festejo aqui, por exemplo, compartilho nossa celebração e comida com a comunidade. Para mim, esse bairro foi uma transformação também. Saí de um local em que fui ‘apedrejado’ pela própria gestão municipal e pelos moradores para chegar num lugar em que todos me abraçaram”, reflete em tom gracioso.
A primeira interação de Joelson com a espiritualidade africana aconteceu aos 10 anos, idade em que experienciou o seu primei ro transe. “Na rua em que cresci, havia alguns terreiros de umbanda, já que, naquela época, o candomblé era muito escasso aqui na Pa raíba. Escutei o barulho de tambores baten do e tive a curiosidade de assistir pela janela, do lado de fora. Estava assistindo quando mi nha visão escureceu”, pontuou o momento. Ninguém da família do Pai Joelson enten deu o que havia acontecido. Eventualmente, ele se deu conta de que se tratava de uma ques tão espiritual. O evento, na verdade, foi a sua primeira incorporação: um caboclo, chamado ‘Campo Grande’, que o acompanha até hoje.
H “Fiz a escolha certa. Era a religião perfeita para mim. Não olhamos sua cor, orientação sexu al ou condições financeiras. Eu era uma criança sem afeto de mãe e de pai. Agora, dou o amor que não tive na infância e isso vem através dos orixás, da minha religiosidade, do candomblé”, finaliza.
Joelson conseguiu encontrar na religio sidade um sistema de amor e aceitação. Ele também conseguiu ressignificar, por meio dela, os traumas familiares vividos na juventude. Esse é um processo que é testemunhado pelos de mais frequentadores da Asé Colinas, a exem plo da filha de santo Mariana Silva, de 26 anos.
Esse acolhimento é encontrado nas re ligiões de matrizes africanas de modo geral. Existe, dentro da espiritualidade afro, uma leitu ra pedagógica que prioriza o saber comparti lhado, o entendimento de que precisamos um do outro para se construir da melhor forma. Na Paraíba, também é possível identificar a pre sença marcante do culto religioso da jurema, mais concentrado no municipio de Alhandra.
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“É um lugar de humildade, que faz com que a gente coloque nosso pé no chão. Nós conhecemos aqui a força da ancestralidade e de ser humilde. Agora, eu consigo reconhecer e agradecer quem veio antes de mim de uma forma genuína”, declara Mariana.
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De acordo com o juremeiro Perazzo Frei re Júnior, de 26 anos, a história de luta das prá ticas afro-religiosas está ligada a luta da Jurema Sagrada e da Federação Cultural Paraibana de Umbanda, Candomblé e Jurema (Fcp Umcanju).
“O movimento de resistência é liga do à jurema e também atravessa a luta da Fcp Umcanju, que é presidida pelo Pai Beto de Xangô. Em João Pessoa, essa federação atua por meio do Museu Paraibano da Cultu ra Afrobrasileira e Indígena como uma forma de publicizar o conhecimento dessas culturas e combater o racismo religioso”, ele clarifica.
Perazzo completa que, no momento, está direcionando esforços para diferentes ações de proteção da prática religiosa de matrizes afri canas em João Pessoa. Uma das ações é o movimento, conduzido pela Fcp Umcanju, para a revitalização e translocação da Praça Mãe Iemanjá, que fica no bairro de Cabo Branco.
“Estamos na busca do abaixo assinado pela imagem de Iemanjá, que está totalmente des truída. Ela não tem mais cabeça, não tem mãos, e a estrutura está em total abandono naquela praça. O movimento por um espaço mais segu ro está crescendo”, afirma Perazzo. Doado pela Federação Espírita da Paraíba em 1966, o monu mento é um patrimônio público de João Pessoa.
Para Perazzo, o culto da jurema simboli za uma relação de reencontro, que se deu início, em um momento pessoal delicado de processos psicológicos. Há quatro anos, Perazzo frequenta o terreiro Ilê Axé Xangô Agodô e Casa do Ca timbó, localizado em Mangabeira, João Pessoa.
“Falo que é um reencontro porque eu não tinha contato prévio com a jurema. Cres ci católico, mas nunca tive, necessariamente, apego, apreço ou identificação em relação a isso. Quando iniciei na jurema, que comecei a cultivar a espiritualidade, aquilo floresceu algo dentro de mim, que me colocou em conta to direto com a minha ancestralidade”, relata.
A espiritualidade representa, para dife rentes integrantes da comunidade afro-religiosa, um processo de descoberta com a essência de cada um. Um processo lento, porém confortado por uma rede de apoio, que se articula dentro de um ambiente social ainda preconceituoso.
Os praticantes, além de estabelecerem uma conexão com o divino, encontram nos terrei ros, espaços seguros para o diálogo com ances tralidade, individualidade e vivência comunitária.
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Perazzo Freire Júnior vestindo diferentes adereços da jurema.
Os diferentes caminhos de Guilherme Semmedo
O bissau-guineense de cidadania brasileira assegura sua onipresença em diferentes países, meios artísticos e espaços culturais
Era o fim de uma manhã de terça-feira quando fui recebida na casa do professor, arquiteto, músico e artista visual bissau-guineense Guilherme Semmedo, em Mangabeira, João Pessoa. Subi até o terceiro andar da casaque foi projetada pelo próprio Guilherme -, para conversar, entre outros assuntos, sobre os lugares distintos que ele ocupa artisticamente. Nascido em Guiné-Bissau, país da costa atlântica ocidental da África, Guilherme chegou ao Brasil aos 24 anos. Atualmente, ele é professor do curso de Desenho e Pintura no Centro Cultural de Mangabeira Tenente Lucena, aberto a alunos de diferentes faixas etárias. Guilherme, que per manece artisticamente ativo, também realiza trabalho comissionado dos quadros que pinta.
Sua casa é uma representação fiel de uma mente pictórica e experiente. Os cômodos são completados por obras, quadros e artefatos de amigos, familiares e alunos, colecionados ao lon go dos anos. Ele me apresenta cada pintura com cuidado e atenção e cita, com um sotaque caris mático, os diversos mentores que refinaram as suas habilidades até chegar no surrealismo-naif. O artista relembra o seu país de origem como um estado em movimento. Quando nas ceu, o país estava em guerra. Era um período de transformação em que Guiné-Bissau sentia os efeitos da colonização de Portugal. Guilherme conta que, durante os anos que viveu no país, pôde olhar o mundo sob duas perspectivas: o lado colonial, marcado pela luta pela independência, e o lado didático, em que descobriu sua vocação para a pedagogia como uma forma de libertação. Seu pai, casado quatro vezes, era vete rinário e enfermeiro. Ele estudou em Portugal e retornou à Guiné-Bissau com o propósito de lutar pela independência nacional. Guilherme faz par te da primeira família formada pelo seu pai, em que possui quatro irmãos. Ao total, foram 18 filhos que, apesar de possuírem mães diferentes, cres ceram na mesma casa. Ele faz questão de desta car que sempre obteve apoio dos pais para a arte. De certa forma, esse senso de firmeza e unidade ainda orienta a visão do artista de 59 anos. Não existem dúvidas nas frases do profes sor. O raciocínio é apoiado pela confiança em suas palavras. Sem coincidências, todos os en contros da vida do educador parecem ter um propósito. Em especial, o seu primeiro encon tro com a arte, dado aos seis anos de idade. “Eu aprendi a respeitar e gostar de arte por meio da catequese que fazia com um pa dre italiano. Nunca mais parei depois disso”, pon tua. Esse contato inicial passou a ser visto nas obras, em que a arte sacra é notada com fi“A arte não faz mal a ninguém. Ela te ajuda a entender o mundo, te ajuda a ter uma identidade. Quando você constrói um legado, sua arte permanece. No fim das contas, é a alma que você transfere para as telas
, reflete Guilherme.
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guras do clero, representadas afetuosamente
Apesar do acesso limitado enquanto criança, a curiosidade e facilidade artística sem pre o movimentou, abrindo portas ou, pelo me nos, janelas que davam vista para um novo lu gar. Ao resgatar memórias de sua juventude, um personagem observador é retratado, um prota gonista com poucas falas. Há, nesse cenário, al guma lição sobre se posicionar no lugar e mo mento certo para desfrutar da melhor paisagem. Entre os diferentes momentos revividos sobre sua infância, a lembrança de um dia cha mado “Toque dos Tambores” se sobressai. “As pessoas saíam na rua tocando tambor. Eram vários percussionistas, vários tocadores de tam bor. Eu via aquilo e era um espetáculo pra mim. Era uma coisa que mexia comigo. Corri atrás do grupo de percussionistas. Estava acompa nhando aquelas mulheres cantando, fazendo parte daquele ritual. Eu acabei me perdendo.
Comecei a chorar”, Guilherme conta sorrindo.
Eu pergunto se os quadros se conectam di retamente à sua memória africana. Ele não hesi ta. “Com certeza. Tudo foi uma ‘indução’ do padre italiano. Após isso, comecei a fazer alguns traços de santo, me aproximando da arte sacra. Pela nossa cultura e pelas tribos, comecei a visitar as “tabancas” (aldeias), e daí, incorporei as imagens que eu observava nesses locais: pilão, tambo res, balaio. Também estudei arte naif. Fui desen volvendo técnicas de luz e sombra”, esclarece.
Na segunda metade de sua vida na Áfri ca, ele conheceu Paulo Freire. O educador bra sileiro participou efetivamente na execução de um projeto do governo de Guiné-Bissau que buscava implementar um novo modelo edu cacional após a conquista da independência.
“Com 12 anos, passei pela brigada peda gógica, que era um projeto de Paulo e sua filha. Nós trabalhamos na alfabetização das aldeias
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e comunidades locais”, explica. Foi quando, na adolescência, Guilherme começou a en carar o mundo pela perspectiva pedagógi ca. Ele é assertivo ao registrar que, mesmo em meio a projetos pessoais e exposições individuais, nunca se separou da didática. Guilherme destaca o trabalho que de senvolveu, nesse período, junto a pesquisa dores italianos nos arquipélagos de ilhas afri canas, momento em que pôde aprender sobre técnicas do audiovisual com a produ ção de documentários. Também cita as au las que dava aula de geometria descritiva para alunos da mesma idade dele na época.
O aprofundamento de seu conhecimento artístico ocorre quando a sua primeira exposi ção é estreada no país natal. Durante esse pe ríodo, ele conseguiu uma bolsa para estudar no Brasil, onde se formou em Arquitetura e Urbanis mo pela Universidade Federal da Paraíba. E, logo que chegou em João Pessoa, participou do mos truário de um catá logo de artistas plás ticos da cidade. Ele era o único africano.
Nomes da cena artística da ci dade como Flávio Tavares, Miguel dos Santos, Marlene Al meida, Rose Catão, Lau Siqueira e Chico Cezar acolheram um jovem Guilherme em um novo espaço. Os nomes são citados por ele com afeto. É como se cada re lação mantida com os amigos brasilei ros tivessem exerci do seu próprio papel no amadurecimento profissional do mul tiartista que, ago ra, é um veterano.
A experiência do bissau-guineense de dupla nacionalida de não pode ser com
pactada. Ele não tem pressa em discorrer sobre o conhecimento adquirido ao longo da vida. “Tem tudo a ver com a história, a mensagem e o tempo dedicado à arte”, reconhece o professor. Isso é exemplificado na sua visão de como a arte é vei culada em diferentes grupos e a distinção estéti ca e técnica entre artistas europeus e africanos.
“A definição de arte é vivência e ex periência. Os africanos são artistas natos. Existe a tradição das tribos, a ancestralida de. Quando falamos sobre artistas europeus, eles visitam esses espaços para pesquisa e muitos incorporam essas técnicas. Picasso es teve na África. Existe esse momento. Existe essa diferença. Você percebe isso”, ressalta. Apesar dos 35 anos de assimilação cultu ral e as intersecções da diáspora que une o Bra sil ao continente africano, não se pode ignorar que o olhar de Guilherme ainda é estrangeiro. Os valores que fundamen tam sua vivência nas ceram e foram nutridos em Guiné-Bissau. Esses valores transpassam uma história centená ria de comunidade, co lonização e libertação.
Ele comentou so bre a possibilidade de retornar ao seu país de origem. “Cheguei aqui com o propósito de voltar à Bissau de pois de concluir meus estudos. Eu tentei vol tar, mas o país entrou em processo de guer ra. Depois que construí minha própria família, não havia mais neces sidade do retorno”, diz.
A decisão foi apoiada pelo seu pai, que alertou sobre o choque que seu filho poderia sentir com as ideologias imple mentadas pela ditadura no país. A fala paterna é certeira porque reco nhece o que seu filho havia se tornado: um espírito livre que possui habilidades maestrais.
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Guilherme Semmedo em sua residência.
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w Editoria-chefe, design gráfico e fotografia – Mariani Pontes marianipontes@gmail.com Agradecimentos Ailton Vieira (@ailt.vieira) Asé Colinas (@ase_colinass) Guilherme Semmedo (@guilherme_semmedo) Gleyce Marques (@oxegleyce) Hicor (@hicor__) Kilombo Studio Afro (@kilombo_x) Perazzo Freire Júnior (@perazzojr)