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Edih Longo

Edih Longo São Paulo/SP

(IN)cidadania

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Cândido era puro como o nome. Chegou do interior com uma mala e o peito cheio de vontade de vencer na cidade grande. Seria uma história banal se descendo a ladeira do terminal de ônibus não tivesse sido roubado. Procurou um guarda que o mandou para a Delegacia mais próxima. Perdeu-se no caminho e quando deu por si, estava envolto em um corre-corre de gente que não acabava mais.

Assustado, nem percebeu quando foi segurado pelo braço e jogado dentro de um carro parecendo uma gaiola. Quanto mais explicava, menos o policial acreditava nele, mandando-o calar a boca. — O que aconteceu? Perguntou.

O guarda deu-lhe um tapa no rosto, batendo fundo na sua dignidade. Finalmente, chegaram a um local grande, com uma fila maior ainda de gente que estava esperando para ser atendida. Sentou-se no lugar indicado com as mãos trêmulas apertando o peito. Olhou para o companheiro do lado que estava com as mãos presas e um olhar de fera acuada. Olhou para a mulher do outro lado e ela, apesar de ter um filete de sangue nos lábios vermelhos e uma mancha negra nos olhos, piscou para ele escandalosamente. — Onde estou? Perguntou-lhe. — No esgoto do mundo, a mulher respondeu.

O guarda que o trouxera aproximou-se. — Onde estou? Perguntou-lhe. — Em uma Delegacia. — Ah, graças a Deus, acabei vindo ao lugar certo. Eu gostaria de fazer uma queixa: fui roubado. — Aqui a gente prende e não atende aos agitadores, camarada. — Agitador, eu?! Mas eu sou uma pessoa calma. Eu fui roubado. — Você estava numa passeata comunista e diz que foi roubado?

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— Eu cheguei hoje do interior e roubaram minha mala e meus documentos, seu guarda, eu juro! — Claro que vocês não andam com documentos para não serem identificados, contra-argumentou o guarda.

A mulher disse ao policial que estava na cara que ele era inocente. O homem de mãos presas também reafirmou isso, mas ele precisava entregar o produto de sua performática ronda.

O medo aumentou a dor no peito. A angústia aumentou mais ainda quando percebeu que não era um cidadão. Não tinha documentos, não tinha ninguém por ele, somente dois miseráveis nas mesmas condições. Pelos seus olhos enevoados, a sua vida simples do interior passava como se fosse um filme em branco e preto.

A mulher ao lado agora parecia sua mãe. O homem algemado parecia seu pai. Aquela fila à sua frente parecia uma boiada indo ao matadouro. O guarda, de repente, ficou enorme e parecia o matador com seu cutelo. Procurou Deus, mas Ele devia estar cuidando de ovelhas e não de bois. A dor agora tomava conta de seu corpo todo e apenas gemeu: — Eu fui roubado.

E o (in)cidadão Cândido caiu fulminado por um enfarte do miocárdio; sendo encaminhado para estudos nos laboratórios do Hospital de Clínicas, onde seria retalhado como um boi para o bem da Medicina.

Que Hipócrates coloque em seu peito vasculhado uma prece em seu louvor.

FIM

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