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Giulianno Liberalli

Giulianno Liberalli Nova Iguaçu/RJ

Um Personagem

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Bloqueio, bloqueio e bloqueio. Tantas ideias e cenários passam pela minha cabeça, mas nenhum toma uma forma definitiva, pois falta uma coisa essencial para a história fluir: um personagem. Não qualquer personagem, mas O Personagem! No escritório sento diante da velha Olivetti elétrica, pego uma folha de papel, giro o cilindro para posicioná-la e com uma xícara de café na mão está tudo pronto para começar. Você deve estar se perguntando: “Máquina de escrever nos dias de hoje? Mas e o computador, o editor de texto?” Estão ali, na outra mesa, mas com a Olivetti crio o clima, a estrutura, a base, tem a inspiração que a acompanha, eu acredito que seja seu ar de filme noir, enfim. Devidamente acomodado, começo a datilografar. Tec. Tec. Tec. Tenho o cenário de um assassinato, um corpo surge no chão e o detetive entra em ação: “Era uma noite de quinta-feira, cheguei ao local do crime e o sargento Perez me aguardava, o ar cheirava a mofo e sangue seco. Pelo

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jeito nosso amigo no chão se meteu com a pessoa errada...”. Na minha frente o detetive caminha pela sala, observando, pegando coisas e analisando um corpo estirado no chão. Não, não é bem assim. Tiro o papel, amasso e jogo fora. O detetive e o cadáver somem no ar. Outra folha e ajeito a margem, lá vamos nós de novo. Fora da atmosfera terrestre brilhavam as estrelas, a lua era a companheira do astronauta em perigo: “Diário da missão, cosmonauta Lasinski reportando. Sofremos um acidente com um velho satélite no terceiro dia. Meu cabo está quase se rompendo, preciso alcançar a estação, senão...”. E ali está o cosmonauta, com sua roupa refletindo a luz do Sol no vácuo espacial, quase tocando o teto estrelado do escritório, mesmo diante da morte iminente ele inspira confiança... Não, também não vai rolar. Sai folha, cesto de lixo, cosmonauta some junto com sua face de determinação. Nova folha, em posição e vai. “Um canhão de luz ilumina o palco esfumaçado em uma noite de show no cabaré, a cantora surge por detrás da cortina de veludo vermelho, dirige-se lentamente para o microfone no pedestal à sua frente. O vestido azul cheio de lantejoulas que marca suas formas perfeitas brilha iluminado pelo canhão e...”. Ainda não é isso, que saco! Outra folha para o lixo e a cantora desaparece com a boca ainda aberta para uma canção que nem teve chance de começar. Que agonia esses bloqueios, como criar um personagem pode ser tão difícil às vezes? Começo a andar pelo escritório com uma folha e uma caneta na mão em busca de uma luz, mas nada me prepara para o choque de olhar para a minha mesa e me ver ali, sentado diante da máquina de escrever me observando. — Como isso é possível? — perguntou o autor olhando para si mesmo datilografando. — Quem é você? O autor para de datilografar e olha para sua imagem, seu duplo, em pé diante dele gesticulando ridiculamente com uma folha de papel e uma caneta na mão enquanto questiona sua existência.

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— Quem sou eu? Eu me pergunto o que é você, se achando o grande criador de tramas. Tenha a santa paciência, já vi que como personagem não vai à frente. — O que quer dizer com isso? O autor puxa a folha de papel da máquina e começa a rasgá-la, o personagem recusado do autor começa a se desfazer como um sonho quando se está acordando. — Não… — Suas últimas palavras enquanto sumia aos pedaços caindo na cesta de lixo. Com uma xícara de café na mão o autor levanta, vai até a janela para observar a vida, buscar inspiração e suspira: “Como é difícil criar um bom personagem...”.

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