Revista Olhar nº23

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O depoimento de Damián para a avó revela que a viagem à região de San Francisco de la Sierra é uma peregrinação rumo ao lugar de onde tudo começou. Para seguir em frente como um ser completo, é necessário que o protagonista conheça melhor sua história, seu passado. Outra ocasião em que essa necessidade se evidencia é quando o protagonista conversa com seu companheiro a respeito da família e, com pedras, faz uma imensa árvore genealógica, demonstrando que conhece seus antepassados. Essa busca pela origem simboliza no estudo dos mitos a possibilidade de renovar e regenerar a existência. Para Eliade, (1994: p. 76) o regressus ad uterum é: Efetuado com o objetivo de fazer com que o recipiendário nasça para um novo modo de ser, ou de regenerá-lo. […] O ‘retorno à origem’ prepara para um novo nascimento, mas este não repete o primeiro, o nascimento físico. Especificamente, há uma renascença mística, de ordem espiritual.

Freud (apud ELIADE, 1994) associa o retorno à origem (no caso da psicanálise, à primeira infância), à capacidade do ser de vencer traumas que lhe afligem no presente e renovar sua condição. Em outras culturas, conhecer a origem de uma planta, de um animal ou de determinados atos confere sobre estes um poder mágico-religioso. A busca de Ojeda pelo lugar onde viviam seus parentes e ancestrais ecoa neste simbolismo que envolve o conhecimento da origem e a regeneração. A trajetória de Damián está relacionada não apenas ao renascimento místico. Tão frequentes ou mais que a lembrança do atropelamento são os flashbacks alusivos à mulher do protagonista. Várias situações vivenciadas pelo personagem durante sua jornada desencadeiam a irrupção de lembranças da companheira, mais especificamente do seu ventre. Acreditamos que os gestos arquetípicos que compõem a odisséia de Damián funcionam, também, como ritual de fertilidade. O gesto que revela a motivação do protagonista em contribuir com o nascimento do filho é consumado no início da jornada. Assim que chega a San Francisco de la Sierra, Damián organiza conchas em espiral ou caracol. A ação é interpretada por nós como um ritual de fecundidade, pois as conchas são, para diversos povos, sinônimo de fecundidade. O formato de ostras e mariscos remete, como diz Eliade (1996), ao da vulva, o que propagou a crença nas suas virtudes mágicas relacionadas ao nascimento e regeneração e, consequentemente, na sua utilização em inúmeros ritos religiosos. Como exemplo, o historiador cita crenças japonesas e chinesas onde as ostras e outros mariscos são sinônimos e propagadores da fecundação e do parto. “A concha pode significar o ato do renascimento espiritual (ressurreição) com tanta eficácia que ela assegura e facilita o nascimento carnal”. (ELIADE, 1996: p. 132) Assim como o renascimento de Damián é apresentado pelo duelo com a cobra e a subida ao topo da região – que acreditamos simbolizar a escalada à Montanha Cósmica –, o êxito do ritual de fertilidade é exposto através da pintura rupestre “O homem e sua família”, com a qual Ojeda depara depois do conflito com a cobra. Se as pinturas funcionam como símbolo dos arquétipos que serão repetidos a partir de rituais, o desenho de uma criança com sua família é a demonstração do que também acontecerá a Damián. Mais à frente, ao terminar sua jornada, o personagem recebe uma carta de sua mulher onde ela diz que o filho nasceu bem. A jornada e as provações não foram, destarte, em vão.

REVISTA OLHAR t ANO 12 t NO 23 t AGO-DEZ 2010 33


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