Revista milton campos de estudos jurídicos

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REVISTA MILTON CAMPOS DE ESTUDOS JURÍDICOS

Nº1 – 2015 FACULDADES MILTON CAMPOS 2015


REVISTA MILTON CAMPOS DE ESTUDOS JURÍDICOS

2015 REVISTA MILTON CAMPOS DE ESTUDOS JURÍDICOS Rua Milton Campos n. 202, CEP 34000-000 Nova Lima Minas Gerais Brasil

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FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS

Entidade Mantenedora Centro Educacional de Formação Superior - CEFOS Professor José Barcelos de Souza – Presidente Professor Décio Fulgêncio Alves da Cunha – Vice-Presidente Professor Osmar Brina Corrêa Lima – Diretor Financeiro Professor Haroldo da Costa Andrade – Secretário Geral Faculdade de Direito Milton Campos Professora Lucia Massara – Diretora Professor Marcos Afonso de Souza – Vice-Diretor e Coordenador Didático-Pedagógico Professor Jean Carlos Fernandes – Coordenador Didático-Pedagógico Adjunto Direção da Revista Professor Marcos Afonso de Souza Editores Professor Jean Carlos Fernandes Professora Luciana Cristina de Souza Conselho Editorial Antonio Giménez Merino - Barcelona Beatriz Vargas Ramos Gonçalves de Rezende – Unb Elian Pregno - UBA / Argentina Felipe Asensi – FGV Fernando Dantas - UFG Francisco Mata Machado Tavares - UFG Gustavo Silveira Siqueira - UERJ Jean Carlos Fernandes – FDMC Luz Amparo Llanos Villanueva - Peru Mario Losano - Itália Miguel Polaino Orts - Universidad Sevilla Rachel Herdy de Barros Francisco – UFRJ Ricardo Adriano Massara Brasileiro – FDMC Salomão de Araújo Cateb – FDMC Thiago Lopes Decat – FDMC Comissão de Criação e Implementação da Revista Camila Sousa Ferreira Carolina Rodrigues de Carvalho Costa Fragoso Daniel de Pádua Andrade Mario Baracho Thibau Miguel Marzinetti França Pedro Henrique Rezende Ricardo Manoel de Oliveira Morais Vinícius Mesquita Simões

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Presidente da Comissão de Criação e Implementação da Revista Vilmo Barreto Teixeira Júnior Bibliotecária Emilce Maria Diniz

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SUMÁRIO A IMPRESCRITIBILIDADE DOS ATOS NULOS NO DIREITO DO TRABALHO E A POSSÍVEL SUPERAÇÃO DA PRESCRIÇÃO TOTAL .......................................................... 5

LEI DA FICHA LIMPA: ORIGEM, MUDANÇA DE PARADIGMAS E CONFORMIDADE COM O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ........................................................... 17

O PRIVILÉGIO DE FORO CONFERIDO À MULHER NAS AÇÕES DE DIVÓRCIO FERE OS JÁ CONSAGRADOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS? ................................................. 30

PARASSUBORDINAÇÃO ................................................................................................... 44

AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS: ANÁLISE ECONÔMICA SOB O PRISMA DA EFICIÊNCIA E DA LEGALIDADE ....................................................................................... 57

THE PUBLIC-PRIVATE PARTNERSHIPS: ECONOMIC ANALYSIS UNDER THE PRISM OF EFFICIENCY AND LEGALITY ...................................................................................... 71

A TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE TERRORISMO E A INFLUÊNCIA MIDIÁTICA NA ELABORAÇÃO DE NORMAS PENAIS .............................................................................. 72

O CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL E A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA ........................ 83

EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NOS CONTRATOS ............ 99

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A IMPRESCRITIBILIDADE DOS ATOS NULOS NO DIREITO DO TRABALHO E A POSSÍVEL SUPERAÇÃO DA PRESCRIÇÃO TOTAL Felipe Tanure Guedes Professor Orientador: Ricardo Wagner Rodrigues de Carvalho

RESUMO

O presente artigo versa sobre a imprescritibilidade dos atos nulos dentro do Direito do Trabalho e do Direito Civil. Buscou-se a análise da realidade jurídica consubstanciada no posicionamento adotado pelos doutrinadores e aplicadores do Direito, a fim de aferir o melhor caminho a perseguir.

Palavras-chave: Direito Civil. Direito do Trabalho. Prescrição. Atos Nulos.

1 INTRODUÇÃO

A influência do tempo dentro do direito é observada, principalmente quando se estuda os institutos da prescrição e da decadência. Objetos de numerosos estudos de doutrinadores, tais institutos são de difícil entendimento nas diversas áreas do direito. O presente artigo versa sobre a imprescritibilidade dos atos nulos dentro do Direito do Trabalho e do Direito Civil. Buscou-se a análise da realidade jurídica consubstanciada no posicionamento adotado pelos doutrinadores e aplicadores do Direito, a fim de aferir o melhor caminho a perseguir. Na atualidade, a aplicação deste instituto encontra enorme divergência tanto na jurisprudência quanto na doutrina, gerando, dessa forma, dúvidas aos operadores do direito quanto à maneira de tratar tais objetos.

2 CONCEITO E ABORDAGEM HISTÓRICA DO INSTITUTO DA PRESCRIÇÃO

A origem do instituto da prescrição deve ser buscada no Direito Romano, após o advento da Lei Aebutia, a qual aboliu as legis actiones.

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Investido, pela lei Aebutia, no ano 520 de Roma, do poder de criar as ações não previstas pelo direito honorário, o pretor introduziu o uso de fixar um prazo para sua duração, dando origem às ações chamadas temporárias, em contraposição às do direito quiritário, que eram perpétuas. Ao estatuir a fórmula, se a ação era temporária, ele a fazia preceder de uma parte introdutória, em que determinava ao juiz a absolvição do réu, se estivesse extinto o prazo de duração da ação. E a essa parte preliminar da fórmula, por anteceder a esta, se dava a denominação praescriptio (LEAL, 1978, p. 4).

Seguindo a ideia de Antônio Luís da Câmara Leal (1978, p. 3/4), portanto, entende-se que “a palavra prescrição advém desta denominação latina praescriptio, cujo significado é “escrever antes ou no começo”, pois, apesar de não ter nenhuma relação com o conteúdo da determinação do pretor, por uma evolução conceitual, esta expressão passou a significar extensivamente tal matéria, tendo assim a acepção de extinção da ação pela expiração do prazo de sua duração.” O conceito de prescrição sempre foi polêmico, vez que existem ao menos duas grandes correntes doutrinárias que conceituam de modo diverso este instituto. No direito romano e no medieval, a prescrição era vista como um fenômeno do plano processual que afetava a ação, e não diretamente o direito material. O direito alemão e o suíço seguiram essa diretriz, ao considerar a prescrição como fato extintivo da pretensão. Já o direito italiano, no Código Civil de 1942, deixou expresso que a prescrição era causa de extinção do próprio direito (BARROS, 2009, p. 1025).

O Código Civil Brasileiro de 1916 não deixou clara a visão do legislador a respeito do conceito de prescrição, o que causou grande dificuldade em estabelecer um entendimento pacífico entre os doutrinadores, além de gerar uma grande divisão entre as duas principais teses doutrinárias: a que seguia o pensamento italiano de prescrição como causa de extinção do direito em si; e o entendimento de prescrição como fato extintivo da pretensão, da mesma maneira que o direito alemão e o suíço. Além disso, alguns doutrinadores ainda defendiam o entendimento trazido pelo direito romano e medieval, segundo o qual a prescrição seria um fenômeno que afeta a ação e não o direito material. Segundo Pontes de Miranda (1955, p. 100), a prescrição “é a exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação.”

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Para Clóvis Beviláqua (2001, p. 383/384), prescrição “é a perda da ação atribuída a um direito, e de toda a sua capacidade defensiva, em consequência do não uso delas, durante um determinado espaço de tempo.” Já Câmara Leal (1978, p. 12) adota o entendimento de que a prescrição “é a extinção de uma ação ajuizável, em virtude da inércia de seu titular durante um certo lapso de tempo, na ausência de causas preclusivas de seu curso.” A fim de solucionar este impasse, ao elaborar o Código Civil de 2002, o legislador optou por indicar qual seria o conceito de prescrição, deixando previsto no artigo 189 deste diploma legal que “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.” O citado dispositivo legal, conforme explica Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 513), “adotou o vocábulo “pretensão” (anspruch), para indicar que não se trata do direito subjetivo público abstrato de ação.” Destarte, conforme explica Humberto Theodoro Junior (2003, p. 4/5), “o novo Código Civil optou por conceituar a prescrição como perda da pretensão (art. 189), assim como adotado pelo direito alemão e suíço. Desse modo, o legislador conseguiu demonstrar que não é o direito subjetivo descumprido pelo sujeito passivo que desaparece com a inércia do titular, mas sim o direito que este titular possui de exigir em juízo a prestação inadimplida que fica comprometido pela prescrição.” Na mesma linha, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2013, p. 745) dizem que: Merece aplausos o art. 189 da Lei Civil por ter esclarecido que a prescrição não é – e não poderia ser – a perda do direito de ação (instituto de índole processual), mas sim a neutralização da pretensão (esta, sim, instituto de direito material). Confirma-se, assim, a natureza autônoma e abstrata do direito de ação, resguardando, inclusive, em sede constitucional como garantia fundamental, conforme menção do art. 5º, especificamente no inciso XXXV.

Vale dizer que o vocábulo “pretensão”, trazido pelo artigo 189 do Código Civil, significa “o poder de exigir do devedor uma ação ou omissão, que permite a composição do dano verificado.” (GONÇALVES, 2014, p. 513/514). Por fim, depois de demonstrada a evolução histórica e conceitual do instituto da prescrição, pelas palavras de Humberto Theodoro Junior (2003, p. 5), observamos que “a prescrição, para o Código atual, faz extinguir o direito de uma

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pessoa a exigir de outra uma prestação (ação ou omissão), ou seja, provoca a extinção da pretensão, quando não exercida no prazo definido na lei.” Desse modo, concluímos que, para o direito moderno, de modo simplificado, a prescrição deve ser entendida como a perda da pretensão em decorrência da inércia do credor no decorrer do tempo.

3 A IMPRESCRITIBILIDADE DOS ATOS NULOS E A POSSÍVEL SUPERAÇÃO DA PRESCRIÇÃO TOTAL Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 474), “nulidade é a sanção imposta pela lei aos atos e negócios jurídicos realizados sem observância dos requisitos essenciais, impedindo-os de produzir os efeitos que lhes são próprios.” A regra do artigo 169 do Código Civil dispõe que “o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce no tempo”, o que nos leva ao entendimento de que os atos jurídicos nulos são imprescritíveis. Entretanto, em que pese a disposição do presente dispositivo legal, a questão é controvertida dentro do Direito Civil e, principalmente, dentro do Direito do Trabalho, eis que presentes correntes favoráveis e contrárias à tese de que os atos nulos são imprescritíveis. Dentro do Direito Civil, aqueles que defendem a prescritibilidade dos atos nulos, justificam-se com base nos princípios da segurança jurídica e da paz social. Caio Mário da Silva Pereira (2010, p. 541/542), por exemplo, entende que os atos nulos são passíveis de prescrição: Ao dizer que o negócio jurídico nulo não convalesce pelo decurso do tempo, o novo Código (art. 169) seguiu a doutrina tradicional que tem sustentado que, além de insanável, a nulidade é imprescritível, o que daria em que, por maior que fosse o tempo decorrido, sempre seria possível atacar o negócio jurídico: quod nullum est nullo lapsu temporis convalescere potest. É frequente a sustentação deste princípio, tanto em doutrina estrangeira, quanto nacional. Os modernos, entretanto, depois de assentarem que a prescritibilidade é a regra, e a imprescritibilidade, a exceção, admitem que entre o interesse social do resguardo da ordem legal, contido na vulnerabilidade do negócio jurídico, constituído com infração de norma de ordem pública, e a paz social, também procurada pelo ordenamento jurídico, sobreleva esta última, e deve dar-se como suscetível de prescrição a faculdade de atingir o ato nulo.

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Entretanto,

majoritariamente,

entende-se

que

os

atos

jurídicos

são

imprescritíveis. A doutrina clássica de Pontes de Miranda (1955, p. 285), por exemplo, defende tal imprescritibilidade: Não há prescrição quanto à ação de nulidade, como não há prescrição da ação declaratória negativa ou positiva. O titular da ação de nulidade não precisa propô-la; basta que alegue a nulidade ao ter-se querido emprestar ao ato jurídico algum efeito. Para evitar que se lhe atribua tal efeito, que o ato não tem, alega ele a nulidade, dando ensejo a que o juiz desconstitua o ato jurídico incidentemente, como o poderia desconstituir de ofício. Nem se compreenderia que o tempo apagasse o que o juiz não pode suprir, nem os próprios interessados ratificar”.

Portanto, atualmente, como escrevem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2013, p. 632), “apesar das divergências doutrinárias, o ato nulo não prescreve. A nulidade de qualquer negócio jurídico deve ser reconhecida por decisão judicial de efeito meramente declaratório, de modo que o magistrado se limitará a afirmar a inexistência de qualquer efeito. Por conseguinte, o ato nulo é imprescritível e produz efeitos ex tunc.” No Direito do Trabalho, a divergência doutrinária e também jurisprudencial não é diferente. Conforme preceitua o artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho, “serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.” Aqueles que defendem a prescritibilidade dos atos nulos no Direito do Trabalho, expõem que “nem o art. 7º, XXIX da Constituição da República, nem o artigo 11 da Consolidação das Leis do Trabalho fazem qualquer distinção em relação aos atos nulos e anuláveis, de modo que, todos os atos praticados pelo empregador são suscetíveis de prescrição. Ademais, se os atos nulos não fossem prescritíveis, não existiria prescrição no Direito do Trabalho, eis que a maioria dos atos do empregador tem por objeto impedir, fraudar ou desvirtuar a aplicação dos preceitos trabalhistas” (MARTINS, 2006, p. 187). Já a parte da doutrina trabalhista que defende a imprescritibilidade dos atos nulos entende que a omissão da Consolidação das Leis do Trabalho no que tange à prescritibilidade dos atos nulos é suprida pelo artigo 169 do Código Civil, permitida pelo artigo 8º do mesmo ordenamento jurídico. Assim, expõe Augusto César Leite de Carvalho (2010, p. 164):

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Suprindo a omissão das leis trabalhistas (e da antiga lei civil), teríamos o art. 169 do Código Civil a consagrar que o negócio jurídico nulo não convalesce pelo decurso do tempo, prestando-se a especificidade do direito do trabalho para agregar que a alteração contratual que prejudica o empregado é nula e, portanto, insusceptível de prescrição que a consolide.

O que se observa na jurisprudência atual, é uma tendência à inaplicabilidade da prescrição aos atos nulos, pelos motivos já expostos. Interessante destacar que, ao entender de tal maneira, vê-se também outra tendência na jurisprudência trabalhista, que é a de uma possível superação da prescrição total.

3.1 A Possível Superação da Prescrição Total no Direito do Trabalho

Dentre as diferenças que existem entre a aplicação da prescrição no Direito Civil e no Direito do Trabalho, existe aquela que se refere ao prazo prescricional das parcelas de trato sucessivo, ou seja, daquelas parcelas que se estendem no tempo, através de práticas reiteradas. No Direito Civil, as parcelas de trato sucessivo são submetidas apenas à prescrição parcial, de maneira que o prazo prescricional começa a ser contado a partir do vencimento de cada parcela. Este é o entendimento consubstanciado pela jurisprudência, como se vê adiante, em decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL - CONTRATO BANCÁRIO - DECISÃO QUE RECONHECE PARCIALMENTE A PRESCRIÇÃO DO CRÉDITO – OBRIGAÇÃO DE TRATO SUCESSIVO - A CONTAGEM DO PRAZO PRESCRICIONAL TEM INÍCIO NA DATA DE VENCIMENTO DE CADA PRESTAÇÃO - VENCIMENTO ANTECIPADO DA DÍVIDA QUE NÃO ALTERA O PRAZO PRESCRICIONAL - APLICAÇÃO DO ART. 206, §5º, I, DO CC - PRESCRIÇÃO QUINQUENAL - CITAÇÃO NÃO EFETIVADA ART. 219 E PARÁGRAFOS DO CPC E ART. 202, I, DO CC - CURSO DA PRESCRIÇÃO NÃO INTERROMPIDO - DECISÃO QUE NÃO MERECE REFORMA NEGO SEGUIMENTO AO RECURSO, NA FORMA DO ART. 557, CAPUT, DO CPC (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento nº 0061534-86.2013.8.19.0000. 22ª Câmara Cível. Relator: Desembargador Marcelo Lima Buhatem. Data de Julgamento: 11/03/2014. Data de Publicação: 31/03/2014).

Do mesmo modo, assinala Caio Mário da Silva Pereira (2010, p. 595): Se a violação do direito é continuada, de tal forma que os fatos se sucedam encadeadamente, a prescrição corre a contar do último deles, mas, se cada ato dá direito a uma ação independente, a prescrição alcança cada um,

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destacadamente. Quando a obrigação se cumpre por prestações periódicas, porém autônomas, cada uma está sujeita à prescrição, de tal forma que o perecimento do direito sobre as mais remotas não prejudica a percepção das mais recentes.

Diferentemente, no Direito do Trabalho, existe um entendimento pacificado pela jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, o qual, inclusive, resultou na súmula 294 do mesmo tribunal: “tratando-se de ação que envolva pedido de prestações sucessivas decorrente de alteração do pactuado, a prescrição é total, exceto quando o direito à parcela esteja também assegurado por preceito de lei.” No Direito do Trabalho, em relação às obrigações de trato sucessivo, dependendo da natureza da parcela discutida, o tratamento do prazo prescricional é diferenciado. A prescrição, neste caso, pode ser total ou parcial e, para analisar qual tipo de prescrição incidirá, deve-se verificar a natureza jurídica das parcelas discutidas, se elas são obrigações legais ou contratuais. Conforme entendimento consubstanciado pela súmula 294 do Tribunal Superior do Trabalho, se o direito à parcela for assegurado por preceito de lei, a prescrição será parcial, ou seja, o ofendido poderá reclamar em juízo as parcelas referentes aos últimos cinco anos, posto que o termo inicial para a contagem do prazo prescricional incidirá sobre cada parcela separadamente. Já se o direito à parcela não for assegurado por lei, decorrendo de pacto contratual, a prescrição será total, ou seja, o termo inicial para a contagem do prazo prescricional contará a partir do momento específico da lesão, da alteração do que foi pactuado, e não sobre cada parcela. A título ilustrativo, podemos citar o adicional de insalubridade e a gratificação. O adicional de insalubridade está previsto no artigo 7º, XXIII, da Constituição da República e artigo 192 da Consolidação das Leis do Trabalho. Esta parcela é de trato sucessivo e é protegida por lei, portanto, a lesão se renova a cada mês. Desse modo, o empregado sempre poderá reclamar os últimos cinco anos, contados da data do ajuizamento da demanda, vez que a prescrição aqui é parcial. Quanto a gratificação, ela é uma parcela estabelecida contratualmente. Aqui, portanto, o prazo prescricional começará a contar a partir do momento em que a parcela deixar de ser paga, ou seja, a partir do momento em que ocorreu a lesão. Portanto, a partir daquele momento, o ofendido terá cinco anos para ajuizar ação

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trabalhista pleiteando as parcelas que não foram pagas. Caso ultrapassado este prazo, o ofendido verá extinto o seu direito de pretensão. Cabe destacar as palavras de Maurício Godinho Delgado (2012, p. 267/268) ao tratar da prescrição total e da prescrição parcial: A distinção jurisprudencial produz-se em função do título jurídico a conferir fundamento e validade à parcela pretendida (preceito de lei ou não). Entende o verbete de súmula que, conforme o título jurídico da parcela, a actio nata firma-se em momento distinto. Assim, irá se firmar no instante da lesão – e do surgimento consequente da pretensão –, caso não assegurada a parcela especificamente por preceito de lei (derivando, por exemplo, de regulamento empresarial ou contrato). Dá-se, aqui, a prescrição total, que corre desde a lesão e se consuma no prazo quinquenal subsequente (se o contrato estiver em andamento, é claro). Consistindo, entretanto, o título jurídico da parcela em preceito de lei, a actio nata incidiria em cada parcela especificamente lesionada. Torna-se, desse modo, parcial a prescrição, contando-se do vencimento de cada prestação periódica resultante do direito protegido por lei.

No caso, pela tendência da doutrina e da jurisprudência em aceitar a imprescritibilidade dos atos nulos e, considerando que a alteração lesiva do pacto contratual é nula, apenas as prestações devidas em razão da alteração contratual estariam sujeitas à prescrição quinquenal, enquanto a alteração realizada pelo empregador não se convalesceria com o decorrer do tempo, nos termos do artigo 169 do Código Civil, portanto, imprescritível. Como já dito, e como se vê adiante, a jurisprudência tem caminhado neste sentido: EMENTA: PRESCRIÇÃO TOTAL. SUPERAÇÃO DA SÚMULA 294/TST. ARTIGO 169 DO CÓDIGO CIVIL – 1. Com o advento do Novo Código Civil, ficou sedimentada a imprescritibilidade da ação declaratória de nulidade. Assim, não há mais falar em prescrição total de pretensão sobre alteração contratual lesiva ao empregado por ato único do empregador, pois o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação e nem convalesce pelo decurso do tempo, nos termos do artigo 169 do Regramento Civilista (c/c art. 8º da CLT) que não tem correspondência na dogmática civil anterior, ficando, dessa maneira, superado o entendimento contido na Súmula 294 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho. 2. O artigo 9º da CLT, que informa toda a lógica da teoria das nulidades no Direito do Trabalho, constitui o núcleo duro de proteção jurídica da ordem social do trabalho, o que torna incompossível, assim, conferir-se maior eficácia tuitiva contra a nulidade dos atos entre iguais, que aquela praticada contra o ser humano em situação de subalterna assimetria social e econômica. 3. A teoria do ‘ato único’ do empregador foi construída a partir da antiga redação do artigo 11 da CLT, cuja redação cogitava de ‘atos infringentes’, redação essa que foi superada, em obediência à dicção constitucional, que passou a tomar como critério, durante a vigência da relação de emprego, apenas a prescrição gradativa e parcial dos créditos. A prescrição total, na literalidade do preceito constitucional, é admitida tão somente após a cessão do contrato de

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trabalho. MINAS GERAIS, Tribunal Regional do Trabalho – 3º Região (Recurso Ordinário nº 0001741-30.2012.5.03.0072. 1ª Turma. Relator: Desembargador José Eduardo Resende Chaves Júnior. Data de Julgamento: 29/09/2014. Data de Publicação: 03/10/2014).

Por derradeiro, vale ressaltar a síntese de Augusto César Leite de Carvalho (2010, p. 171): A prescrição deve nortear-se pela mutação normativa que resultou, a partir da vigência do atual Código Civil, na consagração da tese de que estão imunes à prescrição os atos nulos, não obstante a prescrição quinquenal das prestações salariais correspondentes. A alteração contratual que não infringe lei específica, mas é danosa ao trabalhador, revela-se eivada de nulidade e, portanto, não convalesce pelo decurso do tempo. A prevalecer esta regra, a prescrição total não subsistiria no que toca às prestações de trato sucessivo que derivam de alteração estritamente contratual.

4 CONCLUSÃO

O instituto da prescrição tem sua origem no Direito Romano e, para o direito moderno, de modo simplificado, deve ser entendida como a perda da pretensão em decorrência da inércia do credor no decorrer do tempo. Uma das grandes diferenças que existem na aplicação da prescrição no Direito Civil e no Direito do Trabalho, refere-se à prescrição de parcelas de trato sucessivo. No Direito Civil, são submetidas apenas à prescrição parcial, de maneira que o prazo prescricional começa a ser contado a partir do vencimento de cada parcela. No Direito do Trabalho, dependendo da natureza da parcela discutida, o tratamento do prazo prescricional é diferenciado. Se o direito à parcela for assegurado por preceito de lei, o ofendido poderá reclamar em juízo as parcelas referentes aos últimos cinco anos, posto que o termo inicial para a contagem do prazo prescricional incidirá sobre cada parcela separadamente (prescrição parcial). Já se o direito à parcela não for assegurado por lei, decorrendo de pacto contratual, o termo inicial para a contagem do prazo prescricional contará a partir do momento específico da lesão, da alteração do que foi pactuado (prescrição total), e não sobre cada parcela. O que se observa na jurisprudência atual, é uma tendência à inaplicabilidade da prescrição aos atos nulos. Ao entender de tal maneira, vê-se também outra tendência na jurisprudência trabalhista, que é a de uma possível superação da

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prescrição total. No caso, considerando que a alteração lesiva do pacto contratual é nula, apenas as prestações devidas em razão da alteração contratual estariam sujeitas à prescrição quinquenal, enquanto a alteração realizada pelo empregador não se convalesceria com o decorrer do tempo, nos termos do artigo 169 do Código Civil, portanto, imprescritível.

REFERÊNCIAS

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BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Campinas: Red Livros, 2001.

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BRASIL, Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-lei nº 5.432, de 1 de maio de 1943. Aprova a consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso: 15 out. 2014.

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Trabalho.

Disponível

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DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 11. ed. São Paulo: LTr, 2012.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, volume I, parte geral e LINDB. 11. ed. – Salvador: JusPodivim, 2013.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume I: parte geral. 12. ed. – São Paulo: Saraiva, 2014.

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LEAL, Antônio Luís da Câmara. Da Prescrição e da Decadência: teoria geral do direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978

MARTINS, Sérgio Pinto. Ato nulo e prescrição no Direito do Trabalho. Revista de Direito do Trabalho. [S.l.], v.32, n.122, pág. 182-188. (2006: abr./jun.). MINAS GERAIS, Tribunal Regional do Trabalho – 3º Região. Recurso Ordinário nº 0001741-30.2012.5.03.0072. 1ª Turma. Relator: Desembargador José Eduardo Resende Chaves Júnior. Data de Julgamento: 29/09/2014. Data de Publicação: 03/10/2014.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, volume I: Introdução ao Direito Civil – Teoria Geral do Direito Civil. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: parte geral, tomo VI. 2. ed. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1955.

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Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento nº 0061534-86.2013.8.19.0000. 22ª Câmara Cível. Relator: Desembargador Marcelo Lima Buhatem. Data de Julgamento: 11/03/2014. Data de Publicação: 31/03/2014.

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ABSTRACT

This academic article is about the imprescriptibility of null acts within the Labour Law and the Civil Law. Sought to analyze the legal reality embodied in the attitude adopted by scholars and enforcers of law in order to ascertain the best course to pursue.

Key-words: Civil Law; Labor Law; Prescription; Null Acts.

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LEI DA FICHA LIMPA: ORIGEM, MUDANÇA DE PARADIGMAS E CONFORMIDADE COM O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Wallace Fabrício Paiva Souza

RESUMO

O objeto deste artigo é a Lei Complementar nº 135/2010 (Lei da Ficha Limpa). Primeiramente, explica-se sua origem, primeira lei efetivamente de iniciativa popular. Após, serão traçados os novos paradigmas que ela trouxe e, por fim, será estabelecido um paralelo com princípios constitucionais.

Palavras-chave: Ficha Limpa. Origem. Paradigmas. Princípios.

1 INTRODUÇÃO

A Lei Complementar nº 135/2010, mais conhecida como Lei da Ficha Limpa, foi notadamente um avanço para a sociedade brasileira, uma vez que seu projeto surgiu em decorrência da insatisfação dos brasileiros com seus representantes, embora a sua criação não tenha sido um consenso entre os juristas brasileiros. Surgem, assim, alguns questionamentos sobre como a Lei da Ficha Limpa surgiu, o que ela trouxe de novo para a sociedade e se há ou não algum conflito com o ordenamento jurídico, principalmente com o seu alicerce, qual seja, os princípios constitucionais. A Lei Complementar n. 135 foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro em 2010, sendo aplicada apenas nas eleições de 2012 e 2014. Sendo assim, há muitas questões divergentes ainda, principalmente no que diz respeito aos princípios constitucionais, já que ela altera a Lei Complementar n. 64/1990 que regulamenta o art. 14 da CR/88. Como objetivos, estudou-se a origem da mencionada lei, que diverge das demais, por ter sido de iniciativa popular, foram traçados os novos paradigmas que vieram com a sua criação e se analisou a sua conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro no que tange aos princípios constitucionais.

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Ressalta-se que o presente artigo seguiu a linha teórico-metodológica de sentido jurisprudencial, no que diz respeito à dialética entre problema e sistema. O método foi o exploratório, de forma que o seu objeto foi estudado por meio de coleta e estudo de doutrinas, artigos acadêmicos e jurisprudências e, como vertente jurídico-metodológica, foi escolhida a jurídico-sociológica, por haver a proposta de analisar o fenômeno jurídico no ambiente social. Quanto ao tipo de investigação, o que será aplicado é o jurídico-comparativo, uma vez que serão feitas comparações de antinomias dentro do próprio sistema, entre os princípios constitucionais e a Lei da Ficha Limpa. As fontes de pesquisa foram predominantemente diretas e primárias. Dessa forma, dividiu-se o artigo em três capítulos: origem da ficha limpa; novos paradigmas que a lei trouxe; e, por fim, se houve ou não eventuais conflitos da lei com o ordenamento jurídico brasileiro, com o foco nestes princípios constitucionais: presunção do estado de inocência, democrático, da moralidade, da probidade administrativa, da proporcionalidade e da razoabilidade.

2 A LEI DA FICHA LIMPA E SUA ORIGEM

Historicamente, o Brasil é marcado por episódios de desvios de verbas públicas, CPI´s e escândalos generalizados na política brasileira, que combinados com a má qualidade dos serviços públicos, construíram uma sensação de mal-estar coletivo. Inclusive, como José Jairo Gomes diz, a palavra político adquiriu um sentido pejorativo, consistente no emprego de astúcia ou maquiavelismo, visando à obtenção de resultados sem ponderação ética (GOMES, 2013, p.1). Disso, surgiu no brasileiro uma necessidade de mudanças, principalmente no combate à corrupção e, uma das consequências foi a criação da Lei Complementar n. 135, publicada no Diário Oficial da União em 07 de junho de 2010, que tem a seguinte ementa: altera a Lei Complementar n. 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9o do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. (BRASIL, Lei Complementar n. 135, de 4 de junho de 2010, 2010)

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Na Constituição de 1988, o legislador constituinte, no art. 14 da CRFB/88, trouxe as hipóteses de inelegibilidade, já demonstrando a preocupação em limitar o acesso aos cargos públicos. Nesse artigo, foi previsto no §9º a exigência de uma Lei Complementar que regularia essa matéria. Para tanto, foi criada a Lei Complementar n. 64, de 1990. Mesmo com essa regulamentação, o cidadão brasileiro ainda continuou vendo seus representantes como personagens principais em diversos escândalos e se reelegendo. Surgiu, então, um movimento nacional no sentido de continuar na luta por melhores representantes. Dessa forma, o cidadão brasileiro utilizou de sua legitimidade para propor um projeto de lei, sendo o instituto da iniciativa popular preceituado no art. 61, §2º, CRFB/88, transcrito abaixo: A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 1988)

Respeitados os requisitos acima transcritos, foi proposta à Câmara dos Deputados o projeto de lei da “Ficha Limpa”. E, desse projeto, que surgiu a referida Lei Complementar n. 135, de 4 de junho de 2010. Sobre o instituto da iniciativa popular, é válido fazer breves considerações. A Constituição Brasileira da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), preceitua, logo no parágrafo único de seu primeiro artigo que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 1988), isto é, adotou-se o princípio democrático, tanto representativo quanto participativo. No Brasil, então, a democracia existente é a semidireta ou mista, na qual existem os representantes eleitos do povo que tomam diversas decisões, mas também há mecanismos para que o povo participe do governo diretamente.(CHAVES e GUERRA, 2008, p. 21). A atuação popular no processo legislativo, então, como ocorreu com a Lei da Ficha Limpa na iniciativa de seu projeto de lei, está intimamente ligada aos direitos políticos, que formam a base do regime democrático, como afirma Gilmar Ferreira Mendes. Segundo o autor, ainda, a expressão direitos políticos, de forma ampla, refere-se ao direito de participação no processo político como um todo (MENDES e BRANCO, 2014, p. 701).

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Nota-se, assim, a extrema importância que tem a iniciativa popular para o exercício de cidadania e manutenção da democracia. Daí, inclusive, percebe-se o que a Lei da Ficha Limpa representa para o ordenamento jurídico brasileiro, por ter sido a primeira efetivamente de iniciativa popular. Embora tenha sido noticiado que a Lei da Ficha Limpa fosse a quarta de iniciativa popular, como se verifica no Portal G1, em notícia de 20/05/2010 (BONIN, 2014), além do renomado autor Pedro Lenza, que também fez a mesma afirmação (LENZA, 2012, p. 554-556), ela foi a primeira, como será explicado adiante. Luiz Cláudio Alves dos Santos realizou uma pesquisa, publicando-a em 2010 (SANTOS, 2010), com o foco na iniciativa popular no processo legislativo federal. Analisando as três leis que na época seriam de iniciativa popular, chegou às seguintes conclusões: 1) Lei 8.930/94, que “dá nova redação ao art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5 o, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências”(BRASIL, Lei n. 8.930, de 06 de setembro de 1994, 1994). A lei que regulamentou o instituto da iniciativa popular veio tão somente em 1998, com a Lei 9.709, logo em virtude da sua falta, mesmo havendo o recolhimento das assinaturas, o Presidente da República propôs o Projeto de Lei; 2)

Lei 9.840/1999, que “altera dispositivos da Lei no 9.504, de 30 de

setembro de 1997, e da Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral” (BRASIL, Lei n. 11.124, de 16 de junho de 2005, 2005). Já havia a lei que regulamentava

o instituto da iniciativa popular, porém queriam que ela fosse aplicada já nas eleições de 2000 e, em virtude do princípio da anualidade existente no Direito Eleitoral, como não havia ainda as assinaturas suficientes e já estava finalizando o prazo, um deputado federal a propôs; e 3) Lei 11.124/05, que “dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS” (BRASIL, Lei n. 11.124, de 16 de junho de 2005, 2005). Nesse caso, já havia também a lei regulamentando a iniciativa

popular e imagina-se que havia as assinaturas necessárias, contudo, acharam mais fácil um deputado propor e analisar ao invés de conferir as assinaturas. Dessa forma, tecnicamente, a única lei federal no ordenamento jurídico brasileiro que seria proveniente da iniciativa popular é a Lei Complementar n.

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135/2010, a Lei da Ficha Limpa, sendo que nela se verificaram cerca de 1,3 milhão de assinaturas (TSE, 2014).

3 OS NOVOS PARADIGMAS COM A LEI DA FICHA LIMPA

Como já mencionado neste artigo, a Lei da Ficha Limpa trouxe novas hipóteses de inelegibilidade à Lei Complementar n. 64/90 e, para analisar a recente lei, é preciso saber o conceito de inelegibilidade, objeto da lei. Segundo José Jairo Gomes, que também a chama de ilegibilidade, “é o impedimento ao exercício da cidadania passiva, de maneira que o cidadão fica impossibilitado de ser escolhido para ocupar cargo político-eletivo” (GOMES, 2013, p. 159). Ora, trata-se de impedimento para o recebimento de votos nas eleições. Ressalta-se, inclusive, como a Lei Complementar n. 135 é recente, uma vez que foi aplicada tão somente nas eleições de 2012 e 2014. Sendo tão recente, há muitas dúvidas na sua aplicação. Contudo, pode-se dizer que houve uma mudança de paradigmas no direito eleitoral brasileiro. Segundo Marcus Vinícius Furtado Coelho, o brasileiro está buscando a plena efetividade do parágrafo 9º do art. 14 da CRFB/88, querendo proteger, por exemplo, a probidade administrativa e a moralidade para exercício do mandato eletivo, saneando os costumes políticos do país (COELHO In: CASTRO, 2010, p. 55). Mas o que a Lei da Ficha Limpa trouxe de novo para representar essa mudança de paradigmas? Primeiramente, como já explicado, foi a primeira lei proveniente da iniciativa popular, o que demonstra mobilização nacional para a sua criação. Além disso, as principais alterações na lei de inelegibilidades, percebidas ao analisar a lei foram: alterar o prazo de inelegibilidade de três para oito anos, sem diferenciação dos crimes; foram acrescentados crimes no rol da alínea “e” do art. 1º, como os contra o meio ambiente, abuso de autoridade, lavagem de dinheiro, os decorrentes de organização criminosa, além dos que já havia na lei (BRASIL. Lei Complementar n. 135, de 4 de junho de 2010, 2010) e, por fim, o que gerou mais discussão, que foi a desnecessidade de trânsito em julgado das condenações judiciais por órgão colegiado para fins de inelegibilidade, discussão essa que será proposta a frente. Percebe-se que a lei se tornou mais dura para os candidatos. Alexandre Guimarães Gavião Pinto, um dos defensores das alterações, afirma que o parâmetro de qualquer análise deve ser a CRFB/88, uma vez que ao

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observá-la, garante-se o bem estar de toda a sociedade. O Brasil clama por políticos melhores e a Lei da Ficha Limpa, por representar os anseios sociais, já a torna digna, por enriquecer o debate democrático, representando uma vitória do povo brasileiro (PINTO, 2014). Mas é válido salientar que nem todos concordam com as alterações, sendo bem controversa a lei objeto deste trabalho. O Ministro do STF Gilmar Mendes, por exemplo, foi contra a declaração de constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 29 e 30 e Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.578. Para ele, o órgão de poder judiciário é contra majoritário, não tendo que se curvar à opinião pública e disse até que a Lei da Ficha Limpa “é uma roleta russa com todas as balas no revólver” (MENDES, 2014). Alegou, também, que o congresso aprovou por medo das eleições que iriam ocorrer em 2010, ano de criação da lei. Mesmo com a divergência, é inegável a mudança de postura do cidadão brasileiro, que não está tão passivo como antes, podendo ser citado inclusive todas as manifestações que vêm ocorrendo nas ruas, as quais também são reflexos do movimento que gerou a Lei da Ficha Limpa.

4 A LEI DA FICHA LIMPA EM FACE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Uma das questões mais controvertidas na análise da Lei da Ficha Limpa é se há ou não conflito com os princípios constitucionais. Princípio significa começo, início e, para o ordenamento jurídico, sua base, alicerce, essência, ou seja, extremamente importantes na formação das regras jurídicas. Ressalta-se que os princípios podem estar implícitos ou explícitos, mas independente disso, são normas jurídicas e devem ser observados. Humberto Ávila afirma que a aplicação dos princípios envolve uma “avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção” (ÁVILA, 2006, p. 14). Como funções, os princípios orientam a criação e auxiliam na interpretação e aplicação do Direito, sendo diretrizes. Pode-se dizer que os princípios, inclusive, ocupam a mais elevada posição hierárquica no sistema de fontes do direito, sendo o fundamento de toda a ordem jurídica (CARVALHO, 2006, p. 434).

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A base do estudo, assim, considerando a importância dos princípios, serão os princípios constitucionais, uma vez que a Lei de Inelegibilidades, que foi alterada pela Lei da Ficha Limpa, regulamente o §9º do art. 14, da CRFB/88, trazendo aplicabilidade a ele, portanto deve observar os preceitos constitucionais, de onde retira sua validade. Ocorre que não é possível a análise da lei da ficha limpa perante todos os princípios constitucionais, logo foram escolhidos os mais relevantes para a análise, o que se passa a fazer adiante.

4.1 Princípios da Presunção do Estado de Inocência e Democrático

No que tange ao princípio da presunção do estado de inocência, ele está preceituado no art. 5º, inciso LVII da CRFB/88, cuja redação é: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 1988). Contudo, dispõe a vigente lei complementar que se torna inelegível quem tiver contra si processo criminal pendente, ainda que a sentença no caso de Tribunal do Júri ou acórdão condenatório não transitado em julgado. Dessa forma, a inelegibilidade incide desde a publicação da condenação. Mas claro, pelos crimes especificados na lei, havendo a possibilidade de suspensão cautelar da inelegibilidade, com fulcro no art 26-C da LC 64/90 (GOMES, 2013, p. 197). Ocorre que as causas de inelegibilidade não representam uma sanção, uma punição, tanto que não se faz menção a uma conduta no mínimo culposa. E, com observância ao rol das inelegibilidades, nota-se claramente que não são penas, bastando observar o caso no analfabeto, que também é inelegível. O regime jurídico das inelegibilidades observa valores e princípios próprios do Direito Constitucional Eleitoral, devendo observar os princípios da supremacia da soberania popular e preservação do regime democrático (CASTRO, 2012, p. 163). Como afirma Edson de Resende Castro, “não há regime democrático que se sustente sem que a representação atenda ao interesse público de lisura, não só da disputa, como também do exercício do mandato, sob pena de desencantamento do seu soberano, o povo, e daí o seu enfraquecimento.” (CASTRO, 2012, p. 163). Então, embora tenha sido cogitada uma eventual inconstitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, com essas considerações nota-se que não houve. O que a lei

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trouxe são meros requisitos. O que se pretende não é a punição do indivíduo e sim a proteção da coletividade. E nada mais legítimo que fixar o perfil dos representantes pelos representados (CASTRO, 2012, p. 163). Corroborando esse entendimento, o STF já decidiu a respeito da inconstitucionalidade da lei em face do princípio da presunção do estado de inocência, no julgamento das ADC n. 29 e 30, além da ADI n. 4578, sendo decidido, por 7 a 4, que a inelegibilidade, contada antes do trânsito em julgado não representa conflito com a presunção de inocência.

4.2 Princípios da Moralidade e Probidade Administrativa

Como já explicado no item 4.1, o regime jurídico das inelegibilidades observa valores e princípios próprios do Direito Constitucional Eleitoral, devendo observar os princípios da supremacia da soberania popular e preservação do regime democrático. Ocorre que, em decorrência desses princípios, surgem os princípios da probidade e moralidade para o exercício das funções públicas. Primeiramente, vale ressaltar a divergência na doutrina quanto aos princípios da probidade administrativa e moralidade, mas por não ser objeto deste artigo, ele não entrar-se-á nesse mérito. O princípio da moralidade tem seu fundamento constitucional no art. 37, caput, da CRFB/88, enquanto o da probidade está também no art. 37, mas em seu §4º. É certo que ambos os princípios estão diretamente relacionados aos preceitos éticos que devem estar nas condutas do administrador público (CARVALHO FILHO, 2007, 906). E para justificar o fato de que a Lei da Ficha Limpa precisa observar os princípios da probidade e moralidade, não é preciso ir longe, bastando observar o dispositivo do qual ela retira sua validade, qual seja, o §9º do art. 14 da CRFB/88, cuja redação se repete:

Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 1988) (g.n.)

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E, pelo fato das alterações trazidas à lei de inelegibilidades considerarem justamente a vida pregressa do candidato, com um foco nos preceitos éticos, de forma proporcional e razoável, como será demonstrado a seguir, observado também o princípio democrático, é evidente que a Lei da Ficha Limpa está conforme os princípios da moralidade e probidade administrativa. O que a Lei da Ficha Limpa fez foi exigir dos candidatos uma postura mais moral, ética, honesta, para que possam ser representantes da sociedade de forma digna.

4.3 Princípios da Proporcionalidade e Razoabilidade

Como já afirmado, com as alterações da LC 64/90, com a LC 135/2010, o prazo de inelegibilidade foi alterado de três para oito anos, sem diferenciação dos crimes, tornando-se, assim, bem mais rígida a lei. Dessa

forma,

pode

surgir

eventual

conflito

com

os

princípios

da

proporcionalidade e razoabilidade. Será que a alteração não foi conforme àquilo que se considera justo, razoável, proporcional, sendo um excesso? Primeiramente, é importante trazer o conceito de proporcionalidade e razoabilidade. Proporcionalidade, conceito ainda em evolução, possui como fundamento evitar o excesso de poder, contendo atos que ultrapassem os limites adequados, mantendo o equilíbrio. Razoabilidade, por sua vez, é aquilo que se situa dentro de limites aceitáveis, ainda que os juízos de valor que provocaram a conduta possam dispor-se de forma um pouco diversa, é a congruência lógica entre as situações postas e as decisões (CARVALHO FILHO, 2007, 31). Dessa forma, como afirma Emmanuel Roberto Girão de Castro Pinto, é evidente que os prazos anteriores da lei não estavam sendo suficientes para alcançar a finalidade constitucional de proteção à probidade administrativa e a moralidade: ao unificar todos os prazos das inelegibilidades infraconstitucionais em oito anos, o legislador complementar não adotou critério desproporcional, nem abusivo. Percebe-se, cristalinamente, que a escolha de tal prazo não se deu de forma aleatória. Primeiramente, o legislador procurou implementar prazo de duração das novas inelegibilidades que sanasse a falta de efetividade da maioria das hipóteses de inelegibilidade previstas originalmente na Lei Complementar n. º 64/90. Em segundo lugar, adotou-se prazo que já existia na própria Lei das Inelegibilidades.(PINTO, 2014).

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Sendo assim, considerando a não efetividade dos prazos anteriores, que o prazo de 8 anos já existia na antiga lei, e a conformidade com os princípios constitucionais eleitorais, não há que se falar em não observância aos mencionados princípios.

5 CONCLUSÃO

Com a análise feita da Lei Complementar n. 135, de 2010, a Lei da Ficha Limpa, verifica-se que a referida lei está em conformidade com o ordenamento jurídico, sendo inclusive um avanço, uma vez que pela primeira vez se utilizou da iniciativa popular, prerrogativa dada aos cidadãos para participarem diretamente na fase de iniciativa do processo legislativo. Criticamente, porém, pode-se questionar se ela era realmente necessária. A princípio, considerando que quem elege os representantes é o próprio povo, não precisaria de mais uma lei visando à regulamentação das inelegibilidades da forma como foi, já que o cidadão poderia ter feito o controle diretamente nas urnas, escolhendo os candidatos corretos, com melhor índole e moral, mais aptos a representarem a sociedade. Com esse pensamento, pode-se dizer inclusive que a Lei da Ficha Limpa seria uma consequência do fenômeno da inflação legislativa, pelo fato da própria sociedade poder ter resolvido essa questão e por ter havido um excesso de minúcias. Mas esse não é o entendimento que esse artigo adota, uma vez que embora seja certo que os próprios brasileiros poderiam ter resolvido nas urnas essa questão de políticos corruptos e imorais, essa não é a realidade brasileira. Mesmo com toda a informação que o cidadão já possui, ainda assim políticos que são corruptos declarados são eleitos e reeleitos. Espera-se, assim, que a Lei da Ficha Limpa ajude a diminuir os casos de improbidade dos políticos brasileiros, a partir do ponto que torna inelegíveis os indignos de um cargo público. É ingenuidade, entretanto, pensar que apenas o Poder Judiciário pode torná-la efetiva, eis que se faz necessário a manutenção da participação popular, assim como foi na iniciativa da lei. O Tribunal Superior Eleitoral, inclusive, está se utilizando de propagandas na mídia para tentar conscientizar os cidadãos. Esses devem buscar conhecer seus candidatos e avaliar a vida pregressa de cada um, e há meios para isso, sendo a internet, por exemplo,

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uma ferramenta fundamental. Atuando em conjunto, o Direito e a sociedade podem melhorar o Brasil.

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CLEAN RECORD LAW: SOURCE, CHANGES OF PARADIGMS AND ACCORDANCE WITH THE BRAZILIAN LEGAL SYSTEM.

ABSTRACT

The object of this papere is Supplementary Law n. 135/2010 (the Clean Record Law). First, explains its origin, first law of popular initiative effectively. Following, are charted new paradigms that she brought and finally a parallel with constitutional principles will be established.

Key-words: Clean Record Law. Source. Paradigms. Principles.

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O PRIVILÉGIO DE FORO CONFERIDO À MULHER NAS AÇÕES DE DIVÓRCIO FERE OS JÁ CONSAGRADOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS? Maria Júlia Braviera Carvalho Ronaldo Fraiha Filho

RESUMO

Este artigo versa sobre as divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca da (in)compatibilidade do foro privilegiado da mulher nas ações de divórcio com os princípios constitucionais, analisando, com base no contexto social atual, a transformação do papel desempenhado por ela no âmbito familiar.

Palavras-chave: Mulher. Foro Privilegiado. Princípios. Constituição Federal de 1988.

1 INTRODUÇÃO

Rotineiras são as discussões acerca da (in)compatibilidade do foro privilegiado da mulher, previsto no inciso I do artigo 100 do CPC, com a ordem constitucional vigente. E, diante desse panorama, partindo de uma análise histórica e crítica, o presente trabalho tem como objetivo encontrar o melhor posicionamento acerca da (in)constitucionalidade do dispositivo supramencionado. Para tanto, se faz necessário o exame da evolução do papel desempenhado pela mulher nas relações familiares, bem como o estudo dos princípios constitucionais da igualdade e da isonomia entre os cônjuges. Convém ressaltar, ainda, que a análise dos métodos interpretativos e dos aspectos temporais se mostrarão imprescindíveis para para investigar se há ou não inconstitucionalidade nessa norma processual de competência e se tem ela aptidão para causar prejuízo à defesa de uma das partes.

2 A FAMÍLIA

A família é considerada a célula mater da sociedade. Isso porque o homem é um ser gregário que, por natureza, tende a viver em conjunto, tornando a família o

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alicerce fundamental do comportamento humano, já que toda sociedade se origina e, mais que isso, se desenvolve a partir de uma base fundamental, cujo início está vinculado à união entre homem e mulher. Ao longo do tempo, as sociedades passam por profundas modificações e inovações culturais que afetam diretamente os núcleos familiares. Exemplo disso é o fato de que as noções de família e casamento se confundiram por muito tempo no Direito brasileiro, embora sejam, numa concepção moderna, conceitos distintos. Ao tempo do Código Civil de 1916 até a promulgação da Constituição de 1988, a família só era reconhecida pelo Direito em razão do casamento considerado válido e eficaz. Entendimento que encontra respaldo na história do Brasil, marcada por uma colonização fundada em bases monarquista e católica: “a família, pilar da sociedade, deveria ser formada a partir do casamento, indissolúvel e sacramental” (COLTRO; TEIXEIRA; MAFRA, 2005, p. 28). Assim, “base principal da família, o casamento atraía para si todo o regramento normativo, deixando à margem de qualquer proteção, e ao sabor do repúdio moral e social, qualquer relação fora do matrimônio.” (COLTRO; TEIXEIRA; MAFRA, 2005, p. 29). Com o advento da Constituição Federal de 1988, os núcleos familiares não oriundos do casamento perderam seu caráter marginalizado, adquirindo não só o reconhecimento, mas também a proteção do ordenamento jurídico. Nesse sentido, entende Rolf Madaleno (2013, p. 32) que a família matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, heteroparental, biológica, institucional, vista como unidade de produção e reprodução, cedeu lugar para um família pluralizada, democrática, igualitária, hetero ou homoparental, biológica ou socioafetiva, construída com base na afetividade e de caráter instrumental.

Desse modo, o casamento não perdeu a proteção, “apenas não mais possui a característica da exclusividade, convivendo com outros mecanismos de constituição de família, como a união estável, a família monoparental, a família homoafetiva...” (ROSENVALD; FARIAS, 2008, p. 92). À família, desde seu surgimento, é atribuída a dinamicidade. Friedrich Engels (1981, p. 30), em seu estudo sobre a evolução humana baseado no evolucionismo de Morgan, relata que: “a família é o elemento ativo; nunca permanece estacionária, mas passa de uma forma inferior a uma superior, à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais elevado”.

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Em um contexto jurídico e sociológico, a família pós-moderna busca amparo no afeto, na ética, na solidariedade recíproca e na preservação da dignidade dos seus membros, independentemente da origem e da formalização do vínculo que os une.

3 A EVOLUÇÃO DO PAPEL CONFERIDO À MULHER NAS RELAÇÕES FAMILIARES “A condição jurídica da mulher é um dos mais ricos capítulos da história evolutiva do direito”(PEREIRA, 2007, p. 05) porque, durante muito tempo, a mulher foi completamente subordinada e condicionada às vontades do marido. Nada mais que um instrumento, ela era voltada apenas para a reprodução e para o zelo do lar, sem gozar de qualquer autonomia. Ao tempo do Código Civil de 1916, o exercício do poder familiar era conferido, exclusivamente, ao marido, cabendo à mulher substituí-lo apenas em casos de ausência ou impedimento. Existia, pois, incontestável predominância do interesse e das decisões paternas sobre o modo de criação e formação dos filhos, o que se denominou de “pátrio poder”. “As mulheres casadas foram consideradas ‘pessoas relativamente incapazes’, ao lado dos menores púberes, dos pródigos e dos silvícolas; ao marido foi atribuída com exclusividade, a chefia da sociedade conjugal e o poder sobre os filhos também cabia ao varão” (MONTEIRO, 2012, p. 200). Com o advento do Estatuto da Mulher Casada, a esposa passou a assumir um papel de colaboração com o marido no que tange ao exercício do pátrio poder (CC/16, artigo 380). Porém, em caso de divergências, ainda prevaleceria o que foi determinado pelo pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer em juízo. “A igualdade dos cônjuges na chefia da sociedade conjugal, só foi legalmente consagrada com a promulgação do artigo 226, § 5º, da Carta Política de 1988” (MADALENO, 2013, p. 679). Com isso, ao clássico instituto do “pátrio poder” foi conferida uma perspectiva moderna de “poder de proteção” exercido conjuntamente pelos cônjuges. Nas palavras de Rolf Madaleno (2013, p. 05) A Carta Política de 1988 começou a desconstituir a ideologia da família patriarcal, edificada em uma família monogâmica, parental, centralizada na figura paterna e patrimonial e que reinou absoluta na sociedade brasileira, herdada dos patriarcas antigos dos senhores medievais.

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No contexto hodierno, salteado por princípios constitucionais de igualdade, liberdade e isonomia entre os cônjuges, a lei concebeu um conjunto de direitos e deveres comuns e recíprocos ao homem e à mulher casados. “Deixando de estar submetida ao jugo masculino, a mulher reclama direitos e proteção igualitárias, pondo fim a qualquer tipo de discriminação. É a superação definitiva do caráter patriarcal do Direito de Família.” (ROSENVALD; FARIAS, 2008, p. 39).

4 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA IGUALDADE E DA ISONOMIA ENTRE OS CÔNJUGES

O tratamento igualitário direcionado a homens e mulheres está previsto no art. 5º, I da Constituição Federal, no qual está disposto que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. Isso significa que não deve haver distinção entre homens e mulheres, exclusivamente, em virtude do sexo, exceto nos casos em que, por meio dessa diferenciação, é alcançado o nivelamento. Diz Alexandre de Moraes (2013, p. 37) que é inaceitável a utilização do discrímen sexo, sempre que o mesmo seja eleito com o propósito de desnivelar materialmente o homem da mulher; aceitando-o, porém, quando a finalidade pretendida for atenuar os desníveis.

É claro que homens e mulheres são, de fato, diferentes, principalmente no que tange aos aspectos biológicos, o que lhes confere necessidades também diferentes. No entanto, o tratamento desigual proveniente da distinção de sexos não pode ocorrer de modo a favorecer uma das partes em detrimento da outra, pelo contrário, deve essa diferenciação acontecer para proporcionar a igualdade. É este o exercício da igualdade material: tratar os desiguais de maneira desigual, na medida de suas desigualdades. A ideia central no que tange à aplicação do princípio da igualdade se traduz, portanto, no fato de que o tratamento deve ser igual quando, independentemente do sexo, as pessoas se encontrarem em posições também iguais. Consoante a esse entendimento, afirma Kildare Carvalho (2011, p. 701) que “ao proclamar o inciso I do art. 5°, que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, quer dizer que homens e mulheres que estiverem em situação idêntica não poderão sofrer discriminações em suas prerrogativas e deveres”.

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O princípio da isonomia entre os cônjuges, contido no art. 226, §5º da Constituição Federal, determina que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Nota-se, pois, a preocupação do legislador em conferir a igualdade de direitos, uma vez que o art. 226, §5° da Constituição nada mais é do que a reafirmação do art. 5°, I da Carta Magna. Essa cautela do legislador, embora possa, à primeira vista, parecer excessiva, encontra justificativa no contexto de extrema discriminação no qual a mulher estava inserida. Como afirmam Nelson Rosenvald e Cristiano de Farias (2012, p. 120) Era, realmente, necessária a expressa, explícita e repetitiva proibição de toda e qualquer discriminação por conta da condição feminina, considerados os abusos decorrentes da legislação que, até então, vigorou. Beirava às raias do absurdo a discriminação.

O artigo 226, §5° da Constituição Federal representa, assim, uma enorme evolução nos parâmetros do Direito de Família, principalmente por despi-lo da colossal predominância do homem sobre a mulher na direção da sociedade conjugal, modificando as bases da família patriarcal. É bastante curioso o modo com que Nelson Rosenvald e Cristiano de Farias (2012, p. 121 e 122) retratam a mudança do papel da mulher no panorama social por meio dos cartoons: Em interessante situação, poderíamos comparar, no âmbito dos cartoons, uma mudança de tratamento feminino. Há algum tempo, as películas animadas da Disney traziam mulheres como Branca de Neve, Cinderela e a Bela Adormecida Aurora, normalmente (em conformidade com o perfil doméstico da mulher daquela época), passivas e dependentes do homem a quem dedicam o seu incondicional amor. Nos tempos atuais, já nos deparamos com Mulan (cuja luta se mostra essencial para a proteção da China), com Bela e com a princesa Ariel (da Pequena Sereia), mulheres decididas e que perseguem o seu objetivo com as próprias forças, independentemente da influência masculina, a quem continuam romanticamente ligadas, porém não mais com o objetivo único e precípuo. É exatamente a incorporação dessa nova perspectiva.

Embora o quadro social esteja em constante mutação, há, ainda, certa discrepância entre o ideal e a realidade quanto se trata da aplicação do princípio da igualdade entre os sexos. É inegável que restam resquícios da sociedade patriarcal de outrora, evidenciando uma herança de persistente superioridade social e econômica do homem. Contudo, não restam dúvidas de que as mulheres estão cada vez mais próximas de condições igualitárias aos homens.

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5 O FORO PRIVILEGIADO DA MULHER NAS AÇÕES DE DIVÓRCIO Dispõe o artigo 100, I do CPC que “É competente o foro: I - da residência da mulher, para a ação de separação dos cônjuges e a conversão desta em divórcio, e para a anulação de casamento”.1 Trata-se de uma regra de competência relativa, uma vez que renunciá-la é uma faculdade da mulher. Por isso, caso não ocorra a apresentação de exceção de incompetência, a competência será prorrogada, nos temos do Artigo 114 do Código de Processo Civil, não podendo o juiz declará-la de ofício, consoante Súmula 33 do Superior Tribunal de Justiça. Segundo Humberto Theodoro Jr. (2012, p. 199), a prorrogação de competência acontece caso: 1º) a própria mulher abra mão de seu privilégio e proponha a ação no foro comum do marido; ou quando, 2º) descumprida a regra pelo marido-autor, a mulher deixa de opor exceção declinatória de foro, em tempo hábil (art. 114).

É bem verdade que a polêmica acerca da (in)constitucionalidade do foro privilegiado da mulher permeia os âmbitos doutrinários e, consequentemente, repercute nas decisões tomadas pelos magistrados, dando origem, na maior parte das vezes, a decisões e posicionamentos completamente opostos. O cerne desse debate gira em torno da (in)compatibilidade entre o privilégio conferido e os princípios constitucionais da igualdade e da isonomia entre os cônjuges, tendo em vista que o inciso I foi inserido no art. 100 do CPC em 1977, período que antecede a Constituição de 1988. O entendimento majoritário considera que a norma legal contida no artigo 100, inciso I, do CPC é dotada de constitucionalidade, sob o fundamento de que não há qualquer violação ao princípio da igualdade entre os homens e mulheres, tampouco à isonomia entre os cônjuges. Nas palavras de Alexandre de Moraes (2013, p. 39) “em face das condições socioculturais, entendemos que o foro em favor da mulher, tanto na separação judicial, quanto no divórcio, não fere o texto constitucional, uma vez que está respeitado o binômio elemento discriminador (sexo) – finalidade (equilibrar o contraditório em juízo)”. No Código de Processo Civil de 1939, em seu artigo 142 dispunha que “nas ações de desquite e de nulidade de casamento, seria competente o foro da residência da mulher, nas de alimento, o do domicílio ou residência do alimentando”. 1

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O amparo a tal privilégio, portanto, não tem o intuito de subordinar um cônjuge ao outro, pelo contrário, visa garantir à mulher certa proteção, já que, na estrutura social brasileira, ela é, por vezes, fragilizada. Isso quer dizer que se busca o equilíbrio do exercício do contraditório, garantindo que ambos os cônjuges tenham a mesma capacidade de se defenderem em juízo. O Supremo Tribunal Federal, inclusive, corrobora com esse entendimento. Assim entendeu recentemente o Ministro Joaquim Barbosa, relator do Recurso Extraordinário 227114, interposto perante o STF, in verbis: EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. PRINCÍPIO DA ISONOMIA ENTRE HOMENS E MULHERES. AÇÃO DE SEPARAÇÃO JUDICIAL. FORO COMPETENTE. ART. 100, I DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. ART. 5º, I E ART. 226, § 5º DA CF/88. RECEPÇÃO. RECURSO DESPROVIDO. O inciso I do artigo 100 do Código de Processo Civil, com redação dada pela lei 6.515/1977, foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. O foro especial para a mulher nas ações de separação judicial e de conversão da separação judicial em divórcio não ofende o princípio da isonomia entre homens e mulheres ou da igualdade entre os cônjuges. Recurso extraordinário desprovido. (RE 227114, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 22/11/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-034 DIVULG 15-02-2012 PUBLIC 16-02-2012 RT v. 101, n. 919, 2012, p. 694-699)

Todavia, correntes doutrinárias se posicionam em sentido oposto, defendendo que não há razão para conferir, no contexto atual, um privilégio à mulher em detrimento do homem. Cabendo, pois, a aplicação do artigo 94 do CPC nas ações de divórcio, que traduz a norma geral, elegendo como competente o foro do domicílio do réu. Autores como Nelson Rosenvald e Cristiano de Farias defendem a incompatibilidade deste privilégio com os princípios constitucionais da igualdade e da isonomia entre os cônjuges. Nas palavras de Sálvio de Figueiredo Teixeira, complementam que “com a Constituição de 1988, que adotou o princípio da igualdade jurídica dos cônjuges, não mais se justifica o privilégio do inciso I, do art. 100”. (ROSENVALD; FARIAS, 2012, p. 467) A justificativa para tal posicionamento encontra amparo no paradoxo formado: se o objetivo da Constituição Cidadã é promover a isonomia entre o homem e a mulher, conferindo condições igualitárias aos cônjuges para exercerem, em conjunto, o poder familiar, por que deve ser mantido um privilégio conferido somente à mulher? Desse modo, a concessão de qualquer privilégio a somente uma das partes é, pois, passível de causar desequilíbrio na relação jurídica.

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Yussef Said Cahali (2011, p. 467) é bastante expressivo ao declarar que “já não mais prevalece o foro privilegiado, assim estabelecido a benefício da mulher casada, porquanto conflita com o princípio da igualdade entre os cônjuges, proclamado no art. 226, §5º da Constituição de 1988”. Conforme já mencionado anteriormente, o Direito é altamente dinâmico já que acompanha as transformações sociais. Partindo dessa premissa, Fredie Didier Jr. se posiciona no sentido de que a concessão do privilégio deve estar condicionada à análise do fato concreto. Tal perspectiva, notadamente, exige uma conduta mais elaborada do Magistrado. Afinal, a aplicação do art. 100, I do CPC se mostrará “irrazoável

e

inconstitucional,

notadamente

se

feita

sem

o

exame

das

particularidades do caso concreto, tendo em vista a equiparação de direitos e deveres entre os cônjuges, estabelecida pela CF/88” (DIDIER JR., 2008, p. 122). Analisando dessa forma, o foro privilegiado deve ser conferido àquele que se encontra em uma situação de desvantagem em relação ao outro, ou seja, “se, em um dado caso concreto, um cônjuge estiver em uma posição mais fragilizada do que a do outro, é possível imaginar um foro privilegiado, mas sempre in concreto, jamais a priori” (DIDIER JR., 2008, p. 122). Daí a importância da análise do caso concreto, para que se possa identificar qual das partes efetivamente necessita da concessão do privilégio para estar em igualdade de condições em relação à outra. Partindo essa abordagem, não é possível que se determine qual parte necessitará do privilégio antes de ser avaliado o caso concreto. Em 2012, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu, com base nas evidências do caso concreto, por afastar o foro privilegiado da mulher em detrimento do homem, tendo em vista que o marido se encontrava em posição de hipossuficiência. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. AÇÃO DE DIVÓRCIO. COMPETÊNCIA DO DOMICÍLIO DA MULHER. AFASTAMENTO DA REGRA DE COMPETÊNCIA. O fundamento que orienta o privilégio da fixação da competência, nas ações de separação e divórcio, no foro da mulher, é a presunção de que ela é hipossuficiente em relação ao marido. No entanto, desnecessário esforço argumentativo para consentirmos que a mulher - atualmente - adquiriu um status pessoal, social e econômico, se não de igualdade em relação ao homem, sem dúvida, infinitamente mais privilegiado do que aquele verificado em 1977, época em que foi redigida da regra de competência do CPC (artigo 100, inciso I). Logo, necessário verificar no caso concreto se a "inferioridade" da mulher, que autoriza o privilégio de foro, realmente existe na prática.

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Caso em que ficou provado ser o homem a parte hipossuficiente da relação, em razão de sequelas de AVC, motivo pela qual a regra de competência em favor da mulher deve ser afastada no caso concreto. DERAM PROVIMENTO.'' (Agravo de Instrumento Nº 70043366285, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 29/03/2012) (grifo nosso)

Variadas são as concepções acerca da (in)constitucionalidade do inciso I do artigo 100 do CPC. Resta, por fim, encontrar o posicionamento mais adequado tomando por base o contexto jurídico e social moderno, objetivo precípuo deste trabalho. Para tanto, parece mais razoável, antes, discorrer sobre alguns pontos fundamentais: o contexto social no momento da inserção desse dispositivo no ordenamento jurídico e o advento dos princípios da igualdade e da isonomia entre os cônjuges com a promulgação da Constituição Federal de 1988.

6 A INTERPRETAÇÃO TEOLÓGICA E A CONJUNTURA PÓS-POSITIVISTA

Primeiramente, cumpre ressaltar que o inciso I, do artigo 100 do CPC, foi inserido no ordenamento jurídico em 1977, mesmo ano do surgimento da Lei do Divórcio. Porém, é conveniente lembrar que àquela época, a Lei do Divórcio tratava do instituto de uma maneira diferente da contemporânea. Isso porque o procedimento para alcançar o divórcio era bastante moroso e dependia de outros requisitos que não apenas a vontade de não mais se manter casado. Restava evidenciado, assim, o conservadorismo do legislador ao tentar manter o vínculo matrimonial. Havia, também, certa resistência da própria sociedade em encarar o casamento como algo que poderia ser desfeito pela simples vontade das pessoas. Além do mais, em 1977 ainda vigia o clássico instituto do “pátrio poder”, amparado pelo Código Civil de 1916 que atribuía à mulher função subalterna e acessória à do marido no que tange ao direcionamento das relações familiares. Levando em conta a abismal divergência entre o contexto social no qual o privilégio foi inserido no ordenamento jurídico e o contexto social moderno, é possível inferir que o legislador pretendia, por meio desse dispositivo, atenuar a situação de discriminação e fragilidade vivenciada pela mulher naquela época. E, por ter sido atribuída uma finalidade ao inciso I do artigo 100 do CPC, é indispensável fazer uma análise do método de interpretação teleológico.

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O método de interpretação teleológico, que teve em Jhering seu principal precursor, tem como pressuposto e, ao mesmo tempo, como regra básica o fato de que “sempre é possível atribuir um propósito às normas”(FERRAZ JR., 2010, p. 264). Nas palavras de Carlos Maximiliano (2008, p. 125), “a norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais"; devendo ser “interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida”. A finalidade primordial da norma é, pois, regular a vida, devendo acompanhar o dinamismo das relações interpessoais. Logo, “o fim da norma jurídica não é constante, absoluto, eterno, único. Este é normativo; acham-se no seu conteúdo, previstos, defendidos, assegurados, os fins da vida do homem em sociedade” (MAXIMILIANO, 2008, p. 125). Dessa forma, se novos interesses, oriundos de uma ordem social contemporânea, despontam, o texto legal de outrora deve ser alterado de modo a se adequar aos fins da realidade moderna. Neste sentido, dispõe Carlos Maximiliano (2008, p. 126), que “o objetivo da norma, positiva ou consuetudinária, é servir a vida, regular a vida; destina-se a lei a estabelecer a ordem jurídica, a segurança do Direito. Se novos interesses despontam e se enquadram na letra expressa, cumpre adaptar o sentido do texto antigo ao fim atual”. Já em relação aos princípios constitucionais faz-se necessário acentuar a conjuntura pós-positivista contemporânea. O pós-positivismo, que se posiciona entre as correntes jusnaturalista e positivista, surgiu em um contexto pós II Guerra Mundial, estabelecendo seus preceitos para resgatar a ligação entre o Direito e a Ética após o colapso do positivismo jurídico. E, com isso, o Direito assumiu um viés mais principiológico, buscando conferir aos princípios constitucionais um caráter normativo. Assim, os princípios constitucionais da igualdade e da isonomia entre os cônjuges não devem, simplesmente, ser ignorados. Pelo contrário, afirma Tércio Ferraz Jr.. (2010, p. 266),“a doutrina costuma distinguir os princípios como fins imanentes da ordem jurídica e social e reguladores teleológicos da atividade interpretativa, das chamadas regras gerais”.

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7 CONCLUSÃO

Ora, se a finalidade da norma acompanha as transformações sociais e se os princípios funcionam como reguladores teleológicos da atividade interpretativa, a concessão de um privilégio a somente uma das partes que, partindo dos preceitos constitucionais atuais, deveriam ser tratadas de forma igualitária se mostra contraditória. Isso quer dizer que a mulher assume, hoje, um papel absolutamente diferente daquele que lhe era conferido outrora. As mulheres modernas buscam efetivar os princípios da igualdade e da isonomia entre os cônjuges de várias formas: ingressando no mercado de trabalho, sustentando e cuidando dos filhos juntamente com os maridos e chefiando famílias monoparentais. No momento em que foi criada, a finalidade precípua da norma prevista no inciso I, artigo 100 do CPC era conferir à mulher uma posição de igualdade em relação ao homem, assegurando o nivelamento do contraditório em juízo. No entanto, na realidade atual, a mulher ocupa, em regra, o mesmo patamar que o homem na sociedade. Logo, o texto legal deve ser adaptado por meio dos princípios, de forma a garantir que a sua finalidade seja concretizada. É imprescindível levar em conta que há, ainda, certa discrepância entre o ideal e a realidade no que tange à aplicação do princípio da igualdade, conforme já exposto anteriormente. E, este fato associado ao dinamismo do Direito, confere extrema relevância à análise do caso concreto. Isso quer dizer que cada situação jurídica, por ser também social, apresenta suas peculiaridades, o que é próprio das relações interpessoais. E, são justamente essas singularidades que definirão qual das partes se encontra em situação de fragilidade em relação à outra, necessitando, assim, de proteção legal. Infere-se, pois, que a aplicação do privilégio à mulher de forma indiscriminada, sem antes levar em conta as peculiaridades do caso concreto, fere não só os princípios constitucionais, mas também deturpa a finalidade da própria norma.

Conclui-se,

assim,

pela

inconstitucionalidade

do

dispositivo

supramencionado, já que estabelece a priori a mulher como destinatária do privilégio nele contido, o que faz com que sua aplicação literal vá de encontro aos preceitos constitucionais modernos, podendo gerar o desequilíbrio na relação jurídica.

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REFERÊNCIAS

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THE WOMAN’S PRIVILEGE JURISDICTION AND THE CONSTITUCIONAL PRINCIPLES

ABSTRACT This article discusses the doctrinal and jurisprudential about the (in) compatibility of the privileged forum of woman in divorce actions with the constitutional principles discrepancies, analyzing, based on the current social context, the transformation of the role played by it in the family.

Key-words: Woman. Privileged Forum. Principles. Constitution of 1988.

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PARASSUBORDINAÇÃO Jéssica Soares Silva

RESUMO

Há trabalhadores que ora são considerados autônomos ora empregados. Surgiu, então, um terceiro gênero, entre a subordinação e a autonomia, a parassubordinação. Ocorre que, em longo prazo, conclui-se que tal instituto causa uma precarização das relações de trabalho.

Palavras-chave: Subordinação. Parassubordinação. Precarização.

1 INTRODUÇÃO

As relações de trabalho que possuem características mistas, dificultando a configuração da subordinação ou autonomia estão na chamada zona cinzenta do Direito do Trabalho. Consequentemente essa situação traz uma enorme insegurança jurídica já que ora se considera que o trabalhador possui vínculo de emprego, ora se considera que ele é autônomo. Por esse motivo a doutrina brasileira, se espelhando na doutrina italiana, passou a analisar a hipótese de aplicação da parassubordinação. A ideia seria criar, além do trabalhador subordinado e o autônomo, um terceiro gênero: o trabalhador parassubordinado. A parassubordinação se encontra entre a subordinação e a autonomia. Os trabalhadores parassubordinados teriam mais direitos trabalhistas que os trabalhadores autônomos, no entanto, menos que os empregados. Assim, este artigo tem como escopo um estudo mais específico da subordinação e, ao final, apresenta a parassubordinação, seu conceito e os diversos posicionamentos da doutrina acerca da sua eventual aplicação.

2 SUBORDINAÇÃO

A subordinação trabalhista é fator principal de diferenciação entre as relações de emprego e as demais relações de trabalho. Como se sabe, é dado ao

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empregador exercer certos poderes com o intuito de direção do empreendimento. A subordinação decorre do poder diretivo do empregador, limitando a autonomia da vontade do empregado que deve obedecer ao modo de realização dos serviços imposto por seu empregador. A subordinação, pressuposto da relação de emprego, é a subordinação jurídica. Alguns autores chegaram a falar em subordinação técnica e subordinação econômica. De acordo com a subordinação técnica, o empregador comanda tecnicamente seus empregados. Ocorre que nem sempre os trabalhadores dependem de orientação técnica de seu empregador, como é o caso, por exemplo, de profissionais na área de Tecnologia da Informação, que muitas vezes, tecnicamente, são mais qualificados que seus patrões. A qualificação por si só não é apta a descaracterizar a subordinação já que, ainda assim, esses profissionais continuam a trabalhar sobre o mesmo comando, cumprindo horários, etc. Já de acordo com a subordinação econômica, o empregado, por necessitar do salário para viver, dependeria economicamente do seu empregador. Novamente a teoria não é adequada visto que, apesar de raro, o trabalhador pode inclusive possuir situação econômica melhor que a do seu contratante o que por si só não retira a subordinação presente no contrato de emprego. Apesar da doutrina e da jurisprudência terem consagrado o termo subordinação, o artigo 3º, da CLT utiliza a palavra dependência. Nos mesmos moldes é o artigo 2.0942, do Código Civil Italiano, código que inspirou o legislador brasileiro na edição da CLT. Também na Itália, apesar da redação legal, a expressão utilizada para designar a situação na qual o empregado se submete às determinações do empregador é a subordinação. Importante destacar que, na Itália, a subordinação clássica vem sofrendo severas críticas por seu conceito não ter acompanhado as novas necessidades de proteção justrabalhista que surgiram com o desenvolvimento tecnológico. 2

Sezione II. – Dei collaboratori dell’imprenditore. 2.094. Prestatore di lavore subordinato. È prestatore di lavoro subordinato chi si obbliga mediante retribuzione a collaborare nell’impresa, prestando il próprio lavoro intelettuale o manuale alle dipendenze e sotto ladirezione dell’imprenditore. Seção II – Dos colaboradores do empreendedor. 2.094. Prestador de trabalho subordinado. É prestador de trabalho subordinado quem se obriga, mediante retribuição, a colaborar na empresa, prestando o próprio trabalho intelectual ou manual, na dependência e sob a direção do empreendedor.

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A subordinação sempre foi um elemento controvertido e de difícil conceituação. Ao longo dos anos, doutrina e jurisprudência utilizam padrões de comportamentos (tanto do contratante quanto do contratado) para identificar a subordinação. Ocorre que, com a evolução tecnológica e transformação das práticas negociais, inclusive com o surgimento de novas profissões, as condutas padrões utilizadas para a caracterização da subordinação se alteraram: A missão do pesquisador reside em detectar essas alterações, através das quais o conceito jurídico sofre revisão em suas bases. E foi exatamente o que aconteceu com a subordinação, que hoje não mais é vista dentro da mesma forma conceitual com que a viram juristas e magistrados de vinte, trinta ou cinqüenta anos passados. Debite-se o fenômeno à própria evolução do Direito do Trabalho (com força expansiva constante) ou à incorporação de quaisquer atividades em seu campo de gravitação (o trabalho intelectual, p. ex.), o fato é que a subordinação é um conceito dinâmico, como dinâmicos são em geral os conceitos jurídicos se não querem perder o contato com a realidade social a que visam exprimir e equacionar (VILHENA, 1975, p. 219).

Segundo Pontes de Miranda trabalho subordinado é o que fica “sob as ordens e a disciplina do empregador” (MIRANDA, Apud VILHENA, 1975, p. 222). A tônica aqui é subjetiva, é uma subordinação jurídico-pessoal. A subordinação recai sobre o empregado e não sobre sua atividade. O empregado deve obedecer ao seu empregador, submetido a um controle de suas ações e horários. Segundo Paulo Emílio Ribeiro Vilhena, essa visão da subordinação (subjetiva) foi consagrada pelos autores alemães da década de trinta e seus resquícios continuam em alguns autores alemães atuais (VILHENA, 1975, p. 222). Como reação a essa visão pessoal foi criado um conceito objetivo de subordinação, considerada como a integração da atividade do prestador de serviços na atividade da empresa A subordinação recai, portanto, sobre a atividade desenvolvida pelo empregado. As tarefas são exercidas por um conjunto de atos autônomos do empregado que, em seu todo, são coordenados pelo empregador. Segundo Vilhena: Como suporte dessa integração, abre-se um tráfico de prestações, que levam o empresário a contar com a iterativa entrega das peças feitas e, por via de consequência, a tomar medidas acautelatórias da regularidade desse tráfico, da perfectibilidade das tarefas executadas, o que acaba por configurar, objetivamente, a subordinação (VILHENA, 1975, p. 223).

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Atualmente a subordinação é chamada de subordinação jurídica. Esse termo nasceu como forma de superar as correntes doutrinárias que explicavam a subordinação a partir do critério econômico ou técnico que, como já foi explicado, não se amoldam à realidade trabalhista. A subordinação jurídica é a possibilidade que o empregador possui de, quando necessário, dirigir a atividade do empregado. O empregador contrata o empregado para a realização de um objeto indeterminado (ou objetos). A determinação se dará ao longo do contrato de trabalho em que se especificará o que será feito, como será feito e quando será feito. Essa determinação ocorre pelo poder diretivo do empregador que adéqua a atividade do empregado conforme os objetivos da empresa. Segundo Maurício Godinho Delgado, a subordinação jurídica é uma subordinação estrutural, pois “se expressa pela inserção do trabalhador na dinâmica do tomador de seus serviços, independentemente de receber (ou não) suas ordens diretas,

mas

acolhendo

estruturalmente

sua

dinâmica

de

organização

e

funcionamento” (DELGADO, 2012, p. 298). Logo, toda vez que o empregado executar serviços essenciais à atividade-fim da empresa, integrando o processo produtivo e a dinâmica estrutural da empresa, haverá uma subordinação estrutural. Conclui-se, portanto, que a direção da empresa ocorre na e sobre a atividade e não na e sobre a pessoa do empregado: Não se admite, em primeiro plano, a sujeição, a subordinação pessoal, que são resquícios históricos, etapas vencidas nas lutas políticas seculares, desde a consideração do prestador de trabalho como res (locacio) e quando credor se qualificava como condutor (conductio) (VILHENA, 1975, p. 231).

Não se pode deixar de mencionar que a subordinação comporta diversos graus a depender da atividade realizada: Na dinâmica e na estrutura da empresa, que pressupõe integração e coordenação de atividade, a exteriorização da subordinação em atos de comando é fenômeno de ocorrência irregular, variável, muitas vezes imperceptível e esses atos sofrem um processo de diluição, até quase desaparecem, à medida em que o trabalho se tecniciza e se intelectualiza (VILHENA, 1975, p. 233).

No entanto, ainda que exercida de forma diferenciada, se presente a subordinação, ainda que em grau mínimo, a relação será considerada de emprego.

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3 PARASSUBORDINAÇÃO

A parassubordinação surgiu na Itália, mas já se espalhou por outros países do mundo, principalmente da Europa. As denominações para os trabalhadores sujeitos à parassubordinação são variadas: “parassubordinados”, “trabalhadores autônomos economicamente dependentes”, “quase assalariados”, “autônomos aparentes”, “pessoas assimiladas a trabalhadores” (RIOS, 2011, p. 110.) etc. No Brasil, já é possível encontrar diversos julgados que fazem referência ao tema o que demonstra a necessidade de se desvendar as nuances desse instituto. Apesar de não haver qualquer referência à parassubordinação em nosso ordenamento jurídico, não se trata de um instituto novo. A legislação italiana fez referência pela primeira vez aos parassubordinados em 1959: A relação de trabalho parassubordinado foi definida pela primeira vez no Direito italiano pelo art. 2º da Lei n. 741, de 1959, o qual mencionava “relações de colaboração que se concretizem em prestação de obra continuada e coordenada”. Posteriormente, foi prevista pelo art. 409, § 3º, do Código de Processo Civil (CPC), com a reforma efetuada pela Lei n. 533, de 11 de agosto de 1973. Esse dispositivo estendia o processo do trabalho às controvérsias relativas a “relações de agência, de representação comercial e outras relações de colaboração que se concretizem em uma prestação de obra continuada e coordenada, prevalentemente pessoal, ainda que de caráter não subordinado”. O Decreto Legislativo (DL) n. 276, de 2003, conhecido como “Decreto Biagi”, em seu art. 61, ao prever a figura do trabalho parassubordinado a projeto, faz referência ao art. 409, § 3º, do CPC, mencionando expressamente as “relações de colaboração coordenada e continuada, prevalentemente pessoal e sem vínculo de subordinação”, mais conhecidas como “co.co.co.” (PORTO, 2011, p. 215).

Mas o que é exatamente a parassubordinação? Seu surgimento se deu devido a uma zona cinzenta existente entre a autonomia e a subordinação. Os trabalhadores parassubordinados, em linha gerais, “são trabalhadores que, embora não sejam subordinados (são juridicamente autônomos), são hipossuficientes, pois dependem economicamente do tomador de seus serviços.” (PORTO, 2011, p. 214). Os parassubordinados possuem todos os pressupostos da relação de emprego, exceto a subordinação que dá lugar à coordenação. Na definição de Cláudio Victor de Castro Freitas, a parassubordinação é: uma relação de trabalho que se situa em uma zona grise, pairando entre o trabalho subordinado juridicamente e o trabalho autônomo, possuindo algumas semelhanças com o trabalho subordinado típico, sem se confundir

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com este, e indo além do conceito tradicional de trabalho autônomo (FREITAS, 2009, p. 1248).

Segundo Freitas, coordenação significa que ambas as partes, trabalhador e empregador, possuem medidas a propor para alcançar um objetivo comum. Ambos ordenam juntos a atividade (FREITAS, 2009, p. 1248). A proposta dos defensores da parassubordinação é a concessão de parcelas de direitos trabalhistas a trabalhadores que, por serem autônomos, não possuem direito trabalhista algum. Frisa-se que estes trabalhadores não teriam os mesmos direitos que os empregados. Seriam aplicados apenas os institutos considerados compatíveis. Não se aplicaria, por exemplo, o instituto das horas extras tendo em vista o entendimento de que os parassubordinados não se submetem ao controle de carga horária por seu contratante. A aplicação da parassubordinação no Brasil possui uma barreira a superar. Afinal, como saber quais institutos seriam aplicados aos parassubordinados se não há legislação específica? Certamente ocorreria uma enorme insegurança jurídica visto que ficaria a cargo do julgador de cada caso definir qual instituto aplicar. Juliana

Augusta

Medeiros

de

Barros

defende

que

o

trabalho

parassubordinado está incluso no artigo 7º, da Constituição da República (BARROS, 2011, p. 131 - 144). De acordo com ela, o art. 7º apresenta os direitos de todos os trabalhadores, sejam eles autônomos, empregados ou parassubordinados, cabendo ao intérprete aplicar os seus incisos apenas nos casos em que forem compatíveis. Assim, a base para os direitos dos parassubordinados deve ser encontrada por meio de uma interpretação constitucional até a edição de lei específica. Outra

posição

adotada

por

parte

da

doutrina

é

conceder

aos

parassubordinados os mesmos direitos que aos subordinados, negando a aplicação desse instituto no Brasil. Esta é a posição defendida por este trabalho, acompanhada de Maurício Godinho Delgado3 e Luiz Otávio Linhares Renault (RENAULT, 2011, p. 33 - 49). Segundo Renault, a preposição “para” significa “na direção de; com destino a”, pelo que a parassubordinação denota um tipo de trabalho que se dirige, que se destina à subordinação, portanto, estes trabalhadores devem ser incluídos no Direito do Trabalho como empregados (RENAULT, 2011, p. 33 - 49). 3

Maurício Godinho Delgado nega a aplicação da parassubordinação por ser um instituto de precarização das relações de trabalho.

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Quando a parassubordinação surgiu na Itália, acreditou-se que estava ocorrendo uma inclusão. Mais trabalhadores seriam protegidos pelo manto do Direito do Trabalho. Ocorre que com o passar do tempo percebeu-se que se tratava de uma ilusão. A parassubordinação não trouxe inclusão. Trouxe exclusão. Trabalhadores que antes eram perfeitos empregados, com o tempo, passaram a ser considerados parassubordinados. Afinal, o custo de um trabalhador parassubordinado é bem menor que o custo de um empregado e o mercado é cruel. Menor custo, maior contratação. A lógica é simples. Com a possibilidade de contratação de um trabalhador que faz as mesmas tarefas, com um custo muito menor, não é difícil imaginar de quem é a preferência para ser contratado. Lorena Vasconcelos Porto demonstra por meio de julgados as mudanças que ocorreram na aplicação do Direito do Trabalho italiano após o reconhecimento da parassubordinação. Para demonstrar a exclusão promovida por este instituto, pegou-se o exemplo dos professores em dois julgados: um de 1985 reconhecendo o vínculo empregatício e outro de 2003 que nega o vínculo: [Reconhece o vínculo] Ao reconhecimento da natureza empregatícia da relação de trabalho entre os professores de uma escola particular e o titular desta não obsta nem o diverso nomen iuris usado pelas partes, quando resulte que os próprios professores se encontrem funcionalmente inseridos na empresa escolar, cujo risco de gestão recai exclusivamente sobre o titular, nem a circunstância de que aos mencionados professores, tratandose de empregados públicos que exerçam o ensino privado nas horas deixadas livres pela relação de emprego público, não seja aplicável a contratação coletiva nacional dos professores privados. Na configuração de uma relação emprego, não é necessário, para configurar a continuidade da prestação, que o serviço seja prestado sem interrupção e com um horário preestabelecido, bastando a persistência no tempo da obrigação de manter à disposição do empregador a própria atividade laborativa; nem é necessário que a prestação seja exclusiva, podendo perfeitamente coexistir, pela sua natureza e duração, com outras atividades laborativas prestadas em favor de outros empregadores (Decisão da Corte de Cassação n. 1.287, de 14 de fevereiro de 1985, Instituto Parini v. INPS. II Massimario del Foro Italiano, Roma, II Foro Italiano, v. LIV, ano de 1985, p. 257-258, 1986, p. 257-258). [Não reconhece o vínculo] Não é de natureza empregatícia a relação de um trabalho de professor de escola privada, que, ainda que de caráter contínuo e prestada na presença de uma série de vínculos (obrigação de seguir o programa ministerial, existência de um horário contratualmente prédeterminado, cálculo da remuneração em relação às horas de aula, assinatura de presença, necessidade de avisar no caso de eventuais ausências), não seja caracterizada por um pontual exercício dos poderes diretivos e disciplinares pelo empregador, e também por formas de articulada inserção do docente em um quadro organizativo complexo, análogo àquele das escolas públicas, sob o aspecto das obrigações de programação formativa e didática, de avaliação dos estudantes, de atendimento aos pais aos próprios estudantes, de participação nos conselhos de classe (Decisão da Corte de Cassação n. 8.028, de 21 de

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maio de 2003, Opere sociali Don Bosco v. INPS. Repertorio del Foro Italiano, ano de 2003, Roma, II Foro Italiano, 2004. 1.420).

Com base nesses dois julgados italianos citados percebe-se que o intuito pelo qual a parassubordinação surgiu foi totalmente deturpado. Na verdade, a parassubordinação trouxe a redução de direitos a quem os detinha. A parassubordinação foi utilizada para legitimar práticas reducionistas de direitos trabalhistas: De fato, a dificuldade em se conceituar a parassubordinação e – mais além – de identificar os precisos limites entre esta e a clássica subordinação acabou por ocasionar a utilização desenfreada do instituto, para mascarar verdadeiras relações de trabalho subordinado. Ora, a estrutura rígida da subordinação tradicional, com sua forte vertente protetiva, mostra-se insuficiente aos anseios das empresas que desejavam se adequar às modificações ocorridas no mercado. Assim, a possibilidade de os tomadores de serviço utilizarem-se de colaboradores juridicamente autônomos, porém em modalidades contratuais não muito diversas daquelas típicas do trabalho subordinado, tornou sobremaneira atraente o recurso às co.co.co (BULGUERONI, 2008, p. 333).

Os

ditos

parassubordinados

são

verdadeiramente

subordinados.

Trabalhadores que não detêm os fatores de produção, não são verdadeiramente autônomos. Assim, por não serem os verdadeiros capitalistas e não obterem os bônus dessa condição, não devem, também, ficar à míngua de proteção do Direito do Trabalho. O conceito de subordinação sofreu mudanças ao longo do tempo. Ele surgiu numa época em que apenas os empregadores possuíam o know how do empreendimento, em que as tarefas eram tão específicas a ponto do trabalhador não compreender como se deu a execução do produto final, o controle de horários era rígido e a subordinação ocorria sobre a pessoa do empregado (subordinação subjetiva). Essa é a subordinação clássica. No entanto, os tempos mudaram; a subordinação atualmente é a subordinação objetiva. Ela ocorre sobre a prestação laboral e não sobre a pessoa do trabalhador. Não é mais comum que o empregador seja o único detentor do know how. Muito pelo contrário. O mais interessante e rentável na atualidade é a contratação de trabalhadores cada vez mais qualificados e com amplo conhecimento técnico. Apesar das mudanças mencionadas, algumas coisas não mudaram: é o empregador quem gere o negócio; ele detém os fatores de produção, assume o

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risco da atividade, detém o capital. Outra coisa também não mudou: a posição social do trabalhador: Há uma tendência de se confundir com autonomia o mero aumento da liberdade na execução de serviços (identifica-se nesse aspecto formal uma mudança na posição social que, de fato, não houve, pois o trabalhador, embora mais livre, não atingiu a condição de capitalista) (MAIOR, 2011, p. 67).

Sensível a essa situação, Renault conclui: Ora, se uma pessoa física presta serviços de natureza não eventual para determinada empresa, onerosamente, ela não é empregada porque está subordinada; ela está presumidamente subordinada porque é dependente econômica e socialmente, isto é, porque está presa a ferros pelo ciclo produtivo de uma espécie diferente de empresa, nova e moderna, que continua a se apropriar, sem pudor, da mais-valia. Não há segredo a ser desvendado. Há desvãos interpretativos (RENAULT, 2011, p. 42).

Percebe-se, então, que a subordinação clássica está ultrapassada. A sociedade amadureceu e, com ela, devem amadurecer os conceitos jurídicos. Já na Itália, com a implantação da parassubordinação no sistema jurídico ocorreu o contrário: nasceu a subordinação clássica, houve uma expansão do seu conceito e, posteriormente, voltou-se a adotar apenas o conceito originário. Com o intuito de distinguir os parassubordinados dos subordinados, ocorreu uma restrição do conceito de subordinação. A maneira de exercer a subordinação mudou porque a sociedade mudou. Mas a mudança ocorreu apenas na aparência e não na essência. O trabalhador, ainda que altamente escolarizado, continua por ser dependente econômico e socialmente do seu contratante. A essa classe “altamente escolarizada, constituída por jovens-adultos com inserção precária nas relações de trabalho e vida social” (ALVES) dá-se o nome de precariado. Giovanni Alves explica o que significa o precariado: num plano sociológico, o precariado como camada social média do proletariado urbano precarizado seria constituído, por exemplo, por um conjunto de categoriais sociais imersas na condição de proletariedade como, por exemplo, jovens empregados do novo (e precário) mundo do trabalho no Brasil, jovens empregados ou operários altamente escolarizados, principalmente no setor de serviços e comércio, precarizados nas suas condições de vida e trabalho, frustrados em suas expectativas profissionais; ou ainda os jovens-adultos recém-graduados desempregados ou inseridos em relações de emprego precário; ou mesmo estudantes de nível superior (estudantes universitários são trabalhadores assalariados em formação e muitos deles, estudam e trabalham em condições de precariedade salarial). (ALVES).

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O estudo do precariado enquanto fator social já demonstra a fragilidade do trabalhador frente aos detentores do capital. Novas formas de emprego surgem, formas essas que exigem maior escolaridade dos trabalhadores e que fazem com que a subordinação seja exercida de maneira mitigada. Sob o argumento de que a subordinação clássica não está presente, surge um instituto que suprime direitos trabalhistas. No entanto, o trabalhador continua imerso numa situação de precariedade social. Está realmente havendo uma crise da subordinação? Ou será que falta apenas uma adequação da subordinação aos novos fatores sociais? Renault, ao redigir acerca da subordinação, alerta: ela deve ser analisada de forma qualitativa e não quantitativa: Por outras palavras, o que se exige é a subordinação e não a quantidade de subordinação, que possui diversos matizes, inúmeros graus, vários tons, sobretons e entretons; incontáveis variações, derivações, conjugações, inclusive de natureza semântica. [...] Parece, por conseguinte, que o problema tem sido muito mais de adequação desse pressuposto à dinâmica da vida social do que a de qualquer outra natureza. Nada além disso. Não existe crise da subordinação, nem (in)subordinação da crise. Existe incerteza, vacilação ou mesmo ligeiro declínio, não declinação, de interpretação, talvez até por falta de contraponto institucional. (RENAULT, 2011, p. 36, 37).

A alegada crise da subordinação que seria justificativa para a adoção de um terceiro gênero surgiu, na realidade, de uma insistência em tentar aplicar a subordinação clássica indistintamente a todas as formas de trabalho quando, no entanto, cada tipo de prestação de serviços possui um grau de subordinação.

4 CONCLUSÃO

A intensidade da subordinação está diretamente ligada ao tipo de trabalho exercido. Não se pode exigir que um engenheiro receba as orientações de seu empregador na mesma intensidade que um torneiro mecânico. O mesmo ocorre com o trabalho realizado a distância que, assim como o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, será dirigido pelo credor; no entanto, de forma diversa.

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Infelizmente

a

experiência

de

outros

países

demonstra

que

a

parassubordinação não trouxe qualquer ganho social, sendo na realidade, a médio e longo prazo, uma forma de precarização das relações de trabalho. Também não tirou as profissões da zona cinzenta da indefinição, visto que diferenciar a coordenação da subordinação é tarefa ainda mais árdua ante a verdadeira homogeneidade das características fáticas. REFERÊNCIAS

ALVES, Giovanni. O que é o precariado? Disponível em: <http://blogdaboitempo.com.br/2013/07/22/o-que-e-o-precariado/>. Acesso em: 18 ago 2014.

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 4ª Ed. São Paulo: Ltr, 2008.

BULGUERONI, Renata Orsi. Prassubordinação: origem, elementos, espécies e tutela. Revista de Direito do Trabalho. São Paulo, a. 34, p. 329 – 335, jul. – set. 2008.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 11ª Ed. São Paulo: Ltr, 2012.

FREITAS, Cláudio Victor de Castro. A Parassubordinação, o Contrato de Trabalho a Projeto e o Direito Brasileiro – Uma Análise das Novas Relações de Trabalho sob uma Ótica Globalizada. Revista LTr, São Paulo, a. 73, n. 7, p. 1240 – 1258, jul. 2009.

MAIOR, Jorge Luiz Souto. A Supersubordinação. Parassubordinação: Homenagem ao Professor Márcio Túlio Viana. São Paulo: LTr, 2011, p. 50 - 86.

PORTO, Lorena Vasconcelos. A Parassubordinação: Aparência x Essência. Parassubordinação: Homenagem ao Professor Márcio Túlio Viana. São Paulo: LTr, 2011, p. 213 – 238. RENAULT, Luiz Otávio Linhares. Parassubordinação: Para Quê? Parassubordinação: Homenagem ao Professor Márcio Túlio Viana. São Paulo: LTr, 2011, p. 33 - 49.

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RIOS, Maria Isabel Franco. No Ciclo Eterno das Mudáveis Coisas. Parassubordinação: Homenagem ao Professor Márcio Túlio Viana. São Paulo: LTr, 2011, p. 101 – 118. VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de Emprego – Estrutura Legal e Supostos. Saraiva: 1975.

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PARASSUBORDINAÇÃO

ABSTRACT

There are workers who are now employed either considered autonomous. Then

came

a

third

gender,

between

subordination

and

autonomy,

parassubordinação. It happens that, in the long run, it is concluded that such institute causes a precarious labor relations.

Key-words: Subordination. Parassubordinação. Casualization.

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AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS: ANÁLISE ECONÔMICA SOB O PRISMA DA EFICIÊNCIA E DA LEGALIDADE

Gabriel Guedes Meira Henrique Soares Campos

RESUMO

Este artigo pretende analisar os contratos de parceria público-privada (PPPs) sob a ótica da Teoria do Custo Social, de Ronald Coase, especificamente do conceito de custos de transação. Trata-se de análise econômica de alguns dos principais desafios na implantação das PPPs no Brasil.

Palavras-chave:

Contratos

Administrativos.

Parceria

Público-privada.

Análise

Econômica do Direito. Custo Social. Custos de Transação.

1 INTRODUÇÃO

O direito administrativo, em sua acepção original, tem como objeto as condutas das pessoas jurídicas que compõem a administração pública, as suas atividades e os bens de que se utilizam para satisfazer o interesse público, primando pela boa gerência da coisa pública. A boa gestão da coisa pública perpassa pelo cumprimento dos princípios que regem a Administração, focando especialmente nos princípios da eficiência e da legalidade. Nesse aspecto, a própria Constituição, expressamente em seu artigo 22, dispôs que a União tem competência para criar, mediante lei nacional, as modalidades pelas quais a licitação poderá ser realizada, além da utilização de respectivos contratos administrativos para consecução do fim almejado, seja para a execução de um serviço público, seja para a construção de uma obra. E para isso, teremos as várias modalidades de concessões públicas. A concessão "é uma modalidade de descentralização administrativa, mais especificamente, uma descentralização por colaboração. Nesse sentido, a concessão é uma técnica de organização administrativa, seguindo as normas

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aplicáveis à decisão de descentralizar" (FREIRE, 2014, p. 28). Sob esse aspecto, a autoridade competente deve decidir pela organização que melhor assistirá aos interesses dos indivíduos, tendo como objetivo a eficiência do serviço prestado, sendo responsável pela fiscalização e cumprimento eficaz do contrato firmado. Nesse contexto, merecem especial atenção as parcerias público-privadas (PPPs), espécie de concessão que vem ganhando espaço nos últimos anos, tanto no meio acadêmico quanto na prática. Este artigo pretende abordar o contrato de PPP sob a ótica do Problema do Custo Social, de Ronald Coase. Inicia-se o trabalho por uma definição do que vem a ser bem público e a noção de concessão, especificamente, como se define a PPP. Segue-se, então, para uma menção à ordem econômica e aos aspectos concernentes à boa gestão pública. Por fim, apresenta-se o trabalho de Coase, com o conceito de custos de transação, e a sua aplicação na análise de alguns dos mais relevantes pontos referentes ao contrato de parceria, de acordo com a experiência prática.

2 BENS PÚBLICOS E CONCESSÕES DE SERVIÇO PÚBLICO São bens públicos, como definido no artigo 98 do Código Civil, “os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno”. Este conceito, porém, não condiz com a abrangência real do conceito de bem público, por não abarcar a noção de afetação, visto que são também públicos os bens não pertencentes as pessoas jurídicas de direito público, mas que estão afetados a um serviço público. (MELLO, 2013, p. 929) Historicamente, a concepção de bem público passa justamente pela contraposição dessa ideia de afetação e do bem público como propriedade exclusiva do Estado. Proudon e Ducroq, baseados no antigo Direito Romano, destacaram que faltava ao bem público justamente a exclusividade, além dos atributos de uso, fruto e disponibilidade. A acepção moderna, seguindo essa tradição, define então a propriedade pública, que não difere essencialmente da propriedade privada, diferenciando-se apenas pela existência da afetação. (DI PIETRO, 2008, p. 670) A afetação, em princípio, seria a utilização pelo Estado de determinado bem público para a execução de determinado serviço público, que pode ser executado tanto diretamente pela Administração quanto por meio de autarquias e empresas

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públicas, além da concessão para particulares. Isso ocorre em razão das dificuldades sofridas pela Administração ou pelo órgão titular do serviço pela grande atribuição de atividades ou, ainda, a insuficiente dotação orçamentária, gerando, principalmente, maiores conseqüências no âmbito econômico e prejudicando a finalidade atribuída a determinado bem público. Para essas hipóteses, uma das soluções que a Administração Pública utiliza para suprir a sua incapacidade de execução do serviço é recorrer à iniciativa privada, por meio de concessões e permissões públicas, firmados através de contratos administrativos, nos quais as partes, apesar de ter interesses contrapostos, unem esforços para a execução do serviço, sendo portanto um instrumento de agregação de sujeitos para ampliar os meios necessários para a promoção de um fim de grande relevância. Portanto, essa espécie de concessão de serviço público, em seu sentido amplo, é uma modalidade de implementação de políticas públicas, tendo por fim a realização de valores constitucionais fundamentais. (JUSTEN FILHO, 2014, p. 759)

2.1 As Parcerias público-privadas

Espécie de concessão utilizada em obras e serviços vultosos, as parcerias público-privadas são firmadas por meio de contratos administrativos, nas modalidades patrocinada e administrativa, de acordo com a lei 11.079/04, como esclarecem Evandro Martins Guerra e Luiz Felipe Mucci Barbosa:

Consoante a legislação vigente, há duas espécies contratuais de parcerias: a concessão patrocinada, na qual há a assunção de serviços ou obras públicas pelo particular e, além da tarifa cobrada do usuário, há a exigência de uma contraprestação por parte do parceiro público, paga diretamente ao parceiro privado, com o objetivo de viabilizar a prestação dos serviços públicos concedidos, caso não sejam autossustentáveis do ponto de vista econômico; e a concessão administrativa, que envolve a prestação de serviços de que a Administração Pública seja usuária direta ou indireta, ainda que implique na execução de obra ou fornecimento e instalação de bens, sendo que o parceiro público atua como investidor único, uma vez que usufrui da obra ou dos serviços. (GUERRA, BARBOSA, 2010, p. 13)

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A necessidade desses tipos de concessões se baseiam na explicação de que o Estado não consegue arcar com atividades de alto custo e não auto-sustentáveis economicamente. Para manter a disponibilidade do serviço público, a Administração Pública concede essa função à iniciativa privada, cuja a finalidade é manter a eficiência do serviço, almejando os princípios da eficiência e da legalidade, além de acarretar benefícios ao parceiro privado, que busca, ao mostrar interesse em determinada função, para a obtenção de lucro, investir e obter resultados de seu empreendimento. Nessas concessões, em especial a administrativa, o prazo mais prolongado tem como objetivo exatamente garantir tempo necessário para que o parceiro privado tenha retornos de seu investimento. No que tange às concessões administrativas, BINENBOJM demonstra o seguinte:

A lógica econômica da concessão administrativa de serviços ao Estado prende-se não apenas ao esgotamento da capacidade de endividamento e investimento do Estado, mas também à busca por um aumento do grau de eficiência na gestão de obras e serviços públicos e no dispêndio de recursos oficiais. O prazo mais dilargado (entre 5 e 35 anos) é justificado pela necessidade de amortização diferida do investimento feito pelo parceiro privado, na medida em que os serviços forem sendo prestados. Com efeito, só prazos mais longos na prestação de serviços podem tornar atrativos os investimentos vultosos exigidos do particular. De outro lado, a maior flexibilidade na elaboração do projeto (projeto básico e projeto executivo), a transferência de parte dos riscos do empreendimento e a variabilidade da remuneração conforme os resultados alcançados criam incentivos para a execução das tarefas, com maior eficiência gerencial, pelos parceiros privados. (BINENBOJM, 2005, p. 5)

Resta evidente que a capacidade de gestão da iniciativa privada e a sua eficiência na consecução dos serviços aparece como um grande atrativo dentro de um contexto de incapacidade financeira do Estado para investir em infra-estrutura, implicando numa moderna consciência de responsabilidade na gestão fiscal, haja vista a carga tributária teratológica. (GUERRA, BARBOSA, 2010, p. 14)

3 A ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO: ASPECTOS CONCERNENTES À BOA GESTÃO

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A ordem econômica, em um primeiro sentido, não normativo, pode ser caracterizado como o estado de ser de uma economia de determinada sociedade, concernente à situação de fato, em que se ocorre os fenômenos e fatores econômicos concretos, ou seja, a forma como se dá a realidade econômica. Porém, em um sentido jurídico, podemos analisar a ordem econômica como uma ordem jurídica da economia, sendo um conjunto de normas, qualquer que seja sua natureza jurídica, porém respeitando a regulação dos sujeitos econômicos, além do sistema normativo (em seu aspecto sociológico) da ação econômica de cada agente que compõe a sociedade. (MOREIRA apud GRAU, 2014, p. 65) A Constituição, em seu artigo 170, ressalta expressamente os princípios que regem a atividade econômica e, de forma ampla, a ordem econômica, destacando em seus incisos a livre iniciativa e a livre concorrência, porém sempre "conforme os ditames da justiça social". Observando o disposto, a Carta Magna deixa claro o modelo mais intervencionista da economia, expressamente regulado no artigo 174 da CR: "Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções da fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado". Podemos, concluir que, além da função legisladora de estabelecer os critérios necessários para a atuação dos diversos setores da economia, respeitando as competências de cada ente federativo em se tratando das matérias no âmbito público e privado, cabe ao Estado também a atuação interventora de forma direta ou indireta conforme o caso concreto. Em relação à sua função de fiscal e interventor, diversas formas são implementadas, sendo na forma indireta por meio de agências reguladoras, como o CADE, seja na forma direta, através de instrumentos repressivos que provém diretamente do Estado. No entanto, no tocante às questões estruturais do Estado, o mesmo carecia de recursos necessários para a promoção e estímulo no crescimento estrutural brasileiro. Com o advento da lei 11.079/04, que possui como um dos objetivos o aumento de recursos para o estímulo do desenvolvimento de infraestrutura com a atuação conjunta das instituições públicas e privadas, por meio de contratos junto às empresas privadas, com o objetivo de promover a boa gestão, sendo o Estado o interessado, "uma vez que as externalidades positivas envolvidas na atividade

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importam, não só aqueles envolvidos, senão para a realização do interesse de toda a coletividade." (CASTRO, 2014, p. 167) Com isso, podemos caracterizar estes contratos como contratos relacionais, cujas características seriam a sua longa duração, respeitando a própria dinâmica do contrato e do empreendimento e a possibilidade de maior diálogo entre as partes para o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do empreendimento. O contrato de parceria público-privada, devido a natureza e o risco decorrente do objeto contratual, exige uma maior cooperação entre os contratantes, objetivando a realização dos interesses vinculados ao contrato e maximizando o processo executivo, tendo como ponto essencial a formulação de cláusulas bem definidas, baseadas na boa fé objetiva. Ainda acerca da natureza deste contrato, é importante destacar que, mesmo antes da celebração do contrato, deverá ser feita uma projeção de investimentos futuros, com base em dados advindos do procedimento, e consequentemente tentar prever a chamada taxa interna de retorno (TIR), que seria o provável retorno financeiro ao longo da execução do empreendimento, podendo ser modificada mediante o aumento de riscos decorrentes de casos de força maior, fato do príncipe ou questões econômicas sofridas pelo parceiro privado, todas não previsíveis e não podendo ser imputadas ao parceiro privado. Logo, podemos afirmar que "a TIR inicialmente prevista, por sua vez, poderá sofrer alterações não apenas em razão da ocorrência de efeitos gravosos, mas também como resultado do bom ou mau gerenciamento do contrato pelo parceiro privado." (PRADO FILHO, 2014, p. 182)

3.1 A Responsabilidade decorrente do dever de fiscalizar

Além da Constituição atribuir ao Estado, de forma genérica, a função de fiscalizar a atividade econômica, os artigos 5º e 6º da lei das parcerias público privadas regulam especificamente a forma pela qual se dará a avaliação do desempenho do parceiro privado, além do pagamento decorrente de tal desempenho.4

4

Art. 5º As cláusulas dos contratos de parceria público-privada atenderão ao disposto no art. 23 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, no que couber, devendo também prever: (...)VII - os critérios objetivos de avaliação do desempenho do parceiro privado; Art. 6º A contraprestação da Administração Pública nos contratos de parceria público-privada poderá ser feita por:

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Interessante ressaltar que, no tocante a remuneração do parceiro privado, esta se dará não só mediante o estabelecimento de tarifa para o usuário, mas também pelo pagamento de contraprestação pecuniária feita pelo Estado. Para avaliar o quantum devido pelo parceiro público ao parceiro privado, as parcerias público-privadas estabelecem o chamado quadro de indicador de desempenho relativos ao objeto do contrato, sendo um importante aspecto para o ajustamento institucional do contrato e permitindo uma melhor fiscalização pelo poder público. Nas palavras de Rodrigo Pironti:

Assim, como a potencial remuneração do particular é maximizada pelo seu desempenho, necessário se faz que os critérios estabelecidos para análise do seus indicadores relativos ao objeto do contrato sejam dispostos, de maneira clara e objetiva, a uma, para permitir que o concessionário realize suas atividade tendo em vista uma meta (índice) que lhe permita transparência relacional; a duas, porque é fundamental permitir uma fiscalização adequada pela Administração (ou por quem lhe faça as vezes). (Grifo nosso) (CASTRO, 2014, p. 173)

4 CUSTO SOCIAL A teoria do Custo Social, de Ronald Coase, consiste, essencialmente, na noção de que o objetivo do sistema legal, de uma perspectiva econômica, seria definir padrões de direitos, de forma a gerar eficiência econômica. (MEDEMA, ZERBE JR. apud COASE 1999, p. 1-2) Coase destaca a relevância do papel da norma no aumento ou redução dos custos de transação e aponta o sistema legal como ferramenta para reduzir esses custos ou minimizar os prejuízos causados pelo impacto negativo das normas nas relações econômicas. (MEDEMA, ZERBE JR. apud COASE 1999, p. 2)

(...)§ 1º O contrato poderá prever o pagamento ao parceiro privado de remuneração variável vinculada ao seu desempenho, conforme metas e padrões de qualidade e disponibilidade definidos no contrato. (Renumerado pela Lei nº 12.766, de 2012)

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Apresenta, assim, um novo paradigma para a regulação da atividade econômica ao demonstrar a importância dos custos de transação, ao apontar que, numa situação em que o direito estaria claramente definido, os custos de transação reduzidos a zero e o sistema de preços funcionasse sem custos, as partes transigiriam naturalmente, e os resultados seriam invariáveis e eficientes. (MEDEMA, ZERBE JR. apud COASE 1999, p. 2)

4.1 Custos de transação

Para um breve esclarecimento, buscamos a definição de custos de transação no trabalho de Huáscar Fialho Pessali, que explicou o conceito ao dizer que os custos de transação seriam, para os sistemas econômicos, análogos ao atrito em sistemas estudados pela Física. Nesse diapasão, os custos de transação seriam os custos nos quais há de se incorrer quando se recorre ao mercado. (PESSALI, 1999, p. 44) De forma mais direta, exemplifica, seriam os custos em se “localizar um outro agente disposto à transação, comunicarem-se e trocarem informações que não se resumem aos preços.” (Grifo nosso) (PESSALI, 1999, p. 44)

4.2 Aplicação do Custo Social nas Parcerias público-privadas

Colocada, em breve explanação, a ideia geral do que seria a noção de custo social e entendida a importância do conceito de custos de transação, partimos para a análise do contrato de parceria sob a ótica deste conceito, com o objetivo de determinar o grau de eficiência do instituto em face do contexto atual em que se insere a iniciativa privada brasileira e sua relação com o Estado. Será feita, então, breve análise de alguns dos principais problemas enfrentados na implatanção das PPPs no Brasil, quais sejam: o financiamento, a fiscalização e o equilíbrio econômico-financeiro.

4.2.1 Financiamento

O primeiro ponto que pretendemos analisar é o do financiamento das obras e serviços objetos do contrato de parceria.

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Como explica José Virgílio Lopes Enei, o mote da PPP é o compartilhamento. Diferente das outras formas de concessão, o financiamento da obra ou serviço a ser executado por meio de um contrato de parceria situa-se num cenário intermediário quanto à responsabilidade pelo financiamento da obra. O risco do financiamento competiria primordialmente ao parceiro privado, havendo a possibilidade da mitigação ou compartilhamento desse risco com o Poder Público, como se infere da alocação objetiva de riscos do art. 4º, VI da Lei 11.079/2004. (ENEI, 2014, p. 113) Desta feita, a busca por alternativas de financiamento que tragam o maior retorno para os acionistas de uma Sociedade de Propósito Específico titular de uma PPP passa a ser um fator determinante para a execução do objeto contratado. (ENEI, 2014, p. 120) Este problema foi enfrentado, na prática, de duas maneiras: pelo financiamento do capital próprio, que busca alternativas para o levantamento de recursos pelos próprios parceiros, por meio de operações como joint venture, corporate finance e IPO (initial public offering), e pelo financiamento sob a forma de dívida, feito pela operação conhecida como project finance, sendo esta a mais comum, marcada pela forte atuação dos bancos públicos. (ENEI, 2014, p. 117-122) A partir disso, é possível perceber que o financiamento da obra ou serviço passa por uma série variáveis, quais sejam:

a) Primeiramente, a escolha da melhor alternativa para o financiamento do contrato de parceria; b) O surgimento, pela natureza das alternativas, de novos sujeitos relevantes para a execução do contrato; c) O surgimento de novos instrumentos contratuais, que viabilizariam a alternativa escolhida para o financiamento, relacionados ao contrato principal, de parceria, com vistas a garantir a captação de recursos.

Ora, está claro que todas essas variáveis implicam em elevados custos de transação, ponto central da nossa análise. Entretanto, tendo em vista a natureza vultosa das obras e serviços realizados dentro dos moldes das PPPs, a legislação mostrou uma evolução no sentido de uma maior eficiência do contrato, visto que, diferente do que se via nas outras formas de concessão, “o racional das PPPs permite mitigar o risco do financiamento, primariamente a cargo do parceiro privado, por meio do aporte de recursos,

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contraprestação pública e garantias prestadas pelo parceiro público.” (ENEI, 2014, p. 125)

4.2.3 Fiscalização Como aponta Rodrigo Pironti Aguirre de Castro, a relevância das “parcerias em sentido estrito está relacionada à sua eficiência econômica.” (CASTRO, 2014, p. 172) Em seu trabalho, Castro analisa a fiscalização especificamente no caso do Quadro de Indicadores de Desempenho (QID), “que consistem na avaliação periódica da concessionária, para fins de positivação de sua remuneração, é dizer, quanto melhor for o desempenho da concessionária, maior será seu retorno tarifário.” (CASTRO, 2014, p. 172) Nesse sentido, o estabelecimento do chamado Verificador Independente de desempenho, “por meio da contratação de empresa, que tem por objetivo aferir o desempenho da concessionária através da emissão da nota do QID.” (CASTRO, 2014, p. 174) Trata-se de alternativa, como esclarece Castro, para atrair a iniciativa privada para contratos de longa duração, sendo importante, porém, o questionamento dos seguintes pontos, levantados pelo autor: o poder da Administração em relação à nota atribuída; a possibilidade da Administração decidir contrariamente à nota; quem deve contratar o verificador; e quem deve pagar pelo serviço. (CASTRO, 2014, p. 173) A resposta para essas questões, clarifica, está na responsabilidade do Poder Público pela fiscalização, sendo este o responsável para realizar a contratação, por meio de licitação, de empresa não vinculada às partes da parceria, devendo eventual ato da Administração contrário à nota ser devidamente justificado. (CASTRO, 2014, p. 174) É possível perceber, a partir dessa análise, que, assim como as alternativas para o financiamento, as opções para a fiscalização implicam na incorrência em elevados custos de transação. Trata-se, especificamente, de custos relacionados a procura por um agente disposto a transação, qual seja, o Parceiro Privado, além dos custos referentes à contratação do verificador e suas implicações, ou seja, os custos

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de transação referentes a fiscalização do contrato, a fim de garantir seu devido cumprimento. Nesse sentido, percebemos que a flexibilidade e os novos termos para a contratação trazidos pela Lei 11.079 obrigam o Parceiro Público a adotar uma postura mais comprometida com uma gestão mais eficiente dos recursos públicos, o que permite um custo global mais satisfatório em relação a outras espécies de concessão, considerado o vulto do investimento natural da PPP.

4.2.4 Equilíbrio econômico-financeiro

O maior desafio à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de parceria é a longa duração do contrato, o que dificulta a determinação na equação econômico-financeira inicial, haja vista a sujeição do contrato a um considerável grau de imprevisibilidade, decorrente da sua duração. (PRADO FILHO, 2014, p. 177-180) A Lei 11.079 apresenta, como meio de enfrentar esse problema, em seu artigo 5º, III, “a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária.” Nesse sentido, como explica Francisco Octavio Almeida Prado Filho, “eventual imputação – pelo edital de licitação e pelo contrato – ao parceiro privado, de um risco inerente à atuação do parceiro público, irá estimular os proponentes a aumentarem o valor de suas propostas para fazer frente a um risco que são incapazes de gerenciar.” (PRADO FILHO, 2014, p. 177-180) Da mesma maneira, “quando, de outra parte, forem atribuídos aos parceiros privados riscos inerentes às suas áreas de atuação, estar-se-á estimulando a competição e o ganho de eficiência com a redução dos riscos por meio de um bom gerenciamento. (PRADO FILHO, 2014, p. 177-180) Essas constatações são importantes na medida em que acarretam na ausência de direito de qualquer das partes ao reequilíbrio econômico-financeiro em razão de riscos que lhe tenham sido atribuídos no instrumento convocatório ou no próprio contrato. (PRADO FILHO, 2014, p. 177-180) Não se resume, porém, a repartição de riscos (ou matriz de riscos, como convecionou-se chamar) a impactos negativos, visto que a boa gestão e a redução

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do riscos atribuídos resultará numa maior rentabilidade do contrato para a parte que as realizar. (PRADO FILHO, 2014, p. 177-180) É nesse sentido que se estabelece a Taxa Interna de Retorno (TIR), já mencionada neste artigo, cuja possibilidade de modificação ao longo do cumprimento do contrato reflete a flexibilidade trazida pela Lei 11.079/2004. (PRADO FILHO, 2014, p. 180-181) Nesse contexto, é possível concluir que, com a atribuição objetiva de riscos trazida pela lei, além dos novos instrumentos para o controle do equilíbrio econômico-financeiro, houve um considerável aumento de previsibilidade e meios de adequação dos investimentos no contrato de parceria, reduzindo efetivamente os custos de transação, uma vez que eventuais renegociações são mais facilmente previsíveis, o que possibilita a execução de serviços e obras tão complexas quanto as que são objeto das PPPs.

5 CONCLUSÃO

Diante de um tema tão rico e aberto a possibilidades, procuramos uma abordagem que estivesse ligada à propagação, no meio jurídico, das noções de eficiência e do impacto econômico da norma. Vimos que a atividade legislativa implica na criação de incentivos para que as partes de um contrato de qualquer espécie ajam de maneira a alcançar os maiores ganhos, dentro daquilo que a lei permite, nos limites de seu direito subjetivo. Tratase de uma corrida pela eficiência, em que a norma é ora incentivo, ora obstáculo. Como foi possível perceber no decorrer deste trabalho, essa realidade não é diferente para os contratos em que é parte o Poder Público. Deve a Administração, portanto, estar sempre atenta às alternativas criadas pelos agentes do mercado quando reagem à intervenção do Estado no domínio econômico. Mais do que a lei, é a realidade que dá vida ao direito.

REFERÊNCIAS

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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22ª Edição. Editora Atlas. São Paulo, 2009.

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FREIRE, André Luiz. Comentários aos arts. 1º, 2º e 3º da Lei das PPPs. In: DAL POZZO, Augusto Neves. VALIM, Rafael. AURÉLIO, Bruno. FREIRE, André (coord.). Parcerias público-privadas:teoria geral e aplicação nos setores de infraestrutura. 1º edição.Editora fórum. Belo Horizonte, 2014.

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PESSALI, Huáscar Fialho. Teoria dos Custos de Transação: Hibridismo Teórico? Uma apresentação aos principais conceitos e à literatura crítica. In: Economia em Revista, volume 8, 1999.

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THE PUBLIC-PRIVATE PARTNERSHIPS: ECONOMIC ANALYSIS UNDER THE PRISM OF EFFICIENCY AND LEGALITY

ABSTRACT

This article aims to analyze the contracts of public-private partnership (PPP) from the perspective of the Ronald Coase’s Theory of Social Cost, specifically the concept of transaction costs. It is an economic analysis of some of the main challenges in the implementation of PPPs in Brazil.

Key-words: Public Contracts. Public-Private Partnership. Economic Analysis of Law. Social Cost. Transaction Costs.

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A TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE TERRORISMO E A INFLUÊNCIA MIDIÁTICA NA ELABORAÇÃO DE NORMAS PENAIS

Bernardo Oliveira Couto Carvalho Bruno Santos Arantes Vieira Mateus Salles Bittencourt

RESUMO

Este artigo analisará a tipificação do terrorismo. O que será feito a partir de uma dialética entre a elaboração de normas simbólicas e um sistema penal baseado no princípio da legalidade. Além disso, analisará a necessidade de tal tipificação.

Palavras-chave: Terrorismo. Tipificação. Princípio da Legalidade.

1 INTRODUÇÃO

A influência da Mídia na elaboração de normas penais inicia-se com a exposição de maneira sensacionalista de casos criminais famosos, de forma a induzir na população um sentimento generalizado de ineficácia no sistema penal. Então com o intuito de acalmar a população, o legislador elabora apressadamente e precipitadamente uma norma penal simbólica, que será denominada ao longo do texto de norma midiática. Esta influência deletéria da mídia na criação de normas penais que acarreta em violação dos princípios constitucionais-penais, tal como o princípio da legalidade, ocorre no caso do Projeto de Lei 499 que pretende tipificar o crime de terrorismo. O mencionado Projeto de Lei afronta o princípio da legalidade, pois o tipo penal que se pretende criar é vago e impreciso. Ademais, a simples criação do delito de terrorismo é desnecessária. Isto porque ainda que este detenha algumas particularidades em relação aos demais

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crimes presentes nas legislações penais vigentes, a punição ao referido crime pode se dar utilizando-se as normas penais vigentes.

2 A ELABORAÇÃO DA NORMA MIDIÁTICA

É cediço o papel primordial da Mídia como formadora de opinião. Como bem ilustra a lição de Oacir Silva Mascarenhas: ...emissoras de rádio, jornais e, mormente os veículos televisivos, bombardeiam notícias e informações diuturnamente com o pseudo-escopo de formar cidadãos. Não foi por acaso que há muito tempo a Mídia foi alcunhada de “QUARTO PODER”. Ela realmente exerce poderes “supraconstitucionais”. Investiga, denuncia, acusa, condena e executa. Sua inegável força dentro das instituições e o seu poderio econômico e ideológico transformaram-na em uma espécie de condutora das massas e ditadora de regras. 5

Neste diapasão é notória a influência da mídia na elaboração de normas penais, haja vista que em arroubos sensacionalistas, ela espetaculariza casos criminais célebres incutindo na população a crença na ineficácia do sistema penal vigente e na impunidade dos criminosos. Como consequência desta influência, o legislador com a intenção de serenar o ânimo popular aprova normas penais simbólicas, criadas sem a devida reflexão e ponderação, distorcendo a missão ínsita do Direito Penal, qual seja a proteção de bem jurídicos, em flagrante desrespeito aos princípios constitucionais-penais. Tais normas serão denominadas neste trabalho de normas penais midiáticas. Diante disso, é inegável que a mídia tornou-se uma espécie de legisladorapenal, contribuindo para o surgimento de normas penais que fogem do parâmetro racional e acabam por distorcer os ideais orientadores que deveriam reger tais normas em Estado Democrático de Direito. No sistema penal brasileiro o exemplo emblemático de norma penal midiática foi a promulgação da Lei 8072/90, aprovada em menos de 40 dias após uma imensa pressão midiática ocasionada em função dos crimes de extorsão mediante

5

MASCARENHAS, Oacir Silva. A influência da mídia na produção legislativa penal brasileira. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 83, dez 2 010. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br /site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8727&revista_caderno=3>. Acesso em 30/03/2014.

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sequestro praticados contra o empresário Abílio Diniz e o publicitário Roberto Medina. A ausência da devida reflexão e de ponderação dos parlamentares que aprovaram essa famigerada lei pode ser vista nesta frase do então deputado Plínio de Arruda Sampaio: Por uma questão de consciência, fico um pouco preocupado em dar meu voto a uma legislação que não pude examinar: [...] Tenho todo o interesse em votar a proposição, mas não quero faze-lo (sic) sob a ameaça de, hoje à noite, na TV Globo, ser acusado de estar a favor do seqüestro. Isso certamente acontecerá se eu pedir adiamento da votação. 6

A legislação dentre outros excessos, vedava a progressão de regime aos condenados por crime hediondo. Entretanto o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional tal vedação, haja vista que violava o princípio da individualização da pena, razão pela qual foi editada a Lei 11. 464 que regulamentou a progressão de regime no caso dos condenados portais delitos. No caso do Projeto de Lei nº 499 de 28 de novembro de 2013 que pretende tipificar o crime de terrorismo, os veículos midiáticos de grande porte cobriram de maneira sensacionalista a morte do cinegrafista Santiago Ilídio Andrade, atingido por um rojão quando registrava a manifestação contra o aumento das tarifas de ônibus no Rio de Janeiro . Neste sentido é emblemática a nota da Associação Profissional dos Repórteres Fotográficos e Cinematográficos do Rio (Arfoc) escrita nos seguintes termos: Nós, jornalistas de imagem, exigimos que as autoridades de segurança do Estado do Rio de Janeiro instaurem, imediatamente, uma investigação criminal para apurar quem defende, financia e presta assessoria jurídica a esse grupo de criminosos, hoje assassinos, intitulados "Black Blocs", que agridem e matam jornalista e praticam uma série de atos de vandalismo contra o patrimônio público e privado7.

6

PIMENTEL, Aldenor da Silva. O jornalismo e a história da Lei de Crimes Hediondos. In: ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MÍDIA, 8., 2011, Guarapuava. Anais eletrônicos. [s.L.]: Unicentro, [2011]. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/8o-encontro-20111/artigos/O jornalismo e a historia da Lei de Crimes Hediondos.pdf/view>. Acesso em: 21/09/2014. 7

Associações lamentam morte cerebral de cinegrafista no Rio de Janeiro. Disponível em <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/02/associacoes-lamentam-morte-cerebral-decinegrafista-no-rio-de-janeiro-4415574.html>, acesso em 27/09/2014.

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A trágica morte do cinegrafista ocorrida em fevereiro de 2014 chamou a atenção para o projeto de Lei, o qual já existia e cuja análise é objeto deste artigo. O senador Jorge Viana (PT-AC), discursou em Plenário e concedeu entrevistas defendendo a aprovação do projeto, como se depreende do seguinte trecho: A grande maioria da população está lá livremente fazendo seu protesto, fazendo uma ação pedagógica. Mas tem uma minoria que age como bandido, são criminosos. Isso tem de se combatido e nós não temos lei à altura. O PLS 499 está incluído na pauta desta semana e tenho a expectativa que haja entendimento para que se aprove esse projeto. Essa ação se enquadraria perfeitamente na definição de terrorismo presente no projeto – disse Jorge Viana8.

O exposto sintetiza o pensamento de André Luis Callegari e Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth9, os quais asseveram que a ocorrência do populismo penal se divide em três fases. A primeira delas é a influência da mídia sensacionalista que, tendo como preocupação primária conseguir audiência, deixa a população sedenta por justiça, e com a sensação de que a solução para o problema é efetivar um direito penal mais rigoroso. A relação em cadeia continua com a adequação legislativa aos novos anseios do povo, seguindo-se a velha máxima de que “deve se falar aquilo que as pessoas desejam ouvir”. Os políticos então passam, por interesses políticos, a realizar os desejos de uma população que quer justiça a qualquer preço. A terceira fase deste abominável processo é a consequência, qual seja, o rompimento com os princípios básicos de direito penal, como a legalidade, a ultima ratio, a proporcionalidade, a efetividade, entre outros.

3 A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DA TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE TERRORISMO NO PROJETO DE LEI (PL) N º 499.

Preliminarmente, o artigo 2º do supracitado PL assim dispunha sobre o crime de terrorismo:

8

Morte de cinegrafista ferido durante manifestação repercute no Senado. Disponível em <http://www12. senado.gov.br/noticias/materias/2014/02/10/morte-de-cinegrafista-ferido-durantemanifestacao-repercute-no-senado>, acesso em 27/09/2014. 9CALLEGARI,

André Luis; Wermuth, Maiquel Ângelo Dezordi. Deu no jornal: Notas sobre a contribuição da mídia para a (ir)racionalidade da produção legislativa no bojo do processo de expansão do direito penal . Revista Liberdades. Revista nº 2: setembro. 2009.

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Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa á vida, á integridade física ou á saúde ou á privação de liberdade de pessoa. Pena – reclusão, de 15 (quinze) a 30 (trinta) anos10.

Posteriormente, o Senador Pedro Taques, reconhecendo a vacuidade e a incerteza contidas nas elementares do tipo (provocar ou infundir terror ou pânico generalizado), propôs a Emenda de Plenário nº 1, alterando a redação do respectivo artigo. In verbis: Art. 2º. Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física, à saúde ou à liberdade de pessoa, quando: I – tiverem por fim forçar autoridades públicas, nacionais ou estrangeiras, ou pessoas que ajam em nome delas, a fazer o que a lei não exige ou deixar de fazer o que a lei não proíbe; II – tiverem por fim obter recursos para a manutenção de organizações políticas ou grupos armados, civis ou militares, que atuem contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; ou III – forem motivadas por preconceito de raça, cor, etnia, religião, nacionalidade, origem, gênero, sexo, identidade ou orientação sexual, condição de pessoa idosa ou com deficiência, ou por razões políticas, ideológicas, filosóficas ou religiosas. Pena - reclusão, de 15 (quinze) a 30 (trinta) anos11.

Finalmente, o Senador Romero Jucá propôs a Emenda de Plenário nº 13 que pretende criar o art. 14 com a seguinte redação: Art. 14 Esta Lei não se aplica a manifestações políticas, conduta individual ou coletiva de pessoas, movimentos sociais ou sindicatos, movidos por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando contestar, criticar, protestar, apoiar com o objetivo de defender ou buscar direitos, garantias e liberdades constitucionais.

Esta emenda foi decorrente da crítica de que o novel diploma legislativo poderia ser utilizado para criminalizar diversos movimentos sociais exempli gratia, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o Movimento Passe Livre e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.

10SENADO

FEDERAL. Projeto de Lei do Senado nº 499, de 2013. Disponível em <http://www.senado.leg.br /atividade/materia/getPDF.asp?t=141938&tp=1>, acesso em 21/09/2014. 11 SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado nº 499, de 2013. Disponível em http://www.senado.leg.br/ atividade/materia/getPDF.asp?t=145100&tp=1>, acesso em 21/09/2014.

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4 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E O DELITO DE TERRORISMO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88) prevê o princípio da legalidade, ao dispor no art. 5º, XXXIX, que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Idêntica disposição é encontrada no art. 1º do Código Penal Brasileiro de 1940. Entretanto, em um Estado que pretenda efetivamente ser um Estado Democrático de Direito12 é necessária a transposição de um conceito meramente formal de legalidade para um material, sendo ambos indispensáveis à aplicação da lei penal. Neste diapasão é a lição de Luciano Santos Lopes: É importante considerar a legalidade no seu plano material. Trata-se de afastar este discurso do princípio vazio de conteúdo. A busca é pela legitimidade do Direito. Como ressalva, explica-se que a necessidade de verificação da legalidade material no ordenamento jurídico não implica desconsiderar o plano formal. Ao contrário, aceitar sua concepção material significa acrescer legitimidade à norma vigente. As percepções se completam. 13

Para que uma lei penal se adeque a um conceito de legalidade formal, basta que ela obedeça aos trâmites procedimentais estabelecidos na Constituição para que a referida lei tenha vigência. Ao passo que a legalidade material exige que a supracitada lei obedeça ao conteúdo ditado pela Constituição da República de 1988, mormente os seus princípios. Neste texto adotar-se-á como modelo de legalidade material, a legalidade estrita proposta por Luigi Ferrajoli. Segundo a qual são exigências da legalidade penal, a necessidade de uma lei penal, a ofensa a um bem jurídico tutelado pelo direito penal, a ação ou omissão, a culpabilidade, o juízo, a acusação independente do juízo, as provas e a defesa. Ao adotar um conceito tão rigoroso de legalidade tem-se o escopo de evitar que o sistema penal incorpore juízos de valor extralegais, tais como a periculosidade ou a imoralidade do autor. 12

Assim dispõe a CR/88: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito(...) 13 LOPES, Luciano Santos. A constitucionalização do direito penal e a proteção de direitos fundamentais em um ordenamento garantista. In: OLIVEIRA, Bruno Queiroz et al. Direito penal no século XXI: desafios e perspectivas. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012. p. 323-342. Coordenadores Bruno Queiroz Oliveira e Nestor Eduardo Araruna Santiago.

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Ademais se busca garantir que o conteúdo normativo penal seja formado por tipos dotados de significado preciso e unívoco, a fim de se evitar arbitrariedades tanto do legislador ao elaborar a lei penal quanto do magistrado ao aplica-la. A doutrina costuma denominar essa exigência pela construção de tipos penais unívocos de subprincípio ou postulado da taxatividade. No caso da tipificação do delito de terrorismo previsto no PL 499, ainda que sejam aprovadas as Emendas de Plenário citadas no item 2, o subprincípio da taxatividade será violado. Isto porque as elementares do tipo [provocar ou infundir terror ou pânico generalizado] são conceitos jurídicos indeterminados, dotados de elevado grau de incerteza e vacuidade, acarretando inexoravelmente em arbitrariedade nas prisões preventivas e nas condenações por tal crime.

5 (DES) NECESSIDADE DA TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE TERRORISMO

Até o presente momento, esse artigo se concentrou em tecer críticas sobre o Projeto de Lei 499 que pretende tipificar o crime de terrorismo no Brasil. Entretanto é necessário ir além do respectivo projeto e analisar a necessidade de tipificação do mencionado delito. Esse tópico se dedicará a este objetivo. Primeiramente, é necessário distinguir a diferença básica do terrorismo em relação aos demais delitos tipificados no ordenamento penal. Enquanto nestes o objetivo do delinquente é lesar ou ao menos expor a perigo o bem jurídico tutelado na norma penal, naqueles a intenção do agente é a subversão da própria ordem normativa constitucional, bem como induzir a descrença da sociedade civil na efetividade das instituições democráticas que deveriam garantir a segurança pública. Portanto, a intenção do terrorista é a de causar pânico generalizado á ordem pública, e a lesão dos bens jurídicos atingidos pela conduta é apenas a forma de alcançar este objetivo nefasto. Com o intuito de enfrentar este tipo específico de criminalidade desenvolveuse o direito penal do inimigo. Ele se originou a partir da obra de Gunther Jakobs, segundo o qual terrorista não é uma pessoa dotada de garantias individuais, mas sim um indivíduo hostil que ao invés de ser punido como um delinquente deve ser neutralizado.

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Entretanto, suprimir direitos e garantias individuais de um suspeito de ter praticado atos terroristas ou de pertencer a organizações terroristas ou financiá-las não é a forma adequada de solucionar esse problema. É necessário ter em mente que apesar da ofensa aos bens jurídicos tutelados pela norma penal não ser o móvel da ação do terrorista, ele invariavelmente cometerá delitos tais como o homicídio, a lesão corporal, a extorsão mediante sequestro ou o dano para alcançar o seu objetivo. A resposta a ser dada pelo direito penal deve ser a de identificar, processar, julgar e, eventualmente condenar o terrorista que cometer os delitos previstos no ordenamento penal. Neste mesmo sentido é a lição de Eugenio R. Zaffaroni: (...) Se delitos são cometidos, seus responsáveis deverão ser individualizados, detidos, processados, julgados, condenados e levados a cumprir pena. É isso que o direito penal pode fazer. Se os delitos tiverem a gravidade e as características de crimes de lesa- humanidade, deverão receber o tratamento reservado para esses delitos; se não as tiveram, deverão ser apenados conforme os tipos que a posse de explosivo pode acarretar, i.e., o homicídio como meio capaz de provocar grandes estragos, os estragos seguidos de morte, o assalto a mão armada, o sequestro, a falsificação e o uso de documentos falsos, a ocultação qualificada, a associação ilícita etc., todos ampliados em cada caso, conforme as regras da participação, da tentativa e dos princípios que regulam o concurso material ou formal. 14

A seguir, o penalista argentino arremata dizendo: “as penas para estes ilícitos não são benignas em nenhum código penal do mundo, e por isso supõe- se que, em caso de condenação, estão previstas penas bastante prolongadas”. Com as devidas vênias ao grande mestre, acredita- se que as penas cominadas a estes crimes devem ser aumentadas caso sejam praticadas no contexto do terrorismo, pois a previsão desse aumento de pena é consentânea com o princípio da proporcionalidade, ao prever uma sanção mais gravosa em decorrência do maior desvalor da ação. Aliás, essa estratégia foi adotada pelo Código Penal Português15.

14

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. Tradução de Sérgio Lamarão. 15

Artigo 301º - Terrorismo - 1 - Quem praticar qualquer dos crimes previstos nas alíneas a) a d) do nº 2 do artigo anterior, ou qualquer crime com o emprego de meios referidos na alínea e) do mesmo preceito, com a intenção nele referida, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos, ou com a pena correspondente ao crime praticado, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo, se for igual ou superior àquela. Disponível em: http://www.juareztavares.com/textos/codigoportugues.pdf. Acessado em 21/09/2014

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Ante o exposto, conclui-se que não há a necessidade da tipificação do crime de terrorismo, mas defende-se o aumento da pena quanto aos crimes já previstos no sistema jurídico penal, quando tais delitos forem cometidos por terroristas com o intuito de subverter a ordem normativa constitucional, por meio da difusão do pânico generalizado á ordem pública.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, o Projeto de Lei 499 que pretende tipificar o crime de terrorismo se enquadra como uma norma penal simbólica, tendo em vista que ganhou celebridade e clamor por sua aprovação após a cobertura sensacionalista da mídia em relação à trágica morte do cinegrafista Santiago Ilídio Andrade, atingido por um rojão quando registrava a manifestação contra o aumento das tarifas de ônibus no Rio de Janeiro. A tipificação do terrorismo como pretende o mencionado projeto de lei é ilegítima, pois a vagueza das elementares provocar ou infundir terror ou pânico generalizado afronta o princípio constitucional da legalidade. Outrossim, a própria criação do crime de terrorismo é desnecessária, tendo em vista que apesar da finalidade do terrorista não ser a de lesar bens jurídicos penalmente tutelados, ele invariavelmente acaba violando tais bens, podendo ser punidos por tais condutas.

REFERÊNCIAS

Associações lamentam morte cerebral de cinegrafista no Rio de Janeiro. Disponível em <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/02/associacoeslamentam-morte-cerebral-de-cinegrafista-no-rio-de-janeiro-4415574.html>, acesso em 27/09/2014.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

JAKOBS, Gunther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. Organização e tradução André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli.

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LOPES, Luciano Santos. A constitucionalização do direito penal e a proteção de direitos fundamentais em um ordenamento garantista. In: OLIVEIRA, Bruno Queiroz et al. Direito penal no século XXI: desafios e perspectivas. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012. p. 323-342. Coordenadores Bruno Queiroz Oliveira e Nestor Eduardo Araruna Santiago. MASCARENHAS, Oacir Silva. A influência da mídia na produção legislativa penal brasileira. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 83, dez 2010. Disponível em:<http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id= 8727&revista_caderno=3>. Acesso em 30/03/2014.

Morte de cinegrafista ferido durante manifestação repercute no Senado. Disponível em <http://www12. senado.gov.br/noticias/materias/2014/02/10/morte-decinegrafista-ferido-durante-manifestacao-repercute-no-senado>, acesso em 27/09/2014.

PIMENTEL, Aldenor da Silva. O jornalismo e a história da Lei de Crimes Hediondos. In: ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MÍDIA, 8., 2011, Guarapuava. Anais eletrônicos. [s.L.]: Unicentro, [2011]. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/8o-encontro-2011-1/artigos/O jornalismo e a historia da Lei de Crimes Hediondos.pdf/view>. Acesso em: 21/09/2014.

SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado nº 499, de 2013. Disponível em <http://www.senado.leg.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=141938&tp=1>, acesso em 21/09/2014.

SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado nº 499, de 2013. Disponível em http://www.senado.leg.br/ atividade/materia/getPDF.asp?t=145100&tp=1>, acesso em 21/09/2014.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. Tradução de Sérgio Lamarão.

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THE TYPIFYING OF THE CRIME OF TERRORISM AND THE INFLUENCE FROM MEDIA ON REGULATION OF CRIMINAL LAWS

ABSTRACT

This article analyzes the typification of terrorism according to the bill (proposed law) 499. It is done by the dialectic between symbolic elaboration of criminal laws and penal system based on the principle of legality. Furthermore, it also considers the need to do such typifying.

Key-words: Terrorism. Typifying. Principle of Legality.

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O CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL E A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA Mariane Sabrine Ribeiro Matos RESUMO

O presente trabalho visa identificar qual seria o real alcance dos art. 146 e art. 100, parágrafo único do CTN; em quais circunstâncias a conduta do contribuinte, calcado em orientações do Fisco, gera confiança a ponto de dispensar somente as multas (parágrafo único do art. 100) ou o próprio tributo (art. 146); se é possível dizer que o art. 100, parágrafo único, será aplicável nos casos de mudanças ocorridas nos atos normativos genéricos e abstratos, e analisar se tais dispositivos, dentre outros, foram criados pelo Sistema com o fim de se tornarem mecanismos de proteção para garantir a confiança.

Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Segurança Jurídica. Princípio da Confiança. Código Tributário Nacional. Fisco.

1 INTRODUÇÃO

O princípio da confiança é um princípio implícito do Sistema JurídicoTributário brasileiro que determina a previsibilidade em relação às mudanças de linha de conduta pública e, portanto, prestigia o valor Segurança Jurídica. No âmbito do Direito Tributário e na interpretação dos critérios jurídicos possíveis de aplicar uma norma jurídica, se o Estado alterar o seu entendimento acerca de determinado dispositivo legal, implicando maior ou menor encargo ao contribuinte, tais alterações devem valer para o futuro, sob pena de ferimento do princípio da confiança, uma vez que os critérios jurídicos anteriormente aplicados levam a uma expectativa legítima por parte do contribuinte. Mas o princípio está positivado no Código Tributário Nacional que trouxe mecanismos de proteção da confiança, artigos 100 e 146. Assim, possuem o escopo de reduzir a complexidade do mundo fático diante do grau de incerteza que assola os fatos e regramentos sociais.

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Contudo, muito embora o tema deva ser analisado cuidadosamente e a luz dos princípios tributários e administrativos, a questão não vem sendo discutida, limitando-se a uma interpretação literal das normas, sem alguma reflexão mais profunda sobre o fundamento jurídico de cada hipótese.

2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O Estado Democrático de Direito, nas palavras de Nogueira: (...) surge como a modalidade mais avançada do chamado Estado de Direito, incorporando conteúdos da etapa anterior (Estado Social de Direito) e fazendo recair a tônica sobre o aspecto da participação dos cidadãos na realização de seus fins. (NOGUEIRA, 1999, p. 34).

Trata-se de um conceito resultante das lutas sociais após um longo período de revoluções, cujo fim era o resguardo de garantias e direitos fundamentais, tais quais se destacam as vertentes inglesas, com a Revolução Gloriosa, em especial, o Bill of Rigths, de 1688; a norte-americana, com a Declaração de 1787; e a francesa, com a Declaração de 1789. Nesta fase, a preocupação não era apenas na busca de benefícios para a massa populacional, em que se privilegia imensurável quantidade de pessoas, mas sim a distribuição dos benefícios de forma participativa (NOGUEIRA, 1999). O Estado Democrático somente obteve sua consolidação global após o declínio dos regimes totalitários socialistas. Destarte, no final do século XX, a ideologia neoliberal, cujos fundamentos eram os mesmos daqueles que defendiam o Estado Liberal, qual seja, o não intervencionismo estatal na esfera de desenvolvimento econômico e relação de trabalho, questionaram a concepção do Estado Democrático. Todavia, a referida ideologia não deteve a repercussão almejada, e consequentemente, não se concretizou de forma efetiva nas constituições, reafirmando, portanto, a concepção do Estado Democrático de Direito “como fator de transformação das condições político-sociais para a concreção de uma igualdade material”. (ROHENKOHL, 2007, p. 70). Doutro lado, com a virada do século XIX, ocorre o declínio do liberalismo cujo cenário se vislumbrava um sobressaio das diferenças sociais, onde se fez

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necessária a intervenção do Estado a fim de combater tais discrepâncias, trazendo consigo a ideia de uma igualdade material, não mais formal, como no período passado. Cumpre ressaltar a terminologia de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (Apud. SILVA, 1992, p. 86) para o Estado Democrático de Direito, que consiste no “mandamento nuclear” de todo o sistema jurídico brasileiro. Em seguida, passa-se à análise do valor Segurança Jurídica e suas derivações.

3 SEGURANÇA JURÍDICA E PRINCÍPIO DA CONFIANÇA

A Justiça e a Segurança jurídica são pressupostos do Estado Democrático de Direito, uma vez que garantidos os direitos sociais e individuais, caberá ao sistema possibilitar formas de efetivá-los ou preservá-los. Pode-se afirmar que a Segurança Jurídica evidencia-se como valor jurídico, caracterizando-se como certeza e garantia dos direitos, incluída no texto constitucional através do art. 5º. Sacha Calmon sustenta que a essência do conceito de segurança jurídica residiria na possibilidade de previsão objetiva por parte dos particulares de suas situações jurídicas. (MARTINS, 2005, p. 95) Quando respeitado o princípio constitucional da segurança jurídica, no âmbito tributário, o contribuinte poderá conhecer e computar seus encargos tributários com base exclusivamente na lei, possibilitando que o cidadão tenha estabilidade em sua situação econômico-financeira. Para o jurista José Eduardo Soares de Melo, é nítida a configuração do princípio em comento na matéria tributária em face à fixação dos diversos princípios constitucionais concernentes à legalidade, irretroatividade, igualdade, anterioridade, capacidade contributiva, tipicidade, liberdade de tráfego, proporcionalidade, vedação de confisco, razoabilidade, dentre outros. (MARTINS, 2005, p. 204) Impreterível, portanto, a necessidade de limitação ao poder de tributar a fim de garantir a segurança jurídica dos contribuintes quanto a possíveis abusos que possam advir através de um ônus tributário. Não obstante, a segurança jurídica como norma, se dirige a todos, em especial aos Poderes do Estado, acarretando na proteção do indivíduo contra a incidência de normas retroativas restritivas de direitos, garantindo a intangibilidade

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do ato jurisdicional, mediante coisa julgada, e ainda, impedindo a revisão de atos administrativos constitutivos de direitos. (MARTINS, 2005, p. 284) A doutrina ainda é unânime ao certificar que, em seu sentido material, o princípio da confiança trata-se de consequência direta do princípio segurança jurídica. Assim, o ordenamento jurídico, visando assegurar os direitos dos cidadãos a fim de rechaçar qualquer possibilidade de abuso do poder por parte da Administração Pública mediante imposições legais, estabeleceu regras as quais se verifica limitações baseadas em princípios que norteiam a legislação vigente. Destarte, dentre os princípios limitadores pode-se aferir o princípio da confiança, derivado da Segurança Jurídica. Lobato ao caracterizar o princípio em comento dispõe que: A confiança é um princípio implícito do Sistema e que a sua cristalização por outros tantos princípios apenas faz com que sejam estes apenas algumas das manifestações da confiança sistêmica, que permanece latente no Sistema do Direito, a agir quando necessário, permitindo o resgate do passado e a antecipação do futuro. (LOBATO, p. 5)

No âmbito tributário, o contribuinte ao confiar na validade de um conhecido ato normativo geral ou individual e, posteriormente, tem sua confiança frustrada pela descontinuidade da sua vigência ou dos seus efeitos, terá como instrumento de defesa de seu interesse o denominado princípio da proteção da confiança, quando não protegido pelo ato jurídico perfeito ou direito adquirido. (ÁVILA, 2011, p. 360) Diferentemente do princípio da segurança jurídica, o princípio da confiança legítima protege o interesse de uma pessoa específica, utilizado como meio de proteção individual em um nível concreto de aplicação. Esta é a razão pela qual a professora Misabel de Abreu afirma que a proteção da confiança só pode ser considerada de forma unilateral, sempre em favor do contribuinte e não em benefício do Estado. (DERZI, 2009, p. 266 apud ÁVILA, 2011, p. 366) Além disso, há de se ressaltar a relevância da verificação dos elementos da base da confiança cujo propósito é de demonstrar que sua configuração dependerá de vários fatores, uns apresentando maior intensidade que outros, tornando-a devidamente fundamentada por parte do contribuinte.

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4 CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. ANÁLISE DOS ARTIGOS 100 E 146, CTN.

A Administração tem o poder-dever de, em nome de sua vinculação com a juridicidade e com o princípio da legalidade, promover a alteração de seu posicionamento quando posteriormente verifica que uma nova interpretação lhe parece mais adequada em relação à anteriormente adotada. Porém, o cidadão tem direito a segurança jurídica e a estabilidade em sua situação econômico-financeira, motivo pelo qual as autoridades administrativas não possuem qualquer faculdade em utilizar-se de modificações posteriores que tragam prejuízos aos contribuintes, em razão do surgimento de nova análise dos critérios jurídicos adotados. Não somente a lei deve se conter na irretroatividade consagrada no Texto Constitucional, mas também a própria interpretação que integra esta norma jurídica. Nesse contexto, foram criados mecanismos com o intuito de resguardar a proteção da confiança legítima do contribuinte a fim de reduzir a complexidade do mundo fático diante do grau de incerteza que assola os fatos e regramentos sociais.

4.1 Artigo 100, parágrafo único do Código Tributário Nacional

O artigo 100 do CTN enumera as normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos. Confira: Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos: I - os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas; II - as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei atribua eficácia normativa; III - as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas; IV - os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Parágrafo único. A observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo. (BRASIL, 2014) (grifo nosso)

No

que

tange

aos

atos

normativos

expedidos

pelas

autoridades

administrativas, vale ressaltar que estes são editados pelos servidores da administração tributária, cujo objetivo é detalhar a aplicação das normas que complementam, sempre observando, nas palavras do ilustre procurador Ricardo

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Alexandre, “o sentido de que cada norma jurídica encontra fundamento de validade em outra que lhe é superior e com a qual deve guardar estrita consonância”. (ALEXANDRE, 2013, p. 209 e 210) Quanto às decisões dos órgãos coletivos e singulares de jurisdição administrativa, a rigor, não integram a legislação tributária, uma vez que versam sobre casos concretos, objetos de impugnação por determinados sujeitos passivos. Ou seja, não são gerais nem abstratas. Todavia, poderá um ente político atribuir eficácia normativa a tais decisões por meio do instrumento legal, tornando a tese adotada de observância obrigatória pela administração tributária nos casos futuros. No tocante às práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas, nas palavras do ilustre jurista Sacha Calmon, consiste em “causa espécie que atos funcionais, sequer normativos, possam vir a ser considerados como padrão indutor de comportamentos humanos”. (COELHO, 2012, p. 546) Além destas, o legislador admitiu a utilização dos usos e costumes como normas complementares no que se refere àqueles meramente interpretativos. Isto é, as práticas reiteradas não irão inovar em matérias sujeitas a reserva de lei, bem como não irão derrogar disposições legais. (ALEXANDRE, 2013, p. 212) Por fim, os convênios celebrados entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, os quais visam à mútua colaboração entre tais entes para a administração de seus respectivos tributos. Ante o exposto, verifica-se que o artigo em exame dispõe que a observância das normas complementares elencadas no caput deste mesmo artigo, exclui a imposição de penalidades, juros de mora e atualização monetária do valor a ser cobrado no tributo, em que se encontra, acentuadamente, uma atenuação da retroatividade para proteção das expectativas do contribuinte ao proibir o CTN nos casos de mudança de teor do ato.

4. 2 Artigo 146 do Código Tributário Nacional

O Código Tributário Nacional, em seu do artigo 146, determina que os critérios jurídicos utilizados na atividade do lançamento somente podem ser aplicáveis para fatos geradores futuros, em relação a um mesmo indivíduo. Esse o teor do referido dispositivo:

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Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução. (BRASIL, 2014) (grifos nossos)

O insigne jurista Aliomar Baleeiro preconiza em sua obra que o referido dispositivo, inclusive, é o melhor exemplo da aplicação da Teoria da Aparência no Direito Tributário, a qual é fundada e justificada na responsabilidade gerada pela confiança. Logo, caso a lei em que se baseava o contribuinte seja declarada inconstitucional ou alterada por jurisprudência, acarretando em erro, a chancela da Fazenda Pública cria a responsabilidade pela aparência, em favor deste sujeito passivo. (BALEEIRO, 2013, p. 992) Além disso, ressalva: Em princípio, a teoria da aparência não protege o Poder Executivo, com base na “confiança”, essa não é a questão, mas afasta a sua responsabilidade específica, que pode abranger ampla indenização, por danos e lucros. (BALEEIRO, 2013, p. 992) (grifos nossos) O art. 146 reforça o princípio da imodificabilidade do lançamento, regularmente notificado ao sujeito passivo. Trata-se de dispositivo relacionado com a previsibilidade e a segurança jurídica, simples aplicação do princípio da irretroatividade do Direito aos atos e decisões da Administração Pública. (BALEEIRO, 2013, p. 1214) (grifos nossos)

Em Nota, Baleeiro afirma seu posicionamento acerca do tema, trazendo ainda uma comparação ao direito alemão. O art. 146 reforça o princípio da imodificabilidade do lançamento, regularmente notificado ao sujeito passivo. Trata-se de dispositivo relacionado com a previsibilidade e a segurança jurídica, simples aplicação do princípio da irretroatividade do Direito aos atos e decisões da Administração Pública. (BALEEIRO, 2010, p. 812) (grifos nossos)

Por sua vez, a interpretação dada por Paulsen no que tange ao artigo supracitado do Código Tributário Nacional não diverge dentre as demais opiniões de doutrinadores também renomados. O art. 146 do CTN positiva, em nível infraconstitucional, a necessidade de proteção da confiança do contribuinte na Administração Tributária, abarcando, de um lado, a impossibilidade de retratação de atos administrativos concretos que implique prejuízo relativamente a situação consolidada à luz de critérios anteriormente adotados e, de outro, a

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irretroatividade de atos administrativos normativos quando o contribuinte confiou nas normas anteriores. (PALSEN, 2012, p. 1021) (grifos nossos)

Diante de todo o exposto, dar-se-á continuidade à análise da aplicabilidade e possibilidade de ampliação dos mencionados dispositivos.

4. 3 A aplicação dos artigos 100 e 146 do Código Tributário Nacional

Conforme demonstrado, os artigos 100 e 146 são exemplos claros da incidência do princípio da confiança no CTN. Ambos os dispositivos possuem aplicabilidade prevista legalmente, todavia, a luz do princípio da Proteção da Confiança, e observando-se o Estado Democrático de Direito, tal aplicabilidade poderá ser ampliada. Citando o ilustre jurista Aliomar Baleeiro: Se a Administração tributária, com base na mesma lei, após ter publicado normas regulamentares, mais favoráveis ao contribuinte, altera seu entendimento, considerando o primeiro, viciado, ou mesmo sem ter havido vício, muda as normas, para aperfeiçoar a legislação, adotando outra interpretação, admissível dentro do espaço compreensivo da lei, então as circunstâncias fazem aflorar os princípios da irretroatividade, da proteção da confiança e da boa-fé objetiva, em plena força. Enfim, tais princípios ressurgem, naqueles pontos em que as garantias se fragilizam, pois os atos modificativos representam um agravamento da situação do cidadão-contribuinte. Se ele confiou na legislação vigente e se comportou exatamente de acordo com ela, obedecendo aos comandos de seu credor, em razão dos atos indutores da confiança, praticados pelo próprio Poder Executivo, não seria ético que os contribuintes fossem punidos, retroativamente. (BALEEIRO, 2013, p. 997) (grifos nossos)

Por conseguinte, de acordo com o exímio jurista Sacha Calmon ao comentar o art. 146, CTN: Entre nós, os critérios jurídicos (art. 146, CTN) reiteradamente aplicados pela Administração na feitura de lançamentos tem conteúdo de precedente obrigatório. Significa que tais critérios podem ser alterados em razão de decisão judicial ou administrativa, mas a aplicação dos novos critérios somente pode dar-se em relação aos fatos geradores posteriores à alteração. Tudo em nome da certeza e da segurança jurídicas e para que a Administração se esmere nos seus misteres. (COELHO, 2012, p. 672, 673 e 675) (grifos nossos)

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No mesmo diapasão, manifesta-se Sabbag ao ressaltar que a norma em comento acaba por reforçar, como um complemento, a noção de irrevisibilidade do lançamento em decorrência de erro de direito, regulada nos arts. 145 e 149 do CTN. Ademais, ainda afirma que: De mais a mais, infere-se que o art. 146 do CTN positiva, em nível infraconstitucional, o postulado da segurança jurídica, sem deixar de ratificar os princípios da não surpresa e da proteção à confiança do contribuinte. (SABBAG, 2012, p. 803) (grifos nossos)

Por sua vez, o eminente jurista Paulsen explicita a respeito da proteção da confiança como princípio implícito no artigo 100, parágrafo único do CTN: Além do mais, o parágrafo único do art. 100 do CTN consagra a proteção da confiança dos contribuintes, dispondo no sentido de que a observância das normas complementares exclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros moratórios e, até mesmo, a atualização monetária da base de cálculo. (PAULSEN, 2012, p. 888) (grifos nossos)

Neste mesmo sentido, o professor Eduardo Sabbag elucida: Tal medida vem ao encontro da preservação da segurança jurídica na relação que liga o Fisco credor ao contribuinte-cidadão devedor. Ademais, o comando é ratificador dos princípios da confiança, da boa-fé, da moralidade e da razoabilidade. (SABBAG, 2012, p. 653) (grifos nossos)

Por fim, neste contexto o ilustre Baleeiro esclarece: O parágrafo único do art. 100 fixa a norma segundo a qual a observância pelos contribuintes dos atos normativos nele referidos poderá beneficiá-los (jamais criar para eles encargos novos). Na hipótese de a Administração ter errado na interpretação da lei ou mudado de orientação, substituindo-a por outra, no espaço consentido pela lei e pelo decreto regulamentar, os contribuintes serão obrigados, por força do princípio da legalidade e da hierarquia dos atos administrativos (obrigação ex lege), ao pagamento do tributo, mas sem os consectários dos juros, das multas e da correção monetária. Portanto, o art. 100 tolera, parcialmente, a retroatividade da mudança introduzida pelo ato administrativo normativo, complementar ao regulamento, mas de forma profundamente atenuada para proteção da segurança e da confiança do contribuinte, proibindo o CTN a cobrança de quaisquer jutos, multa ou correção monetária. (BALEEIRO, 2013, p. 989 e 990) (grifos nossos)

Portanto, podemos verificar que os mencionados artigos podem ser interpretados ampliativamente, uma vez que devem ser vistos com lentes do Estado

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Democrático de Direito, bem como à luz do Princípio da Confiança e, consequentemente, da Segurança Jurídica. Ocorre que, conforme já exposto, quando da promulgação do Código Tributário Nacional, os tributos eram em sua maioria por lançamento de ofício. No entanto, esta atividade ao ser cumulada com as demais, foi tornando-se tão onerosa para a Administração que, com o passar do tempo, e atualmente, quase todo procedimento foi colocado a cargo do contribuinte. Ademais, a fim de estender a aplicabilidade dos mencionados artigos, a partir de uma interpretação sistemática e principiológica, conclui-se que o art. 146 do CTN deverá ser aplicável sempre que o contribuinte aja com base no ato administrativo ou na prática reiterada do Fisco, levando-o à criação de uma expectativa justa. No que se refere à aplicabilidade, tão somente, do art. 146, defendido a priori pela professora Misabel Derzi, qualquer modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa

quanto a

atos administrativos concretos e

individualizados em detrimento de determinado contribuinte, os quais foram contrários à pretensão deste, acarretando em uma afronta à confiança depositada, poderão ensejar à aplicação da regra consubstanciada no artigo em comento. Ou seja, não podendo uma mudança de posicionamento alcançar fatos geradores passados a fim de nascer nova obrigação tributária ou agravar a já existente. Assim, o lançamento seria, tão somente, uma modalidade para motivar a aplicação da regra disposta no art. 146, do CTN. Em contrapartida, quando o tributo não puder ser dispensado por meio do art. 146 do CTN, haverá ainda a possibilidade de dispensar a cobrança das penalidades através do parágrafo único do art. 100. Caso o ato administrativo tenha força normativa

de

caráter

geral

e

abstrato,

a

observância

a

estas

normas

complementares dispensará a imposição de penalidades, cobrança de juros de mora e atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo. Não obstante, há quem defenda que mesmo em tais atos normativos genéricos e abstratos, quando for incontestável o fato de que o contribuinte ponderou determinada decisão com base nos critérios jurídicos estabelecidos nos atos normativos originários, os quais detinham grau de vinculação externa, poderá sim haver a aplicabilidade do art. 146 do CTN, afastando o tributo como um todo e não apenas as penalidades que dele poderiam decorrer.

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Quanto aos casos em que ocorre a prática reiterada da administração não formalizada, mas cuja atuação da Administração incida sobre a situação fática de um determinado contribuinte, revela-se que a referida prática realizada dentro de uma interpretação razoável da lei, ausente o ato administrativo vinculado será abarcada pelos exatos termos do art. 146 do CTN, com fulcro no entendimento de ilustres juristas, bem como de uma interpretação benigna prevista no art. 112 do CTN de forma analógica. Por fim, é possível dizer que o art. 100, parágrafo único, será aplicável nos casos de mudanças ocorridas nos atos normativos genéricos e abstratos, uma vez que tais atos, quando válidos, possuem a mesma eficácia normativa que as normas superiores.

5 CONCLUSÃO

Ao analisar a incidência do princípio da confiança em diversos dispositivos do Código Tributário Nacional, primeiramente, concluímos que se tratam de proteções concedidas pelo legislador em determinadas hipóteses a fim de assegurar a legítima expectativa do contribuinte, tendo em vista o valor segurança jurídica. Vimos que no âmbito do Direito Tributário e na prática interpretativa dos critérios jurídicos possíveis de aplicar uma norma jurídica, é comum o fisco alterar o seu entendimento acerca de determinado dispositivo legal implicando maior ou menor encargo ao contribuinte, e que ao agravar o encargo tributário do contribuinte, alterando critérios jurídicos e tentando que estas mudanças se apliquem de forma retroativa, ocorre uma afronta ao princípio da confiança, uma vez que o ato administrativo ou a prática reiterada da Fiscalização levam a criação de uma expectativa legítima por parte do contribuinte que as seguiu, o que seria, consequentemente, uma afronta ao Estado Democrático de Direito. Ademais, com o intuito de limitar o poder de tributar conferido aos entes federativos, foram criados diversos mecanismos constitucionais, dentre os quais o princípio da confiança evidencia-se como instrumento de defesa dos direitos individuais assegurados, nos casos não abarcados pelos institutos do direito adquirido ou pelo ato jurídico perfeito, principalmente na esfera tributária. Além disso, conforme defendido pelos ilustres professores Valter Lobato, Misabel Derzi e Humberto Ávila, em decorrência do próprio princípio da proteção da

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confiança e do aumento significativo dos tributos lançados por homologação, em que a interpretação e aplicação da norma jurídica, num a priori, cabem ao contribuinte, verificou-se a possibilidade de abranger a aplicação do artigo 146 do CTN para: (i) o contribuinte que tenha agido com base no ato administrativo ou na prática reiterada do Fisco, levando-o à criação de uma expectativa justa; (ii) qualquer modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa quanto a atos administrativos concretos e individualizados em detrimento de determinado contribuinte, os quais foram contrários à pretensão deste acarretando em uma afronta à confiança depositada; (iii) os casos de atos normativos genéricos e abstratos, quando for incontestável o fato de que o contribuinte ponderou determinada decisão com base nos critérios jurídicos estabelecidos nos atos normativos originários, os quais detinham grau de vinculação externa; (iv) os casos em que ocorrer a prática reiterada da administração não formalizada, mas cuja atuação da Administração incida sobre a situação fática de um determinado contribuinte, revelando-se que a referida prática foi realizada dentro de uma interpretação razoável da lei, ausente o ato administrativo vinculado. Por fim, haverá ainda a possibilidade de dispensar a cobrança das penalidades através do parágrafo único do art. 100 do CTN, nos casos de mudanças ocorridas nos atos normativos genéricos e abstratos, tendo em vista que estes possuem eficácia normativa igualitária às normas superiores, quando válidos, constando-se, em contrapartida, uma atenuação da retroatividade para proteção das expectativas do contribuinte.

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NATIONAL TAX CODE AND PRINCIPLE OF TRUST

ABSTRACT

This study aims to identify what would be the real scope of article 146 and article 100, sole paragraph of the National Tax Code; circumstances in which the conduct of the taxpayer, based on guidance from Treasury, creates trust to the point of dispense only the fines (sole paragraph of article 100) or the tax itself (article 146); if it is possible to say that article 100, sole paragraph, shall apply in case of changes in the regulations of generic and abstract, and also to determine whether such devices, among others, were created by the system in order to become protective mechanisms to ensure trust.

Key-words: Democratic State of Law, Legal Certainty, Principle of Trust, National Tax Code, Treasury.

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EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NOS CONTRATOS Gabriela de Moura e Castro Guerra Thiago Dias Silva Professora orientadora: Cláudia Gama Gondim

RESUMO

Este artigo tem como objetivo proporcionar uma análise, a partir de um viés histórico-evolutivo, da eficácia horizontal nas relações privadas. Aborda uma evolução dos Direitos Fundamentais e do Estado de Direito, até os dias atuais e atinge uma observação da legislação pátria e da boa-fé objetiva.

PALAVRAS-CHAVE: eficácia; boa-fé; contratos; direitos fundamentais.

1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA

A concepção de eficácia dos direitos fundamentais nunca foi a mesma, trespassou diversos momentos históricos, evoluindo ao longo do tempo. Durante a Idade Média, a sociedade estava diante de um Estado Absolutista, no qual imperava a vontade universal do governante regendo a sociedade, ditando as regras. Via-se intensa opressão por parte do Estado e todo o Direito que ali era produzido se dirigia aos súditos e tão somente a eles. Conforme preconizou Franz Neumann: “tudo o que emana do soberano é lei, porque emana do soberano”. Não há dúvidas de que um Estado deva se reger por leis, pois isso gera grande segurança jurídica, entretanto, diante de tal modelo, tem-se um governante que legisla para se justificar, para sustentar seus atos e assim sendo, não se estaria diante de um verdadeiro Estado de Direito, uma vez que “já se afirmou que o Estado de Direito significa que a ação governamental deve ser autorizada por lei... se o governo é, por definição, governo autorizado pela lei, o Estado de Direito parece reconduzir a uma tautologia vazia, não a um ideal político” (RAZ, 1979, p. 212-213). Tal modelo era conhecido como rule by law, conforme indicou Brian Tamanaha e se aperfeiçoou dando lugar a um segundo modelo, o da “legalidade

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formal”. Nesse, o governo teria a obrigação de formalizar o direito de forma geral, prospectiva, clara e certa, de forma que qualquer cidadão compreenda a lei, saiba dizer o que é o direito de cada época, que atinja a todo um grupo de indivíduos, que não seja retroativa e que traga estabilidade. Não obstante, tal concepção reduziria o Estado de Direito simplesmente à natureza das regras, às suas qualidades. A legalidade formal se tornou insuficiente, não era capaz de oferecer “quaisquer indicações acerca da proporção ou do tipo de atividades governamentais que deveriam ser regradas pelo direito” (TAMANAHA, 2004, p. 97). O modelo se tornou bastante útil principalmente no que diz respeito à coação do Estado, a sua força coercitiva presente em punições criminais. O terceiro modelo evolutivo, ainda formal, traz um pouco de democracia àquela legalidade estritamente formal. É relevante mencionar que democracia é materialmente formal, não especificando qual será o conteúdo de uma lei, servindo apenas como fator decisivo na escolha do procedimento adequado, que deverá então determinar o conteúdo da lei. Aquilo que a maioria decide ser o melhor é o que deve ser acatado, é essencialmente uma democracia majoritária. Os problemas disso são evidentes, bastando olhar para o próprio Brasil, diante e uma sociedade multiétnica, multicultural, ou observar países com grandes diversidades religiosas, o que acaba inviabilizando o modelo. Ademais, o excesso da democracia é autofágica. “Democracia é um mecanismo cego que não oferece qualquer garantia de produzir leis moralmente boas” (TAMANAHA, 2004, p. 101). Os modelos formais não davam mais conta, era preciso trazer para o Estado de Direito especificações de conteúdo e não apenas de forma, de procedimento. As versões materiais incorporam as características dos modelos anteriores, mas agrega a eles uma série de direitos individuais, que complementariam o ordenamento jurídico, tornando-o, desta forma, completo, conforme Dworkin. Eu devo chamar a segunda concepção de Estado de Direito de concepção dos direitos. É de várias maneiras mais ambiciosa do que a concepção do livro de direito. Ela assume que os cidadãos possuem direitos e deveres morais recíprocos, bem como direitos políticos contra o Estado. Ela insiste que esses direitos morais e políticos devem ser reconhecidos como direitos, tanto quanto seja possível para que eles possam ser positivados através da demanda de indivíduos perante os tribunais ou outras instituições judiciais. O Estado de Direito nesta concepção é o ideal de governar através de uma concepção pública acurada de direitos individuais. Ela não distingue, como a concepção do livro, entre o Estado de Direito e a

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justiça material; ao contrário, ela requer, como parte do ideal de direito, que as normas no livro de regras captem e reforcem esses direitos morais. (DWORKIN, 1978, p. 259-262)

O indivíduo deve ser protegido pelo Estado, uma Constituição deve trazer uma série de normas de direito fundamental, além da organização do Estado. Historicamente dizendo, os direitos individuais surgem como forma de limitar o poder do Estado. Surge aqui uma grande oposição entre direitos individuais e democracia, entre liberdade privada (autonomia) e liberdade pública. Mas, começam a surgir nesse modelo sérios problemas, como o fato da informalidade das Constituições não escritas, diversas vezes possuindo direitos individuais não escritos, não previstos na Constituição. Eles poderiam ser adquiridos frente à jurisdição? Qual direito individual pode se opor à vontade da maioria? Qual o seu fundamento legitimador? Além disso, com a implosão desses direitos individuais, vê-se um desequilíbrio entre os poderes, ocorrendo uma hipertrofia do poder judiciário, demanda-se cada vez mais conhecimento sobre o direito, interpretação do direito, uma vez que ela não é automática. Por fim, Estado de Direito evolui para mais dois modelos materiais, que são o marco teórico do trabalho em questão. O primeiro deles ocorre na Alemanha, resolvendo um dos dilemas trazidos pelo modelo anterior. Estado e Constituição, ambos se apoiam na ideia de dignidade, que justamente por ser um conceito flexível, engloba princípios fora da Constituição, o que amplia de forma implícita os direitos fundamentais. O segundo é observado no Brasil (com suas dificuldades), e agrega aos direitos individuais, a liberdade. Tal modelo prevê direitos sociais nos mesmo nível que os direitos individuais, fornecendo capacidade aos indivíduos de exercer os seus direitos individuais, constrangendo o Estado a fazer tudo o que ele puder. Aqui, legalidade é entendido como constitucionalidade. O ‘conceito dinâmico’ em que o Estado de Direito se tornou na formulação da Declaração de Delhi efetivamente salvaguarda e avança os direitos civis e políticos em uma sociedade livre; mas também se ocupa do estabelecimento, pelo Estado, de condições sociais, econômicas, educacionais e culturais sob as quais as aspirações legítimas do homem e sua dignidade podem ser realizadas. Direito de expressão tem sentido para um iletrado; o direito de votar pode ser pervertido em um instrumento de tirania, exercitado por demagogos sobre um eleitorado não ilustrado; liberdade da interferência do Estado não pode significar a liberdade, dos pobres e destituídos, de passar fome. (INTERNATIONAL COMMISSION OF JURISTS, 1959)

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Não há consenso na definição da expressão “direitos fundamentais”, sendo tratada por diversos doutrinadores como sinônima de direitos humanos. Entretanto, é preciso afastar da noção de direitos fundamentais a ideia de direitos humanos, que embora pertinentes à sociedade, são pertinentes à toda humanidade em geral, tem relação com o Direito Internacional, dispostos em tratados, como é o caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Já os direitos fundamentais estão isentos da dependência de quaisquer condições específicas, são inerentes ao homem, basilares de qualquer indivíduo. “Compõem um núcleo intangível de direitos dos seres humanos submetidos a uma determinada ordem jurídica” (MORAES, 2010). Para os jusnaturalistas, os direitos fundamentais tem existência anterior ao próprio reconhecimento destes pelo Estado, eles antepõem-se à Constituição. A visão positivista era restrita, considerando como direitos fundamentais apenas aqueles postos como basilares na norma positiva, na Constituição. O Realismo Jurídico Americano trata os direitos fundamentais de uma forma bastante contemporânea e bastante adequada, admitindo-os como direitos fundamentais, todos os direitos conquistados pela humanidade, ao longo do tempo (CAVALCANTE FILHO, 2014).

2 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

Hodiernamente, apresenta-se fenômeno bastante interessante, reconhecido como Constitucionalização do Direito Civil, tendo em vista a atual força normativa da Constituição, que antes não se via, servindo ela apenas como mero direcionador, norteador, faltava obrigatoriedade, não possuía força normativa. A partir do novo paradigma, busca-se, na Constituição, princípios, bases principiológicas, ideais, direitos, fundamentos para o Direito Civil. No passado havia uma intensa dicotomia entre público e privado. Tudo que se tratava de “privado” buscava-se exclusivamente no Código Civil, hoje essa relação está constitucionalizada. As relações privadas não mais se baseiam na pessoa do sujeito de direito, hoje isso evoluiu e é constitucionalizado, todas as discussões, mesmo que “privadas” passam por análise da Constituição.

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Nas relações contratuais atuais, não existe mais a ideia de centralização na figura do contratante, como havia anteriormente, a tendência atual é buscar um equilíbrio contratual e não a centralização. No Estado Liberal, os indivíduos buscavam a satisfação de seus interesses pessoais, sem que houvesse interferência do poder público, cada vez mais a sociedade ansiava mais espaço de autonomia para desenvolver as suas atividades, o Estado era visto como inimigo a ser combativo, não podendo se sobrepor nunca às relações privadas. Nesse aspecto, tem-se a força do pacta sunt servanda, a autonomia para contratar era praticamente irrestrita e o contrato, como produto oriundo do acordo de vontades privadas, era fonte absoluta da verdade, não cabendo descumprimento. É notório que grandes desequilíbrios entre as partes ocorriam, decorrentes de abusos em virtude dessa autonomia irrestrita, mas o Estado não deveria continuar sem interferir. Nessa visão, via-se uma eficácia vertical dos direitos fundamentais, pois serviam apenas como forma de proteção para os indivíduos, contra o Estado inimigo. Posteriormente, ficou claro que essa visão não poderia permanecer e o cenário de guerras demonstrou o grande erro da falta de interferência do Estado. Assim sendo, ocorre uma ruptura com o paradigma anterior, inserindo o direito civil na legalidade constitucional, de forma que as normas de direito civil se submetam à Constituição. Destarte, com o advento do Estado Democrático de Direito, preconizado na Constituição da República em seu artigo 1º, a eficácia vertical dá lugar à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, uma vez que o maior predador humano é o próprio poder privado e não mais o Estado, que assume o papel de amigo, com a função de proteger a sociedade civil contra si mesma, impedindo abusos e sempre trazendo à tona direitos e garantias fundamentais nas relações contratuais.

3 CONTRATOS NA LEGISLAÇÃO PÁTRIA E MANIFESTAÇÃO DE VONTADE

É cediço na sociedade contemporânea que os contratos são negócios jurídicos que exprimem a vontade livre e desimpedida das partes de celebrar determinado acordo, concretizando uma situação desejada. No entanto, o Código Civil de 2002 impõe limitações à liberdade privada, isto é, o alvedrio das partes encontra-se restringido pelas vertentes programáticas da função social do contrato,

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probidade e boa-fé. Decorre, pois, que cabe aos interessados demonstrar objetivamente que sua conduta é tida como íntegra e proba, consoante ao padrão social. Além do mais, a famigerada validade do negócio jurídico enquadra os contratos em requisitos basilares quanto à capacidade civil das partes, licitude e determinação do objeto e legalidade na forma adotada. Logo, conclui-se que o paradigma normativo do diploma civilista do início do século adota princípios amplos, e com caráter de cláusulas gerais, como norteadores da sedimentação contratual o que

gera

legitimidade

para

o

negócio.

O direito pátrio desencoraja atos de má-fé e desprestigia os que não atentam para o padrão objetivo da boa-fé. Isto porque, desde o direito romano atribui notoriedade àqueles que desconhecem os vícios, aqueles que pairam sobre a ignorância das máculas contratuais, ou seja, a boa-fé subjetiva, cujo correlativo antagônico é a má-fé, já é venerada e consolidada no direito romano-germânico. A boa-fé objetiva, por outra via, é realidade novel comparada à outra. Segundo ela, não é a má-fé o único limite, mas também a desatenção ao padrão de conduta social de integridade e retidão, logo, não pode uma parte se valer da ignorância de determinado vício, quando o mesmo poderia ter sido conhecido por ela, segundo práticas repetitivas que consolidaram uma padronização de conduta. Nesse contexto, é relevante abordar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, vale, no momento, mencionar as repercussões jurídicas da vertente constitucional nas relações entre particulares. Há uma correspondência entre direito público e direito privado, no entanto, tal encadeamento opera horizontalmente, isto é, de forma paritária, igualmente exigível entre os pactuantes. Essa novidade decorre do fenômeno da constitucionalização do direito, como bem dispõe Cristiane Paglione Alves: Vivemos um momento histórico no qual a constitucionalização de todo o Direito é um fenômeno que torna imprescindível que as relações jurídicas privadas mostrem-se coerentes com os valores constitucionais, essencial se demonstra a adequada compreensão e o domínio da técnica da ponderação de interesses, como mecanismo de solução dos cada vez mais numerosos casos de conflito entre princípios constitucionais, que decorrem exatamente da aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais às relações privadas. (ALVES, 2012)

A horizontalidade não é consenso no âmbito jurídico, pois ainda é uma tendência recente. O tradicional, fruto dos processos de evolução do Estado de

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Direito, é a verticalidade, isto é, o Estado com relação ao indivíduo, deve atentar-se aos limites impostos pela Carta Magna, respeitando os direitos garantidos aos sujeitos. No entanto, seria incoerente desvincular o particular do ônus de respeitar os direitos fundamentais da outra parte. Assim, nesse viés, permite-se, por exemplo, que seja arguido em juízo, num contrato de emprego, que houve descriminação quanto ao sexo, isto é, uma das partes desrespeitou o direito fundamental, constitucionalmente definido no artigo 5º inciso I da Constituição da República e por isso, pleiteia, v.g., indenização por danos morais. É fácil observar, pelos ditames do art. 5º, que a escrita é, de fato, dirigida ao Poder Público, visto que, a maioria dos incisos envolve direitos públicos em relação a um dos órgãos de poder. No entanto, em alguns, é viável a transmutação do caráter publicístico para o privado, como o inciso X que trata da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, em que se é nítido a aplicabilidade do preceito em âmbito cível, envolvendo um contrato e dois particulares. Em referida hipótese, destaca-se a horizontalidade dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais constituem, partindo da premissa de que há a horizontalidade fática jurídica, mais uma limitação na liberdade contratual das partes. Os contratos, assim, submetem-se às normas constitucionais que, apesar de terem idealizadas, num primeiro momento, para proteger o indivíduos das arbitrariedades estatais, são aplicáveis horizontalmente entre os indivíduos. A boa-fé instituto eminentemente privado, está atrelada ao fenômeno da constitucionalização do direito civil, uma vez que sustenta o dever de lealdade, segundo o qual as partes devem agir de maneira compatível ao comportamento de um sujeito probo e moral. Em seu sentido mais amplo, a boa-fé impõe aos contratantes uma dose de moralidade o que é, justamente, a base da corrente constitucional dos direitos fundamentais isto é, o indivíduo que age com boa-fé objetiva lato sensu, via de regra, busca respeitar os direitos fundamentais, não atentando contra a boa ordem e a função social dos contratos, vez que lhe interessa o equilíbrio do contrato. A manifestação de vontade constitui a essência dos contratos, é elemento constitutivo do negócio e, por isso, deve ser exteriorizada de maneira legítima, sem ser maculada. O Código Civil de 2002 permite que a manifestação ocorra de forma expressa ou tácita, mas, é necessário que a mesma ocorra, sob pena de

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inexistência do negócio. Caso ocorra vício de consentimento ou vício na vontade, o negócio será passível de anulação ou de nulidade. No primeiro caso, ocorre um erro que é exteriorizado de modo distorcido, causando consequências diversas das esperadas pela parte. Já, os vícios na vontade são: Aqueles nos quais o ato se manifesta em consonância com a vontade anímica do agente, mas, no entanto, essa vontade é repudiada pelo ordenamento. Não se observa oposição entre a vontade íntima do agente e a vontade por ele externada, porém há dissonância entre a vontade do agente e a ordem legal14. Aqui, o real querer do agente se encontra harmonizado com a forma pela qual essa vontade se manifesta, existindo, entretanto, reprovação por parte da lei. (SOUZA, 2011, p. 23)

O que interessa quanto à manifestação de vontade nos contratos e a horizontalidade constitucional dos direitos fundamentais é que, quando há violação destes, o contrato pode ser anulado ou declarado nulo, dependendo do caso, tal como se estivesse viciado. Além disso, o conteúdo constitucional pode ser violado de forma a causar um vício de vontade. Esses vínculos entre os institutos levam à conclusão que os direitos fundamentais são basilares do conteúdo negocial, quando desprezados geram, normalmente, conflitos entre si. Tais conflitos são resolvidos conforme a proporcionalidade e razoabilidade no caso concreto, buscando-se evitar contrastes excessivos entre a condição obrigacional dos pactuantes. Assim, nem sempre é verificável uma possibilidade de anulação por causa de um conflito constitucional, mas, pode-se dizer, que se incorrer, para uma das partes, em vícios de vontade oriundo de um direito fundamental desprezado, haverá o magistrado de considerar no caso concreto a anulação do negócio. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais busca criar condições de maior igualdade entre as partes, limitando a liberdade contratual privada em virtude de um bem maior. Na prática contemporânea, evidencia-se que o particular é o maior responsável por violações dos direitos fundamentais e, quanto ao Estado, não se tem mais a utopia de que ele é o maior vilão, afinal, a sociedade evoluiu e com ela os modelos de Estado. Basta acompanhar o percentual de juros bancários, já há muito considerados abusivos, que continuam aplicáveis aos mutuários. Os contratos de emprego com cláusulas agressivas ferem diretamente e em grande número os empregados, a data retroativa do termo de rescisão entre outros usos no mercado são visivelmente violadores de preceitos fundamentais, devendo, portanto, operar a

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eficácia horizontal para equilibrar essa relação eminentemente desequilibrada. O que pode ser verificado na sociedade atual é que o particular tem grande margem de liberdade para negociar, mas essa prerrogativa tem sido utilizada de forma abusiva, excessiva e desproporcional. Não há como imaginar um contrato de adesão envolvendo direito do consumidor em que as partes se encontram em plenitude igualitária. Além do direito buscar proteger os vulneráveis, como acontece com o empregado e o consumidor, deve-se garantir a todos aqueles que contratam, ou hão de um dia contratar, um mínimo de garantia de que seus direitos constitucionalmente previstos, serão respeitados, independentemente de quão desproporcional a natureza da obrigação possa ser. Assim, a proteção concedida pelo Estado, mediante o judiciário, aos particulares contratantes, é necessária para que seja viável chamar a ordem vigente de democrática. Essa interferência estatal não é pejorativa, muito pelo contrário, é fundamental. Ainda que pareça excessivamente paternalista, como de fato o é em determinadas circunstâncias, ela é condição para que a própria liberdade e autonomia privada sejam respeitadas de maneira eficaz. Pois, não é suficiente, pregar conceitos como igualdade e liberdade se, na prática, sempre haverá distorções materiais nos negócios, sem que haja para os hipossuficientes uma oportunidade de defesa. Com a aplicabilidade horizontal dos direitos fundamentais, o Estado garante a todos, indiscriminadamente, a proteção de que seu direito fundamental será protegido, ainda que sobrevalha, no conflito de princípios, aquele que é mais benéfico à parte contrária, pois houve a possibilidade de análise jurídica concreta, como um Estado de Direito deve proporcionar.

4 CONCLUSÃO

Na perspectiva interdisciplinar em que o Direito se insere hoje, a eficácia horizontal caracterizou avanço fundamental na forma de o Estado Democrático de Direito ser concretizado verdadeiramente. Afinal, faz-se imperativo que os particulares possam se defender de outros, baseando-se para tal no maior instituto legislativo nacional: a Carta Magna onde estão inseridos os direitos garantidores da igualdade e liberdade. Para um contratante ser preservado em sua soberania individual ele precisa de instrumentos capazes de restringir abusos advindos da

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autonomia privada. Nesse sentido, os direitos fundamentais configuram garantias máximas, tanto formalmente, visto terem sido implementados pela Assembleia Nacional

Constituinte

Originária

seguindo

procedimento

especial,

como

materialmente, constituindo limitações implícitas ao Poder Constituinte Derivado. Nenhum outro diploma é dotado de hierarquia superior, ou seja, prover aos particulares a possibilidade de invocar os direitos fundamentais a seu favor, contra outro particular, é medular, primordial, para ao restringir a liberdade, conseguir assegurá-la, propiciando maior eficácia na própria sistemática da autonomia privada. Os direitos fundamentais aplicáveis horizontalmente aos contratos permitem ao pactuante maior margem de atuação, maior segurança, pois tem seus direitos resguardados. A partir disso, fomenta-se a confiança nas relações, maior credibilidade é aderida aos contratos. A boa-fé tem sua eficiência reforçada, na medida em que a certeza de estar protegido de relações abusivas, decorrentes da violação dos direitos constitucionais, é implementada pela possibilidade de verter a verticalidade de aplicação das garantias fundamentais ao âmbito horizontal. Destarte, a eficiência da boa-fé junto à maior margem de liberdade do contratante, frutos do processo de “horizontalidade fundamental”, fez com que os contratos se respaldassem de legitimidade, constituindo o maior atributo da democracia presente no Estado de Direito. Aclama-se, por conseguinte, a restrição da alforria individual em prol do direito maior: a genuinidade dos direitos fundamentais garantidores da salvaguarda e da soberania do Direito Privado.

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HORIZONTAL EFFECT OF FUNDAMENTAL RIGHTS IN CONTRACTS ABSTRACT

The goal of this article is to provide and analysis presenting an evolutionary historic view of the horizontal effect in private relations. It approaches the evolution of fundamental rights and the rule of law up until this day with special note on national legislation and good faith.

KEY WORDS: horizontal effect; good faith; contracts; fundamental rights.

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