Revista LiteraLivre 20ª edição

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LiteraLivre Vl. 4 - nº 20 – Mar./Abr. de 2020

Não perguntei a ela, pois já tinha um braço roxo, resultado de um beliscão ao recusar o empréstimo da vassourinha. Passei o restante da aula quietinha. Acredito que naquela época é que foi inventada a frase: “Vingança é um prato que se come frio”. Ao bater o sino (era sino), indicando o término da aula, Hilda foi embora tranquilamente, feliz, saltitante. Avistando a Tânia, contei-lhe o ocorrido. Ela correu, jogou a pasta da “ladrinha” no chão, abriu-a e confiscou meu pertence. Depois lhe deu um empurrão e um aviso claro: “Nem olhe mais para a minha irmã!” Deu certo, pois não consigo mais lembrar-me de ter sido perturbada por ela. Além de guarda-costas e extremamente caridosa, minha irmã guardava vingança dentro dela. A caridade dela se alastrava ao desapego das coisas. Ela gostava de doar os seus pertences e muitas vezes os meus. Esses momentos eram os únicos em que eu ficava irritada com ela. A Eliete, prima que tinha o corpo semelhante ao meu, vez por outra exibia um vestido que até pouco tempo dormia em minha gaveta, esperando sair para uma festinha. Quando eu a via com ele, fazia tudo para ser restituída, mas a lourinha branquela dizia que ganhado não é roubado. Portanto não tinha que ser devolvido. Tânia era vingativa com quem a incomodava. Isso incluía o nosso vizinho Adelmo, irmão da Meirinha e filho da D. Ivete. A vizinha mãe nunca via o que o “filhinho-da-mamãe” fazia. Se capeta tem idade, naquela época ele era criança. Adelmo fazia maldades mil: batia nos nossos cachorros, jogava pedras na nossa casa, quebrava vidraças, deitava no chão para ver a cor das nossas calcinhas, ficava na cerca dos fundos mostrando “as suas coisas” para nós. Acreditamos até hoje, que foi o danado quem deu um fim no nosso passarinho, Rolinha, que ficava solto e voava para a gaiola ao anoitecer. Tânia odiava as traquinagens do vizinho e sempre que tinha oportunidade, dava-lhe rasteiras, unhadas, beliscões. Apesar de tanto atrito, existiam momentos de trégua. Eles ocorriam, geralmente, em quatro ocasiões. Quando tinha festas lá em casa, como as fogueiras de São Pedro, onde a Meirinha e o Adelmo eram convidados; no início da noite para escutar as histórias da mamãe; quando a D. Ivete fazia salgadinhos e nos enviava um pratinho para provarmos e também era tranquilo quando a Tânia e o Adelmo mostravam um ao outro sua coleção de latas. A coleção de latas funcionava assim: toda lata que esvaziasse, de doce de leite, goiabada, ervilha ou outras, nas respectivas casas, eram lavadas, enxugadas e entrava para a coleção. De tempos em tempos eles se reuniam, eu ia junto, para ver quem tinha mais latas e as melhores. Não havia juiz, porém, [55]


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