Revista Ragga #60

Page 52

Sereno, o Aida caminha para a boca do Pacaás Novos. Largo e turvo é o destino rio

TEXTO E FOTOS dIEGo SURIADAKIS

Todo cuidado é pouco. Homens imersos em uma realidade fantástica, narrativas e memórias de seus cotidianos ameaçam, em grandeza, a veracidade do universo natural que os envolve. Homens criados na flor d’água, desde pequenos acostumados a ver mundo a cada pôr do sol e ouvir futuros no assovio do vento. Impresso no olhar transparente de Constantino Cristóforo está aquele dia, dia em que ficou cego por algum tempo. Foi na segunda vez que uma cobra lhe acertou no tornozelo. Precisando esquentar água para tratar do ferimento, seu Costinha fez fogueira na beira do rio usando o tato apenas. É que ele tem 82 anos e navega em canoa miúda sozinho, quase mesclado à água. Pesca da hora que o sol nasce à hora que o sol dorme. Ágil feito tucunaré para se livrar do anzol, ele conversa sentado no chão da pascana como se fosse um garoto, fuma seu tabaco forte e não precisa de mais do que o único dente que possui para provar sua vida. O tempo aqui vira feito bicho. Dá para ver a chuva que vem correndo na curva do rio. O escuro abocanha uma fatia de céu, faminto. No grande Rio Mamoré, a tempestade parece sair de dentro da mata, faz onda grossa na água e passa feito mágica pelo teto da embarcação. Era noite. O que foi pescado no dia estava na caixa de gelo dentro do barco. Sua mulher estava em casa, ele não a via fazia 15 dias. Tudo isso está em perigo, o assoalho da canoa está “fazendo água”, não dá mais tempo de esconder o Aida no capinzal. Mas Seu Tito tem muita fé. Anos depois, continua sentado na popa do mesmo Aida que viveu o temporal. Cinquenta e sete anos, 20 como pescador regulamentado. Bandeira brasileira no barco, sotaque boliviano no sorriso.

,52


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.