Dossier landa20172 cartografia dos desejos e as novas cenas

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Vol. 6 N° 1 (2017)

Apresentação: Cartografia dos desejos e as novas cenas Rubens da Cunha

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

Marco Vasques

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Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

O que se vê nos últimos 40 anos no Teatro, segundo Jorge Dubatti, é uma “explosão de poéticas, uma molecularização dos grandes modelos a partir de uma cartografia infinita de micropoéticas vinculadas às estruturas de desejo”. São múltiplas as tendências teatrais que se firmam como linguagem. Há nesse processo uma horizontalidade em que os modelos supraestruturais não existem mais. O que há é o modelo do micropoético, marcado pela regionalização. Trata-se, para Dubatti, de “um fenômeno poiético do tipo ‘cada louco com sua mania’. Uma espécie de proliferação de mundos e de poéticas distintas. Onde antes havia grandes discursos de autoridade, existe agora uma cartografia de desejos”. Neste dossiê apresentamos algumas experiências dentro dessa cartografia. Em “Viagem no tempo, o teatro em livros”, o professor e pesquisador da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Edélcio Mostaço, se debruça sobre um fenômeno recente: a publicação de muitos títulos organizados pelos mais importantes grupos teatrais no


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Brasil. No texto, Mostaço discute as trajetórias dos grupos através dos livros Grupo Galpão, uma trajetória de risco e rito e Grupo Galpão, uma história de encontros; Atuadores da Paixão, A história através da crítica e Poéticas de Ousadia e Ruptura do grupo Ói Nóis Aqui Traveiz; Na companhia dos atores, ensaios sobre os 18 anos da Cia. dos Atores; LUME teatro, 25 anos e Cia. Balagan. Depois desse panorama apresentado por Mostaço, Renato Ferracini, professor e ator-pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), apresenta “Invenção como Composição: Presença e Treinamento”, no qual ele demonstra os processos criativos e teóricos do LUME Teatro, sobretudo em relação ao efeito de presença como uma “composição ética de ampliação qualitativa de potência” e o treinamento “como intensificação de potência da nossa relação com o mundo”.

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O diretor, dramaturgo e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, João Sanches, discute em “Autorreflexividade nas dramaturgias contemporâneas: os desvios de João Falcão” as estratégias autorreflexivas das peças Uma noite na lua, A Dona da História e Clandestinos, escritas e encenadas pelo pernambucano João Falcão, um dos dramaturgos mais proeminentes do Brasil. A obra Chapeuzinho Vermelho do francês Joël Pommerat é o ponto de partida para Camila Bauer, encenadora e professora Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), apresentar no texto “A Dramaturgia de Joël Pommerat e a busca pelo real na contemporaneidade – o exemplo de Chapeuzinho Vermelho” como os elementos discursivos são articulados por Pommerat na construção poética do real. Por fim, dois outros “fenômenos poiéticos”, para utilizar a expressão de Dubatti, são analisados nesse dossiê. Daniele Avila Small, doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO, nos traz “Teatro documentário, dramaturgia dialógica e saberes compartilhados - Uma historiografia de artista em Cabeça (um documentário cênico)” no qual reflete sobre a potência descolonizadora do teatro documentário contemporâneo, a partir do espetáculo Cabeça (um documentário cênico), criação do coletivo carioca Complexo Duplo.


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Em “Odiseo.com: o corpo na fronteira entre o real e o virtual”, os críticos teatrais Rubens da Cunha, Professor da Universidade Federal do Recôncavo, e Marco Vasques, doutorando em Artes Cênicas pela UDESC, escrevem sobre Odiseo.com, produção realizada por artistas brasileiros, chilenos e argentinos. Encenada ao mesmo tempo em três países, Odiseo.com utiliza-se das novas tecnologias de comunicação como elemento dramatúrgico. Nesse ensaio, os autores propõem uma leitura a partir do conceito de corpo cênico e de reflexões a respeito do entrelaçamento entre corpo e máquina através da teletecnologia. Além desses textos teóricos, o dossiê apresenta também duas peças teatrais escritas por dois dramaturgos catarinenses. Avessa, de autoria de Gregory Haertel, que, além de dramaturgo, é romancista e psiquiatra. Já Pequeno inventário de impropriedades é de autoria de Max Reinert, um dos atores e diretores mais respeitados de Santa Catarina, com longa trajetória a frente da Cia Téspis, de Itajaí.

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Antonin Artaud dizia que o verdadeiro teatro continua agitar sombras nas quais a vida nunca deixou de fremir, porque se serve de instrumentos vivos e é movimento. “Teatro é vida” assevera em consonância, Peter Brook. O dossiê “Cartografia dos desejos e as novas cenas” traz, nesses ensaios e dramaturgias, exemplos contemporâneos dessas sombras agitadas, dessa vida que nunca deixa de fremir porque se faz teatro.

Boa Leitura.

Os organizadores, Marco Vasques Rubens da Cunha


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Viagem no tempo, o teatro em livros

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Edélcio Mostaço1

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

Uma sutil e bem-vinda torção se produziu nos hábitos do fazer teatral nos últimos vinte anos: a documentação desse fazer, verificável com a publicação de muitos títulos organizados pelos mais conhecidos e consequentes agrupamentos cênicos do país. Se antes uma seara difícil e trabalhosa para os historiadores, demandando, em não poucos casos, o recurso à história oral, às fontes jornalísticas ou peritagem em arquivos mal estruturados e incompletos, a prática cênica, nessa nova perspectiva, tornou-se infinitamente melhor conhecida e apreendida. O fenômeno é recente e marca, sobretudo, a última década do século XX e a primeira do atual. Contando com patrocínios de empresas ou amparados em editais de auxílio nos diversos planos da administração pública, nossos grupos lograram, entre outras atuações 1 Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Ensaísta, crítico.


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meritórias, reunir em volumes aquilo que de mais significativo construíram enquanto cena. Além dessa documentação (que ajunta críticas, ensaios de interpretação, documentos de processos criativos empregados, plataformas teóricas e poéticas, entrevistas com participantes ou auxiliares etc.), muitos deles conseguiram também registrar em DVD seus espetáculos, difundindo para um público mais amplo aquilo ofertado em cena. E tais perspectivas constituem, por óbvio, um grande avanço em relação ao futuro.

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Trataremos, em seguida, de cinco desses trabalhos, escolhidos por amostragem dentro de uma seara que dispõe de publicações semelhantes lançadas por outros coletivos, como a Cia. do Latão, a Cia. Livre, a Amok, o Folias d’Arte, o Engenho, o Grupo XIX, Os Satyros, a Cia. de Stravaganzza, o Teatro de Seraphin, os Clowns de Shakespeare, o Erro Grupo, nos diversos quadrantes do Brasil, para não estendermos demasiadamente esse breve inventário. São publicações que, dentro de seus propósitos, vão bem mais fundo que o principal: retirar de gavetas particulares muitos materiais que, em outras épocas, teria ficado no esquecimento ou relegado ao fundo de baús.

Ao redor da prática Algumas questões preliminares despontam. Do um ponto de vista historiográfico, como tratar essa produção contemporânea? Novos rótulos surgem diuturnamente disputando primazia nesse ambiente: história do tempo presente, narrativas em processo, história do cotidiano, história integrada, entre outros, fazendo eco à multiplicidade de enfoques que se avolumou desde a História Nova. O foco fechado sobre a trajetória do grupo, por outro lado, deixa fora das considerações não apenas seus pares coetâneos como o contexto onde ele vive e se desenvolve, quase sempre tomado apenas em caráter genérico: em que sociedade surgiu e se desenvolveu, quais suas plateias, que formações técnicas específicas seus membros dispõem e como manejam saberes para solucionar determinadas tarefas? Várias dessas questões não estão respondidas nesse material.2

2 Para essas e outras indagações, observar os ensaios reunidos em CHARTIER, Roger, Práticas de leitura. São Paulo, Estação Liberdade, 2001.


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Se a História não é a historiografia e se essa última demanda alguns cuidados em sua articulação, isso tem a ver com o estado da arte, por assim dizer, em relação àqueles rótulos antes enunciados, procurando identificar o lugar de fala que esse conjunto de documentos alberga. E, para tomar o rasto de Certeau (2004, p.264), “a história se define inteira por uma relação da linguagem com o corpo (social) e, portanto, também pela sua relação com os limites que o corpo impõe”, onde os acentos aqui destacados não costumam ser os mesmos emprestados pelos artistas aos mesmos termos. Ou, dito de outro modo, o que o presente aqui expresso detém de próprio e singular para o futuro?

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Na outra ponta está o leitor. Também a leitura dispõe de uma história e se articula a partir de suas próprias condições, não apenas a atenção e foco a ela dispensada como, mais especificamente, seu grau de apreensão dos signos que boiam nas páginas, conferindolhes importância e destaque, capacidade de articular mensagens e informações, “uma reserva de formas que esperam do leitor seu sentido”, como explana de Certeau (2004, p.264). Ou seja, se a leitura é um constructo do leitor, na qual empenha seu corpo, inteligência e enciclopédia, bem como seu discernimento e capacidade de síntese, deambulando entre as astúcias da escritura e a normatividade da obra lida, é preciso ir além do senso comum ali presente. Os grupos selecionados para essa amostragem possuem algumas características em comum: foram fundados há mais de quinze anos, se desenvolveram em torno de um núcleo de fundadores, garantindo a continuidade do projeto e as transformações nele cabíveis, obtiveram, em algum momento, subsídios ou aportes financeiros que permitiram não apenas suas sobrevivências materiais como adquirir ou custear sedes próprias, o que permitiu o desenvolvimento de outras atividades paralelas, para além daquelas precipuamente comprometidas com a construção da cena. Tais características imprimem às suas trajetórias certos parentescos, ao lado de acentuadas diferenças, marcadas sobretudo pela diversidade das regiões geográficas de nascimento e instalação, composição da equipe e amplitude de seus projetos culturais.


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Uma última palavra sobre as origens dos recursos: elas se beneficiaram de editais públicos da Petrobras, companhia petroleira estatal que, desde o início do século XXI até 2012, lançou-se ao patrocínio de projetos artísticos nas várias áreas das expressividades artísticas, viabilizando não apenas iniciativas pontuais como, especialmente, a manutenção e regularidade das atividades. Além desses preciosos recursos, os grupos instalados em São Paulo puderam contar ainda, em modo complementar, com aportes oriundos do Programa Municipal de Fomento, iniciativa que, desde 1999, disponibiliza sob força de lei um apreciável montante destinado às companhias estáveis da cidade. Se tais recursos se encontram na origem das publicações aqui analisadas, é preciso reconhecer que aqueles editais já incluíam, entre seus itens, a difusão da memória dos grupos subsidiados, evidenciando um relevante traço de política cultural nesse contexto.

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O Galpão O grupo mineiro foi fundado em 1982, em Belo Horizonte, reunindo egressos de uma oficina ministrada pelos alemães George Froscher e Kurt Bildstein, com a criação coletiva E a Noiva Não Quer Casar, destinada à rua. De lá para cá o coletivo cresceu, se desenvolveu e hoje ostenta uma invejável equipe de colaboradores nas mais diversas áreas, responsável também pelo Galpão Cine Horto, um espaço para cursos, oficinas e outras atividades que lhe garante a necessária interlocução com outros criadores e a cidade. Existem diversas publicações que registram, parcial ou em modo mais abrangente, esse longo percurso. Aqui utilizo duas, mais marcadamente vinculadas com a historiografia: Grupo Galpão, uma trajetória de risco e rito, de Carlos Antônio Leite Brandão; e Grupo Galpão, uma história de encontros, de Eduardo Moreira, um dos fundadores do conjunto. A primeira é um misto de memórias, álbum de recortes, baú de fotos e singelas homenagens, uma verdadeira valise de cronópios e famas dada à luz para celebrar os quinze anos de existência do Galpão, cujo caráter o próprio autor põe em dúvida quanto à classificação, (BRANDÃO, 2002, p. 9). Não é de estranhar. A equipe preparava Um


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Molière Imaginário, estreado no ano seguinte, após triunfos gigantescos como Romeu e Julieta (1992) e A Rua da Amargura (1994), ambos sob direção de Gabriel Villela, que a levou a excursionar por todo o país e obter não apenas os favores da crítica como amplo reconhecimento pelo público. O álbum preserva, de alguma maneira, o tom andarilho dos primórdios do grupo, quando a rua era seu espaço preferencial e a deambulação sua estratégia de sobrevivência.

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De capítulo a capítulo, há riqueza de detalhes, como a queda de Fernando Linares das pernas de pau numa apresentação na rodoviária da cidade, (BRANDÃO, 2002, p. 29), ou a compra da sede, em 1989, viabilizada através de economias do grupo e um empréstimo de sete mil dólares, uma velha fábrica de móveis desativada, (BRANDÃO, 2002, p. 76). Em 1994, um acidente letal marcou fundamente o elenco, com o falecimento de Wanda Fernandes, uma das fundadoras e esteio do conjunto, num acidente de carro, fato que levou à suspensão da temporada de Romeu e Julieta, onde ela era a protagonista, (BRANDÃO, 2002, p. 121). Naquele momento o grupo estava empenhado na criação de A Rua da Amargura com Gabriel Villela, a quem coube a árdua tarefa de impedir que o grupo desmoronasse, a aprender a “se fazerem cúmplices da lua, das estrelas e do Universo a fim de permanecerem na força renovadora de seu amor e de sua liberdade” (BRANDÃO, 2002, p. 122). O Trajetória, de Brandão, em sua declarada intenção de fugir aos padrões livrescos corriqueiros apresenta, a cada página, uma diagramação diferenciada, não apenas quanto ao tamanho e disposição das letras como emprego de cores e grafismos. Coisas que, para um leitor comum, podem despertar a agradável sensação de novidade, mas que, para uma leitura corrida, oferece alguns obstáculos e a cansativa sensação de procura pelas informações desejadas. Mesmo apresentando uma ficha técnica ao seu final, reunindo todos os espetáculos, alguns quesitos ficaram de fora, como as datas e locais das estreias. Também as críticas e materiais de imprensa estão ausentes, bem como balanços de interpretação fornecidos por especialistas. Tais senões não empanam o brilho da publicação, por óbvio, belamente ilustrada a cada página com expressivo material visual. Diferentes papéis foram empregados na publicação, como o couchê e o manteiga, produzindo, a cada página virada, novos afectos a quem a manuseia.


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Ao escrever Encontros, Eduardo Moreira seguiu um caminho diverso, reunindo o percurso do grupo por temas e áreas de criação, fornecendo um material mais organizado ao leitor. Além de fundador da equipe e protagonista de seus micro-movimentos, Eduardo Moreira gosta de escrever diários, o que parece ter facilitado a organização de seu volume, um belo exemplar com 292 páginas de texto sem fotos à moda antiga, com fita para marcar páginas e tudo mais, sob a divisa “faça de novo. Tente outra vez. Erre outra vez. Erre melhor”, de Samuel Beckett. Teatro de atores, o Galpão não possui diretor fixo, o que o levou a se aproximar de vários nomes ocupando tal função. O primeiro,

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Fernando Linares, argentino radicado em Belo Horizonte, coordenou o segundo espetáculo, De Olhos Fechados, um infantil que se consagrou em 1984. O segundo foi Paulinho Polika, ex ator do conjunto e responsável por A Comédia da Esposa Muda (Que falava mais que Pobre na Chuva), em 1986, novamente na rua. Entre essa criação e um novo diretor comandando os atores, o Galpão enveredou por caminhos nem sempre bem-sucedidos em suas criações coletivas, embora tenha tido contatos muito gratificantes com Ulysses Cruz, Carmen Pasternostro e Aderbal Freire-Filho. Mas foi com Eid Ribeiro que uma nova criação alcançou sucesso: Corra Enquanto É Tempo, sobre uma família de pastores evangélicos pregadores em praça pública. Após viagens pela Europa e a compra de sua sede de trabalho, o Galpão convida Gabriel Villela para um trabalho conjunto, o que resultou em duas de suas criações mais consagradas: Romeu e Julieta e A Rua da Amargura. Cacá Carvalho dirigiu o elenco em 1999, em Partido; e Paulo José os levou a dois seguidos êxitos, em 2003, com O Inspetor Geral, e Um Homem é Um Homem, em 2005. Encenador do grupo Armazém, Paulo de Moraes coordenou outra bem-sucedida criação da equipe, com Pequenos Milagres (2007), a partir de histórias do cotidiano enviadas pelo público. As Três Irmãs não foi uma montagem, mas uma filmagem conduzida por Eduardo Coutinho e direção de Enrique Diaz, em 2009. Júlio Maciel, Yara de Novaes e Gabriel Villela contam entre os últimos encenadores à frente do grupo, até 2016, quando enfrenta uma criação conjunta com Márcio Abreu em Nós.


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A principal virtude do texto de Moreira é seu tom coloquial e a revelação de detalhes pessoais de uma testemunha. Como a observação de que toda a pedagogia necessária à administração do Cine Horto proveio dos longos contatos com Aderbal Freire e seu Centro de Construção e Demolição do Espetáculo, no início dos anos 1990, quando ocupavam o Teatro Gláucio Gil no Rio de Janeiro e receberam os mineiros para estágios e aprendizado, (MOREIRA, 2010, p. 88). Ou, ainda, dos primitivos tempos do teatro de rua, ao recordar o autor das músicas daquelas montagens, o “velho maconheiro” Serginho que, além da fala arrastada e carregada de gírias dos anos 1970, ensinava as primeiras semínimas à trupe, (MOREIRA, 2010, p. 169).

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No começo dos anos de 1980, quando a ditadura civil militar apenas ensaiava sua “distensão lenta e gradual”, fazer teatro implicava em riscos, especialmente na rua e para um grupo que, ao lado do trabalho artístico, também fazia agitprop. Após uma apresentação na praça Sete de Um país chamado Bombril, em que “capitalistas inescrupulosos em pernas de pau vendiam o país para as multinacionais”, os artistas foram detidos pela polícia e só conseguiram sair ilesos de irem ver o sol nascer quadrado graças à ação do secretário de cultura Jota Dangelo, (MOREIRA, 2010 p. 26). Com um esclarecedor capítulo dedicado às relações do Galpão com outros coletivos ao longo do tempo, Moreira esboça certo panorama do que então se vivia nos vários quadrantes do país, as muitas dificuldades enfrentadas por todos e as diversas estratégias compartilhadas entre eles para viabilizar existências sempre ameaçadas, malhas de um projeto que articulou o Movimento de Teatro de Grupo, ao longo dos anos de 1990, criando plataformas em comum e o Festival Internacional de Teatro de Rua, em Belo Horizonte. Com o tempo, o Galpão articulou várias publicações muito expressivas documentando seu trabalho, como a série Diário de Montagem, com um volume dedicado a cada encenação; gravações em DVD de algumas produções; CDs de músicas de espetáculos e recitais, além do periódico Sub-texto, com várias edições, destinado a artigos de fundo e analíticos.


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Ói Nóis Aqui Traveiz A companhia portoalegrense de atuadores é o mais antigo conjunto em atividade no Sul do Brasil, fundada em 1978 por Paulo Flores e outros insatisfeitos com o convencionalismo que dominava a cena gaúcha: nenhum dos grupos então existentes se dirigia ao espectador. Até 1984 o coletivo se caracterizou por montagens controversas e de pegada pesada, procurando atingir suas plateias, adotando a criação coletiva como desencadeadora da nova cena que almejava e erigindo o anarquismo como base de suas relações humanas. Intervenções urbanas e performances de curta duração integravam também seu repertório, oscilante entre textos adaptados das vanguardas e composições poéticas tomadas de amigos ou colaboradores.

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A Tribo já foi registrada em várias publicações, próprias ou confeccionadas por outros, de modo a oferecer ao pesquisador uma vasta trama para a reconstituição de seus passos. A mais detalhada foi publicada por Sandra Alencar: Atuadores da Paixão (1997), que registra com minúcias o percurso até aquela data. A história através da crítica, organizada por Rosyane Trotta, em 2012, é fruto de exaustiva documentação de comentadores do trabalho cumprido e precedida por instigante ensaio da autora sobre seus rumos ao longo do tempo. E, finalmente, Poéticas de Ousadia e Ruptura, (2014), assinada por Paulo Flores e Tânia Farias enfileira, através de material iconográfico, seu passo a passo; mas é no texto que abre o volume que ele ganha propulsão: ali o fundador equaciona seu trajeto, escolhas e opções, à luz de uma memória seletiva que procura destacar alvos e objetivos.3 As primeiras criações foram resumidas por Cláudio Heemann (2012, p. 64) como fundadas numa linguagem teatral “crua, debochada, violenta, livre, grotesca, que vai do grand-gignol ao protesto, do surrealismo à contestação”, à base de “grunhidos, contorções, 3 ALENCAR, Sandra. Ói Nóis Aqui Traveiz, Atuadores da paixão, Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura/FUMPROARTE, 1997; TROTTA, Rosyane. Ói Nóis Aqui Traveiz, a história através da crítica. Porto Alegre: Terreira da Tribo Produções Artísticas, 2012; FLORES, Paulo e FARIAS, Tânia. Poéticas de Ousadia e Ruptura. Porto Alegre: Terreira da Tribo Produções Artísticas, 2014. Além desses, cabe registro de outros volumes dedicados ao coletivo: BRITTO, Beatriz. Uma tribo nômade, a ação do Ói Nóis Aqui Traveiz como espaço de resistência. Porto Alegre: Ói Nóis na Memória, 2008; VECCHIO, Rafael. A utopia em ação. Porto Alegre: Terreira da Tribo Produções Artísticas, 2007. O periódico Cavalo Louco, semestral, e diversos DVDs, completam esse painel.


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epilepsias e um rude humor absurdo, numa pesada celebração da anarquia”. Colocações que falam muito do estado de ânimo do coletivo, num momento de procura e afirmação de sua especificidade cênica. Essa pegada prossegue, com alguns refinamentos, até 1984, quando o Ói Nóis, agora reestruturado e albergando ex integrantes de um centro acadêmico de engenharia, aluga um amplo espaço à rua José do Patrocínio, na Cidade Baixa, tradicional reduto boêmio de Porto Alegre e ali instala a Terreira da Tribo. O novo espaço tornou-se um centro cultural para apresentação de espetáculos teatrais e musicais, produções artísticas e fonográficas, cursos concernentes ao ramo da edição e venda de livros artísticos, além de culinária integral, dando notícia do libertário arco contra-cultural desenhado. De fato, a Terreira sobreviveu, durante muito tempo, dos quitutes naturais ali produzidos.

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As intervenções na rua prosseguem e alcançam, com Teon (19850, um salto de qualidade artística, ao incorporar figurinos e máscaras urdidos com detalhes e inovar quanto à aproximação com o público: os primeiros vinte minutos eram totalmente silenciosos, um longo prólogo situando a conquista da América e o apresamento de índios. A realização marca a primeira grande exploração da linguagem de rua pelo conjunto. Enquanto Ostal, em 1988, a mais decisiva incursão no teatro de vivência até aquele momento, um tipo de espetáculo que será cultivado pelo Ói Nóis em toda sua trajetória, minuciosa exploração de intimidade entre atuadores e espectadores e conformado como um rito. Numa minúscula sala ocupada por uma grande cama tomando quase todo o espaço, os vinte espectadores em pé assistiam uma regressiva viagem psíquica de Arlete Cunha, atriz poderosa e envolvente. No mesmo ano a tribo começa uma oficina de iniciação teatral num distante bairro periférico da capital, embrião daquilo que irá se transformar no projeto maior conhecido como Teatro Como Instrumento de Discussão Social. São três, portanto, os braços daquele conjunto que, desde sua transferência para a nova sede, era indistintamente conhecido como Terreira da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz: o teatro de rua, o teatro de vivência e o ativismo social. Ao lado das permanentes oficinas de iniciação ao teatro oferecidas na sede para a formação de novos atuadores, o grupo conheceu uma grande quantidade de integrantes que, pelas circunstâncias, entraram e saíram do elenco.


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Após longos estudos e árdua preparação artística da equipe estreia, em 1990, Antígona, ritos de paixão e morte, tomando a peça de Sófocles como eixo e a incorporação de diversos outros materiais para dar densidade e atualidade àquele que foi considerado o melhor espetáculo do ano na cidade, atestado de maioridade artística vivamente reconhecido por público e crítica. Novamente uma criação coletiva contando, como sempre, com a discreta supervisão de Paulo Flores, a montagem oferecia ao público diversas oportunidades de entrega ao ritual e à vivência de insuspeitados perceptos nos diversos ambientes em que o espetáculo se espraiava.

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Mas foi em maio de 1994 que a Tribo deu a conhecer um de seus mais ambiciosos projetos, Missa para Atores e Público sobre a Paixão e o Nascimento do Dr. Fausto de Acordo como Espírito de Nosso Tempo, quatro horas de intensa vivência coletiva organizada a partir do texto de Göethe. Todo o espaço da Terreira foi mobilizado, inclusive as ruas adjacentes, pois o desfile inicial se dava em procissão e prosseguia nos terrenos abertos da sede, debaixo de árvores onde uma fogueira ajuntava num sabá os participantes, inclusive gansos, um cachorro e um bode. O crítico alemão Friedrich Dieckmann (apud ALENCAR, 1997, p. 2013), presente na cidade para falar de Brecht, escreveu na revista Theater der Zeit: “o que fazer com Brecht? [...] A encenação do ‘Fausto’ na fábrica desativada já tinha dado a resposta antes da formulação da pergunta; ela deu a resposta a partir do espírito, da experiência, da fantasia de uma geração jovem [...] que toca o espectador da distante Europa como um milagre – como o milagre de uma arte, que faz com que o distante chegue a si, na medida em que ela o faz falar por si”. Em 1999 a Terreira da Tribo foi obrigada a abandonar o local que alugava, por força de lei e ordem de despejo, esgotados todos os esforços para manter o local com suas características e finalidades, inclusive seu tombamento. Foi um duro golpe naquele momento. Um mês depois o conjunto se aloja à rua José Inácio, num espaço mais restrito que o anterior e distante da zona de circulação artística da cidade.


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O livro de Sandra Alencar termina com uma longa entrevista de Paulo Flores, ocasião para um balanço dos vinte primeiros anos de jornada. Destaco uma de suas instigantes observações: “Porque surge A Morte e a Donzela? Porque dentro da vivência do Ói Nóis, a gente não encontrou uma resposta para várias questões sobre o que aconteceu com o país durante esses anos de ditadura e o que vai ser feito daqui pra frente. Essa peça traz para nós a pergunta: como curar um país que foi traumatizado pelo medo, se esse medo ainda continua fazendo o seu trabalho silencioso?” (ALENCAR, 1997, p. 267)

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Parece ser esta inquietação que vai mover o grupo doravante, especialmente depois de empreender novas e decisivas incursões sobre o trabalho de formação nos bairros de Porto Alegre. A Saga de Canudos, espetáculo de rua que destaca Antônio Conselheiro como líder popular e uma comunidade alternativa frente aos padrões da globalização, estreia em 2000. No ano seguinte surge a primeira versão de Kassandra in Process, baseado na obra de Christa Wolf, um work in process denominado A Gênese que, um ano após, ganha formato definitivo com Aos que Virão Depois de Nós Kassandra in Process, dolorosa reflexão sobre as consequências da guerra, a lógica militarista que se impõe sobre o mundo e as perturbadoras imagens que estão na origem dos mitos troianos. As duas realizações ficam anos em cartaz, circulando por diversas cidades do país. Nesse mesmo diapasão surge O Amargo Santo da Purificação – Uma Visão Alegórica e Barroca da Vida, Paixão e Morte do Revolucionário Carlos Marighella, (2008), nova incursão na rua e urdida a partir dos poemas escritos pelo guerrilheiro na prisão, organizando uma poderosa visualidade em marcha sobre os espectadores. Espetáculo onde cenas líricas e dramáticas entrelaçam os vários estratos pelos quais o país viveu o regime militar. A Missão foi inspirada em Heiner Müller, mais uma vez transformando o grande galpão da rua José Inácio num território cênico a ser explorado pela plateia, ao adentrar os vários ambientes construídos para fazer fluir experiências sensoriais sobre momentos decisivos da luta anti-totalitária: “o terceiro mundo visto como fermento do novo” (ALENCAR, 1997 p.18). Foi essa a última encenação do coletivo naquele local, mais uma vez desalojado em função da especulação imobiliária. Muitas tratativas com o poder municipal acabam


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conduzindo, finalmente, a uma solução definitiva para o conjunto, com a doação, por parte da Prefeitura, de um terreno na Cidade Baixa para albergar um futuro edifício dotado de espaços suficientes para as inúmeras atividades desenvolvidas. Precariamente instalados num circo, a Tribo cria, em 2011, novo texto de Ariel Dorfman: Viúvas, performance sobre a ausência, voltado a examinar as sequelas dos regimes militares na América Latina. Apresentada num antigo presídio situado numa ilhota do rio Guaíba, hoje em ruínas, a montagem mais uma vez propiciava aguda experiência estética e política.

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Aos trinta e cinco anos de percurso, comemorados em 2013, a Terreira da Tribo ainda não iniciou a construção de sua nova sede, vítima da burocracia, da lentidão e dos atropelos que acompanham a via crucis pelos poderes públicos. Mas continua viva e dá a conhecer mais uma magnífica criação, dessa feita retrabalhando um romance de Christa Wolf cujo tema é recorrente na cultura ocidental – Medeia. Espetáculo multicultural, explorou novamente as interconexões e desdobramentos, antigos e contemporâneos, da mitologia que acompanha aquela dúbia figura, explorando espaços e endereçando o público a confrontar-se com instigantes aspectos da fábula. A revolta feminina – ao encadear diversas mulheres vítimas dos sistemas arbitrários – é o grande tema de Medeia Vozes. “Acreditando no Teatro como um modo de vida, o Ói Nóis Aqui Traveiz desde a sua origem dissemina ideias e práticas coletivas, de autonomia e liberdade, compartilhando a experiência de convivência e de laboratório teatral. A trajetória da Tribo tem sido o resultado da soma de desejos e esforços empreendidos por dezenas de atuadores que passaram pelo grupo e deram o melhor de si na construção de poéticas de ousadia e ruptura. É fundamental para o Ói Nóis Aqui Traveiz a abertura para novos participantes. As pessoas que buscam a Tribo se identificam com as premissas que movem as atividades do grupo. As ideias anarquistas colocadas na prática e no dia a dia do grupo, tanto na criação como na sua organização, é que vão apaixonar ou não os novos participantes. Ao mesmo tempo que estas ideias e práticas são sólidas na atuação do grupo, a constante renovação dos atuadores não permite que nada possa ser cristalizado”, resume Paulo Flores (apud ALENCAR, p. 19) seu depoimento.


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Dando corpo à sua longa permanência na Tribo, o último trabalho de Tânia Farias é uma revisão comentada de suas interpretações, uma aula performance onde resume, endereçada ao público curioso sobre essa mulher de fibra e coragem, suas motivações e processos de criação ao longo de vinte anos. Desmontagem, evocando os mortos poéticas da experiência, 2013, já percorreu todo o Brasil, apresentado como solo ou acompanhando outros espetáculos do repertório da Tribo, fazendo acionar sua memória corporal e sua instigante capacidade de fazer aparecer e desaparecer criaturas.

Cia. dos Atores

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A saída de Enrique Diaz, em 2012, não significou o término da companhia, fundada por um coletivo de intérpretes por ele reunido em 1988 no Rio de Janeiro e que completou, através de novas parcerias, seu jubileu de prata em 2013. Na companhia dos atores, ensaios sobre os 18 anos da cia. dos atores, lançado pelo grupo em 2006, constitui-se na mais abrangente síntese já efetivada sobre a equipe naquele momento de maioridade, reunindo material iconográfico, fichas técnicas, ensaios analíticos de especialistas, entrevistas com os integrantes, alguns dos expressivos textos redigidos para os programas das criações, oferecendo amplo panorama sobre seu fazer e suas intenções. “A discussão interna da Cia. sempre passou por aí, um duelo eterno entre a pesquisa e a chegada do público. O lugar da busca, das novas formas, de um ofício permanente de ler a realidade e, consequentemente, alterar as formas e os objetos para essa leitura, de procurar os temas, o que está em questão, hoje? e como?, a pertinência das perguntas e o corpo-a-corpo com as ideias na cena., com os nossos corpos na cena, com as possibilidades que o estatuto do teatro oferece, é isto que nos leva a fazer. Por outro lado, com quem? para quem? onde está o público, hoje, a cada momento? Que espaço o teatro pode e deve ter na vida da cidade, do país, do mundo? Onde se entrelaçam o tecido social e os discursos artísticos? Como continuar dizendo que a arte é parte deste tecido, a parte original deste tecido, desta costura? A discussão não termina, e neste percurso, vamos buscando, de forma dinâmica, como Oswald, o encontro do vulgar e do sublime, das velhas compreensões de alta-cultura e baixa-cultura, de espetáculos que


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chamam de experimentais e outros ditos populares (sempre tem alguém para falar mal de um e de outro...).” Com esse depoimento, Enrique Diaz (2006, p. 27) oferece não apenas uma síntese dos propósitos do coletivo como especula, igualmente, sobre seu lugar entre seus pares, num momento em que patrocínios variados se encarregavam de manter vivo o teatro nacional. Oswald de Andrade, nominalmente lembrado, sempre foi um êmulo para o elenco, com dois de seus textos encenados: A Morta (1992) e O Rei da Vela (2000), ele que representou a ponta de lança do modernismo, reunindo em si toda a ousadia da melhor parte daquele movimento, “a multiplicidade de tratamentos estilísticos dentro do mesmo espetáculo” (DIAZ, 2006, p.24).

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Mas também Nelson Rodrigues se apresenta como o outro ídolo que a companhia glorifica, incensado direta (Meu Destino É Pecar, 2002) ou indiretamente (Melodrama, 1995, Cobaias de Satã, 1998, Notícias Cariocas, 2004). Nesse caso, mais como cronista da vida da cidade, seja pelo viés melodramático com que estrutura seus enredos, seja pelo viés jornalístico com que constrói suas narrativas, dando corpo a um imaginário sempre à beira de verdadeiras tragédias cariocas. Além dessas consagradas encenações, a Cia. cultivou também espetáculos de entressafra, atividades pouco divulgadas e amargou longos períodos de espera entre uma coisa e outra, como costuma ocorrer com qualquer outro conjunto que necessita amadurecer determinados projetos. Só eles o sabem (1993) foi criado por Enrique Diaz para integrar uma programação de almoço no Centro Cultural Banco do Brasil, com apresentações ao meio-dia, uma desconstrução do original de Jean Tardieu: “para nossos tempos televisivo-folhetinhomelodramáticos, a superficialidade desse jogo vista com olhar quase infantil até traz um mínimo de comentários sobre essa alguma coisa que talvez nem eles saibam!”, assentou o diretor (2006, p. 267) no programa. A discreta realização foi a base, contudo, para a criação do consagrado Melodrama. Em 1993 o grupo participou da Semana da Arte Contra a Miséria e a Fome e Pela Vida, intensa programação reunindo artistas diversos, com a performance Cidadão!, onde aproveitou restos de figurinos antes empregados em Rue Cordelier e suas pesquisas sobre a Revolução Francesa, para compor um trabalho


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sobretudo estruturado em torno do clown. Marcelo Olinto (2006, p. 270) recorda uma das apresentações: “uma vez fizemos na orla de Ipanema e, por isso, se transformou em marcha e após ficamos uma hora improvisando. [...] Não havia distância alguma entre o pensar e o tornar realidade. O trabalho do ator estava precisamente localizado no momento imediato, no presente.” A babá, 1994, e João e o Pé de Feijão, 1996, foram produções infantis, alargando a faixa de atuação da companhia e diversificando a qualidade de ofertas para essa parcela de público costumeiramente vítima de más realizações.

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Cobaias de Satã foi uma descida aos infernos. Desdobramento de material deixado de lado durante a elaboração de Melodrama, a trama enfatizava conflitos familiares mal resolvidos – como, de resto, a convivência entre qualquer grupo de teatro de longa duração cujas vidas particulares tendem a se misturar às grupais. Felipe Miguez (2006, p. 285), autor do texto, anotou no programa sobre “o avesso do que já se disse sobre estar em companhia, trabalhar com a Cia. Dizer que conviver desta forma é acompanhar as neuroses mais subterrâneas e os comportamentos mais ridículos de um grupo de pessoas. Assistir idiossincrasias mais injustificáveis que emergem de criaturas cujos fantasmas psicológicos e sexuais constituem as instâncias mais insondáveis de um ser humano”. Mas também o inesperado e o lance de dados fazem parte dessa aventura, como quando estavam em excursão com Melodrama pelo interior do estado de São Paulo, numa cidade minúscula, usando a estação de trem como palco. Num certo momento foi ouvido um alto ruído de freada brusca de automóvel atrás do público e toda a plateia correu para ver o que havia sucedido, deixando os atores com a palavra solta no ar. E, assim como foi, a plateia voltou “e a gente imediatamente pegou dali mesmo com o texto”, arremata Marcelo Olinto (2006, p.286). O ano de 2005 foi um ápice para o coletivo, através do reconhecimento internacional. Apresenta-se em Moscou (Ensaio. Hamlet) e diversos países europeus (Melodrama), inclusive o Festival de Outono em Paris. No ano seguinte a montagem foi vista em Nova York, no festival Under the Radar, iniciando um périplo por diversos países da América Latina que culmina com um retorno à Europa (Berlim, Bulgária e Paris).


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Quanto à recepção, a publicação aqui em destaque traz vários analistas debruçados sobre temas que atravessam a Cia. dos Atores: Silvia Fernandes, Cristina Ribas, Clóvis Massa, César Augusto, Marcelo Valle, Fátima Saadi e Silvana Garcia, expandindo temas e problemas estéticos que ajudam a dimensioná-la. Retomando o princípio da montagem, tão caro a Oswald de Andrade e a Enrique Diaz, Fátima Saadi (2006, p.110) destaca a propósito de Ensaio. Hamlet: “o procedimento de montagem no tocante aos atores, se dá entre a disponibilidade de cada um deles para o jogo dos papéis e papéis são quase que ‘objetos achados’ da cultura teatral, dos quais os atores se apropriam, emprestando-lhes não apenas corpo e voz mas

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um ‘picadeiro’ onde eles passam a fazer sentido. Os personagens saem diretamente dos livros que os atores manipulam e leem em cena, e assim, feitos literalmente de palavras, são transubstanciados à vista do público em construções significantes; são intercambiados entre diversos atores; são condensados, por superposição, num só ator; são representados por bonecos de inflar, por partes de figurinos manipuladas num grande esgrimir de elipses, condensações e metonímias.” Essas minuciosas filigranas estéticas não surgiram ao acaso nem brotaram espontaneamente, mas foram consequência de um árduo trabalho de composição e pesquisa gestual, treinamento corporal e vocal, conduzido por uma gama de assessores que sempre cercou o conjunto, dele extraindo o que de melhor podiam apresentar. Nesse sentido, Rue Cordelier, O Enfermeiro e Cobaias de Satã são invocados por César Augusto (2006, p. 96) como trabalhos que inauguram referências investigativas da cena e de sua representação, conferindo-lhes um teor de constante questionamento: “o público é convidado a perscrutar este universo profundamente humano e intrinsecamente investigativo, cacos de histórias remetendo a um lugar maior, relembrando que, por vezes, a palavra é apenas um dos infinitos meios que o teatro oferece para redimensionarmos origens, escolhas e aptidões maiores”. Os atores, continuam construindo sua trajetória.


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LUME Criado em março de 1985 por Luiz Otávio Burnier, o Laboratório Unicamp de Movimento e Expressão sempre foi conhecido por LUME. Em seus primórdios, marcados fortemente pela Antropologia Teatral derivada de Eugênio Barba, o único ator do grupo era Carlos Simioni. Razão pela qual Kilbilin, O Cão da Divindade foi um solo. Associado ao Instituo de Artes da Unicamp, muita gente passou pelo laboratório, mas poucos resistiram ao treinamento intenso, à árdua dedicação necessária e, sobretudo, aos exigentes cânones de Burnier.

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LUME teatro, 25 anos é a publicação de 2011 que festeja esse percurso, escrito por todos os integrantes da equipe, onde memórias e observações pessoais surgem entremeadas a muitas fotos e desenhos, compondo um mapa de afetos. Trata-se um material de características memorialistas despreocupado de albergar interpretações ou esmiuçar um traçado historiográfico. O viés objetivo, as longas exposições técnicas de ensino e aprendizagem ou as reflexões estão espalhadas em outras publicações associadas ao grupo, tais como A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator e Café Com Queijo, corpos em ação, de Renato Ferracini; Tal qual apanhei do pé, de Raquel Scotti Hirson e Da minha janelo vejo, de Ana Cristina Colla, além da publicação coletiva Corpos em fuga, corpos em arte, organizada por Renato Ferracini. A primeira fase vai até 1994, ano que marca dois significativos eventos para o coletivo: a aquisição da sede, na Vila Santa Isabel (Barão Geraldo) e a morte súbita de Luiz Otávio Burnier, no início do ano seguinte. Os espetáculos, até então, haviam cumprido carreiras discretas de poucas apresentações. Sem o mestre, o grupo passa a ter outra configuração, absorvendo novos integrantes, constituindo a equipe até hoje conhecida. Linhas de trabalho vão se consolidando aos poucos: a Mímesis Corpórea, o Clown, a Música, enfeixadas dentro de um treinamento maior a que denominam Dança Pessoal. As primeiras viagens internacionais da equipe ainda refletiam os antigos laços criados por Burnier (excursões a Holstebro, sede do Odin Teatret na Dinamarca, Alemanha e Itália) quando a realização conjunta era a Parada de Rua.


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Anzu Furukawa, dançarina de butô, imprime novo rumo estético ao coletivo com Afastem-se Vacas que a Vida é Curta, 1997, aproximando o grupo de uma pesquisa sincrética entre a Mímesis Corpórea e a vertente japonesa de vanguarda. O butô novamente interessará o grupo em 2003, através da parceria com Tadashi Endo e que resulta em Shi-Zen, 7 Cuias.

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Em 1999, o LUME apresenta Café com Queijo, um de seus maiores sucessos. As viagens pela Amazônia realizadas em 1993 e 1997 continuavam a reverberar nos corpos dos atores e agora, no novo espetáculo, uma criação coletiva, ensejaram criaturas plenas de vida que contagiou plateias nacionais e internacionais. Em um minúsculo avião da FAB voaram três horas rio Negro acima, para encontrar lugarejos perdidos na mata. Alcançaram o sopé do Pico da Neblina, na fronteira com a Venezuela, onde o avião estourou um cano de óleo em sua aterrisagem, provocando enorme fumaceira e a atenção dos jipes do exército fortemente armados pensando tratar-se de um ataque de contrabandistas. De São Gabriel da Cachoeira, erma vila encravada na mata alcançaram, vinte e cinco horas depois, a aldeia de Yauaretê, na fronteira com a Venezuela, para conhecer as criaturas ímpares que transformaram Café com Queijo num verdadeiro estudo antropológico. “Estar como artista em campo é sempre se deixar afetar pela pele daqueles que nos encontram. Eu achei Mata-Onça nas terras molhadas dos interiores do Pará! [...] Não só trocamos experiências e diferenças de vida, mas no próprio ato do encontro experienciamos vida – fizemos vida, geramos vida! É nesse sentido que a pesquisa de campo passa a ser experiência de campo. Ela gera vida-texto nas palavras de MataOnça. Gera vida-música no ABC poético musicado de seu Lúcio. Gera vida-poesia nos inúmeros poetas orais que passam pelos nossos olhos e nossos corações nessas viagens”, anota Renato Ferracini (2011, p. 140). A pedagogia sempre esteve presente no LUME, não apenas por se tratar de um grupo anexo a uma universidade, mas também porque alberga em sua própria existência esse viés comprometido com a transmissão artística entre mestre e discípulo. Se o espírito de Ettiene Decroux segue reverenciado entre as paredes de sua sede, ele se imiscui nas muitas atividades desenvolvidas pelo núcleo a cada temporada: cursos, workshops, períodos de treinamento e residência, trueques com outros coletivos, simpósios e encontros entre pesquisadores.


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Os vinte anos do grupo significaram também, segundo eles mesmos, a maturidade da equipe, materializada com a presença de grandes mestres internacionais orientando workshops em sua sede e, acima de tudo, a organização de um repertório de dez espetáculos percorrendo todo o país. Em 2005 a equipe segue para vários festivais internacionais na Europa arrancando cinco estrelas do jornal Scotsman, o mais respeitado de Edimburgo, sede do Fringe Festival, onde ShiZen arrebatou as plateias. No Brasil, no ano seguinte, dá-se a criação de O que seria de nós sem as coisas que não existem, sob a direção do argentino Norberto Presta, quando novamente a Mímesis Corpórea foi empregada para sustentar a pesquisa efetuada com operários de uma fábrica de chapéus de Campinas.

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Ao lado dos espetáculos coletivos, os artistas também cultivam solos. Carlos Simioni cria Sopro, com direção de Tadashi Endo e música de Denise Garcia, em 2006. Ricardo Pucceti invoca escritos de Kafka e dá corpo a Kavka – agarrado num traço de lápis, monólogo dirigido por Naomi Silman no mesmo ano. E, novamente sob o comando de Endo, no ano seguinte, Ana Cristina Colla idealiza Você, sobre memórias pessoais da infância. Os Bem Intencionados, grande sucesso revelado em 2015, nasceu, contudo, um pouco antes, quando se entregaram a um laboratório em torno de celebridades e figuras espalhafatosas que atuam como grupo musical da cidade de Guapiaçu, no interior do estado de São Paulo. Apresentado num salão de baile de Campinas, quando gerou um curtametragem pelo Laboratório Cisco, Caleidoscópio de emoções, o fictício show da banda, foi recebido por muitos frequentadores como autêntico. Como espetáculo teatral, contudo, conheceu um aprofundamento: as criaturas eram frequentadores de um salão de baile brega e chegavam um a um, sofrendo uma leve inspiração do espetáculo montado tempos atrás pelo grupo francês Théàtre du Campagnol e que inspirou Ettore Scola na confecção de O Baile. À beira do deboche, do satírico e do melodramático exacerbado, Os Bem Intencionados implicou numa dramaturgia de algibeira, à base de clichês, que inevitavelmente arrebata plateias em todo o Brasil dadas as extensas identificações que induz.


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Balagan A publicação lançada pela companhia paulista em 2014 para celebrar seus quinze anos de jornada não é um livro – em seu sentido convencional. Trata-se de um corpo. Um corpo de papel envelopado por uma caixa de papel-cartão e contendo treze grandes folhas dobradas e mais cinco anexos fotográficos que ajuntam, como num álbum móvel e dinâmico, aquilo que o coletivo considerou primordial de ali figurar.

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As grandes folhas foram impressas em cores variadas nos dois lados, de modo que sua manipulação pode ser individualizada e cuja leitura não supõe continuidade. O leitor é convidado a estabelecer um jogo com o conjunto de papéis, abrindo e fechando suas partes conforme lhe aprouver, superpondo-as, enfileirando-as, compondo mapas ou cartografias que dependem de seus interesses momentâneos ou caminhos específicos a serem trilhados. Tal como um corpo, a caixaenvelope pode ser aberta ou acarinhada, destrinchada ou segmentada, tornada texto ou figura conforme a ocasião se apresente. Ao longo de seu percurso a companhia criou alguns espetáculos emblemáticos: Sacromaquia (2000), Tauromaquia (2004), Prometheus, a tragédia do fogo (2011), marcados não apenas pela singular visualidade que os unificava como, sobretudo, as inovadoras gestões que engendraram a dramaturgia e a atuação, revestindo-as de uma singularidade sem paralelo na cena nacional. Cabras, cabeças que rolam, cabeças que voam (2016) sintetiza, nesse sentido, o projeto maior do conjunto: cada espetáculo nasce após um fundo processo de pesquisa que aborda um tema e em torno dele desenvolve inúmeras atividades que o adensam e lhe confere o melhor formato cênico. Esse balaio de plicas (uma plica é uma dobra) se assume como polifônico, plural e um campo relacional, depositando suas melhores apostas exatamente ali onde nenhuma certeza orienta o projeto. “Caçar” é o nome do primeiro exercício criado por Meyerhold dentro da biomecânica. A atitude do caçador é alerta, disponível para o que se passa ao redor, atento aos sinais emanados pelo entorno, ágil e certeiro ao mirar o animal que lhe proverá alimento. Assim, um ator desperto e verdadeiramente imbuído pelo espírito criativo, nunca está parado, indolente ou entretido com sua própria interioridade, desperto para a alteridade da natureza, “o ser das coisas, e ela não precisa ser


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‘criada’, mas apenas percebida e recebida”, destaca um dos textos. Antípoda do coletor, que gasta seus dias na espera e no devaneio, o coletor é sagaz e em permanente movimento, onde “o resto é caminho”. Temos aqui um “ator mais que humano” – capaz de incorporar em si tudo que o rodeia e conforma. Incorporar (embodyment), um termo chave para a Balagan, outro nome para terrano, esse neologismo criado por Bruno Latour que se opõe a humano, o predador da vida do planeta. Outro nome dessa mesma operação é invultar-se, a capacidade de um ser humano transportar-se de corpo e alma para outra coisa, assumindo a natureza do outro ser. Na cultura nordestina a figura do invultado é recorrente, sendo Lampião seu grande patrono, capaz que era de virar pedra, árvore, cobra.

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As danças populares constituem uma permanente atração para a companhia, tais como caboclinhos, congada, touro candil, dança dos orixás, entre outras, ao lado de artes marciais, como kempô, kung fu, capoeira ou a iyengar yoga, modos variados de treinar o corpo e despertálo de sua sonolência coletora. Afinal, o grotesco tem a capacidade de “aproximar o que está distante, ao unir coisas que se excluem entre si e ao violar as noções habituais, o grotesco artístico se assemelha ao paradoxo lógico”, conforme atesta Mikhail Bakhtin, uma das sólidas referências seguidas pelo coletivo em seu percurso cênico. Tais noções ajudam a também entender o significado de balagan em russo – bagunça, confusão, barulho, balbúrdia – mas que designa, sobretudo, o teatro de feira, grotesco em si mesmo, múltiplo e polimorfo, paradigma que inspirou Meyerhold a desenvolver suas principais noções estéticas. Essa forte relação com a cultura russa deriva da longa estada de Maria Taís, idealizadora e criadora da companhia, naquele país, quando foi, entre outras atividades, assistente de direção de Anatoli Vasiliev, o criador da Tagánka. Cada folha da caixa-envelope desvenda um universo. Há detenção sobre a segunda pele, aquilo que, em outros ensembles, se denomina figurino. Na Balagan, o ator nunca está vestido de algo, ele é algo. Pode ser uma fina camada de argila revestindo sua pele ou vistosos veludos e rendas cuidadosamente costurados para lhe fornecerem não um suporte, mas a própria expressividade. Também peles de animais e couro, aniagem ou brocados podem ser mobilizados por Márcio Medina, cenógrafo e figurinista que acompanha, desde


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a primeira reunião, todos os projetos artísticos, orientando os atores a desenvolverem sua segunda pele. A planta da Casa Balagan, sede da equipe, revela cuidados especiais. Ali só se anda sem sapatos, os celulares são deixados fora, há uma cozinha para abastecer a fome e permitir refeições fora de hora, há um espaço para a administração e outro para o cultivo de ervas aromáticas, cada um deles cumprindo uma função dentro do grande ritual de entrada/saída da sede. Nos espetáculos da Balagan, os atores não falam, mas empregam a coisa voz, ela que é gesto sonoro, “uma flecha disparada ao infinito”. Fernando José Carvalhaes Duarte é musicólogo e compositor e quem orienta o conjunto nesses domínios, explorando sobretudo a espacialidade inerente à voz humana, criadora de espectralidades que devem povoar os timbres e alturas da cena, a ação verbal.

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Desdobrando-se como foles, como plicas, como folders, os anexos iconográficos constituem uma atração à parte nessa viagem por dentro da Balagan, uma coleção de belas e instigantes fotos que noticiam não apenas seus grandes espetáculos como, além dos antes citados, A Besta na Lua (2002), Západ, a tragédia do poder (2007) e Recusa (2012), bem como algumas de suas viagens. Como a empreendida ao Retiro dos Bois (Minas Gerais, 2014), à comunidade Veredinha (Bahia, 2014), às terras indígenas Sete de Setembro (Rondônia, 2013), à aldeia Suruí (2013), entre outras, fontes preservadas de vida e distantes dos núcleos urbanos, onde o elenco vai buscar não só inspiração como também alento para criar. Organizada por projetos, a Balagan já empreendeu alguns, como Vaqueiros (2003), voltado ao estudo das culturas populares do nordeste, Do Inumano ao Mais-Humano (20072008), um ciclo de encontros com diferentes pesquisadores das ciências humanas que ajudaram a nortear rumos para a companhia, ou, ainda, Cabras, cabeças que rolam, cabeças que voam (2013-2014), fonte de criação para o espetáculo levado à cena dois anos após. Com sua incomum publicação, a Cia. Balagan recuperou, aos interessados, muito mais que informações sobre seu amplo e diversificado projeto de existência, convidando-os a com ela partilharem senão a mesma intensidade de suas criações ao menos as emanações energéticas que ali pulsam, podendo refazer, através da manipulação, uma parte de suas propostas.


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Hoje O tempo presente está amplamente contemplado nas publicações antes referidas, tornando o labor do pesquisador aplainado e cercado em suas margens, como um caudal onde se pode navegar sem susto. Inúmeros empregos e usos dos saberes cênicos, de teor performático e vividos enquanto práticas, surgem em minúcias nessas páginas, destacando não apenas os resultados obtidos como, especialmente, os ensaios e preparações, a desgastante labuta daqueles que se entregam à cena não como exibição narcísica, mas como trabalho.

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Em muitos desses casos precedidos por tortuosos processos de pesquisa que podem durar meses ou anos, amadurecendo fundamentos ou burilando significações, para levar às plateias um produto decantado. Longe do entretenimento ou da fácil decodificação, os espetáculos resultam verdadeiras equações estéticas, produtos relacionais que almejam o estatuto de criações artísticas em plena potência, um pouco do melhor daquilo que a cena brasileira contemporânea pode oferecer. Se toda leitura é um constructo, as publicações aqui referidas oferecem a cada uma sua parcela de jogo, sua cota de prazer e inteligência, em não raros casos convidando à releitura, à renovação de feitura de seus meandros, numa viva prova de resistência ao vazio ou falta de profundidade. E se o leitor tem diante de si tais emaranhados, ele deve dar-se por feliz, pois nada é mais instigante do que a descoberta das entrelinhas.


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Invenção como Composição: Presença e Treinamento 1

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Renato Ferracini2

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Acredito ser importante localizar o território de minha escrita. Sou ator e pesquisador do LUME - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Universidade de Campinas. Se por um lado a UNICAMP se organiza de uma forma muito parecida com as outras universidades com seus institutos e faculdades, ela também, desde o seu nascimento, se propôs a organizar institucionalmente outro modo de arranjo de pesquisa chamado, internamente, de Sistema de Centros e Núcleos. Esse sistema formal de organização nasce com o intuito de promover a interdisciplinaridade e autonomia da investigação e, portanto, esses centros e núcleos não são vinculados a nenhum instituto ou 1 Uma versão desse artigo foi originalmente publicada como parte integrante do livro As práticas corporais no campo da saúde: pesquisa interinstitucional e formação em rede Organização de CARVALHO, Y.M.; GOMES, I.M.; FRAGA, A.B. Editora Hucitec, 2016 com o nome de “Inventar com Protocolos: presença e treinamento”. 2 Doutor em Multimeios pela UNICAMP. Ator-pesquisador.


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faculdade; são 21 unidades de pesquisa autônomas, institucionalizadas e independentes vinculadas diretamente à reitoria e que possuem, inclusive, uma carreira própria: o pesquisador, chamado na UNICAMP de Pq. Diferente da carreira docente nós (os pesquisadores, e eu sou um pesquisador – Pq – do LUME) somos “liberados” das aulas na graduação para focar efetivamente nossas ações na pesquisa interdisciplinar. Falo, portanto, como ator-pesquisador de um núcleo interdisciplinar territorializado na área de teatro. E, talvez, essa pesquisa continuada desenvolvida no LUME desde 1985 possa criar pontos de contato com a área da saúde coletiva. Para entendermos o foco de investigação específica desenvolvida nesse núcleo teatral preciso explanar, de forma reduzida, o impulso de sua criação.

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Luís Otávio Burnier, encantado de forma prematura em 1995 com apenas 38 anos, foi um docente da UNICAMP que criou o LUME depois de estar na França e trabalhar durante 8 anos com um grande mímico chamado Etienne Decroux considerado, hoje, a pai da mímica moderna ou mímica abstrata. Burnier sempre nos contava uma história: quando observava Decroux em cena, ele percebia uma força que “emanava” de seu fazer e que ele denominava, metaforicamente, de “leão”. “Era como se eu visse um leão em cena”, nos dizia Burnier. Ao mesmo tempo ele observava os alunos de Decroux, e mesmo com corpos mais jovens e com a técnica mais precisa não “emanavam”, segundo Burnier, este “leão”, essa força. Quando Luís Otávio volta ao Brasil ele cria um grupo para investigar a seguinte problemática: é possível trabalhar esse “leão” ou esta força nos atores, nos dançarinos, nos performadores, nos circenses, sem a necessidade de ensinar, a priori, uma técnica codificada de atuação? Em outras palavras: é possível trabalhar no corpo dos atuadores esta força, esta potência, sem lançar mão de técnicas codificadas de expressão? Um exemplo do que podemos chamar para técnicas codificadas de expressão seria o balé clássico. Além de ser uma técnica organizada expressiva em sua culminância, todo o seu processo de aprendizagem também é normatizado. Existe uma clara pedagogia para o aprendiz de bailarino que vai de um léxico menos complexo ao mais complexo. O espaço para o “leão” deverá ser construído pelo bailarino por seu próprio risco e conta nos entremeios dessas técnicas e formas extremamente


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codificadas. Portanto, o que é ensinado ao bailarino são procedimentos concretos e formais por meio de um processo pedagógico objetivo. Isso não é, em absoluto, uma crítica a esse método e nem a verificação de uma impossibilidade da emergência desse leão ou dessa força nesse tipo de procedimento formal e objetivista. Verificamos artistas, nesse plano, que promovem essa emergência de forma sublime como, por exemplo, Nijinski3. O que anseio sublinhar aqui é que Burnier, ao criar o LUME, desejou subtrair esta pedagogia objetivista do treinar algo previamente codificado e já partir para a investigação da emergência concreta dessa força ou desse “leão”, enfim, dessa imaterialidade do trabalho do ator.

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O LUME nasce em 1985 com esta problemática e a persegue até os dias de hoje. Talvez sejamos bastante incompetentes por não termos chegado a nenhuma conclusão objetiva ou mesmo a respostas concretas e científicas a esta questão. Mas esta problemática leva a muitas outras. O mais interessante dessa questão é que, seja qual for o nome que se dê a este “leão”, estaremos dizendo de algo impalpável, imaterial, portanto nada concreto, objetivo ou científico stricto sensu - o que nos salva, em parte, de nossa incompetência. No máximo podemos usar uma definição paradoxal para esse “leão”: uma espécie de concretude abstrata. Estamos falando, no limite, de uma força. Burnier criou um Núcleo de Pesquisas na Universidade Estadual de Campinas para pesquisar uma força, que na definição em Física Clássica, é algo que se efetiva na relação entre dois ou mais corpos e só pode ser mensurada no efeito que causa neles. Em última instância, o LUME nasce para pesquisar o que acontece entre os corpos, na relação entrecorpos. Pesquisamos maneiras de inventar relações, modos de convite à relações qualitativamente potentes. Convites e modos relacionais mediados pela poética teatral. Uma consequência: no LUME trabalhamos essas forças que existem na relação entre dois ou mais corpos e que não são mediados 3 Vaclav Fomic Nižinskij 12/3/1890, Kiev (Ucrânia) - 8/4/1950, Londres (Inglaterra). “[...]era chamado por muitos como deus da dança. Revolucionou o balé no início do século XX, conciliando sua técnica com um poder de sedução da plateia. Seus saltos desafiavam a lei da gravidade. Com coreografias de Fokine, dançou “Silfides”, “Petrushka”, “Sherazade” e “Espectro da Rosa” entre outros. Seu maior triunfo foi elevar a figura masculina à mesma altura que o elemento feminino nos balés.” (http://acervo.estadao.com.br/noticias/personalidades,nijinsky,1028,0.htm acesso em 30/07/2015 às 15:07).


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por protocolos expressivos a priori. Isso significa que esta força deveria emergir a partir da materialidade dos corpos envolvidos, e só dos corpos envolvidos. Não existe uma forma específica e codificada a priori para uma dança ou uma atuação. Pouco importa se o atuador tem uma perna ou duas, se ele é gordo ou magro, se tem experiência prévia em artes cênicas ou não. Perguntas práticas emergem: como, com este corpo específico, o atuador pode “convidar à força”, ou seja, promover e efetuar uma relação qualitativamente ampliada? Como, com estes corpos específicos (o meu corpo e o corpo dos outros atores do LUME ou o corpo daqueles alunos nossos que vêm de todos os lugares do Brasil e do mundo) podemos trabalhar a materialização de um convite ao encontro, poético e inventivo, com o outro sem um código expressivo-estético a priori? Ou se ele existir, como pode estar a serviço da construção de um encontro qualitativamente potente?

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Nesse contexto, podemos pensar o teatro para além da acepção comum de ser uma arte coletiva e defini-lo, de forma mais precisa, como um território de composição em ato a partir de um coletivo que comunga o mesmo tempo-espaço. A partir desse plano podemos discutir duas questões: a primeira é o conceito de presença. No teatro, um ator que possui a capacidade de gerar uma composição poética no ato presente da ação cênica é um ator que “possui” presença. O que seria esta presença? O que é um ator que “tem” presença? No Dicionário de Teatro de Patricie Pavis (2001) verificamos a definição communis opinio de presença como a capacidade do ator de chamar a atenção sobre si. Nesse caso, o senso comum define presença da mesma forma que se define egolatria e um ator que possui presença passa a ser, em última instância, narcisista. Essa definição qualifica a presença como atributo de um corpo e a insere no plano espacial. De uma forma simplista, a presença, nessa definição, passa a ser 1) um corpo material presente no espaço e 2) que possui o atributo de chamar a atenção sobre si. Ela é demarcada como uma materialidade no espaço do aqui-agora que direciona a percepção para esse próprio material. Não concordo por ser uma demarcação demasiadamente parcial! Acima definimos o ator que “possui” presença como aquele que trabalha com forças, ou seja, com uma imaterialidade concreta de forças condensadas a partir de corpos que se relacionam com o intuito de intensificar de forma qualitativamente mais potente todas as partes


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envolvidas na composição. Portanto, pouco interessa a mera presença material de corpos no espaço – mesmo que esses corpos possuam a capacidade de focar a percepção - o que interessa, de fato, é como essas presenças materiais se relacionam e como elas criam, geram efeitos delas mesmas de forma intensificada. Gumbrecht (2010) fala especificamente desses efeitos de presença que emergem da relação das materialidades e como esse coletivo de forças intensificadas – efeitos de presença - ampliam ou diminuem a potência das partes envolvidas.

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Os efeitos de presença, pensadas dessa forma, tocam o pensamento de Espinosa (1992) pois – permitindo-me uma simplificação de seu pensamento – a definição de corpo para esse pensador é a de um conjunto de partes que na sua relação definem aquele corpo. Um corpo é definido, em última instância, pela relação de suas partes em composição e não pela identidade ou função de seu conjunto. Assim, um corpo sempre propõe um processo de composição em ato desse mesmo corpo numa criação dele mesmo, processo auto-composicional inventivo que Maturana e Varela (1997) definem como autopoiésis. Mas o mais importante em Espinosa (1992) é que nesse processo de composição-corpo existiria – ou deveria existir - uma ética de intensificação qualitativa e aumentativa de potência na qual as partes envolvidas na composição ampliam sua capacidade de ação no mundo. O pensador da imanência nos propõe um ethos, uma postura, enfim, uma ética na qual, nos encontros e nas relações, no plano concreto de experiência, buscássemos uma ampliação de potência de todas as partes envolvidas. Nunca a potencialização do MEU corpo, pois essa postura promove a identidade e o individualismo hedonista tão em voga em nossa contemporaneidade, mas a intensificação de meu corpo em relação ao outro corpo que constrói, nesse processo, um corpo “EuSeu-Nós” que deve ser pensado enquanto ampliação de potência: a intensificação de um certo afetar e ser afetado. A esse processo de composição em ato de um corpo que amplia a capacidade de ação no mundo das partes envolvidas, Espinosa (1992) vai dar o nome de Alegria. Ao contrário, quando no encontro as partes diminuem a sua capacidade de ação no mundo, ele dará o nome de tristeza. Temos aqui uma questão ético-política muito instigante. Todos os encontros, todas as partes, todo fluxo de experiência numa coletividade deveria buscar a ética da alegria, ou seja, promover


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uma composição em ato de um corpo – social, político, estético, pedagógico, amoroso etc - no qual todas as partes envolvidas ampliem sua capacidade de ação no mundo. Gumbrecht (2010) nos lembra que o conceito de presença se define pela relação de materialidades que geram, nessa composição, efeitos de presença. Ele pressupõe pensar experiências de presença ou ainda efeitos de presença no qual qualquer tipo de relação afetiva com seus elementos materiais “tocará” os corpos que estão em relação de modos específicos e variados, ou seja, essa inter-relação material entrecorpos está sempre sujeita a efeitos de maior ou menor intensidade (GUMBRECHT, 2010, p. 39). Podemos aqui realizar uma ponte entre Gumbrecht (2010) e Espinosa (1992): efeitos de presença alegres que ampliam a capacidade de ação no mundo, ou efeitos de presença tristes que diminuem essa capacidade4.

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Passemos a tratar agora da busca de efeitos de presença alegres enquanto postura ética. Como realizamos essa busca no LUME? Tomemos como exemplo um corpo espetacular. Temos aqui várias partes envolvidas: os atores, o tempo, o espaço, o público, o figurino, o cenário, a luz, os procedimentos de criação, as técnicas (de atuação, vocais, relacionais etc.). Há na composição de um espetáculo cênico muitas partes envolvidas, cada qual um corpo em si absolutamente complexo. Pensemos esses procedimentos de criação e esse conjunto de técnicas como códigos expressivos. A questão problemática: como, a partir de todas essas presenças - o público, os atores, o espaço de encenação, o tempo, e os códigos expressivos - podemos gerar efeitos de presença no processo de composição em ato de um corpo-espetacular que busca uma postura de alegria? Como efetuar uma postura éticopolítica de compor um espetáculo no qual todas as partes envolvidas ampliem a capacidade de ação no mundo? Este é o campo problemático de investigação do LUME e há algumas consequências positivas nessa postura. Uma delas é verificar que os códigos expressivos são apenas uma parte-corpo a entrar na composição do espetáculo, ou seja, a meta não é aplicação sine-qua-non de qualquer tipo de código, tampouco o objetivo do acontecimento cênico é o ator, o espectador, o espaço, a luz ou mesmo dramaturgia, mas é a composição de um evento poético 4 É óbvio que essa relação, longe de ser dualista, é múltipla e complexa. Numa mesma composição há partes que podem se potencializar enquanto outras partes se despotencializam. Essa simplificação aqui é apenas de ordem didática.


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cênico em ato desses corpos na busca de ampliação de potência ou de alegria. Como lançar os códigos nessa zona de composição? E já que Deleuze e Guattari (1992) definem a arte e a criação como uma composição complexa de matérias de expressão uma outra pergunta idêntica, porém mais instigante, se apresenta: como inserir os códigos numa zona de inventividade? Quando falamos de inventividade não nos referimos ao novo – “a busca do novo é muito velha” como diria meu amigo Fernando Villar, professor de artes cênicas da UnB - mas na disposição de inventar outros modos de composição. Inventar, nesse caso, seria uma capacidade composicional cuja postura ético-política propõe ampliação de potência de todas as partes envolvidas: alegria. O ato de invenção não se vincula à busca do novo, mas está relacionado a como compor. Outro nome de inventividade enquanto capacidade de composições outras poderia se aproximar do conceito de jogo, mas não me adentrarei nesse tema.

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Posso dizer que as artes presenciais são, como todas as outras áreas, um campo no qual os códigos, enquanto modos de operação de processos criativos, se colocam de uma forma muito contundente, mesmo que sejam códigos temporários. Digo ainda que esses códigos mediam a maioria dos modos de produção cênica na atualidade, ou seja, existe um modo de criação cênica em que são determinadas as funções dos atores, diretores, espaço, texto, luz, som, dramaturgia cênica e, até mesmo, modos organizados de recepção, de “fazer sentir” e até mesmo um modo protocolar de “fazer pensar”. Existe uma construção mediada, transversalizada e hierarquizada pelos códigos. É uma composição? Sim, é uma composição. Tem efeito de presença? Sim, tem efeito de presença. Mas é um efeito de presença e uma composição reconhecida, normatizada, organizada, capturada e que busca afirmar o mesmo. Vale afirmar que a questão não é negar os códigos pois são corpos necessários na composição. Impossível realizar um concerto de Rachmaninoff com apenas duas aulas de piano. Se não praticarmos o processo de reconstrução para que as mãos e o corpo com um todo se componha com o piano, não tocaremos Rachmaninoff. Os códigos, enquanto técnicas, são absolutamente necessários. O problema é: como colocar esses protocolos em composição inventiva? Seria um grave erro buscar uma resposta definitiva para essa


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questão, pois essa postura nos levaria a uma espécie de meta-código. Esse assunto, antes de nos levar a possíveis respostas, nos insere diretamente num campo ético-político (ou ainda ético-micro-político) inventivo de outros modos possíveis de composição. Investigar esses outros modos composicionais posiciona nosso foco de atenção nos elementos processuais. Talvez sejam os próprios processos composicionais que nos darão pistas sobre seus outros modos de operação. Em outras palavras: é o próprio processo de criar um evento cênico que engendra o corpo-espetáculo. Para deixar ainda mais complexo: a obra final é ela mesmo um processo.

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Um exemplo do que estou chamando de processo ou de composição em ato fora do contexto das artes presenciais para nos proporcionar o tão sonhado, e impossível, distanciamento do objeto: compramos um livro sobre como surfar. O lemos do início ao fim. Além do livro ainda temos um conhecimento muito profundo do atrito da prancha com a água e do corpo com o vento. Após muitos cálculos exatos, sabemos os tamanhos das ondas e a velocidade do vento naquele momento e realizamos um estudo minucioso sobre o equilíbrio dos corpos. Munido de todas essas informações, pegamos nossa prancha e surfamos? Não! Por que? Porque existe uma espécie de “conhecimento” presencial do processo da ação de surfar que se dá na composição em ato entre a prancha, a onda, o vento, o corpo, o equilíbrio, o atrito e todo o treinamento técnico, erros e acertos anteriores da busca desse surfar. Existe a invenção em ato de um corpo-prancha-vento-onda-técnica-dosurf que nos faz surfar e que se dá na composição entre as materialidades de suas partes, tão complexas quanto a própria composição: antes da invenção do corpo-ato-de-surfar precisamos ter treinado, construído esse outro corpo enquanto técnica do surfar; precisaríamos da prancha, da onda e do vento porque sem esses elementos não surfamos. Esses artefatos estão dispersos, e portanto, precisamos construir e compor um só corpo com todos eles. Composição é o ato ontogenético da ação; uma ontogênese da ação em ato. E é nesse sentido que a composição é um processo; um processo que podemos chamar de conhecimento e que emerge da ação de experimentação gerando efeitos de presença. Mas o que interessa não são os efeitos de presença em si mas aqueles que possuam o ethos de uma relação alegre que amplie qualitativamente a capacidade de potência das partes envolvidas.


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Gostaria agora de adentrar na segunda questão e focar um pouco mais especificamente no assunto código e em sua construção. No teatro e mais especificamente no LUME chamamos esse processo pedagógico de formação técnica e criativa de treinamento. Treinar significaria, no contexto desse texto, proporcionar a geração de códigos expressivos para o ator.

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Existe, na área de artes presenciais, uma tendência atual de negação da técnica. Essa negação possui como pressuposto uma ação positiva que é a busca de composição presente, de autonomia criativa. Em função dessa “vontade” criativa a técnica, muitas vezes, é considerada a vilã responsável pelo bloqueio inventivo já que sobrecodifica a expressão dita “verdadeira” e espontânea. Existe, portanto, na contemporaneidade, alguns focos de discursos espontaneístas da criação assentados, muitos deles, na negação da técnica. Esse discurso, obviamente, se estende para o treinamento já que é ele quem gera e dá sustentação corpórea à técnica nas artes presenciais. Portanto, muitas questões são levantadas a partir da palavra treinamento. No contexto teatral arrisco dizer que não se trata mais de uma simples palavra mas de um conceito, um conjunto de práticas, uma operação ética e estética que ainda causa confortos, desconfortos, ataques, defesas, confusões, pedidos de desculpas e aquele gesto tão comum em falas de conferências dos dedos das mãos fazendo a mimese linguística das aspas para significar corporalmente que: - Pois bem, estou falando essa palavra, mas não é bem isso o que quero dizer, porém, nesse momento, não achei outra melhor. Em face dessa confusão conceitual reinante podemos ter, como pesquisadores, ou a postura de desistir da palavra e buscar criar outro conceito ou conceitos que deem conta da ampliação e multifacetamento do ato ou efeito de treinar; ou repensamos, deslocamos, problematizamos e ampliamos esse essa ideia. Ambas as ações são potentes, a meu ver. Possuo, ainda, a segunda postura com a abertura de recorrer a primeira opção se for parcialmente necessário. Não procuro, de forma alguma, resolver a questão conceitual do que é treinar respondendo ao que acredito sejam falsos problemas: treinar é acumular conhecimento ou gerar experiência? Treinar vem antes da encenação? O treinamento está conectado ou não com a estética espetacular? Esses problemas mal colocados territorializam o pensador/


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fazedor de teatro na suposta necessidade de escolha entre dois ou mais termos de territórios polarizados. Não resolvemos nenhum problema com essa postura; somente somamos um nome a mais ou a menos numa das pontas da polaridade dos que são a favor ou contra esse território conceitual/conjunto de práticas. Sim, porque a real questão com o termo treinamento é muito menos conceitual e mais como atualizar dispositivos de conjunto de práticas para o corpo do ator coadunado com seu plano de experiência poética. Não vejo, como pesquisador, nenhuma postura criativa e potente nesse tipo bastante estranho de prática do escolher-um-dentre-dois-ou-três-ou-mais-lados ou ainda ser simples e infantilmente contra ou a favor de um termo ou conceito.

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Vou me ater para isso apenas na questão etimológica da palavra treinar para problematizar essa questão. Ao pesquisarmos a etimologia do verbo treinar ou o substantivo treinamento no dicionário etimológico da língua portuguesa (CUNHA, 2010) e no dicionário on line priberam5 somos remetidos a adestramento; preparação para uma competição ou para uma atividade; ensinar ou aprender determinada ação ou prática; adestrar, acostumar; preparar ou preparar-se para uma prova, uma competição ou uma atividade; tornar apto, adestrar, habilitar. Essas questões remetem claramente a uma noção quase militar da palavra treinamento ou do verbo treinar como adestramento psicossomático, acúmulo de habilidades, preparação para a competição, aprendizado de uma prática. Esse parece ser o sentido de treinamento comumente criticado quando se trata da aplicação desse conceito na área de artes. Deve-se afirmar, inclusive, que essa crítica parece ter razão e se apoia em sua etimologia. A censura ao termo possui mais motivo ainda quando o que se busca na área das artes corporais presenciais é justamente gerar uma linha de fuga dos corpos adestrados e habituados territorializandoos num terreno criativo composto de outras intensidades e potências dele mesmo. Adestrar o corpo, habituá-lo, realizar um aprendizado como acúmulo de práticas técnico-mecânica parece ser justamente o oposto do que se busca de um estado criativo do corpo. Mas curiosamente a mesma etimologia da palavra nos leva para um território pouco conhecido: treinar tem como origem adestrar a ave para a caça e seria derivado do latim traginare e do substantivo treina que era o animal dado ao falcão para o treinarem na caça. Uma rápida pesquisa na internet sobre a etimologia da palavra traginare e o terreno 5 http://www.priberam.pt/dlpo/dlpo.aspx?pal=treinamento (acesso em30/07/2015 às 15:16).


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se amplia: tragináre, significa “adestrar o falcão a pegar a sua caça, levando-o a perder o medo de certa ave selvagem ao lhe dar de comer uma galinha sobre uma ave domesticada da mesma espécie daquela selvagem, com isso o falcão se habituava com as características daquela ave e quando fosse lançado à caça da mesma já não mais lhe tinha medo” (MOREIRA, 2003, 16). Treinar, etimologicamente, seria ensinar o falcão a caçar uma ave que ele não caça. Ora, já é lugar-comum entre os ornitólogos as habilidades de caça dos falcões. Portanto, traginare o falcão não seria ensiná-lo a caçar, já que essa ave é uma caçadora nata, mas sim ampliar suas capacidades de caça para além daquela que ele já possui. A etimologia de treinar/treinamento parece nos remeter a um duplo paradoxal: seria tanto adestramento como a ampliação de uma capacidade já existente. O falcão já caça. Com o traginare ele amplia essa capacidade, intensifica sua capacidade. Ele não gera ou cria uma nova habilidade mas amplia essa já existente. Em última instância, com o traginare o falcão intensifica-se a si mesmo, ampliase como falcão sem deixar de ser falcão: gera um devir-outro-falcão. A palavra treinamento, nessa faceta etimológica específica, nos leva para um território de intensificação de si. Diferente de aprender outras habilidades, acumular aprendizados técnicos estrangeiros, prepararse para uma competição, o treinamento, derivado de traginare, nos convida a uma experiência de intensificação de si. A etimologia da palavra treinamento parece forçar o olhar para um território duplo e paradoxal: ao mesmo tempo que nos remete para um aprendizado de habilidades, nos leva também para uma ideia e um conjunto de práticas que teria como função uma intensificação de si. O artista cênico presencial ao treinar parece, etimologicamente, estar num terreno movediço e flutuante entre o adestramento por um lado e a intensificação de si por outro. Fica clara a pista que esse deslocamento etimológico nos dá: o treinamento somente teria sentido nesse terreno paradoxal entre aprendizado, acúmulo de habilidades e intensificação numa co-relação e co-criação. Ao provocar uma transversalidade no ato de treinar podemos relacionar os termos nos quais um vincula-se ao outro: treinar o adestramento, o aprendizado, o acúmulo de habilidades estaria intimamente vinculado a intensificação de si e vice-versa. Portanto a questão, mesmo no nível etimológico, não seria descartar o código em prol da intensificação ou vice-versa pois não são polos opostos, mas habitam o mesmo terreno no qual se pode gerar um corpo criativo.


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Uma objeção que poderia ser feita nesse instante seria a de que um atleta também tem esse objetivo paradoxal de acúmulo de habilidades, adestramento e intensificação. O atleta - um corredor por exemplo - adestra seu corpo para intensificar sua capacidade muscular de correr com o objetivo de ganhar uma corrida ou como objetivo maior, ganhar uma medalha olímpica. Ele também conclama seu corpo ao “impossível” e o desafia até o limite de suas capacidades inatas. Seria, então, adequado comparar um ator, um dançarino, um performador a um atleta? Creio que sim e isso já foi feito pelo próprio Artaud ao dizer que o ator é um atleta afetivo (ARTAUD, 1999). O atleta assim como o ator adestra-se, habitua-se, enfim, treina para proporcionar um plano de intensificação de si. Mas Artaud (1999) nos aponta claramente a diferença: enquanto a intensificação do atleta visa uma ampliação de potência muscular, aeróbia, mecânica, ou de certas habilidades físico-mecânicas específicas; o artista cênico presencial intensifica sua capacidade de afeto. Ele é um atleta do afeto e um profissional da intensificação afetiva. Adestra-se, cuida de si para intensificar sua capacidade afetiva. O profissional da saúde coletiva não poderia fazer o mesmo? Acredito sinceramente que sim. São essas as duas questões que nos aproximam: o efeito de presença não como atributo mas como composição ética de ampliação qualitativa de potência e o treinamento não somente como ação de normatividade mas também como intensificação de potência da nossa relação com o mundo. Esses deslocamentos conceituais, práticos e etimológicos podem parecer irrelevantes mas nos obrigam a repensar todo um modo de operação criativa e pedagógica na área de artes presenciais e acredito que também no campo na saúde coletiva.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARTAUD, Antonin. O teatro e seu Duplo. São Paulo : Martins Fontes, 1999. CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário Etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro. Lexicon:2010. DELEUZE, Gilles e GUATTARI. O que é Filosofia?. São Paulo: editora 34, 1992. ESPINOSA, Bento de. Ética. Lisboa : Relógio D’agua : 1992. FOUCAULT, Michel. Hermenêutica do Sujeito. São Paulo : Martins Fontes, . 2004. GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Trad. Aldomar Conrado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.

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GUMBRECHT, Hans Ulrich, Produção de Presença – o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto e Editora PUCRio, 2010. MATURANA, Humberto, e VARELA, Francisco. De máquinas e seres-vivos – Autopoiése – A organização do vivo. Trad. Juan Açuña Llorens. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. MOREIRA, Célia Emília de Freitas Alves Amaral. Interfaces da AIDS. – Campinas, SP: [s.n.], 2003. Orientador : Maria Helena Salgado Bagnato. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. Maria Lúcia Pereira e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2001.


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Autorreflexividade nas dramaturgias contemporâneas: os desvios de João Falcão 185

João Sanches1 Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) Os acontecimentos e as pessoas do dia-a-dia, do ambiente imediato, possuem, para nós, um cunho de naturalidade, por nos serem habituais. Distanciá-los é torná-los extraordinários. A técnica da dúvida, dúvida perante acontecimentos usuais, óbvios, jamais postos em dúvida, foi cuidadosamente elaborada pela ciência, e não há motivo para que a arte não adote, também, uma atitude profundamente útil como essa. (BRECHT, 2005, p.110)

Na tese Dramaturgias de desvio: recorrências em textos encenados no Brasil entre 1995 e 2015 (SANCHES, 2016), a noção de desvio é proposta como um desdobramento do conceito brechtiano de distanciamento. Essa ligação é defendida pelo dramaturgo e teórico francês Jean-Pierre Sarrazac (2012), de quem tomamos o termo: “Com efeito, a arte do desvio não deixa de se relacionar com 1 Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (PPGAC – UFBA). Dramaturgo, encenador e iluminador.


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o distanciamento brechtiano: afastar-se da realidade, considerá-la instalando-se à distância e de um ponto de vista estrangeiro a fim de melhor reconhecê-la” (SARRAZAC, 2012, p. 65). A diferença entre distanciamento e desvio estaria no fato de que a noção de desvio, tal como abordada neste estudo, trata de construções dramatúrgicas nas quais a autorreflexividade se apresenta não apenas por meio de emersões épicas, mas também de emersões líricas. A subjetividade e o lirismo, tantas vezes rotulados como “subjetivismo”, têm suas emersões no drama e determinam as formas de muitas obras emblemáticas das dramaturgias encenadas no ocidente. O trabalho teórico de Jean-Pierre Sarrazac (2012) e de seu grupo de pesquisa sobre o drama propõe noções que reconhecem esses desvios e suas genealogias, associandoos à questão ampliada do realismo na obra de arte – realismo entendido como modo de formar, como materialização em produto artístico de uma relação com o mundo concreto, “real”: Italo Calvino enaltece, ao falar de realismo, a visão indireta, à qual associa a figura mitológica de Perseu: o mundo é igual à Medusa, se o escritor quiser explicálo escapando à paralisação, deve evitar olhar o monstro de frente. No teatro, como na literatura romanesca, o desvio constitui a estratégia do escritor realista moderno. Esclareçamos, todavia, que não se trata aqui de um realismo fundado na imitação do vivo, esse realismo estritamente figurativo. (SARRAZAC, 2012, p. 63)

A partir de conceitos tradicionais e também de noções operativas de autoria do próprio grupo, Sarrazac e seus colaboradores comentam no Léxico do drama moderno e contemporâneo (SARRAZAC, 2012) uma série de autores e obras cujas invenções podem constituir uma espécie de tipologia de desvios. Como toda obra concreta é potencialmente desviante em relação a um modelo abstrato, é possível utilizar diferentes modelos tradicionais (ou mesmo contemporâneos) como referências e, assim, identificar desvios em qualquer peça. Essas contraposições entre modelos e obras contribuem para tornar o emergente ainda mais evidente, colaboram para o mapeamento da dramaturgia contemporânea, para a identificação de estratégias recorrentes de desvio e, consequentemente, para a reflexão sobre o que esses desvios estariam indicando.


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Os desvios de João Falcão

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Um homem em cima de um palco. Pensando. Uma luz mais assim, E um silêncio. Pausa. Será que a Berenice vai gostar desse começo? É claro que ela vai ver a peça. Também se não for, azar o dela. Um homem em cima de um palco pensando. Pensando alto, é claro, senão como é que o público vai saber o que é que ele está pensando? Um homem em cima de um palco, pensando alto. Pausa. Ô Berenice, você foi meio burra! Burra não, como é que você ia saber, não é? Você foi mais é sem sorte. Viveu comigo tanto tempo, e nada que eu pensava dava certo. Ou eu pensava e não escrevia, ou escrevia e não terminava, ou terminava e ninguém lia, e nunca dava em nada. Foi só você me deixar, pronto. Eu vou fazer sucesso. Será que era você, Berenice? Desculpa, mas até parece. Esquece a Berenice, e pensa na peça! Um Homem, em cima de um palco, pensando. Pausa. Você precisava ver, Berenice. O jeito que eu cheguei pro cara lá na festa. E a minha cara de gente: Desculpa, você não me conhece, mas por acaso eu escutei sua conversa, enfim, eu tenho a sua peça. A peça que você procura. Um Homem em cima de um palco, pensando. Está pronta. Eu tenho essa peça. Você acredita que eu tive coragem, Berenice? Você acredita que eu disse isso? Nem eu acredito que eu disse. Mas eu disse: Escrevi essa peça, faz tempo. Nunca mostrei a ninguém. Nunca achei que fosse o momento. Mas agora eu não tenho dúvidas. Você é o ator perfeito pra representar minha peça. Assim, sem culpa. Nem parecia eu. Mas era. Eu mesmo. E nem doeu, acredita? Foi normal. Parecia que eu tinha nascido pra isso. Pra estar naquela festa naquele momento, falar aquilo ali daquele jeito e deixar o cara louco de vontade de ler minha peça. Queria que eu viesse aqui em casa, na mesma hora, pegar o texto pra ele. Eu falei agora? Ele falou por que não? Eu falei por que não amanhã? Ele falou amanhã de manhã? Eu falei por que não? Foi lindo!


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Lindo não. Profissional. Ele é um ator e precisa de uma peça. Eu sou autor, tenho a peça que ele precisa e eu preciso de um ator como ele. Ele é importante? Eu também vou ficar. Quando estrear minha peça. E depois aquilo era uma festa, Berenice, eu não ia sair correndo pra casa, só porque alguém se interessou por minha peça. Não, eu nunca te mostrei essa peça, Berenice. Não. Essa peça não. Não, eu nunca te falei dessa peça. Não, eu não tenho essa peça, Berenice, mas eu vou ter. Pausona. Um homem em cima de um palco pensando. Pausa. Eu vou escrever essa peça (FALCÃO, 1998, p. 1-2)

A premiada peça Uma noite na Lua, do dramaturgo pernambucano João Falcão, estreou em 1998 no Rio de Janeiro, dirigida pelo autor e interpretada por Marco Nanini. A montagem ganhou o Prêmio Shell de melhor texto e o Prêmio Sharp de melhor espetáculo daquela temporada. Em 2012, o texto ganhou nova montagem de Falcão, agora, interpretada pelo ator Gregório Duviver, reconhecido por ser integrante do coletivo de humor Porta dos Fundos, entre outros trabalhos. Como é possível perceber logo no trecho inicial, tratase de um dramaturgo tentando escrever/inventar uma peça. A ação da personagem é criar um texto dramático em apenas uma noite: o tempo parece seu oponente, em princípio. Mas não apenas o tempo. Entre outros aspectos, destaquemos aqui o fato de que a personagem “dramaturgo” não concentra seus esforços em torno da criação de uma fábula no sentido tradicional, ou, pelo menos, não consegue fazê-lo. Em sua aflição criativa, a personagem imagina a situação “um homem em cima de um palco pensando” (que corresponde a sua) – sem um conflito, antagonista, ou objetivos específicos. A ação “pensar” é tudo que faz esse “homem” em cima de um palco, imaginado por esse autor. Ao longo da peça, a personagem-dramaturgo tenta lançar mão de qualquer estratégia que “funcione”, mas suas tentativas de construir o texto são constantemente interrompidas e pressionadas por seus pensamentos (vozes), que evocam diferentes dimensões de sua vida cotidiana, profissional e afetiva. Dividido entre vários “eus”, que dialogam, cada um, com diferentes enunciadores, problemas, desejos e


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projeções de futuro, a peça apresenta a personagem “dramaturgo” num processo de impressionante polifonia, a qual, no decorrer do texto, vai explicitando a (con)fusão entre a ação (o processo) de criar/pensar do autor e o que seria o produto de sua criação.

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Em outras palavras, mais do que um metadrama (uma peça dentro de/sobre outra peça), desvio de caráter explicitamente épico, Uma noite na Lua mostra o enquadramento íntimo de um autor, nos apresenta aquilo que se passa em sua cabeça no momento da criação. Com esta estratégia, a estrutura dramática do texto, ironicamente, transforma os pensamentos do autor sobre a peça que deveria criar na intriga da respectiva peça. Se o caráter metadramático desse desvio supõe uma emersão épica, sobretudo na função de comentário autorreflexivo, o enquadramento íntimo da personagem de Uma noite na Lua, que corresponderia ao da câmera subjetiva no cinema, ou ao do monólogo interior no romance, diferentemente, consistiria numa estratégia desviante de cunho lírico – que tornaria instável, subjetiva, qualquer referencialidade do texto. Às possibilidades desta estratégia, o teórico Joseph Danan (2012), um dos colaboradores do Léxico, associa a noção de monodrama e destaca sua recorrência na produção moderna e contemporânea: A posteridade desse teatro na primeira pessoa (relacionada ou não à do autor) é considerável no século XX, e várias são as peças que podem ser vistas sob o ângulo do monodrama: do teatro expressionista a O casamento de Gombrowicz, de A morte do caixeiro-viajante de Arthur Miller a A procura de emprego: peça em 30 trechos de Michel Vinaver. [...] O monodrama desdobra-se também do lado da encenação/direção. Craig dizia a Stanislavski em 1912 que concebia Hamlet como um “monodrama”. Stanislavski teria dito então: “Tentemos por todos os meios fazer o público compreender que ele vê a peça com os olhos de Hamlet [...] Penso que podemos fazer isso nos quadros em que Hamlet está em cena”. Ao que Craig respondeu sugerindo que Hamlet estivesse sempre em cena [...] Assim ampliada e entendida, a noção de monodrama aparece como essencial na evolução do teatro no século XX. Ela contribui para emancipar na escrita e na encenação, o ponto de vista de toda fidelidade à objetividade ou ao realismo (DANAN, 2012, p.114115).


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A citação acima destaca uma característica muito presente em grande parte das obras dramáticas de João Falcão (e de outros dramaturgos contemporâneos): a construção de estratégias de relativização, eminentemente líricas, que contribuiriam para emancipar o ponto de vista da fidelidade ao realismo figurativo e à objetividade. Aos recursos metalinguísticos, procedimentos/desvios épicos, somam-se recursos como o monodrama, muitas vezes, em versão de jogo de sonho, procedimento de inclinação lírica que desestabiliza a referencialidade de tempo, espaço e ação, e torna subjetivos, simbólicos (ou alegóricos) os acontecimentos e discursos apresentados na obra. Para este estudo, o jogo de sonho é um tipo de procedimento monodramático ainda mais radical, pois apresenta tudo que surge em

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cena, tudo que é evidente numa peça, como imagens de um sonho, como uma projeção de uma mente sonhadora (do autor inclusive), ou como projeção de uma personagem específica (ou de várias) da fábula em questão. A noção dramatúrgica de jogo de sonho, que também é objeto de verbete no Léxico, tem, na obra do dramaturgo sueco August Strindberg, particularmente em sua peça O sonho (s.d.), de 1901, a principal referência moderna. Autor de dramas naturalistas e históricos, Strindberg também desenvolveu um tipo de dramaturgia por vezes denominada Teatro Íntimo – nome do teatro (edifício teatral) que funcionou na Suécia entre 1907 e 1910 sob sua direção. Muitas de suas peças ficaram conhecidas como “peças oníricas”. Peças oníricas, jogo de sonho e monodrama são noções que se referem a estruturas dramáticas constituídas por sucessões de cenas sem, necessariamente, uma ação dramática unitária e coerente, e que mostrariam o enquadramento íntimo de uma personagem, ou do autor da obra. A “dramaturgia do Eu”, de August Strindberg, é considerada como antecipadora do expressionismo e do surrealismo, cujos ecos, atualmente, ressoam na noção de monodrama. Em todas suas variações, o jogo de sonho entre elas, o monodrama é uma estratégia muito comum na dramaturgia contemporânea e, especialmente, na dramaturgia de João Falcão. Outro grande sucesso do autor pernambucano, A Dona da História, de 1999, apresenta um diálogo entre Mais Nova e Mais Velha


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– duas versões de uma mesma personagem em tempos diferentes. A discussão das duas procura estabelecer quem é “a dona da história”. À versão de qual das duas corresponderiam os fatos lembrados, ou imaginados em cena? Por meio da clivagem de uma suposta personagem central e do diálogo e disputa entre essas duas versões de uma mesma “pessoa”, o jogo dramático estabelece o caráter de monodrama da peça, apresentando uma reflexão subjetiva que contrapõe retrospecção e projeção de futuro, num embate lírico com a consciência do tempo.

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MAIS VELHA - Um dia eu tinha vinte anos quando alguém me perguntou “O que é que você quer ser no futuro?” E eu respondi: AS DUAS - “Eu? Eu quero ter uma história de amor pra contar.” MAIS NOVA - O problema é se nunca ninguém perguntar o que eu quero ser no futuro. MAIS VELHA - A minha história não ia começar nunca. MAIS NOVA - Eu não vou ficar a minha vida inteira esperando que apareça alguém no meu caminho e me pergunte o que eu quero ser no futuro. MAIS VELHA - Eu não podia colocar todo o meu futuro nas mãos de uma pessoa que teria uma pequena participação no início da minha história só pra me fazer uma pergunta. MAIS NOVA - Não. MAIS VELHA - Isso não. MAIS NOVA - E se essa pessoa, cuja única função na história é me fazer essa pergunta, for uma irresponsável e esquecer de aparecer no meu caminho? MAIS VELHA - Ou pior: essa pessoa aparecia no meu caminho, cruzava comigo, sabia que tinha que me fazer uma pergunta, mas por alguma razão estava tão atabalhoada naquele momento que a única coisa que lhe vinha à cabeça era me perguntar “que horas são?” MAIS NOVA - Vai ser uma “beleza” daqui a uns trinta anos eu começar a minha história assim: AS DUAS - Um dia, eu tinha vinte anos, quando alguém me perguntou: AS DUAS - “Que horas são?” AS DUAS - E eu respondi “desculpe, eu estou sem horas.” MAIS VELHA - Não. MAIS NOVA - Nem pensar. MAIS VELHA - O início da minha história tinha que partir de alguma coisa que acontecesse dentro de mim. O início da minha história tem que partir de mim. MAIS NOVA - De mim. MAIS VELHA - Pois é. De mim. MAIS NOVA - De mim. MAIS VELHA - Então. De mim. MAIS NOVA - De mim. MAIS VELHA - O início da minha história tinha que


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partir de mim. MAIS NOVA - De mim. MAIS VELHA - E eu repeti aquilo tantas vezes pra mim mesma, que naquele momento eu me senti o centro da história. E a minha história era o centro de tudo. E eu pensava: AS DUAS - Tudo. Tudo que existe no mundo existe pra minha história acontecer. As ruas, os lugares por onde eu passo, são apenas cenários da minha história. E os lugares por onde eu ainda não passei não existem ainda, ou então existem, mas nada nesses lugares se movimenta, e em cada um desses lugares tudo está parado no tempo, em determinado momento do futuro à espera de que minha história chegue até eles. E os lugares aonde eu nunca irei nunca existirão. E as pessoas que nunca passarem por minha vida nunca nascerão. Porque todas as pessoas do mundo existem apenas pra falar comigo, cruzar por mim, tocar a minha história pra frente. Todas as pessoas do mundo são apenas participações na minha história. Com intervenções maiores ou menores mas apenas participações. É sempre assim que acontece em todas as histórias. Nos filmes é sempre assim que acontece. E todos os filmes que já vi na minha vida só foram feitos para que eu pudesse vê-los um dia. E os que eu ainda não vi, mesmo os mais antigos, ainda não foram feitos. E nunca serão feitos os filmes que eu nunca verei. E toda a História do mundo, a idade média, a antiguidade, a pré-história é tudo uma invenção criada só pra me fazer acreditar que existia alguma coisa antes de mim. E o mundo começou no dia em que eu nasci. Eu sou o mundo e o mundo inteiro é o resto. E o resto do mundo gira, mas é só pro sol aparecer e iluminar o meu dia. (FALCÃO, 1999, p. 3-4)

Apesar do recurso ao monodrama, da utilização de canções e falas de tom lírico, assim como de jogos de palavras e de sentido, com explícita musicalidade, nas peças de Falcão, o grau de desreferencialização e subjetividade não atinge o de algumas peças surrealistas, simbolistas, ou expressionistas das mais radicais. A dramaturgia de Falcão tem uma linguagem simples e poética, que propõe um diálogo direto (e lírico) com a recepção. Já a dramaturgia de Strindberg, em sua vertente onírica, por exemplo, tem textos mais densos e subjetivos, também líricos, mas ainda mais desreferencializados do que os de João Falcão. A peça de Strindberg mencionada, O sonho, por exemplo, apresenta a personagem Inês, filha do Deus Indra, em visita à Terra para aprender com a observação das misérias humanas. A peça é um drama de estações: a fábula apresenta a personagem Inês observando e vivenciando uma sequência de situações, numa articulação episódica,


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sem um encadeamento objetivo, sem a causalidade tradicional entre as cenas. Ao refletir sobre o fenômeno que definiu como “crise do drama”, o teórico húngaro Peter Szondi (2011) destacou o caráter episódico de O sonho, de Stridberg, como um dos fatores épicos da peça, passível de comparação com a estrutura das peças medievais (o autor usa o termo francês revue, “revista”, para se referir a essas obras): “Corresponde à estrutura de revue o gesto que da obra é característico: o de mostrar” (SZONDI, 2011, p. 57).

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Mas “o que é mostrado” é instável, incoerente, subjetivo, simbólico, e assim também é a forma de mostrar da peça O sonho. A estrutura e atmosfera oníricas são perceptíveis na alteração contínua do espaço e do tempo, na sucessão de situações fantásticas, na caracterização das personagens, apresentadas como tipos abstratos, possíveis símbolos de essências coletivas, assim como no tom, algo declamatório, do discurso das personagens, que também apresenta alto grau de simbolismo e desreferencialização. O POETA Para onde é que me trouxeste? INÊS Para longe dos ruídos... para longe dos gemidos dos filhos dos homens, no ponto extremo do Oceano, para esta gruta a que chamamos a orelha de Indra, porque é aqui, dizem, que o rei do céu escuta as queixas dos mortais. O POETA Aqui?... É verdade? INÊS Não vês que esta gruta tem a forma de uma concha? Estás mesmo a ver? Não sabes que tua orelha também tem a forma de uma concha? Sabes, com certeza, mas nunca pensaste nisso. (Apanha uma concha da areia) Quando eras criança não levaste uma concha ao ouvido, nunca escutaste o ruído do sangue no teu coração, a ruptura das mil pequenas fibras gastas dos tecidos do teu corpo?... Tudo isso podes ouvir nesta pequena concha! Imagina então o que pode ouvir nesta gruta!... O POETA (Escuta) Só ouço o ruído do vento. INÊS É necessário, portanto, que eu to traduza. Escuta as lamentações do vento. (Recita, acompanhada em surdina por uma música) Nascemos debaixo das nuvens do céu E os raios de Indra expulsaram-nos Para a terra poeirenta...


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E o restolho dos campos feriu-nos os pés E a poeira das estradas E o fumo das cidades. Tivemos de suportar Cheiros pestilentos, O bafio das cozinhas, os eflúvios do vinho... Corremos sobre as águas do imenso oceano Para agitar as asas, Encher de ar os pulmões E lavar os pés. Indra, senhor do céu, Escuta-nos! Escuta nossos suspiros! Não, a vida não é pura Se não for boa. Os homens não são maus Mas também não são bons. Vivem como podem, Dia após dia. Os filhos do pó caminham sobre o pó Pois dele nasceram E a ele volverão. Para pisar o chão dispõem apenas dos pés Mas não lhes foram dadas asas para voar. E se estão cobertos de pó De quem é a culpa? Será mesmo deles, ou tua? (STRINDBERG, s.d., p160-162)

Diferentemente, Uma noite na Lua e A Dona da História de João Falcão são exemplos que apresentam diálogos líricos, mas com uma linguagem mais cotidiana, mais lúdica, mais leve – com uma presença determinante de humor. Há nessas obras uma subjetividade mais próxima da dramaturgia pirandeliana, que procuraria desestabilizar o ponto de vista da recepção, instigando os leitores/espectadores a vislumbrarem outras possibilidades de sentido. Nesse ponto, a autorreflexividade das estratégias monodramáticas (desvios líricos) das peças de Falcão se confunde/articula com a das estratégias metadramáticas (desvios épicos), o que estimula a comparação com o dramaturgo italiano Luigi Pirandello (1867-1936). As peças metadramáticas de Pirandello (assim como as de João Falcão) abordam o caráter aproximativo e instável de nossas compreensões e relações através de fábulas ambíguas e bem-humoradas, mas com um nível de referencialidade suficiente para que a recepção acompanhe “uma história”. Ou seja, é possível, ainda que a posteriori, inferir um enredo desses textos metadramáticos (e simultaneamente monodramáticos no caso de Falcão), ou mesmo identificar uma situação dramática mais definida.


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O PAI (vindo à frente, seguido pelos outros, até uma das duas escadinhas) – Estamos aqui à procura de um autor. O DIRETOR (entre aturdido e irado) – De um autor? Que autor? O PAI – De qualquer um, senhor. O DIRETOR – Mas aqui não há nenhum autor, pois não estamos ensaiando nenhuma peça nova. A ENTEADA (com alegre vivacidade, subindo a escadinha correndo) – Tanto melhor, tanto melhor então, senhor! Poderemos ser nós a sua nova peça. [...] O DIRETOR – Façam-me o favor de ir embora, que não temos tempo a perder com gente louca! O PAI (ferido e melífluo) – Oh, senhor, o senhor bem sabe que a vida está repleta de infinitos absurdos, os quais, descaradamente, nem sequer precisam ser verossímeis, porque são verdadeiros. O DIRETOR – Mas que diabo está dizendo? O PAI – Digo que realmente, que é possível julgar-se realmente uma loucura, sim, senhor, esforçar-se por fazer o contrário; isto é, criar loucuras verossímeis, para que pareçam verdadeiras. Mas me permita fazê-lo observar que, se loucura for, ainda assim, é a única razão do ofício dos senhores (PIRANDELLO, 2009, p. 189-190)

Seis personagens a procura de um autor (PIRANDELLO, 2009), peça escrita em 1921 por Pirandello – antes de Brecht e das formulações sobre teatro e dramaturgias épicos – apresentou essa estratégia que permite comentar, discutir, relativizar uma ação dramática, distanciá-la: o metadrama. O procedimento não foi criado por Pirandello: “Podemos dizer que Pirandello foi o epistemólogo do metateatro, e não seu ontólogo” (ABEL, 1968, p. 148). Mas é possível reconhecer que o dramaturgo deu evidência a esse tipo de estratégia e o radicalizou em suas obras, especialmente as que colocam o teatro como assunto explícito (Seis Personagens..., Cada um a seu modo e Esta noite se improvisa). Pirandello deu uma dimensão filosófica ao jogo metadramático, autorreflexivo, de agir e narrar, fazer e discutir. A premissa mais evidente, entre outras que podem ser inferidas de suas obras metadramáticas, seria algo como: “o mundo é um teatro, portanto, discutir o teatro é discutir o mundo”. No segundo capítulo do livro Metateatro: uma visão nova da forma dramática (ABEL, 1968), o crítico norte americano Lionel Abel faz uma espécie de genealogia do “gênero metateatro”, da qual


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podemos tirar algumas observações muito úteis para a teorização sobre o metadrama e sua relação com o que denominamos de monodrama. Antes, destaquemos como termo metateatro (em alguns momentos do livro, Abel usa também o termo metapeça) confunde as ideias de texto e espetáculo, drama e teatro. O termo metadrama se refere ao texto dramático e é esse o principal objeto de reflexão de Abel, embora o faça levando em consideração a materialidade cênica. Já o termo metateatro, adotado em 1968 (data da publicação em português) por Abel, parece indicar uma concepção de teatro de tendência textocentrista. Independente dessa eventual concepção do autor, que confundiria os dois objetos, drama e teatro, observemos que o crítico identifica na obra de Shakespeare, em Hamlet especificamente, uma origem possível da personagem autorreflexiva na dramaturgia e o início do que ele denomina de “metateatro”. Para Abel (1968), Shakespeare não teria conseguido escrever uma tragédia com o enredo de Hamlet e, brilhantemente, teria transformado a incapacidade de ação trágica do herói em uma nova forma dramática. Herói autorreflexivo, Hamlet é definido por Abel como uma “personagem-dramaturgo”: Hamlet não é um adolescente; é a primeira figura de um palco com uma aguda consciência do que significa ser posto num palco. Como ser dramatizado quando se tem a imaginação suficiente para ser um dramaturgo? [...] Por certo, Hamlet é um dos primeiros personagens a se libertarem dos arranjos de seu autor. Cerca de trezentos anos mais tarde, seis personagens visitariam um autor, que não os havia inventado e, segundo o próprio testemunho deste, pediram-lhe para ser seu autor (ABEL, 1968, p. 84-85)

Embora Abel também considere a obra de Pirandello como marco na dramaturgia metadramática, o crítico destaca como, nos dramas de Shakespeare e também do dramaturgo espanhol Calderón de La Barca (1600-1681), já se pode identificar a percepção do mundo como teatro (em última análise, o mundo como construção, devir), através de intrigas ambíguas, personagens autorreferentes, identidades instáveis, que substituem a representação do mundo inexorável da tragédia pelo mundo autorreflexivo do metadrama. Esta é a tese de Abel: o metateatro consistiria numa nova forma dramática, cujos desdobramentos contemporâneos corresponderiam em importância ao


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que a tragédia representou anteriormente. A tragédia florifica a estrutura do mundo, que supostamente reflete em sua própria forma. O metateatro glorifica a falta de vontade da imaginação para considerar qualquer imagem do mundo como final. A tragédia torna a existência humana mais vívida por deixar transparecer sua vulnerabilidade face o destino. O metateatro torna a existência humana mais semelhante ao sonho por nos mostrar que o destino pode ser superado. [...] A tragédia não pode operar sem o pressuposto de uma ordem que seja um valor último. Para o metateatro, a ordem é alguma coisa que está sempre a ser improvisada pelos homens. (ABEL, 1968, p. 149-150)

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Num mundo cada vez mais autoconsciente e complexificado, o metadrama consistiria numa abordagem possível da “realidade” – estratégia que exibe autorreflexividade e relativiza o sentido. Abel também relaciona o metadrama à comédia, embora reconhecendo que muitos metadramas “[...] são capazes de fazer o que a comédia nunca poderá fazer, isto é, a de conduzir a um grave silêncio – uma tristeza especulativa – em seu final” (ABEL, 1968, p. 86-87). Há controvérsias sobre a suposta incapacidade da comédia de produzir “uma tristeza especulativa”, mas concentremo-nos no fato de que emergência do cômico, ou do humor, nas formas comentadas por Abel, é significativa e evidente ainda hoje. Em síntese, o crítico compreende como metateatro a autorreflexividade do drama, não apenas o artifício de uma peça dentro de outra peça: Além do mais, desejo designar toda uma gama de peças, algumas das quais não usam uma peça-dentrode-outra-peça nem sequer como recurso técnico. No entanto, as peças às quais me refiro têm em verdade uma característica comum: tôdas elas são obras teatrais sobre a vida vista como já teatralizada. (ABEL, 1968, p. 8788)

É importante destacar a tese de Abel em sua especificidade de colocar o metadrama (em seus termos, “metateatro”) como uma forma nova e central no desenvolvimento do drama. Se consideramos aqui os recursos metadramáticos como procedimentos/desvios de cunho épico


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– porque distanciam, comentam, narram, estabelecem a contraposição de, pelo menos, duas dimensões discursivas em uma obra dramática – Abel, pelo contrário, parece compreender o épico, ao menos no sentido brechtiano, como uma das possibilidades do metateatro: O lógico do metateatro foi Bertolt Brecht. Ele tomou providências para ordenar não só suas peças, mas também seus cenários e o estilo de interpretação a elas necessários. Introduziu uma lógica antinaturalista na interpretação e no desenho cênico, bem como em sua própria construção dramática. [...] O que o terá levado ao metateatro? (ABEL, 1968, p.148)

A visão de Abel é, no mínimo, provocadora, e sugere uma discussão ampla. Outro ponto que deve ser destacado na argumentação do crítico é como o sonho também é associado diretamente ao metateatro:

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“Defini o metateatro como repousando sôbre dois postulados básicos: 1) o mundo é um palco, e 2) a vida é um sonho” (ABEL, 1968, p. 141). O que remete à nossa associação entre metadrama e monodrama, brevemente comentada no início deste artigo, a partir de Uma noite na Lua e A Dona da História do dramaturgo e encenador João Falcão. Se essas peças de Falcão são metadramas, simultaneamente têm também um aspecto de monodrama (e de jogo de sonho) por expor os pensamentos das “personagens-dramaturgas”, suas “subjetividades” – dramaturgia em primeira pessoa, como sugere Joseph Danan no Léxico – funcionando como uma espécie de monólogo interior num romance, como uma câmera subjetiva num filme, ou mesmo como a expressão de um eu lírico num poema. Além desses aspectos, as peças não apresentam causalidade e verossimilhança dramáticas no sentido tradicional. Ainda assim, Uma Noite na Lua e A Dona da História não se referem a um jogo de sonho diretamente. Em outra peça do autor, de 2008, essa ligação entre metadrama, monodrama e jogo de sonho é ainda mais explícita: Clandestinos.

2. Monodrama e Metadrama Clandestinos é um exemplo emblemático de articulação entre estratégias monodramáticas e metadramáticas. A peça apresenta um dramaturgo em diálogo com personagens que surgem sucessivamente. A própria situação de conversa entre autor e personagens já sugere um jogo de sonho (a peça se passa na cabeça/imaginação do dramaturgo). As personagens têm em comum o fato de serem artistas, de múltiplas


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linguagens, que teriam saído de diferentes estados brasileiros, ou de cidades do interior, para tentar realizar seus sonhos no Rio de Janeiro, a “cidade maravilhosa”. A estrutura da peça sugere uma audição, todas as personagens tentam conseguir a aprovação do dramaturgo, precisam do autor para serem “criadas” e passarem a “existir”.

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FÁBIO Você é teatral demais pra minha peça. PEDRO Sua peça é de teatro? FÁBIO Um certo tipo. De Teatro. PEDRO Que certo tipo? FÁBIO Não faço a menor ideia. PEDRO O que é que o senhor procura? FABIO. Um personagem. Mas não é você. PEDRO Então porque é que o senhor pensou em mim? FÁBIO Não sei Foi a primeira ideia que eu tive. Pra uma peça que eu estou fazendo. É sobre esse bando de moço e de moça. Que sonha nessa cidade. O sonho de ser artista. Pensei que ficava bonito. Pedro toca a rabeca. Um errante sonhador. Tocando rabeca. Cantando um repente. Na cidade dos sonhos. Mas agora, pensando melhor, Acho melhor não. Você é específico demais pra mim. PEDRO E o senhor pode especificar, O que significa específico, pro senhor? FÁBIO No seu caso específico, significa que você é nordeste demais. Raiz demais. Cartão postal demais. PEDRO Pensei que ficava bonito. FÁBIO Bonito demais. Eu quero algo mais contemporâneo. PEDRO


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Menos Típico. FÁBIO. Isso. PEDRO Pois eu enganei o senhor. Isso é só um típico que eu faço. O meu nome mesmo, é João Vitor. Nasci em Copacabana, cresci em Copacabana, moro em Copacabana. Meu pai é alemão. Dizem. Minha mãe era mulata. De Copacabana. Comprei essa rabeca na feira. Dos paraíba. Esse repente, eu baixei na internet. E inventei essa parada, que eu faço. Em evento, em hotel. Em teste. Na rua. FÁBIO Contemporâneo demais. PEDRO O senhor vai desenvolver a minha história? FÁBIO Não sei. Eu ainda preciso pensar mais. Por enquanto, esqueça que você existe. Eu quero ficar só. PEDRO Só? FÁBIO Só. Com os meus pensamentos. (FALCÃO, 2008, p.3-6)

Se a situação de personagens à procura de um autor, presente na obra de Pirandello, não é uma a ideia nova, o enquadramento da peça de Falcão vai além disso. Primeiro, porque Clandestinos não debate a encenação possível de um drama (como em Seis personagens...), mas de vários. A partir de uma situação metadramática, a peça articula, monta, uma sequência de cenas e números musicais com 13 diferentes personagens que procuram convencer o autor a escrever suas histórias. Cada personagem traz consigo não apenas uma história, mas um universo, um sotaque, um talento, uma particularidade – uma possibilidade de intriga. Enquanto em Seis personagens... as personagens querem encenar uma trama que já conhecem, um drama que já ocorreu, em Clandestinos, as personagens querem um futuro, desejam ganhar existência e ter a possibilidade de viver uma história. O dialogismo da obra fica explícito tanto na estrutura, que monta/cola


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diferentes cenas, de diferentes personagens, como também no discurso das mesmas, que expressam sonhos, raciocínios e sotaques diversos. Outra característica estrutural, que difere Clandestinos de Seis personagens..., estaria no procedimento explícito de jogo de sonho, utilizado por Falcão. Na parte final da peça, as personagens Hugo e Pedro se reconhecem como sendo uma o sonho da outra.

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HUGO O que é que você está fazendo aqui? PEDRO Isso aqui é um sonho. HUGO Sim, mas o que é que você está fazendo aqui, nesse sonho? PEDRO Esse sonho é meu. HUGO Seu? Então o que é que eu estou fazendo aqui? PEDRO Você faz parte do meu sonho. HUGO O sonho é meu, Você sou eu. PEDRO E eu sou você, sonhando que sou eu. ADELAIDE E eu? PEDRO E HUGO Sabe o que eu pensei agora? Eu pensei que eu e você somos uma pessoa só. Pensando as mesmas coisas. ADELAIDE E eu? PEDRO E HUGO Será que existe alguma vantagem nisso? Além de poder cantar Andança sozinho? (cantam) ANITA E eu? Vou ficar aqui? Sem fazer nada? Me bronzeando? Enquanto vocês ficam aí nesse lenga-lenga de que um é o outro do outro, quando deveriam estar brigando por mim? Chega, eu também quero ser outra. (TRILHA) Cansei de ser a caipirinha. Agora eu quero ser a esperta. É a minha virada final. Podem começar. Pedro e Hugo se enfrentam numa luta espelhada que termina em morte dupla. Trilha sonora de final de sonho. (FALCÃO, 2008, p.99-100)


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É quando o dramaturgo, Fábio, acorda. Esse acontecimento sugere que tudo o que se passou até então era um sonho da personagemdramaturgo. Mas eis que surge, mais uma vez, a personagem Eduardo (revelando a continuação do sonho, ou do jogo metadramático). Eduardo dialoga com o dramaturgo, expondo as frustrações e desejos de seu autor. Esse diálogo desencadeia a criação dos “finais” de todas as personagens surgidas na peça. Provocado pela personagem Eduardo, que sugere que seria hora de desistir, Fábio, a personagemdramaturgo, reage com a criação, reage artisticamente, e cria uma história para Eduardo. Em seguida, vão surgindo novamente cada uma das personagens da peça, reivindicando também uma história, e o autor, Fábio, vai lhes dando um destino, um final. É interessante notar como a estrutura da peça reúne aspectos líricos (a dinâmica onírica, a “vida como um sonho”) e também aspectos épicos de montagem/ colagem, explícitos na relativa autonomia das cenas e também em certa dimensão social, que revela a dificuldade de sobrevivência dos artistas, o caráter romântico da profissão. A iminência da desistência, do fracasso, as dificuldades enunciadas pelas personagens e, ao final, as dificuldades do próprio dramaturgo, enunciadas por sua personagem Eduardo, parecem apontar para um esquema de contradição constante entre realidade e desejo. A angústia, decorrente da contraposição entre realidade e desejo, entre necessidade e sonho, sem dúvida, não é exclusiva dos artistas. Sobre as personagens-artistas de Clandestinos, pode-se também destacar que não são tipos abstratos, símbolos, metáforas, elas possuem individualidade, caracterização, história e objetivos, e parecem demandar materialização. Na sequência final, fica evidente que até mesmo Fábio, o dramaturgo, é também um daqueles artistas “clandestinos” e, assim como eles, também deseja “passar a existir” na cidade maravilhosa. O tratamento das personagens e cenas tem uma dinâmica metonímica, pois sugere situações, tramas, possibilidades de enredo e desdobramentos dramáticos para além do que é mostrado na peça. Esta seria uma estratégia de desvio central na peça de Falcão que, mais do que apresentar um “final feliz” para cada personagem, realiza propriamente uma projeção de futuro, enuncia uma possibilidade de destino para cada personagem, e não um final fechado e definitivo. O que nos parece significativo, no entanto, é que essas projeções são feitas


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como reação à possibilidade de desistir, enunciada pela personagem Eduardo. A criação do dramaturgo se mostra como resistência do sonho diante de uma realidade concreta, ou da iminência do fracasso. Gesto social sutil, expresso por diferentes modos de enunciação (dramática, narrativa e lírica), observáveis em diálogos, pequenas narrações, réplicas de tom eminentemente poético e letras de músicas cantadas pelas personagens, assim como no recurso ao monodrama, em sua versão jogo de sonho, evidenciando uma pulsão de costura e descostura que exibe a todo momento a autorreflexividade da construção. No verbete Metadrama do Léxico, referindo-se a Seis personagens..., de Pirandello, Sarrazac (2012) faz uma afirmação adequada também à Clandestinos:

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O conflito interindividual vivido pelos seis personagens não é representado em seu caráter primeiro, primário; para tornar-se representável na óptica pirandelliana – isto é, de certa maneira, impossível de representar –, o drama deve primeiro difratar-se através da consciência individual monodramática de cada um dos seus personagens (SARRAZAC, 2012, p. 106).

Para Sarrazac (2012), a estrutura do metadrama seria definida pela cisão do microcosmo dramático em, pelo menos, duas dimensões ficcionais. De um lado, um grupo de personagens destinados a vivenciar um drama e, do outro, personagens que têm como função interpretar, testemunhar, informar, comentar, inventar esse drama. O acontecimento interpessoal no presente, pressuposto pelo drama absoluto, não pode mais ser senão a constatação de que um drama “[...] aconteceu outrora, acaba de acontecer, acontecerá ou é mesmo suscetível de acontecer” (SARRAZAC, 2012, p.107). Sarrazac (2012) compreende o metadrama como uma das possibilidades de resposta à crise do drama, enunciada pelo teórico Peter Szondi em Teoria do drama moderno (SZONDI, 2011), o que justificaria a utilização do procedimento como categoria de tendência épica, um desvio épico, sem seguir a sugestiva tese do crítico Abel (1968) de que o “metateatro”, a partir de Shakespeare e Calderón, engendrara o que viria ser o teatro e dramaturgias épicos. No entanto, é possível reconhecer na tese de Abel (1968) a aguçada percepção da dinâmica autorreflexiva que, progressivamente, se explicita na dramaturgia e em tantas produções artísticas contemporâneas. Se Sarrazac, assim como Szondi (2011), situa


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historicamente certo despontar épico, ou rapsódico (também definido como “crise do drama”), ou, em nossos termos, situa o despontar autorreflexivo na dramaturgia a partir do final do século XIX, é curioso observar que Abel situa antes, nas peças de Shakespeare e de Calderón. Essas percepções corroboram nossa compreensão de que a autorreflexividade e seus desvios são inerentes à atividade artística e estão presentes potencialmente em qualquer obra. Mas uma particularidade da produção atual – as obras de reconhecidos dramaturgos como João Falcão confirmam – é a explicitação da autorreflexividade, a exposição deliberada dos desvios, a exibição e o debate sobre a própria construção, em outras palavras, a configuração da autorreflexividade como princípio estruturante da composição dramatúrgica. Nesse contexto, diferentes estratégias metadramáticas são desenvolvidas, tornando o procedimento de “uma peça dentro de outra peça” como apenas uma (talvez a mais convencional) entre tantas possibilidades de metadrama, ou de desvio de tendência épica. Na mesma perspectiva, o monodrama, como estratégia de desvio de tendência lírica, se apresenta de diferentes formas e também de maneira combinada com outros tipos. Reconhecemos que os desvios de cunho épico tendem a ser mais evidentes, uma vez que as associações do teatro e da dramaturgia ao adjetivo “épico”, além de exaustivamente desenvolvidas, ganharam também celebridade através da teoria e prática brechtianas. O mesmo, porém, não se deu com o adjetivo “lírico”, não sendo tão frequente a associação teórica de determinadas estratégias de desvio ao modo lírico. O estudo O drama lírico (MENDES, 1981) da dramaturga e teórica Cleise Mendes é um dos poucos, mas significativos trabalhos nessa direção, e nos serve de referência neste artigo. São aspectos formais das intrigas que consideramos como desvios de cunho lírico: as dinâmicas de repetição/acumulação da ação dramática (em vez de progressão linear e causal, há o acúmulo de acontecimentos sem tensionamento para o futuro, ocorrências que se somam e se repetem, mas não se encadeiam); a constante desreferencialização do espaço (paisagem subjetiva) e do tempo (suspensão temporal, presente eterno e intenso); a alegorização das personagens (em diferentes graus) e a linguagem poética, com diálogos ricos em imagens, sensações, jogos de palavras e de sentido


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(em contraposição às réplicas objetivas, que expressariam “decisões” dramáticas). Essas estratégias, ou parte delas, podem ser observadas, de maneiras diferentes, nas prestigiadas peças A Dona da História, Uma Noite na Lua e Clandestinos, que foram objeto de nosso comentário. Assim como as obras de João Falcão, são muitas as peças (brasileiras e estrangeiras) que se estruturam a partir de desvios. São muitas as estratégias de composição que explicitam sua autorreflexividade e, dessa forma, propõem a abertura do sentido, transformando e criando procedimentos dramatúrgicos para convocar o leitor/espectador a participar do jogo dramático de maneira ainda mais intensa.

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Consideramos, no entanto, que as estratégias de tendência lírica, os desvios líricos, têm sido cada vez mais frequentes nas dramaturgias contemporâneas. É possível perceber como a subjetividade e o lirismo têm papel determinante nesse processo de transformação do drama, servindo estrategicamente para desestabilizar a referencialidade dos textos, libertando as intrigas da fidelidade a um realismo figurativo, afirmando a resistência do sonho e do impalpável diante das pretensões/ opressões da objetividade e da racionalidade.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABEL, Lionel. Metateatro: uma visão nova da forma dramática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1968. BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. DANAN, Joseph. Monodrama (polifônico). In: SARRAZAC, JeanPierre et al.(Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. FALCÃO, João. Uma noite na Lua. Rio de Janeiro: arquivo word cedido pelo autor, 1998.

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__________. A Dona da História. Rio de Janeiro: arquivo word cedido pelo autor, 1999. __________. Clandestinos. Rio de Janeiro: arquivo word cedido pelo autor, 2008. MENDES, Cleise Furtado. Diálogo e performatividade no drama. In: Revista Tabuleiro de Letras. Salvador: Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da UNEB, 2011. Disponível em: http:// www.revistas.uneb.br/index.php/tabuleirodeletras/article/view/153/104 Acesso em: 11 de dezembro de 2016. __________. O drama lírico. ART. 002, Salvador: 47-67, jul./set., 1981. PIRANDELLO, Luigi. O humorismo; Seis personagens à procura de um autor; Esta noite se improvisa; Cada um a seu modo. In: GUINSBURG, J. (Org). Pirandello: do teatro no teatro. São Paulo: Perspectiva, 2009. SANCHES, João. Dramaturgias de desvio: recorrências em textos encenados no Brasil entre 1995 e 2015. 2016. 251 p. Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, Salvador, Bahia. SARRAZAC, Jean-Pierre et al. (Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. STRINDBERG, August. O sonho. Lisboa: Editorial Estampa, s.d. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). São Paulo: Cosac Naify, 2011.


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A Dramaturgia de Joël Pommerat e a busca pelo real na contemporaneidade – o exemplo de Chapeuzinho Vermelho

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Camila Bauer1

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. (...) Pode-se dizer contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade. (AGAMBEN, 2009)

A partir desta definição de Agamben, nos propomos a refletir sobre a obra de Joël Pommerat, um dramaturgo que vem representando a contemporaneidade, as diferentes realidades sociais e que busca nos fazer ver o que preferiríamos não ver, o que está escondido em nossas obscuridades, em nossos silêncios e em nossas hesitações. Pommerat nos propõe olhar para onde tentamos fazer de conta que não pertencemos, questionando nossa própria experiência humana e social, por meio de uma aproximação estética do real. Para ele, o real é 1 Doutora em Ciências do Espetáculo pela Universidade de Sevilha e em Informação e Comunicação: menção Artes da Cena pela Universidade Livre de Bruxelas (2010). Encenadora.


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o que conseguimos ver facilmente, mas também o que está escondido em outras camadas de compreensão e de reprodução do humano, “o real é, ao mesmo tempo, o aparente e o mental, o mundo material, mas também o mundo imaginário, o mundo de nossas representações” (POMMERAT, apud BOUDIER, 2015, p. 93). A busca de Pommerat pelo real perpassa diferentes camadas de percepção, compreensão e complexidades, instalando-se em um ponto de encontro e contato entre texto escrito, cena e imaginário espectatorial. A obra de Joël Pommerat é marcada pela diversidade temática e formal, em consonância com uma linguagem contemporânea específica e bem definida que o autor vem construindo ao longo de sua trajetória. O dramaturgo e encenador francês é diretor da Companhia LouisBrouillard, com a qual desenvolve uma investigação de linguagem e

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está aprofundando sua pesquisa estética desde 1990, seguindo seu plano de montar em média uma peça por ano. Depois de escrever e encenar mais de vinte espetáculos, a primazia de seu trabalho parece ter-se afirmado inclusive entre a crítica mais exigente. Seu olhar é atento, sensível, perfeccionista e minucioso. Busca um senso de realidade e estupor em suas peças que acaba sendo alcançado por meio de uma dramaturgia direta e pelo uso de uma linguagem aparentemente simples e minimalista, mas que ganha relevo e complexidade na articulação da língua e dos diferentes elementos cênicos envolvidos na encenação. Como autor da maioria de suas montagens, Joël concebe a dramaturgia em um sentido mais amplo, incluindo os diferentes signos da poética teatral. Assim, quando analisamos seu teatro e tudo o que se inscreve sob a égide de “autor de espetáculos” que o criador utiliza para se definir, é possível pensar sua dramaturgia em um campo expandido, incluindo texto dramático e dramaturgia da cena em um mesmo conceito, posto que o autor cria o espetáculo em consonância entre texto e palco. Acolheremos, pois, a definição de Sánchez, para quem a dramaturgia é uma interrogação sobre a relação entre o teatral (o espetáculo/o público), a atuação (que implica o ator e o espectador enquanto indivíduos) e o drama (ou seja, a ação que constrói o discurso). Uma interrogação que se resolve momentaneamente em uma composição efêmera, que não pode ser fixada em um texto: a dramaturgia está mais para lá ou para cá do texto, se resolve sempre no encontro instável dos elementos que compõem a experiência cênica. (SÁNCHEZ, 2011, p. 19-20)


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Quando pensamos as reescrituras que Pommerat fez de contos clássicos como Chapeuzinho Vermelho (Le Petit Chaperon Rouge), Pinóquio (Pinocchio) e Cinderela (Cendrillon), esta noção de dramaturgia se expande ainda mais, posto que se inclui o horizonte de expectativas que o público traz consigo na medida em que já teve contato com estas fábulas clássicas em algum momento de sua vida, mesmo que por meio de história oral, filmes ou desenhos animados. Assim, nestes casos, as diversas adaptações que os mitos sofrem e as referências que o espectador possui acabam compondo parte importante da dramaturgia, uma vez que a obra de Pommerat dialoga com este imaginário clássico. Neste sentido, uma parte da proposição dramatúrgica fica a cargo do espectador, que organiza os elementos propostos em uma experiência estética sempre singular. Como afirma Boudier (2015, p. 95) acerca da obra de Joël, “É sempre o espectador que completa mentalmente o processo de (re)criação da realidade”.

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As composições cênicas de Pommerat oscilam desde as mais realistas e cotidianas, até seres fantásticos que parecem ter saído de filmes de horror ou de contos de fada. “O conjunto de seus personagens representa uma condensação da sociedade” (BOUDIER, 2015, p. 102). A cada obra, o dramaturgo parece aventurar-se mais fundo na linguagem e descobre novas formas de potencializar a relação do espectador com o real. A realidade, neste caso, é entendida como ponto de vista, perspectiva, olhar, e não como algo absoluto; não é o todo da realidade, mas um recorte, uma parcela, uma possibilidade de entendimento do real. É nesta busca do real, deste “sentido do real”, que se inscreve uma das especificidades da pesquisa de Pommerat: “o senso do real, isto é, um dom de ver do artista: acuidade de observação e capacidade de testemunhar a sociedade” (BOUDIER, 2015, p. 91). Para o encenador, o artista deve ser um observador atento da realidade que lhe circunda. Assim, suas reescrituras dos contos portam consigo um olhar específico sobre o real. Pommerat mantém um pé na fábula clássica e o outro no diálogo com as realidades contemporâneas. Suas representações dos personagens de Chapeuzinho e Cinderela, por exemplo, seriam duas meninas comuns, da vida cotidiana real, mas que lhes acontece algo extraordinário no caminho. Seus personagens possuem funções sociais específicas e bem desenhadas, transitando entre tipos banais e personagens fantasiosos com uma facilidade que


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lhes confere perturbação, profundidade e contraste, garantindo-lhe o lugar que ocupa entre os grandes autores de teatro da atualidade. Deste modo, suas obras nos apresentam recortes da sociedade construídos por meio de diferentes pontos de vista, complexidades e problematizações. “Eu acredito na complexidade. Eu acredito inclusive que a complexidade é uma das definições da beleza. A complexidade não me causa medo, a contradição tampouco, a junção dos opostos me atrai”, afirma Pommerat em Troubles (apud, BOUDIER, 2015, p. 92). O pensamento que Joël tem sobre a complexidade do real é o que, segundo Boudier (2015, p. 94), leva o autor a “inventar uma dramaturgia que poderia ser descrita como ambígua, e a trabalhar sobre a interferência da imagem cênica”. Assim, a sua dramaturgia/encenação nos induz a

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repensar o papel do espectador em uma antiga dupla de comunicação, e a substituí-lo pela noção de “expectador” (implicado). Temos assim a função fática que conecta espetáculo/espectador e que, no caso das adaptações dos contos clássicos, coloca o espectador em um local de diálogo constante com a obra e com um universo de referencialidades e simbologias que o (in)consciente do público traz. A escuridão e a contemporaneidade O teatro de Joël Pommerat funciona como uma teia de significações que se abre diante de nossos olhos. Para o autor, o espaço da arte se assemelha ao espaço da meditação, da contemplação. Suas obras parecem partir de um grande escuro, do vazio, do silêncio e da imobilidade. Deste vão emergem imagens, sons, cores (poucas), fragmentos de vida e pedaços de humanidade. Tudo se passa como se estivéssemos de olhos fechados e ao erguer as pálpebras víssemos algo ao longe, nebuloso, mesmo que este algo nos pareça íntimo e familiar. Depois voltamos a fechar os olhos, enquanto ouvimos alguma música ou voz em off, nos aproximando de presenças ausentes, ou da presentificação da ausência do humano, tentando nos recuperar da imagem anterior e nos preparando para a seguinte. A caixa escura de Pommerat nos lembra procedimentos de montagem e decupagem do real como as operadas no cinema, e trazem um conector importante com a contemporaneidade. Somos cotidianamente


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bombardeados por imagens e sons; no teatro de Joël, precisamos antes de nada limpar nosso olhar, prepará-lo para as imagens que se seguirão como flashes no meio da escuridão. Precisamos aprender a ver em meio ao escuro, em meio às trevas do contemporâneo. Por este motivo, queremos retomar a noção de contemporaneidade trazida por Giorgio Agamben, uma vez que dialoga com as proposições estéticas de Pommerat. Para o filósofo italiano contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. (AGAMBEN, 2009, p. 62-3)

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Neste sentido, ao analisarmos a dramaturgia de Pommerat, podemos constatar uma grande presença deste escuro próprio de alguém que está pensando o seu tempo, suas dicotomias e seus paradoxos. São composições repletas de black-outs, de penumbras, de contraluz, de sutilezas, de imagens que vemos apenas em parte e que temos que imaginar o resto; a obscuridade é, portanto, um traço marcante em suas encenações, tanto no sentido físico e concreto, como em uma perspectiva mais metafórica e filosófica, integrando o escuro como forma e conteúdo do discurso. Em suas obras, muitas vezes duvidamos do que vemos; assim, o princípio de incerteza do olhar e do discurso se instaura como componente narrativo. Nestes casos, a palavra assume seu lugar central e as sonoridades nos conduzem em um horizonte de significações que fogem do lugar-comum, fazendo com que nosso olhar seja restabelecido e esteja então pronto para ver e sentir o que talvez não estejamos acostumados a ver e a refletir sobre. No jogo de escuros, silêncios e palavras proposto por Joël, as narrações assumem um lugar importante. Em suas obras, frequentemente encontramos a figura do narrador que nos conta o que não podemos/ queremos ver. Os narradores de Pommerat são personagens que nos seduzem e envolvem, ao mesmo tempo em que causam desconforto e estranhamento. As imagens são, portanto, evocadas pelas palavras, podendo ser ou não concretizadas em cena, de modo mais figurativo ou incognoscível. Nestas passagens de seus textos, o princípio dialógico do drama se instaura entre as palavras pronunciadas pelo narrador


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e as imagens evocadas na mente do espectador que funciona como interlocutor direto da narrativa. É para este espectador que a história é contada e o dramaturgo não tenta disfarçar esta realidade que, no caso das adaptações dos contos infantis, se instaura já nas primeiras linhas do texto. Assim, as três peças pensadas para crianças por Pommerat (Chapeuzinho Vermelho, Pinóquio e Cinderela) começam com a figura do narrador introduzindo a história. Para fins de análise, nos centraremos no estudo de sua primeira obra de inspiração clássica, Chapeuzinho Vermelho. Chapeuzinho Vermelho, o contador de histórias e a atualização temática

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Em Chapeuzinho Vermelho, metade da obra é narrada pelo “O Homem que conta” e outra metade se articula em diálogos entre os personagens do Lobo, da Menina e da Vovó. Neste sentido, merece destaque a função do contador de histórias, quem assume parte importante da narrativa da obra. “Poderíamos dizer que eu faço o mesmo trabalho que os contadores de história de antigamente”, afirma Pommerat (2013, p. 117). O narrador ostenta o papel de conector entre a narrativa e o imaginário do espectador, entre a fábula clássica e a incursão pela linguagem do dramaturgo, repleta de repetições, de retomadas linguísticas, imagens, desconstruções e aproximações entre o conto clássico e as realidades contemporâneas. “Uma dramaturgia como esta, fundada em uma quase antinomia, é, por natureza, uma dramaturgia destinada a desconcertar o espectador e a desfazer todo o ‘horizonte de expectativas’, toda a codificação própria dos gêneros. Mais do que um ‘novo gênero’, esta dramaturgia pertence a um antigênero” (Sarrazac falando sobre a obra de Strindberg, em SARRAZAC, 2011, p. 65). Consideramos que esta definição se aplica também às obras de Pommerat, posto que existe uma síntese potente de gêneros – à qual se soma o horizonte de expectativas do espectador que conhece as fábulas em questão – uma vez que diálogos e narrativas se fusionam na construção da estrutura dramatúrgica das suas peças inspiradas em contos e que atraem a atenção de espectadores de diferentes idades, ainda que com camadas de interpretação e realidade bastante diversas. Deste modo, ao esboçarmos um estudo sobre a figura do narrador,


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a fascinação que os contos, mitos, lendas e histórias improváveis despertam em adultos e crianças é algo que pode ser constatado ao longo da história da humanidade. Os contadores de história que iam (vão) de vilarejo em vilarejo transmitindo oralmente fábulas e lendas atestam esta questão. Ciente disso, em 2004 Joël Pommerat decidiu escrever e encenar seu primeiro texto baseado em um conto clássico para crianças, Chapeuzinho Vermelho, ao que depois sucederia Pinóquio e Cinderela. Esta primeira incursão pelos contos infantis foi motivada pela relação do autor com sua filha Agathe, à época com sete anos, que não se interessava pelo trabalho do pai.

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Então um dia eu decidi que isso não podia continuar assim. Como fazer para que ela se interessasse um pouco pelo que eu fazia? Me veio então, a ideia impositiva de reescrever a história da Chapeuzinho Vermelho. Primeiro porque sempre fui fascinado por este conto, e depois porque falava sobre uma menina e eu tinha certeza que Agathe ia se identificar. (POMMERAT, 2005)

É de algo bastante privado e íntimo que surge a motivação para este que vem a ser o primeiro diálogo de Pommerat com o público jovem: “Quando eu lhe perguntava se ela queria ir comigo assistir aos ensaios das peças que eu dirigia, ela dizia: ‘Não, eu não tenho nenhuma vontade’. Para piorar as coisas, acontecia frequentemente de eu lhe pedir para não fazer barulho enquanto eu trabalhava. Enquanto isso ela se entediava, e ela me demonstrava isso” (POMMERAT, 2005). A situação de tédio, de espera, de vontade de brincar da criança, de falta de tempo dos pais, acabaram servindo de motores de atualização temática para a obra de Joël. A peça começa com “O Homem que conta” nos anunciando que esta história é sobre uma menina que passava muitas horas sozinha, entediada, e que sua mãe não tinha tempo para brincar com ela. O autor mistura o conto clássico com a realidade cotidiana dos pais e mães que trabalham e não conseguem dar aos seus filhos a atenção que eles demandam. O narrador diz: Era uma vez uma menina que estava proibida de sair de casa sozinha Ou somente em raríssimas ocasiões Então Ela se entediava Porque ela não tinha nem irmão nem irmã


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Somente sua mãe Que ela amava muito Mas isso não bastava. Então ela brincava Ela brincava Ela brincava Sozinha Muito sozinha.

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O dramaturgo francês parte do conto para abordar problemáticas da vida familiar contemporânea, como a falta de tempo. A mãe da menina não tem tempo para brincar com a sua filha. Numa tentativa de resolver esta questão, a menina lhe dá um presente a sua mãe, lhe dá tempo. Mas a mãe não percebe o presente que ganha e tudo segue como antes. Não sabemos ao certo o que a menina deu de presente a sua mãe no plano da materialidade e concretude física, mas o fato é que, desde a perspectiva da filha, o problema estaria resolvido caso a mãe percebesse o presente que ganhou. É um olhar filosófico e metafórico sobre a falta de tempo e o sentimento de invisibilidade que dele advém em uma situação familiar, funcionando não apenas em seu caráter dramático, mas também documental frente a uma realidade sócio-familiar contemporânea. Se pensarmos com Roupnel que “O tempo só tem uma realidade, a do Instante” (apud BACHELARD, 2010, p.15), o que Chapeuzinho deseja são mais instantes ao lado de sua mãe. Também podemos pensar o tempo a partir da ótica bergsoniana, para quem a realidade do tempo é a sua duração. Neste sentido, a menina ficava muitas horas em casa sozinha e se entediava muito. Para ela, nestas ocasiões, o tempo passava muito lentamente, enquanto que quando brincava com sua mãe o tempo parecia insuficiente. Temos aqui um tipo de construção metafísica da realidade da menina e que nos é revelada pelo narrador. Pommerat afirma que a menina tentava de muitas maneiras chamar a atenção de sua mãe, mas que ela estava sempre muito ocupada e não reparava mais na sua filha. O narrador nos informa que “a menina via sua mãe, mas que sua mãe não via mais sua filha”. Podemos observar aqui uma incursão pela filosofia de François Flahault e o seu “sentiment d’exister”, também presente em Je Tremble (Estremeço). A menina começa a se sentir invisível dentro de sua própria casa, ela não sente que desempenhe algum papel frente a sua mãe, como ocorre com a Mulher de Camiseta de Estremeço, que também afirma sentir que sua


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mãe não lhe via mais. A falta de tempo faz com que percamos nossa capacidade de perceber o outro, por já não estarmos na realidade do instante apontada por Roupnel. A menina tinha medo de ser esquecida por sua mãe, como nos informa o narrador ao relatar o percurso da menina até a casa de sua avó, quando ela teve dúvidas se estava fazendo a coisa certa: Ela pensou na sua mãe. Ela se perguntava o que será que sua mãe estava fazendo enquanto esperava por ela E se ela já não estava esquecendo da sua filha. De repente ela teve vontade de chorar...

A vida da menina é narrada pelo “O Homem que conta”. É através deste ator-rapsodo, por usar a linguagem de Sarrazac, através

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deste ator que junta e costura os pedaços da vida desta menina com sua mãe, que sabemos o que ocorre. O mundo exterior com o qual ela tem (pouco) contato é apenas referenciado. Na encenação, Pommerat constrói uma série de imagens da jovem com sua mãe, mas até sua saída de casa a conexão da jovem com o mundo exterior só chega ao espectador por meio das palavras do narrador, quem aproxima o vínculo entre a fábula e o imaginário do receptor, deixando grandes lacunas para que este preencha. A mãe da menina não possui voz direta ao longo da peça. Tudo o que sabemos sobre ela nos é informado pelo narrador, que obra aqui como um elo contador de histórias. A personagem da mãe é presentificada na encenação de Pommerat apenas como construção imagética, ainda que o texto escrito não nos dê nenhuma informação neste sentido, ficando a cargo da dramaturgia da cena a proposição de visualidades, redundâncias e contradições. Personagens não individualizadas e o anacronismo do conto As personagens vivem a ausência de nome próprio, estão encobertas por uma certa opacidade que é comum no teatro contemporâneo, sendo identificadas por seus graus de parentesco: a menina, a mãe (mãe da menina) e a avó (a mãe da mãe da menina), elucidando o centro da hierarquia familiar e toda a psicologia que desta situação pode decorrer. Não chega a ser um anonimato, posto que a estrutura familiar lhes protege disto, mas uma dimensão humana não individualizada, demonstrando um importante nível de socialização da


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personagem que justifica várias de suas ações em torno da realidade sócio-familiar instaurada.

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Há no texto de Pommerat uma certa romantização da ideia de família, ao mesmo tempo em que a crítica da mesma e um retrato da sua desestruturação são estabelecidos. Nota-se uma desfiguração da identidade desta unidade familiar advinda de uma despersonalização dos sujeitos. A menina deseja visitar sua avó, que mora longe e está sozinha, deseja ouvir as histórias sobre sua mãe, numa relação netaavó bastante idealizada e que não chega a se concretizar na peça em função da aparição do lobo. Ao mesmo tempo, a mãe da menina não tem tempo para visitar sua própria mãe e quando o faz as duas ficam a maior parte do tempo em silêncio. As dificuldades de relação humana, de comunicação, o isolamento, o excesso de trabalho, são temas recorrentes na dramaturgia de Pommerat, que busca retratar, simultaneamente, “a realidade social contemporânea, documentada, e a realidade tal como ela é forjada, percebida ou imaginada pelos indivíduos em diferentes níveis de consciência” (BOUDIER, 2015, p.98). Nesta perspectiva, a menina parece um pouco deslocada do contexto atual das crianças; ela deseja ouvir as histórias da infância de sua mãe, se preocupa com a solidão de sua avó, brinca com sua sombra, retratando uma nostalgia da presença associada a uma nostalgia da infância que estão vivas no imaginário do autor. O dramaturgo ancora, portanto, a produção de uma realidade mental tanto nos espectadores quanto nos personagens (que não tem consciência de sua estrutura que é contemporânea e, ao mesmo tempo, anacrônica). Assim, a personagem da menina traz a presença deste anacrônico e do mitológico dos contos de fada em um contexto de representação fabular bastante adaptado à atualidade, sendo uma figura inspirada na mãe de Joël (pertencente a uma outra geração), ao passo que a mãe da menina figura mais como representação de um tipo social da atualidade, sempre sem tempo e com uma despersonalização característica da crise do sujeito pós-moderno já apontada por Jean-François Lyotard (1998). Eu também me lembrei da minha mãe que me contava uma história quando eu era pequeno, sobre o longo trajeto que ela devia fazer para ir à escola. Ela andava todos os dias mais ou menos 9 km através de um campo deserto. Esta história já me impressionava. E hoje ela me


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impressiona ainda mais. Eu imagino uma menina com sua pastinha, debaixo da chuva ou na neve, andando pelo caminho, atravessando uma floresta de pinheiros, enfrentando cachorros soltos. Com este texto, eu quis reencontrar as emoções desta menina. Eu sei que esta história é também uma parte da minha história. Eu sei que este longo caminho que minha mãe fazia, quase todos os dias da sua infância, marcou sua vida, impregnou seu caráter, influenciou muitas coisas na sua existência. E eu sei que esta história contribuiu para definir o que eu sou hoje. (POMMERAT, 2005)

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A Chapeuzinho Vermelho de Joël Pommerat nasce, portanto, de uma mescla de teatro enquanto documento, de experiências e de lembranças pessoais, de narrativas orais e de uma inquietação latente pelas problemáticas da vida cotidiana contemporânea. A mãe de Chepeuzinho não fala na obra de Pommerat, ela não possui voz enquanto linguagem articulada, e isso nos remete a uma remarca de Sarrazac (2002, p.158.) onde este afirma que “O solilóquio das novas dramaturgias sai de um corpo mudo. É, literalmente, transcrito de silêncio”. Neste sentido, nosso contato com a personagem da mãe da menina se realiza exclusivamente através do olhar e do discurso do “O Homem que conta”, sabendo que é apenas uma visão da realidade a que ele retrata, já que a voz da mãe está silenciada e que não temos acesso direto ao seu pensamento. Nesta ausência de palavras e de interlocução direta com o espectador, “a personagem torna-se testemunha de sua própria existência e da sua época” (SARRAZAC, 2002, p. 161), estabelecendo uma relação dialógica silenciosa com o espectador. Na sua representação do real e na busca pela criação de realidades possíveis em cena, Pommerat afirma querer mesclar alguns opostos: O mais estranho com o mais simples, o mais banal o mais íntimo com o mais épico, o mais sério, o mais trágico com o mais derrisório, o mais atual com o mais anacrônico. (POMMERAT, notas inéditas de Au Monde, apud BOUDIER, 2015, p. 93)

O anacronismo, neste caso, provém também da estrutura cíclica do mito que encontramos nas fábulas infantis. Parte da validação discursiva provém deste desvio anacrônico e Pommerat o utiliza para representar o humano e suas relações na atualidade, “porque a minha obsessão é isso, capturar um pouco da realidade” (POMMERAT, apud


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BOUDIER, 2015, p.93). Neste sentido, podemos reconhecer outros traços desta realidade na escritura cênica de Pommerat por meio das definições de contemporaneidade esboçadas por Agamben em sua relação com o próprio anacrônico: A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. (AGAMBEN, 2009, p. 59)

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Nesta pintura da sociedade contemporânea, Pommerat enfatiza a dificuldade de coabitação das diferentes gerações ao contrastar seus anseios. Ao final da obra, o narrador nos informa que a menina cresceu e virou uma mulher como sua mãe, dando continuidade a estrutura de gerações. O mesmo tipo de desenho familiar cíclico aparece em Je Tremble, quando a Mulher de Camiseta percebe que se tornou um pouco como sua mãe. Em Chapeuzinho, uma etapa importante deste rito de passagem se realiza quando a mãe da menina, para distraí-la, diz a filha que prepare um doce para levar a sua avó, como condicionante para que possa sair de casa. Como a menina não sabia cozinhar, parecia uma situação confortável para a mãe, não fosse pelo fato de que, após algumas tentativas frustradas, a menina conseguiu finalmente fazer um pudim. Ela deixa então de ser uma criança impossibilitada de cruzar o bosque e adquire um primeiro marco na vida adulta: sua independência, seu direito de ir e vir. Aqui, preparar o doce se torna o símbolo desta passagem. A vontade de crescer que a menina possui nos é destacada pelo narrador: Ela pensou que a sua avó ia ficar tão espantada em vê-la, que ela ia achar, sem dúvida, ela muito corajosa de ter feito assim o caminho sozinha, que ela ia achar que ela era uma menina grande, talvez até já um pouco mulher e isto lhe deu realmente vontade de continuar.

Esta busca de independência das crianças que crescem rápido e que os pais custam a perceber também aparece em Cet Enfant (Esta Criança), onde as relações familiares são bastante exploradas, assim como em Pinóquio, que precisa se libertar do seu criador para descobrir que tipo de criatura é. Nas três peças para crianças, temos situações


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de pais e mães que criam seus filhos sozinhos: em Chapeuzinho o pai não é mencionado e a menina é criada pela mãe; em Cinderela, a mãe morre logo no começo da obra e toda a peça gira em torno da relação de Sandra com o luto materno e com a reorganização de sua vida ao lado de seu pai, sua madrasta e sua nova família; em Pinóquio, o menino-fantoche é criado por um homem (pai/criador/escultor), do qual ele sente vergonha. Pinóquio conta com a ajuda da fada madrinha para conseguir encontrar-se enquanto sujeito e trilhar seu caminho, já que sua realidade inicial é por ele negada. As problemáticas familiares estão presentes de modo marcante na dramaturgia de Pommerat e estabelecem uma relação forte com o público de jovens, posto que trata de realidades próximas das vivenciadas pelas crianças, ainda que o autor aborde estas questões com boas doses de magia, bom humor e extra-cotidianidade.

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Em Chapeuzinho Vermelho de Pommerat, a relação familiar é bastante destacada, uma vez que a menina tem uma empatia muito grande pela avó, o que não é tão enfatizado nas versões anteriores. Nas obras de Perraut e dos Irmãos Grimm, por exemplo, a mãe pede a filha que leve algo a sua avó que está doente. Já em Pommerat, a menina pede a sua mãe para ir visitar sua avó. Ela sente tristeza ao pensar que sua avó está sozinha e doente. A Chapeuzinho de Pommerat também se sente só, como sua avó, como o lobo. Há uma solidão que paira e que faz com que as personagens se busquem, entre medo e excitação. Assim, a menina parte pela estrada sozinha e com medo. Contudo, durante o percurso rumo a casa de sua avó, ela descobre sua sombra, que lhe acompanha, que brinca com ela e que a protege. É a sua própria solidão espelhada pelo sol e refletida no chão, descrita pelo narrador e desenhada cenicamente por Joël Pommerat e Éric Soyer (com quem cria os espaços cênicos). A sombra é também sua companhia, seu lado obscuro que se mostra leve e divertido. Vemos aqui mais uma vez um elemento recorrente na obra de Joël que é a busca inconsciente do personagem pelo seu “sentimento de existência”, advindo da filosofia de Flahault, já citado acima. O personagem precisa sentir que existe, que é, e que é também na sua relação com o outro. A sombra torna-se a materialização deste sentimento de existir. Mas a sombra não poderia acompanhá-la se ela fosse para a floresta embaixo das grandes árvores, só se ela seguisse pela estrada. Então a menina decidiu seguir pela estrada, acompanhada e protegida por sua sombra,


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com quem ela conversava. Vemos aqui uma menção aos dois caminhos clássicos das versões de Chapeuzinho, onde a menina pode escolher entre o caminho longo e seguro e o atalho perigoso. Em Pommerat, ela escolhe o caminho seguro, mas acaba se distraindo brincando com sua sombra e termina debaixo das grandes árvores, onde encontra o lobo, representante clássico de um perigo eminente. O Lobo e a estrutura mitológica

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A mãe da menina a assustava com a ideia de que no caminho até a casa de sua avó haveriam monstros terríveis que iriam querer comêla. Ela adorava assustar sua filha fazendo um monstro apavorante. Por esta razão, a menina se acostumou a um imaginário tão perturbador que quando encontrou o lobo na floresta, ela achou o animal bonito e sentiu vontade de se aproximar dele. Vemos aqui a dicotomia bem e mal, bonito e feio e a relação do humano com o monstruoso que aparece em diferentes obras de Pommerat, como na relação de Pinóquio com seus amigos que lhe enganam e que ele custa a acreditar. O lobo da encenação de Pommerat remete a um animal real, o que gera um estranhamento no espectador posto que este lobo fala e emerge em um contexto que beira o realismo narrativo. Este contraste faz parte da busca de Pommerat pelo real, ainda que um real estranho, com diferentes roupagens e camadas de realidade. Neste sentido, sua obra é com frequência considerada pela crítica como “estranha”, como um “teatro de estranhamentos”, ao que Joël contesta: “passo meu tempo a procurar o real”. “De fato, se o estranho irrompe em cena é porque ele pertence ao real, a um real complexo de faces múltiplas” (BOUDIER, 2015, p.84). O lobo aqui ressalta a estrutura do mito que engendra a peça. Um lobo que fala, que abusa da menina, que a devora, e que depois, num final ao melhor estilo deus ex-machina, tem sua barriga aberta por um passante que tira a menina e a avó vivas, sem ter que matar o lobo, que decide nunca mais se envolver com meninas ou vovós. Temos, portanto, um anti-realismo/naturalismo, mesmo que inseridos em uma linguagem de busca pelo real. No original de Perrault, escrito ao que tudo indica mais para jovens do que para crianças, não existe o caçador ao final e a obra termina de modo drástico. Já nos Irmãos Grimm surge esta figura salvadora, que deixa a obra ainda mais fantasiosa ao retirar


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a menina e sua avó vivas da barriga do lobo. Os diferentes contextos trouxeram mensagens e moralidades diferentes a partir de uma mesma base discursiva. Podemos pensar então o conto na qualidade de mito que foi se atualizando, o que em Pommerat não é diferente, ao oscilar entre realismo, fantasia e abstração poética. Deste modo, seguindo a abordagem trazida por Roland Barthes O mito não se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira que a profere: o mito tem limites formais, mas não substanciais. Logo, tudo pode ser mito? Sim, julgo que sim, pois o universo é infinitamente sugestivo. Cada objeto do mundo pode passar de uma existência fechada, muda, a um estado oral, aberto à apropriação da sociedade, pois nenhuma lei, natural ou não, pode impedir-nos de falar das coisas. (BARTHES, 1978, p.131)

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Neste sentido, adaptando os exemplos dados por Barthes em Mitologias, podemos dizer que um lobo é um lobo. Mas o lobo do conto possui características específicas, assim como o lobo de Pommerat constrói sua lógica própria e em consonância com as problemáticas da contemporaneidade, ainda que ao final da fábula ele retorne ao seu lugar de mythos enquanto lugar de falar, enquanto “sistema de comunicação”, “mensagem”; o mito, para Barthes (1978, p.131), é “um modo de significação, uma forma”. Deste modo, no sistema de mito tradicionalmente estabelecido por Chapeuzinho Vermelho, o lobo funciona como representação de um perigo latente e se inscreve aqui, também de modo associativo, como um perigo sexual, como o fascínio pelo desconhecido, pelo jogo de sedução que se estabelece entre a menina/adolescente e o animal/ homem. O que já existia no conto segue presente, apenas de modo mais explícito em alguns casos e mais desfigurado em outros. Como afirma Barthes (1978, p.143) “A relação que une o conceito do mito ao sentido é essencialmente uma relação de deformação”. No primeiro encontro da menina com o lobo, notamos uma certa excitação da jovem frente ao desconhecido, que vai permear toda a relação dos dois e o macrocosmo da obra. Desde a primeira versão de Charles Perraut, amplamente difundida na corte de Luís XIV, o lobo era símbolo da sedução masculina, “ver o lobo” significava perder a virgindade. A obra retratava um símbolo de passagem da menina para a vida adulta, o


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que se manteve na escritura dos Irmãos Grimm. Em algumas versões o perigo que o homem representa se mescla ao perigo real dos lobos na floresta. Na peça de Pommerat, esta fusão se efetua mais no imaginário infantil do que na escrita textual propriamente dita. Na cena em que temos o lobo disfarçado de vovó junto à menina, os traços de uma possibilidade de abuso sexual são construídos em uma tensão crescente e densa. O lobo assume aqui a função de designato que desempenha função poética e mitológica, trazendo uma visão prismática do mito em ressonância com a atualidade. O espectador em processo de vetorização do real

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Chapeuzinho Vermelho, assim como a obra de Pommerat em um sentido mais amplo, apresenta códigos múltiplos, que oscilam em função do horizonte de expectativas de cada espectador, em oposição a dramaturgias que se ancoram em códigos de tendências unívocas. Podemos falar então em uma dramaturgia do espectador no sentido proposto por Marianne van Kerkhoven (2004), como a “estrutura interna da produção”. Assim, o espectador se encontra em meio a uma ampla rede de possibilidades de significação e precisa se engajar para completar a obra tecida em diferentes níveis de realidade, ainda que a dramaturgia tenha uma estrutura fabular linear, beirando o realismo poético. Pommerat trabalha, pois, com a multiplicação dos pontos de vista espectatoriais, com a partilha do sensível e da experiência concreta do espectador: “As coisas são compostas do que elas são e do imaginário que as acompanha (...). Há coisas que são mais verdadeiras que outras, é certo, mas a realidade é algo que se situa também na mente” (POMMERAT, apud BOUDIER, 2015, p. 97). Deste modo, na construção do real em obras inspiradas em fábulas conhecidas do público, o espectador desempenha um papel especialmente importante no processo de vetorização do sentido. Os textos dramáticos de Joël, de um modo geral, não se caracterizam por uma ação dramática dominante, causal no sentido aristotélico, mas pela escritura de palavras que geram sentidos potentes e evocadores de imagens e sensações, que acabam por gerar ações verbais produtoras de tensões dramáticas fortes. Neste sentido, não encontramos um tema central, unificado, mas um “entrelaçado


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de temas”, de acordo com as definições de Sarrazac (2002, p.35). Pommerat assume a crise da representação do real já esboçada por Lyotard e busca um real pluridimensional, situado entre o realismo e a abstração. Assim, o espectador encontra-se frente a um tecido de possibilidades do real (de realidades possíveis) e se integra em um processo diegético. Para Dort, “é o espectador moderno que se acha ‘em diálogo’. E não mais os personagens” (apud SARRAZAC, 2012, p.70). Talvez por isso a retomada intensa da figura do narrador na obra de Pommerat seja fundamental para a construção de sua poética do real, colocando espectador e ator (e não necessariamente a ficcionalização do personagem) em um diálogo direto, construtor de complexidades e de contradições que estão no germe da ética pommeratiana e que deságuam em uma estética produtora de fascínios, dúvidas e perturbações, fazendo do teatro “um lugar possível de interrogação e experiência do humano” (POMMERAT, apud BOUDIER, 2015, p.91).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. BACHELARD, Gaston. A Intuição do instante. Campinas: Verus Editora, 2010. BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro e São Paulo: Difel, 1978. BOUDIER, Marion. Avec Joël Pommerat. Un monde complexe. Paris: Actes Sud-Papiers, 2015. FLAHAULT, François. Le sentiment d’exister. Paris: Descartes & Cie, 2013. LYOTARD, Jean-François. A Condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

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POMMERAT, Joël. Cendrillon. Paris: Actes Sud-Papiers, 2013. POMMERAT, Joël. Pinocchio. Paris: Actes Sud-Papiers, 2008. POMMERAT, Joël. Théâtres en Présence. Paris: Actes Sud.Papiers, 2007. POMMERAT, Joël. Le Petit Chaperon rouge. Paris: Actes Sud-Papiers, 2005. SÁNCHEZ, José A. Dramaturgia en el campo expandido. Artes Escénicas, Cuenca, 2011. Disponível em http://artesescenicas.uclm. es/archivos_subidos/textos/416/JAS.%202011.%20Dramaturgia%20 en%20el%20campo%20expandido.pdf. Acesso em 20 Dez. 2016. SARRAZAC, Jean-Pierre (org.) Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. SARRAZAC, Jean-Pierre. Juego de sueño y otros rodeos: alternativa a la fábula en la dramaturgia. Cidade do México: Paso de Gato, 2011. SARRAZAC, Jean-Pierre. O Futuro do drama. Porto: Campo das Letras, 2002. VAN KERKHOVEN, M. On dramaturgy, Theaterschrift, Vol 5-6, 1994. p. 9-35.


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Teatro documentário, dramaturgia dialógica e saberes compartilhados Uma historiografia de artista em Cabeça (um documentário cênico) 225

Daniele Avila Small1

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

A proposta desse artigo é articular ideias sobre o teatro documentário contemporâneo a partir de uma reflexão sobre o espetáculo Cabeça (um documentário cênico), do coletivo carioca Complexo Duplo, do qual faço parte. A peça, que tem dramaturgia e direção de Felipe Vidal e estreou no segundo semestre de 2016, é a segunda parte da Trilogia Paramusical, que começou com CONTRA O VENTO (um musicaos) em 2015. 1 Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO). Crítica Teatral.


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Para integrar um dossiê sobre teatro contemporâneo, considero importante abordar esse espetáculo por alguns motivos, como a relevância da diversidade poética do teatro documentário na atualidade, sua interação com outras áreas de conhecimento e sua capacidade de chegar a outros públicos que pouco frequentam o teatro. Embora, pelo menos no Rio de Janeiro, essa vertente do teatro não tenha recebido (ainda) a atenção devida de historiadores, especialmente daqueles que se dedicam à história pública, campo que tem se consolidado no país nos últimos 15 anos.

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O artigo vai abordar, portanto, a filiação do espetáculo em questão ao teatro documentário contemporâneo e sua relação com as escritas da história, que constitui o escopo da minha pesquisa de doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Depois de assistir a alguns espetáculos realizados nos últimos anos em países como Argentina, México, Chile e Brasil, é possível perceber algo em comum, uma atitude afim, entre esses projetos de teatro que, de certo modo, encenam historiografia. Identifico um movimento – múltiplo e difícil de categorizar como qualquer teatro do nosso tempo – movido por uma necessidade de falar de maneira mais direta e literal sobre a história cultural, social e política que nos forma, uma necessidade de falar sobre as coisas do mundo. As poéticas das obras que de uma maneira ou de outra se encaixam no gênero teatro documentário na atualidade são muito diversas, mas há uma ética em comum entre elas, uma forma comprometida de estar no mundo com o teatro, articulando estratégias dramatúrgicas que procuram outro nível de vínculo com o espectador, algo que proporcione uma experiência de fato, que convoque sua presença, sua atenção, sua criatividade. Essa atitude, essa ética, parece estar relacionada com uma espécie de insubordinação às narrativas dominantes da história. Assim, me parece que o teatro documentário, mais imediatamente o que está relacionado ao debate de fatos históricos e processos políticos na América Latina, pode ser uma reação à conscientização da nossa colonialidade. Entende-se a colonialidade como uma força remanescente do colonialismo, uma atitude de inferioridade em relação aos países europeus que nós mesmos, os colonizados, perpetramos. É


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algo como a interiorização de uma visão de nós mesmos que vem de fora e que nos diminui. Essa conscientização e a reação a que me refiro se fazem visíveis na tomada da palavra sobre as narrativas da história – mesmo que esses espetáculos não tratem diretamente de fatos ligados à colonização ou ao imperialismo. O gesto mesmo de tomar a palavra sobre assuntos que geralmente são temas de discursos de autoridade pode ser uma atitude descolonizadora. Não menosprezar o próprio lugar de fala e entender o seu poder como produção de conhecimento e como gesto crítico, ou seja, tornar-se sujeito (e não mais apenas objeto) epistemológico é uma atitude descolonizadora. Os debates sobre essa reação como um movimento de grandes proporções, encabeçados por pensadores como Aníbal Quijano, Enrique Dussel e Boaventura de Sousa Santos, está bastante avançado, bem mais do que seria possível abordar no curto espaço deste texto. De qualquer modo, a aproximação do teatro documentário latino-americano com a virada epistemológica do sul global se trata ainda de uma intuição a ser confirmada. Cabeça (um documentário cênico) aborda os 30 anos do lançamento do LP Cabeça Dinossauro dos Titãs. Em 1986, o ano do lançamento, o Brasil vivia o início da abertura democrática. Em 2016, ano em que a peça foi criada, assistimos à sistemática destruição do processo democrático. O que foi iniciado três décadas atrás parecia chegar ao fim. Não sabíamos de nenhuma peça de teatro documentário que tivesse sido criada a partir de um disco. Geralmente, são os fatos da história política dos países ou as narrativas biográficas que funcionam como pontos de partida das encenações contemporâneas que direta ou indiretamente se filiam ao gênero. Tomar um disco de rock como documento histórico foi uma escolha dramatúrgica pontual. As letras das canções são muito pertinentes à época e revelam o quanto ainda estamos próximos daquelas questões que estavam sendo extravasadas pelo rock brasileiro dos anos 80.


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228 Legenda: Felipe Vidal canta Fardado, do álbum Nheengatu. Na projeção, crédito dos autores da música, procedimento que se repete a cada canção tocada na peça. Foto: Ricardo Brajterman.

A precisão das letras teve peso na decisão de tocar todas as músicas na peça. Mas essa escolha dramatúrgica também partiu do entendimento de que as canções do disco são documentos disparadores de afetos. A escuta proporcionaria tanto o acesso à memória da época quanto à reflexão sobre os conteúdos que elas agenciam hoje. A dramaturgia realça a atualidade das letras das músicas e essa percepção é algo que se dá nos espectadores como algo que eles “já sabiam”. A pertinência do que é dito nas canções não é algo que o espetáculo dá aos espectadores, mas algo que os espectadores “se lembram”. Essa é uma questão importante da presença das músicas. A música é dramaturgia, não elemento meramente espetacular. Em determinado momento do processo, começamos a questionar que outros documentos usaríamos, se faríamos entrevistas com especialistas, com os próprios integrantes dos Titãs, se buscaríamos imagens de arquivo, de depoimentos de personalidades da música sobre o disco. Mas o conceito da dramaturgia que norteava o projeto era que o lugar de fala não seria o das “autoridades”. Na ideia de teatro documentário que a aparece em Cabeça, os depoimentos dos atores têm tanto valor histórico quanto as grandes narrativas oficiais do passado. E, estabelecendo um parentesco com CONTRA O VENTO


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(um musicaos)2, o ponto de vista da escrita, o lugar de fala da peça, é o dos anônimos: nós, os fãs, vamos falar sobre o disco – e sobre a época em que foi lançado. Afinal, a ideia não era fazer uma peça sobre os Titãs, mas sobre a recepção do disco pela nossa geração – embora nem todos os integrantes do elenco sejam da mesma idade.

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Legenda: Elenco em cena no espetáculo Cabeça (um documentário cênico). Na projeção, skyline da cidade de Curitiba. Foto: Ricardo Brajterman.

Um dos primeiros exercícios propostos por Felipe para o elenco foi que eles tomassem os temas das canções do disco (como igreja, polícia, família) como pontos de partida para que os atores escrevessem depoimentos. Na medida em que esses depoimentos eram experimentados nos ensaios, ficou claro que não faria sentido buscar outras vozes, a não ser que fossem também anônimas. Uma questão apareceu logo de início, a pergunta sobre a relação entre rock e política 2 A peça CONTRA O VENTO (um musicaos) é um espetáculo sobre a Tropicália no contexto do Solar da Fossa, pensão em que moravam vários artistas e intelectuais muito importantes para o cenário cultural e político brasileiro, como Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Gal Costa, Rogério Duarte, entre muitos outros, no final dos anos 60. Na peça, os personagens não são as estrelas que moraram no Solar, mas os anônimos, personagens ficcionais que participam perifericamente daquele ambiente cultural.


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em 1986 e em 2016. A equipe de criação fez algumas entrevistas nas ruas da Lapa nos arredores da Sede das Cias, onde se deram os ensaios, na época dos Jogos Olímpicos, quando a cidade estava cheia de pessoas de outras cidades do Brasil. As respostas colhidas são usadas como prólogo ao espetáculo. Considero importante esclarecer que o espetáculo não utiliza recursos de dramatização, não sugere a ilusão do passado no presente. Não há estetização do passado. Cada cena é como uma ilha de enunciação. Há diferentes poéticas nessas ilhas de enunciação, como por exemplo, o pronunciamento direto para o público em primeira pessoa, a leitura de um depoimento publicado em uma revista, a

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citação de um trecho de uma peça de Bertold Brecht, a projeção de textos, a leitura previamente gravada de manchetes de jornal. Não há um cenário que faça alusão a um universo fictício, apenas o palco vazio com os instrumentos, caixas de som, microfones e um telão ao fundo. E também não se trata de uma ficção de um show dos Titãs. A propósito, uma das primeiras falas da peça é “Nós não somos os Titãs” – o que esclarece antes de mais nada que não se trata de mais um musical em que os atores fazem imitações de personalidades da música brasileira. Mas os artistas estão ali para tocar todas as músicas, na ordem do disco, revezando-se nos vocais, como fazem os integrantes dos Titãs, e ocasionalmente em alguns instrumentos. Os arranjos reproduzem os do disco, com algumas adaptações às condições da produção. O acesso à memória fica a cargo da sonoridade da música e do conteúdo das narrativas do elenco. Não há objetos na cena que possam funcionar como elos nostálgicos de contato com o passado. Nem mesmo um LP Cabeça Dinossauro aparece para ilustrar a história. Talvez seja possível dizer que a opção para esse documentário foi por trabalhar com a memória tanto quanto a história. O canal de acesso à época em questão é o dos afetos tanto quanto o dos fatos. A peça não dá nenhuma informação sobre o lançamento do álbum, como o número de discos ou ingressos vendidos para os shows, datas comemorativas, percalços da banda, nem fala sobre a história pessoal dos seus integrantes. Não há, por exemplo, uma análise crítica


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especializada das músicas. Há, no entanto, uma paródia disso, a leitura de uma série de comentários a um vídeo na internet, em que pessoas sobre as quais nada sabemos, das quais temos apenas os nomes ou pseudônimos da internet, emitem opiniões diversas sobre os sentidos da letra da música Cabeça Dinossauro.

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Não há um discurso vertical ou expositivo, a apresentação de um saber sobre o disco ou a banda. O espectador não vai “aprender” nada com a peça. Não há um conteúdo a ser transmitido. O espetáculo apenas apresenta aquelas músicas em um contexto de histórias pessoais da infância e da adolescência de garotos moradores de diferentes cidades do Brasil, como Rio de Janeiro e Curitiba. Naturalmente, no caso de um espectador que não se relaciona com o rock brasileiro dos anos 1980 e não conhece o disco, ele vai sair do teatro tendo passado a conhecer algo significativo da nossa história cultural. Mas esse é um caso que foge à regra, pois o disco dos Titãs foi e é ainda bastante popular. Assim, a peça também não se encaixaria em uma ideia de documentário de resgate histórico, de revelação de algo oculto. Para quem tem a vivência daquela época e uma relação de memória com o disco, não há relação de autoridade ou de transmissão de conteúdos entre o espetáculo e o espectador. Trata-se de uma experiência de troca com autoridade compartilhada: atores e espectadores estão no mesmo nível, tratam-se de igual para igual. Ainda assim, há um saber histórico que é colocado em jogo pelas relações tecidas entre os acontecimentos de 1986 que são mencionados, os acontecimentos recentes (mencionados ou tomados como sabidos) e as letras das canções. A peça pode ser vista como um espetáculo de teatro documentário sobre o ano de 1986, revisitado pelo rock da época. Mas Cabeça também é um espetáculo sobre a história do Brasil nos últimos 30 anos. E embora não haja ali um texto reconhecível como “escrita da história” na sua acepção científica, acadêmica, há um saber histórico em jogo, sendo desenvolvido junto com o público, com a presença do espectador, numa linguagem cotidiana. Por exemplo, no momento que se refere à música Igreja, a peça relembra o episódio do pastor americano Jimmy Sweagart, da Assembleia de Deus (a mesma igreja de Silas Malafaia), que tinha um programa de TV transmitido pela Bandeirante e foi flagrado em um escândalo sexual em 1988. Um dos atores expõe o projeto de poder das


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igrejas pentecostais e neo-pentecostais, desde que, em 1985, deu-se início à entrada deliberada dos evangélicos na política, tendo em vista a Assembleia Constituinte de 1986, até a eleição de um bispo da Igreja Universal para a Prefeitura do Rio de Janeiro em 2016, fato ocorrido no momento em que a peça estava em cartaz no Sesc Ginástico. A peça também mostra um vídeo da cantora gospel e pastora Ana Paula Valadão e alguns gráficos que ilustram o crescimento da presença da bancada evangélica no congresso nacional.

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Legenda: Leonardo Corajo e Felipe Vidal. Na projeção, o pastor Jimmy Swaggart. Foto: Ricardo Brajterman.

Os fatos históricos são conhecidos. O vídeo da internet, que é projetado com a página do YouTube, é um documento público, que está à mão. O projeto de poder das igrejas não é nenhuma novidade. O espectador apenas reconhece os fatos e as ligações entre eles. A música, com a sua sinceridade crua, arremata a memória e a noção do tempo decorrido e de todo um processo de construção de uma democracia corroído por dentro. A carga de raiva e denúncia da canção parece ainda mais pertinente hoje que na época do lançamento do disco.


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Esse é um dos pontos que me fazem pensar sobre a relevância desse espetáculo e das experimentações de documentário cênico no teatro contemporâneo, tendo em vista seu potencial de se destacar como acontecimento social, para além das questões formais do teatro na narrativa endógena de suas transformações e sobrevivências. Não quero defender que o teatro deve ter uma “utilidade”3 ou que deve servir a uma instância fora do seu próprio âmbito, mas me parece que o momento político em que estamos vivendo está provocando o teatro a questionar o seu lugar reservado e a reavaliar a narrativa – moderna e eurocêntrica – que determinou o seu enredamento autorreferente.

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Legenda: Guilherme Miranda canta Igreja. Ao fundo, Felipe Antelo na bateria e Felipe Vidal no baixo. Foto: Ricardo Brajterman.

Falamos muito em “público” no teatro, mas como o caráter público do teatro se reflete no nosso trabalho e como lidamos com isso? Esse questionamento encontra uma aproximação com os recentes debates sobre o conceito de história pública e o significado de “público” nessa expressão. Publicado em 2016, o volume História pública no Brasil: Sentidos e itinerários, organizado por Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida e Ricardo Santhiago, traz um artigo 3 Discuti essa questão em um artigo publicado no dossiê Teatro e Memória da Sinais de Cena – Revista de estudos de teatro e artes performativas, publicada em Lisboa em 2016, propondo uma reflexão sobre alguns conceitos articulados por Hans Ulrich Gumbrecht, como a polaridade entre produção de sentido e produção de presença, bem como a ideia de “perda de mundo” como uma perda de contato do teatro com o seu potencial de coisa pública.


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intitulado “O conceito de público e o compartilhamento da história”, escrito por Renata Schittino, que levanta um horizonte conceitual para tratar do problema. Ela retoma a ideia de público como “mundo comum”, como em Hannah Arendt, entendendo o mundo público como aquilo que permite a reunião dos homens em sua diversidade, o vínculo compartilhado pela preocupação com o mundo. A noção de público em história pública estaria portanto na ideia de compartilhamento, em uma forma de experiência da historicidade humana, “como entre iguais e diferentes num mundo comum” (SCHITTINO, 2016, p. 45).

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O artigo de Santhiago, “Duas palavras, muitos significados: Alguns comentários sobre história pública no Brasil”, também é bastante esclarecedor com relação a isso. Ele aponta que geralmente se entende a história pública apenas ou principalmente como um fazer que prioriza a divulgação de conteúdos para um horizonte de leitores mais amplo do que aquele atingido por edições e debates acadêmicos. Esse fazer estaria relacionado a uma espécie de adaptação ou tradução facilitadora, ou a um trabalho de difusão, de inserção de produções historiográficas em determinado mercado. Mas essa ideia de história pública é limitada e também problemática. A questão é mais complexa, as práticas são mais amplas e diversificadas. Mas identifico um problema maior nessa concepção de história pública, um problema de entendimento sobre o “leigo” que também podemos ver no teatro e em qualquer outra arte, que é a atribuição de uma condição de minoridade ao público, o pensamento de que as coisas precisam ser diminuídas e simplificadas para serem assimiladas por um interlocutor menos capaz. Mas os artigos de Ricardo Santhiago e Renata Schittino sinalizam uma noção de público mais generosa – e uma ideia mais complexa de história pública. Santhiago, por exemplo, expõe o seguinte: Penso a história pública como uma área de estudo e ação com quatro engajamentos fundamentais, passíveis de entrecruzamento: a história feita para o público (que prioriza a ampliação de audiências); a história feita com o público (uma história colaborativa, na qual a ideia de “autoridade compartilhada” é central); a história feita pelo público (que incorpora formas não institucionais de história e memória); e história e público (que abarcaria a reflexividade e autorreflexividade do campo). (SANTHIAGO, 2016, p.28)


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A essa pesquisa não interessa a ideia de divulgar a história para um público maior, inserindo uma espécie de saber histórico em uma peça de teatro. Não é disso que se trata. A relação entre história pública e teatro documentário está mais no âmbito da “ história feita com o público” e da “ história feita pelo público”. Mas, no caso do agenciamento de saberes históricos em uma obra de arte, quem é o historiador e quem é o público? Os atores assumiriam o papel dos historiadores? A ideia de uma historiografia de artista embaça algumas dicotomias fundadoras de distâncias, como por exemplo a dicotomia que separa, hierarquicamente, o historiador/especialista e o leitor/leigo. A escrita da história feita por artistas não é uma historiografia científica, mas uma historiografia criativa. O artista no teatro documentário, por mais que tenha compromisso com a verdade dos fatos no seu trabalho, não migra para o território do historiador – embora o território do teatro possa se mesclar com o território da história. Tendo em conta a passagem de Santhiago, o teatro documentário pode estar na categoria “história feita pelo público” porque os artistas, os escritores, são “público” do ponto de vista dos historiadores profissionais, acadêmicos, científicos. Os artistas não são nem pretendem ser “autoridade” em história. Trata-se, portanto, de uma autoridade compartilhada, conceito desenvolvido por Michael Frisch, que está no título do seu livro A Shared Authority: Essays on the Craft and Meaning of Oral and Public History (Uma autoridade compartilhada: Ensaios sobre o ofício e o significado da história oral e pública). Ele marca a importância de reconhecer a natureza compartilhada do saber histórico, afirmando que cabe aos historiadores entenderem e respeitarem essa qualidade intrínseca. A autoria é dialógica por definição: Em uma entrevista de história oral, em uma discussão de grupo ou em um programa público, mesmo no modo como os indivíduos se aproximam, se envolvem ou recebem uma exposição em um museu, há um encontro entre ideias e estruturas interpretativas, um diálogo entre expertise e experiência. Em boa medida, cada participante é em parte coautor da entrevista ou da discussão, e até coautor da exposição recebida, em vez do significado projetado. (FRISCH, 2016, p.62-63)

Em Cabeça, é possível identificar uma relação dialógica com o espectador, mesmo que não haja literalmente cenas de interação, de “participação” da plateia. Mas há participação na construção de sentidos e conexões entre a vida pública do país e a vida privada de


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cada um. A noção de dramaturgia em jogo na peça é dialógica, não só porque parte de uma fala compartilhada e porque foi criada de maneira colaborativa, mas principalmente porque é destituída de autoridade científica. A transmissão de saber não é uma via de mão única. Essa parece ser uma questão determinante para o debate contemporâneo sobre história pública. A experiência do espectador no teatro também não é “passiva”, como dizem.

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Com o gesto de realizar esse espetáculo, de falar da história do país, da potência e da relevância da nossa produção artística, os artistas que experimentam essa espécie de escrita da história (que é dialógica e de autoridade compartilhada e que aqui chamamos historiografia de artista) estão compartilhando não apenas os conteúdos agenciados, mas a ideia mesma – emancipatória, descolonizadora – de estar na condição de sujeito epistemológico, daquele que se coloca e põe em movimento os saberes e o pensamento crítico sobre o mundo em que vive.


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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS DUSSEL, Enrique. Enrique Dussel explica a teoria da ‘virada descolonizadora”. 2013. Disponível em https://www.youtube.com/watc h?v=mI9F73wlMQE&feature=youtu.be Acesso em 15 jan. 2017. FRISCH, Michael. A shared authority: Essays on the craft and meaning of oral and public history. Albany: Suny Press, 2016. MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabelo de; SANTHIAGO, Ricardo (orgs) História pública no Brasil. Sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016.

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QUIJANO, Anibal. Conferencia Magistral Inaugural. III Congresso Latinoamericano y Caribeño de Ciências Sociais. 2015. Disponível em https://youtu.be/OxL5KwZGvdY Acesso em 17 jan. 2017. SANTOS, Boaventura de Sousa. Descolonizar as ciências sociais. II Congresso de História Contemporânea. Universidade de Évora. 16. Mai. 2013. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=1WIt9AThYl Q&feature=youtu.be. Acesso em 19 Jan. 2017. _________ Por quê as epistemologias do Sul?. Seminários avançados “Globalizações alternativas e a reinvenção da emancipação social. 2012. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ErVGiIUQHjM. Acesso em 18 jan. 2017. SMALL, Daniele Avila. O saber histórico e a experiência estética no teatro documentário contemporâneo, Sinais de Cena, Lisboa, II, nº 1, p. 49-63. VIDAL, Felipe. Conversa com Felipe Vidal. Questão de Crítica (TVQDC). 2016. Disponível em https://vimeo.com/165613137 Acesso em 19 jan. 2017.


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Odiseo.com: o corpo na fronteira entre o real e o virtual

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Rubens da Cunha

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

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Marco Vasques

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

O corpo é material. Fica à parte. Distingue-se dos outros corpos. Um corpo começa e termina contra outro corpo. Até o vazio é uma espécie muito sutil de corpo. Jean-Luc Nancy

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O teatro, esta “prodigiosa transfiguração”, conforme Ortega y Gasset (2007, p. 39), nasce no corpo. Os outros elementos teatrais, no decorrer de sua história, vão se avolumando em torno do corpo. Trata-se de um presente, uma presença, sobre o palco. O corpo, paradoxalmente espaço de estranhamento e identificação, de culpa e prazer, ganhou ainda mais notoriedade com o advento da modernidade que o trouxe para o centro das atenções, já não mais como inteireza, 1 Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Escritor. Crítico de Teatro. 2 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade Estadual de Santa Catarina. (UDESC). Escritor. Crítico de Teatro.


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unidade, mas como fragmento, pedaço, desestruturação. De acordo com Eliane Robert Moraes (2010, p 19) “às imagens ideais do homem veio contrapor-se um imaginário do dilaceramento, marcado pela obstinada intenção de alterar a forma humana a fim de lançá-la aos limites de sua desfiguração”. Dessa forma, as vanguardas artísticas da primeira metade do século XX3 instituíram um corpo fragmentado, explodido pelas grandes guerras, um corpo desarticulado, em que as partes se compunham como corpos autônomos, em que a mesa de dissecação ganhava força sob o olhar artístico. Assim, o teatro foi além da representação e tratou daquilo que Badiou (2007, p.71) chamou de “elucidação histórica coletiva”. O teatro também atravessou o século XX aprofundando ainda mais a ruptura, a transgressão artística, diversificando os pontos de vista, abrindo espaços para que o corpo em cena não apenas repetisse mimeticamente o texto, mas fosse um atravessamento de todos os elementos que o compõe.

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Jean-Luc Nancy vê o corpo como o lugar da existência e que não há existência sem lugar: O corpo-lugar não está cheio nem vazio, não tem fora nem dentro, assim como não tem partes nem totalidade, funções ou finalidade. Sem pés nem cabeça em todos os sentidos, se assim se pode dizer. Mas esse corpo é uma pele diversamente dobrada, redobrada, desdobrada, multiplicada, invaginada, exogastrulada, furada, evasiva, invasiva, tensa, distendida, excitada, siderada, ligada, desligada. (Nancy 2000, p. 16)

O corpo, mesmo sendo essa pele manipulável, é o ser da existência. É um lugar que abre, que separa, que distende, que espaça e de onde se dá o lugar para os acontecimentos que movem a vida humana, tais como nascer, sofrer, pensar, fazer sexo, rir, espirrar, chorar, amar, esquecer. Sob esse prisma, se estabelece a relação da 3 Em relação ao teatro, podemos pensar no simbolista Maurice Maeterlink (2007, p.18) que, por exemplo, ousou a hipótese de se retirar completamente o ser vivo da cena, sem que isso fosse um retorno ao teatro grego com suas máscaras, mas a substituição do ser vivo por uma sombra, um reflexo: “l’être humain sera-t-il remplacé par une ombre, un reflet, une projection de formes symboliques ou un être qui aurait les allures de la vie sans avoir la vie? Je ne sais; mais l’absence de l’homme me semble indispensable. Pode-se pensar também em Vsevolod Emilevitch Meyerhold (2012), influenciado pela mecânica e os movimentos instaurados pela maquinaria tecnológica, vai atrás do que chama de “convenções” para estruturar o corpo do ator em cena numa nova direção. Outros exemplos encontram-se, também, no livro O Futurismo Italiano, organizado pela pesquisadora Aurora Fornoni Bernardini, no qual constam o Manifesto dos Dramaturgos Futuristas e o Manifesto do Teatro Futurista Sintético. Estes manifestos apontam para algumas questões que atravessaram as inquietações a respeito do corpo.


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existência (que é o corpo) com a morte. Este jogo com a morte seria um alcançar, um tocar a morte, uma retirada de si, onde o sentido estaria no acontecimento de espaçar-se de si. Por isso, o corpo não é mais substância, fenômeno, ou carne, ou até mesmo instrumento, mas um “ser excrito”, pensando aqui ainda sob o conceito de Nancy (2003, p 32) cujo “excrever-se” consiste em ir tocar o concreto do mundo ali onde a existência faz sentido. Já não é mais possível ver o corpo na contemporaneidade sem se inserir na ruptura, na reviravolta contínua, na fragmentação exasperada de vozes, pensamentos, ações, intenções e buscas: “é preciso atravessar este ‘sujeito’, e só a este ‘sujeito’ a palavra corpo impõe uma dureza seca, nervosa, fazendo estalar as frases onde nós a empregamos” (NANCY, 2000, p. 21).

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Tal dureza seca pode ser vista na ideia do corpo-porco, o corpo às avessas, corpo que se aproxima do animal. O pensamento de Nancy coloca o corpo à margem, fora de qualquer centro, de qualquer significado absoluto, fechado, dogmatizado. O corpo-existência todo está no limite, restando apenas o “traço da própria escrita excrita, num rasto infindavelmente quebrado, partilhado através da multidão de corpos” (NANCY, 2000, p. 21). O corpo é pensado como traços, pegadas, rastos e restos embrenhados para além dos limites do sentido metafísico, para além da dicotomia bem/mal, vida/morte, corpo/ espírito. Trata-se de uma visão bastante contemporânea em que o sentido está à deriva, o que nos resta é embarcar nele, tentar colocálo em ordem, mas sem expectativas de porto, de ancoragem, de uma segurança hermenêutica.

Foto: Cristiano Prim


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É nesta instância corpórea do corpo-caleidoscópio, que o espetáculo Odiseo.com, está circunscrito. Ele apresenta o corpoespectro, o corpo-fragmento, o corpo-fantasma, no entanto, ancora-se, com o uso extremado da tecnologia, numa inteireza e no desdobramento entre um corpo real e o corpo virtual, sem com isso criar antagonismos simplistas, porque do desdobramento chega à comunhão entre os corpos e suas fabricações especulares como que anunciando as múltiplas urgências da realidade.

Os corpos presentificados de Odiseo.com

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Odiseo.com é uma produção desfronteirada entre Brasil, Argentina, Chile e Alemanha. Do Brasil comparecem a atriz Milena Moraes e o diretor André Carreira. Da Argentina vem o ator Juan Lepore e a assistente de direção Mercedes Kreser, e o cenotécnico Fernando Diaz. Do Chile vem o dramaturgo Marco Antonio de La Parra e a atriz Amalia Kassai, que atua direto da Alemanha. Odiseo.com é fruto do encontro desses artistas e das distâncias que permeiam suas trajetórias. Comunicando-se pelos meios virtuais, eles resolveram pensar uma peça que incorporasse esses meios, que permitisse a presença em cena de artistas geograficamente tão distantes, mas parelhos nas buscas. Essa presença pode ser pensada também como representação, pois segundo Erika Fischer-Lichte (2011 p. 294) representação e presença são o resultado de processos de corporização específicos, pois quando o ator interpreta um personagem, não reproduz algo externo, mas cria algo novo que só pode existir a partir de sua corporeidade individual. Por isso, para Fischer-Lichte, já não há mais diferença entre esses dois conceitos. Assim, a construção de toda a presença em Odiseo.com, traz para o palco as presenças e representações que já estão acontecendo fora dele, pois, com o avanço da tecnologia, esses dois elementos ficaram muito mais amplos, embaralhados. Podemos ver acontecimentos, dos mais terríveis aos mais fúteis, ao vivo, em qualquer parte onde haja um equipamento de filmagem e transmissão. Talvez não haja nossa total presença corpórea no lugar, mas a visão, os ouvidos, a consciência, a memória conseguem incorporar o que está sendo assistido, conseguem trazer esse acontecimento distante para perto e, cada vez menos, sob


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o adjetivo de “virtual”. A dita realidade pode ser transmitida, vista, presentificada e representada por todos a qualquer momento e de qualquer lugar. No entanto, ainda reverberam algumas questões: o que vemos numa tela é o mesmo que veríamos fora dela? O que sentimos diante de um computador é sentimento? O que desejamos no mundo dos skypes, what’s up, chats é desejo? O corpo presentificado na tela tem a mesma força e intimidade do corpo fora dela?

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Odiseo.com é constituída dessas e de outras perguntas e, para expor possíveis respostas, aposta numa teatralidade densa como base para os seus três personagens. Ulises, um eminente executivo que viaja de país em país, e pode ser visto como um capitalista desterrado, senhor de hotéis e aeroportos e que, para além da analogia direta com Ulisses da Odisseia e Iliada clássicas, é um homem preenchido pelo trabalho, mas esvaziado pela distância de seu filho, de sua mulher e de sua amante. A melhor descrição de Ulises vem da própria peça, quando Elisa, a sua amante, lhe diz: “Sos un judeocristiano culposo” (PARRA, 2014)4. Essa pecha, por mais banal que seja, dá a Ulises alguns tormentos, alguns pesos que ele carrega, entre eles o estereótipo do macho latino-americano e a hipocrisia diante da grande empresa na qual trabalha e que é ligada à Opusdei, além da tentativa de abarcar tudo: duas mulheres, um trabalho financeiramente importante e um filho. Ulises carrega a culpa judaico-cristã, por certo, mas também é um hedonista movido pelo egoísmo. No outro lado do triângulo amoroso, está Laura, a mulher de Ulises, que vive na Alemanha com o filho. Também desterrada, ela não está mais contente com essa presença virtual do marido. A cobrança de Laura passa pelo desejo da presença física e sobretudo da presença de um passado que não se recupera mais. Numa de suas primeiras falas ela diz: ¿Nuestra ciudad? No sé cuál es TU ciudad. Odio que me digas que vuelves. Porque nunca vuelves. Porque siempre vuelves menos. Aunque vuelvas ya no eres tú. Aunque vuelvas vuelves con un pedazo menos. Y no eres tú. Y yo ya no soy yo. Y no te percatas. Ya no te das cuenta de nada. Y me dices mi amor. Y me dices ya volví. Con la misma facilidad que me dices. Una y otra vez. Ya vuelvo. (PARRA, 2014) 4 Citações da peça advém do texto enviado pelo diretor André Carreira para os autores do artigo. A peça ainda não está publicada.


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A terceira personagem do triângulo é a cantora brasileira Elisa. Ela tem uma carreira artística proeminente, uma filha, ex-marido, deixa entrever que mantém relacionamentos também com outros homens. Sua relação com Ulises é apaixonada, carnal. Elisa é uma pessoa que se deixa levar por essa paixão, que tenta reverter esse quadro de distância, que luta pelo amor desse viajante, comete arroubos num tom próximo ao melodramático típico dos estereótipos da latinidade, mas não se curva totalmente, não se entrega absurdamente a esse amor construído por rápidos encontros pessoais e entrecortadas ligações no skype. Elisa, Laura e Ulises são seres em trânsito, tanto externo quanto interno. A cada viagem, a cada encontro cada vez mais raro, eles se tornam outros, se desconhecem apesar da contínua conexão tecnológica que existe entre eles.

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Elisa (Milena Moraes). Foto Cristiano Prim

Nós, espectadores brasileiros, vemos toda a movimentação de Elisa em seu apartamento, (ou no camarim de um teatro, dependendo da ocasião) enquanto ela conversa com Ulises que está em Buenos Aires, de partida para a China. Assim, sob o ponto de vista do público, um dos aspectos principais da peça é a sua fragmentação, o seu pedaço dado às três plateias que assistem-na ao mesmo tempo. Para se ter uma noção maior da totalidade desse espetáculo seria preciso assisti-lo três vezes em três países diferentes.


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O que se tem nesses fragmentos de peça é um corpo que se expõe e que pode ser visto aqui sob o conceito de corpo cênico, pensado por Eleonora Fabião: O corpo cênico está cuidadosamente atento a si, ao outro, ao meio; é o corpo da sensorialidade aberta e conectiva. A atenção permite que o macro e o mínimo, grandezas que geralmente escapam na lida quotidiana, possam ser adentradas e exploradas. Essa operação psicofísica, ética e poética desconstrói hábitos. Atentar para a pressão e o peso das roupas que se veste, para o outro lado, para as sombras e os reflexos, para o gosto da língua e o cheiro do ar, para o jeito como ele move as mãos, atentar para um pensamento que ocorre quando rodando a chave ao sair de casa, para o espírito das cores. (FABIÃO, 2010, p. 322)

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Distanciados pela tela, os atores Juan Lepore e Amalia Kassai entregam-se e entregam seus corpos para espectadores distantes. Aqui, no Brasil, suas presenças virtuais são entrecortadas pela presença contínua, aterradora, dominadora de Milena Moraes. Uma presença repleta da operação psicofísica, ética e poética desconstrutora de hábitos: cada olhar e olhar-se no espelho, cada tentativa de maquiarse, cada gesto que conecta ou desconecta o computador, que traz ou afasta os outros fragmentos para a sua cena, é perpassado por uma atenção completa, ampla que consolida o corpo cênico no fragmento brasileiro de Odiseo.com. Esta atenção, é para Eleonora Fabião (2010, p 322) uma “pré-condição da ação cênica; uma espécie de estado de alerta distensionado ou tensão relaxada que se experimenta quando os pés estão firmes no chão, enraizados de tal modo que o corpo pode expandir-se ao extremo sem se esvair”. É um estado de alerta que está presente não apenas na atuação dos atores, mas na direção concisa de André Carreira, que construiu a peça dentro de uma estética mais naturalista: o palco ser um apartamento, um camarim, um quarto de hotel ou café, as conexões que falham, os toques dos celulares, a nudez, o banho, a discussão e o sexo à distância, a invocação de um cotidiano banal, que serve de estofo para esses corpos que devaneiam suas ausências, saudades, paixões e tristezas. São relações constituídas por equipamentos tecnológicos que lhes dão a ilusão da proximidade: os corpos estão separados, mas as imagens nas telas fazem a aproximação. Merleau Ponty (apud Fischer-


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Lichte, 2011, p. 129) dizia que o corpo que vê é o mesmo que toca, portanto o visível e o tangível pertencem ao mesmo mundo, não há oposição entre eles, pois não seria apenas o contato físico que produz a intimidade, mas também a troca de olhares. No entanto, pode-se pensar que com as novas tecnologias, o olhar e o tocar ganham forças diferentes. Inclusive, podemos ampliar tal reflexão para os outros sentidos: nas relações que ocorrem por meio da teletecnologia, tato, olfato e paladar perdem espaço para o olhar e a audição. O corpo do outro é visto, ouvido, mas ao ser cheirado, degustado, tocado, há o impedimento. O toque acontece na tela, a fria tela do computador serve como escudo ou como um muro de vidro que permite a interação visual, auditiva, mas impede que a relação se dê na completude do corpo. O tato torna-se um auto-tato, a cópula torna-se masturbação. Odiseo. com sustenta sua teatralidade também sobre essas fragmentações, essas novas perspectivas de intimidade. Laura, Ulises e Elisa são corpos que almejam a completude de todos os sentidos, porém o desejo não se completa, pois o que eles possuem é a apenas um fragmento de corpo que privilegia audição e olhar. Tal impossibilidade abre as chagas em que submergem essas presenças. São corpos desejantes e agonizantes que buscam uma espécie de aproximação mais efetiva, mas impossível naquele momento: “tus mensajes directos ocultos en la tecnología ciegan mis ojos celosos. Tu desconexión en pantalla me extingue” (PARRA, 2014), reclama Laura. “¿Por Skype? Mostrame la foto de tu hijo. Es tan lindo tu hijo. Me encantaría que vivieramos todos juntos... Se entendería muy bien con mi hija” (PARRA, 2014), esperança-se Elisa. “Tengo que ir a Shangái y después a Santiago. Tres días en casa y a salir de nuevo. Ya no sé dónde queda mi casa, llego a Santiago y no reconozco ni a mi hijo. Ni siquiera me saluda”, aflige-se Ulises. Assim, essas três pessoas se ressignificam mesmo é dentro dos limites da busca pelo encontro, da tentativa de conexão, cuja estrutura é de aparente proximidade, mas que se constitui como perda, como ausência. Por outro lado, mesmo que partindo dessa base triangular, Odiseo.com vai além das relações amorosas e conflituosas de três adultos brancos e ricos. Ela expõe a desconexão conectada do nosso tempo: amor, sexo, ofensas, desculpas, separações, os desejos, tudo feito por intermédio da máquina: esse paradoxo fazedor e anulador de distâncias. O corpo, que estava na mesa de dissecação, agora está


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sendo dissecado nas imagens vindas dos gadgets, das telas. É um corpo filmado, transformado em aparelho que se desconecta, se desliga, se quebra.

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Ulises (Juan Lepore) e Elisa (Milena Moraes) Foto: Cristiano Prim

Sobre o entrelaçamento entre corpo e máquina, Marcelo Denny Leite (2015, p. 138) afirma que “o universo da ampliação e do entrelaçamento entre o humano e a máquina através das teletecnologias e da disseminação dos dispositivos e da lógica hipertextual acabou por alcançar o próprio corpo”. Assim, sob esse ponto de vista o indivíduo, pode ser submetido a todo tipo de operações que vão da modelização de programas computacionais ao fato de ser “entregue ao jogo das aparências e da simulação das identidades nos chats e salas de conversação” ou se “conectado a próteses artificiais” ou “vasculhado em seu interior pelas nanotecnologias”, além de ser “movido e afetado à distância por meio dos dispositivos – técnicos e artísticos – que se servem da telepresença”. (LEITE, 2015, p. 138) Dessa forma, a peça também propõe o embaralhamento completo das noções de afastamento e de proximidade, não só no seu intercurso dramatúrgico, em que essas três pessoas se digladiam, mas na própria disposição do público no espaço. De acordo com Fischer-Lichte (2011, p. 81) a cena não é apenas um lugar em que as ações e o comportamento de atores e espectadores são influenciados mutualmente, mas é o lugar em que se explora o funcionamento específico dessa influência mútua,


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bem como também se investiga as condições e o desenvolvimento do processo de negociação entre público e atores. Cabe ao diretor, portanto, desenvolver estratégias de encenação com as quais se possa compor e produzir uma disposição experimental dos elementos, para que se tenha alguma perspectiva de êxito. Em Odiseo.com, algumas das estratégias da direção de André Carreira constitui-se em afastar a peça do palco convencional e colocá-la num apartamento, num quarto de hotel, num café qualquer. No caso do fragmento brasileiro, a direção coloca o espectador a meio metro da cena, inserido bem próximo da nudez, do banho, do maquiar-se, do sofrer da personagem Elisa. Além disso, se pode assistir, pelo filtro da telepresença, pedaços das duas outras cenas que se passam na Argentina e na Alemanha. A teletecnologia torna-se uma ferramenta para que entre os três corpos e os corpos das plateias aconteça aquilo que Eleonora Fabião (2010, p.323) denominou de “cena conectiva”. Para a Eleonora, a ação cênica não nomeia somente a ação que ocorre em cena, “nem a cena conectiva não se restringe ao que acontece no palco, mas inclui o drama da sala” pois: A atividade do ator não é autônoma, mas relativa; o ator é relativo ao espectador por reciprocidade e complementaridade. Em termos dramatúrgicos, a relação entre aquele que atua e aquele que assiste é tão significativa quanto a relação entre Hamlet e Ofélia, ou entre ator e atriz. Se a cena for, de fato, o espaço conectivo entre aqueles que veem e se sabem vistos, um sistema de convergências, a ação cênica acontece fora do palco, entre palco e plateia, fora dos corpos, no atrito das presenças. (FABIÃO, 2010, p. 323)

A cena não se daria, portanto em algum lugar, mas num entrelugar. Assim, “a presença do ator, longe de ser uma forma de aparição impactante e condensada, corresponde à capacidade do atuante de criar sistemas relacionais fluidos, corresponde a sua habilidade de gerar e habitar os entrelugares da presença” (FABIÃO, 2010, p. 323). E são nesses entre-lugares que podemos ver o corpos dos personagens fluindo na ausência de centro, de certeza e, paradoxalmente, conflituando-se porque eles buscam um centro, querem a concretude, querem o toque, o tato, descontentam-se com a frieza das tecnologias e perturbam-se entre o real e o virtual. Esse é outro embaralhamento proposto por Odiseo.com: o desmantelamento da fronteira entre o corpo real e o corpo ficcional.


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Erika Fischer-Lichte (2011, p 161) destaca que, em meados do século XVIII o teatro, sobretudo o alemão, experimentou duas importantes mudanças: a criação de um teatro literário e a evolução de uma nova arte de atuação realista-psicológica. Para que o texto ganhasse supremacia, o ator deveria parar de atuar conforme seu talento ou vontade e passar a ser um transmissor dos significados que o autor propunha no texto. A arte de interpretar não poderia acrescentar novos significados no texto, mas apenas respeitá-lo, expressá-lo tal como fosse. O ator não poderia aparecer, seu corpo fenomênico teria que ser transformado em um texto: a tensão entre o corpo fenomênico do ator e a interpretação de um personagem dramático deveria ser eliminada em benefício da interpretação. O espectador deveria perceber apenas o personagem, sentir através dele, pois ao perceber o ator, passaria a ter sentimentos por ele, teria que abandonar o mundo fictício da obra e introduzir-se no mundo da corporeidade real (Fischer-Lichte, 2011, p. 160-161). Com o desenvolvimento das teorias teatrais no século XIX e XX, essa fronteira começa a se embaralhar, se desmanchar. Com o desenvolvimento dos novos meios de comunicação os corpos se volatizam em uma reprodução técnica que, apesar da aparente proximidade, distancia e impede qualquer contato, porém o teatro e a arte da performance opõem o físico estar-no-mundo e a ideia de mente corporizada à fantasia do corpo virtual que geralmente acompanha esse processo. (FISCHER-LICHTE, 2011, p.190).

Foto: Otten Severonoe


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Para se ter um exemplo bastante simplificado de como nublamos as noções de real e ficcional, basta entramos em uma igreja qualquer e assistirmos a um culto. Como dizer que o que ocorre ali não é real, como atestar que o suposto simulacro seja erigido à categoria de falso? O mesmo ocorre com as múltiplas relações tecnológicas, que são, grosso modo, uma expansão, ou mesmo outra modalidade do real. Há que se admitir que o real tem variações e instâncias diversas e dividir binariamente o mundo em real e virtual pode nos levar a perder a capacidade de compreender que o mundo virtual é um mundo carregado de dimensões reais. O que temos, novamente pensando conforme JeanLuc Nancy, são corpos e restos para além das dicotomias, o que temos é o descentramento, a deriva nesse corpo cênico perdido entre o real e o virtual, mas também sendo o real e o virtual.

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Epílogo Dessa forma, ao optar por um espetáculo que acontece em três espaços ao mesmo tempo, temos corpos presentes e atuando num suposto lugar suspenso. Ausências e presenças são permitidas e ampliadas pelo uso dos recursos tecnológicos. Odiseo.com trabalha com uma dramaturgia construída a partir e para o gesto, para o corpo em que a cena coletiva se multiplica no olhar dos atores e que, a partir de um gesto, tal qual o gesto inaugural de Téspis, direcionam sua atuação a um lado e outro do mundo, tendo para si não apenas um ator para contracenar, mas toda uma plateia em jogo cênico de presença e ausência corpórea. Dessa forma, Odiseo.com coloca em xeque os ditames assertivos e incisivos que, via de regra, encaixotam o mundo real em contraposição a um mundo ficcional, um mundo onde o simulacro, em primeira instância, suplanta o universo dito palpável da realidade. Por fim, podemos pensar também no livro Queimar a Casa Origens de um Diretor, de Eugenio Barba, que é uma obra que traduz os caminhos e enfrentamentos que o teatro exige na contemporaneidade. Na busca por um teatro total, Barba se debruça, muito apropriadamente sobre todos os elementos cênicos, não ignorando nada na construção de um teatro que alcance uma organicidade que tangencie o espaço, o público, o cenário, a luz, o figurino, a voz, a palavra e o corpo. Para


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isso, Barba procura encontrar em cada um desses elementos o seu eixo dramatúrgico, ou seja, cada parte integrante de um espetáculo, possui uma dramaturgia própria que necessita ser orquestrada para se realizar como espetáculo, como todo. Neste contexto, Barba dá significativa atenção à dramaturgia do ator, à dramaturgia do corpo que dança: Para mim, a partitura do ator sempre teve as características da dança: uma alternância não narrativa de jorros tônicos de energia, uma simultaneidade de tensões e de formas que produziam uma impressão de vulnerabilidade, aspereza, exuberância ou delicadeza, sedução ou agressividade: um teatro que dança” (BARBA, 2010, p.70)

Barba repete inúmeras vezes a palavra partitura para atribuir

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ritmo individual a cada um dos elementos cênicos de um espetáculo, pois para ele a densidade de um espetáculo não se deve só ao fato de “avançar por níveis de organização e de estruturar materiais orgânicos e narrativas antitéticas”, mas deve também “à contiguidade das diversas dramaturgias” (BARBA, 2010, p. 281). São as relações dos corpos que instauram, nas suas mais diversas instâncias, a prática teatral contemporânea. O próprio Barba (2010, p.282) afirma que na sua prática, a dramaturgia estabelecia diferentes tipos de colaboração: a de um ator com o outro, a dos atores com o diretor, e a dos atores e do diretor com os espectadores. A peça teatral Odiseo.com é um exemplo nítido dessa busca por um teatro total, mesmo que composto pelo fragmento, pelo pedaço, e que se coloque à deriva na busca de um sentido. Trata-se de uma peça que escapa dos clichês dos discursos binários e dualistas que ainda se fazem presença na contemporaneidade. São os corpos, os corpos irmanados que, tanto no campo prático quanto no teórico estão ensejando as múltiplas construções dramáticas, perfazendo novas sendas e ampliando novos limites poéticos à cena. Odiseo.com está ancorado nesta fronteira que abarca uma possibilidade teórica que também é prática corpórea. É uma ficção eivada de real, porque é um acontecimento, uma presença plena.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BADIOU, Alain. O Século. Aparecida: Ideias & Letras, 2007. BARBA, Eugênio. Queimar a casa. São Paulo: Perspectiva, 2010. BERNARDINI, Aurora Fornoni. O Futurismo Italiano, São Paulo: Perspectiva, 2013. FABIÃO, Eleonora. Corpo Cênico, Estado Cênico. Revista Contrapontos. Itajaí. Univali. Vol. 10 - n. 3 - p. 321-326 / set-dez 2010. FISCHER-LICHTE, Erika. Estética de lo performativo. Madrid: Abada Ed. 2011. GASSET, José Ortega y. A ideia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007.

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LEITE, Marcelo Denny. Corpos dilatados: relações contemporâneas entre cena e tecnologias. Revista Sala Preta. São Paulo. USP. Vol. 15. n. 2. p. 137-148. Jun. 2015. MAETERLINCK, Maurice “Menus propos”, in: Programa da peça Maeterlink. Odeon de l’Europe Théâtre. 2007. Disponível em http://www. theatre-odeon.eu/fichiers/t_downloads/file_322_dpd_Maeterlinck.pdf Acesso 16 Mar. 2016. MEYERHOLD, Vsévolod. Do teatro. São Paulo: Iluminuras, 2012. MORAES, Eliane R. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2010. NANCY, Jean-Luc. Corpus. Lisboa: Vega Passagens, 2000. _______________. 58 indícios sobre o corpo, extensão da alma. Revista UFMG, Belo Horizonte. UFMG. v.19, n.1 e 2, p.42-57, jan./dez. 2012. _______________. El sentido do mundo. Buenos Aires: La Marca, 2003. PARRA, Marco Antonio. Odiseo.com. (inédito)


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Avessa

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Gregory Haertel1 Cena 1 – Entrada do Público (Mulher está sentada nua, com as pernas encolhidas, como se protegesse o corpo. Chora baixinho) Cena 2 – Encontro (Mulher está vestida ou se arrumando para um encontro) Mulher: Foi assim que o fim começou. O meu namorado da época tinha me convidado pra sair. Eu me arrumei. Fiquei horas na frente do espelho me achando feia, achando que ele não ia olhar pra mim. Dois meses de namoro. Parece pouco, né? Mas eu já me sentia dele. Sem nunca ter sido dele nem de ninguém, eu já me sentia assim. (pausa) Eu 1 Dramaturgo, escritor e psiquiatra.


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fui até a casa dele por uma rua escura. Pela mesma rua que eu sempre ia. Eu caminhava pensando nele e pensando se ele pensava em mim. Quando eu cheguei perto do portão, eu percebi que alguma coisa me seguia. Eu corri. O que me seguia correu também. Eu bati desesperada na porta da casa. O meu namorado abriu a porta. Ele me viu. E sorriu. O meu namorado sorriu pra mim. Então a coisa que me seguia gritou pra ele: “entra e fecha a porta se não queres morrer também”. E o meu namorado fechou. Eu escutei a chave girando. Eu também não queria morrer. A coisa que me seguia me arrastou pra um beco do lado da casa. A coisa que me seguia rasgou a minha roupa e me deu alguns tapas no rosto. Eu senti a cara inchando. Ele me disse: “vieste pra dar, né? Eu vim pra comer”. Eu nunca tinha sido de ninguém e eu fui dele, da coisa que me seguia. Eu fui, sem querer. Eu fui, obrigada, rasgada. Era como se a ponta de uma tesoura estivesse entrando em mim. E quando ele me deixou ali, jogada, eu não sabia nem quem era ele e nem quem eu era. Eu não era mais alguém. Eu não era mais eu. Naquele momento, eu era qualquer coisa. Cena 3 – Estupro Mulher (desesperada): Abre a porta! Abre a porta, porra! Ele tá aqui! Tem alguma coisa atrás de mim! Cuida de mim! Cuida de mim, porra! (pra alguém da plateia, implorando baixinho) Cuida de mim? Por favor! Tem alguém atrás de mim! Por favor!!! (Cena de estupro. Fim da cena é idêntica ao início da peça, com a mulher sentada abraçando os joelhos) Cena 4 – Namorado (Mulher se levanta se cobrindo com o que encontra pela frente e caminha lentamente até a porta da casa do namorado. Bate na porta) Mulher: Abre. Amor, abre. Eu to machucada. Abre, amor. Ele já foi embora. Tu não vais morrer. Eu não morri. Abre. Deixa eu entrar. Por favor. Abre. Por favor. (Mudança de tom e de interlocutor) Eu fiquei ali horas, esparramada na porta da casa dele. Como o jornal que ele recebia todos os dias. Horas ali. Horas sem saber quantas mil vezes eu pedi pra ele, pro meu namorado, “por favor, abre”.


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Cena 5 – Suja Mulher: Eu tinha ido visitar o meu namorado! Eu tinha me arrumado toda pra ele! Eu tinha colocado a minha melhor roupa! Ele falava que eu era a mulher mais bonita do mundo! Mas em cinco minutos tudo mudou. Ele não abria mais a porta. Ele não respondia quando eu implorava. Ele não queria me ver. Eu estava suja. Tu achas que eu estou suja? Eu to com cheiro da coisa que me seguia, eu sei. Eu to suada. A coisa que me seguia está escorrendo de mim. Eu precisava de um banho. De um colo dele. Do silêncio dele pertinho do meu. (Para uma pessoa da plateia) Não fala nada, tá? Só fica aqui. Quietinha do mesmo jeito que eu queria que ele estivesse comigo. Perto. Não me toca. Não precisa. Eu to suja (Pausa longa). Ele não podia ter feito isso comigo! O meu namorado não podia ter me abandonado! Cena 6 – Raiva

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Mulher: Canalha!!! Idiota!! Por que isso? Porque eu fui rasgada?! Porque eu to suja?! Eu ainda to aqui! Sai da porra dessa casa e vem me olhar! Sai da porra desse teu mundo perfeito e vem me ver! Eu fui arremessada pra dentro do espelho. Queres ver a vida de verdade? Olha pra mim. Eu sou quem eu era e eu sou outra. Covarde! (Pega uma tesoura) Ele me cortou. A coisa que me seguia me cortou. Ele me deitou no chão, rasgou a minha roupa, bateu em mim e me cortou. O corpo dele era uma tesoura. Era como se fosse uma tesoura. Eu senti uma tesoura me rompendo. Assim. Assim. (Pausa. Respira fundo. Sorri. Guarda a tesoura dentro de uma caixa. Embrulha a caixa com papel de presente) Cena 7 – Castração Mulher: Eu voltei pra minha casa e esperei quatro dias. Comprei uma roupa igual àquela que eu vestia naquela noite. Me maquiei igual. (Pega o embrulho de presente) Saí de casa do mesmo jeito, à mesma hora. Fui pelo mesmo caminho. Ninguém me seguia. Abri o portão e bati de leve na porta. “Quem é?” Foi a primeira vez que eu ouvi a voz dele depois daquele dia. A mesma voz de antes. “Sou eu”, eu disse, “eu senti a tua falta”. Ele ficou um tempo sem falar. Depois ele me disse, a porta ainda entre nós: “eu também”. (Pausa longa)


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Ele: Eu não sei se eu consigo. Mulher: Vamos colocar uma pedra sobre tudo isso. Fingir que não aconteceu nada. Ele: Eu não sei. Mulher: Tenta. Ele: Eu fui fraco. Mulher: Abre. Ele: Se eu abrir, tu me desculpas?

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Mulher (Mudança de interlocutor): Ele estava chorando. Eu ouvia ele chorando do outro lado da porta. Ele estava chorando como eu tinha chorado naquela noite. Eu trouxe um presente pra ti, eu disse. Abre a porta. E então ele abriu. Pro presente, ele abriu a porta… Essa era eu, eu disse pra ele. Essa era eu na semana passada. Foi assim que eu vim pra ti. Eu vim porque eu queria ser tua. Eu vim pro meu corpo abrir caminho pro teu. Eu vim cheia de certezas. Certeza de que tu cuidarias de mim. Certeza de que me ensinarias os caminhos do meu corpo. Certeza de que não me abandonarias. E hoje eu venho assim. Quinze anos mais velha nestes quatro dias que passaram. Olha pra mim. Eu disse que eu tinha um presente. Tá aqui (Estende o embrulho). Espera. Não abre ainda. Tira a roupa. Pode tirar. Eu já te vi nu. Tira. Isso. Agora abre. Eu abro pra ti. (Desembrulha e abre a caixa. Mostra a tesoura. Cena de castração do homem com a tesoura. Mulher segura um objeto que simbolize o pênis cortado do namorado) Cena 8 – Ironia Mulher: Eu não sei se alguém já passou por isto, mas os primeiros minutos depois de se cortar o pênis de alguém são meio confusos. Pros dois, eu acho. Ele ficou ali, berrando. O meu namorado, não o pênis. Então eu falei pra ele: “cada vez que olhares pra uma mulher, lembra o que tu me deixaste passar” (Mulher guarda o objeto que simboliza o pênis do namorado dentro da mesma caixa onde antes estava a tesoura). Ele nunca mais falou comigo. Eu nunca mais ouvi falar dele. (Mulher coloca a caixa em um lugar de destaque e a observa demoradamente)


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Cena 9 – Confissão

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Mulher (Para a caixa que contém o pênis): Sabe? Como todo mundo, eu nasci sem pedir, sem saber quem eu seria, sem saber em que família eu iria parar. Num mundo de homens, eu nasci mulher. Usei saia, brinquei com o batom da mãe, fui ensinada a me preservar, a não falar alto, a cruzar as pernas e a não andar sem camisa. Como todo mundo, eu segui sem saber para onde eu seguia e tomei decisões sem saber que eu estava decidindo alguma coisa. Eu disse alguns nãos sem saber que eu poderia ter dito sim. Eu não fiz muitas coisas pelo simples fato de não saber que eu poderia ter feito. E, como todo mundo, eu continuei seguindo. Como quase todo mundo eu andei em uma estrada clara, reta, calma, sem nada que me atrapalhasse até o dia em que eu fui atropelada pela vida. E de repente eu me vi aqui. No meio de uma história que eu não tinha escolhido. Eu fui cortada pela história. Eu nem sabia, mas a vida veio aqui e me cortou de dentro pra fora. O mundo inteiro me virou do avesso. Sem eu pedir. Sem eu querer. Sem eu saber porquê. Cena 10 – Mentiras Cotidianas Mulher: Eu não quero mais nenhum corpo encostando no meu, porra!!! Eu não quero mais essa dor de dar e ser rompida, de oferecer e ser consumida, essa dor de tentar sair de mim! Eu to bem assim. Eu to numa boa. Eu to feliz. (Mulher se senta na plateia, perto de alguém, cabisbaixa. Não fala nada. Não olha pra ninguém. Depois de um tempo assim apática, alheia, a Mulher, sem querer, encosta na pessoa da plateia. Com o toque, a Mulher explode) Não encosta em mim!!! Não me toca!!!! (se envergonha) Desculpa. Eu... Desculpa. (Levanta-se rapidamente e vai para um outro lugar. Aflição. Talvez música instrumental. Depois de algum tempo, a Mulher inicia uma conversa com uma tia imaginária) Cena 10 – Confissão Mulher: Tia, eu me fechei. Eu não sei o que aconteceu comigo. Eu to com raiva de tudo. O mundo me fez mal e eu fiz mal pro mundo, tia. Eu


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achei que a gente tava quites. O mundo e eu. E eu achei que eu ficaria bem. Eu juro que achei. Eu pedi proteção e ele negou. Eu pedi carinho e ele não abriu a porta. Eu pedi compreensão e ele não teve. Eu fui à guerra. Eu matei e eu morri. E agora eu estou aqui, tia. Sozinha. Só eu e a tia. Só nós duas. Fala comigo. (pausa. Mulher se aproxima de alguém da plateia): Sabe o que a tia me disse? Ela me disse que eu precisava conseguir viver apesar daquilo tudo. Ela me disse: “usa a tua raiva pra perdoar. Usa a tua dor pra te abrir. Usa o teu medo pra conseguir sair. Usa a tua vida. Ela é tua. Não deixa ninguém a usar no teu lugar. Vai”. E eu tentei ir. (Cena recortada de diversas tentativas de abordar alguém sem sucesso. Pode falar para alguém imaginário “ei...” e desistir, depois para outra pessoa “eu queria saber se...” e desistir, depois só fazer menção de ir e desistir, etc...)

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Cena 11 – Primeira Vez Mulher (Depois das diversas tentativas de aproximação da cena anterior, a Mulher se resigna): Como é que a gente faz quando a gente não sabe? Quando a gente imagina que vai doer, que o cara pode ser igual à coisa que me seguia? Como é que a gente faz pra apagar a luz sem ter medo? Eu tentei. Muito. Eu tentei tocar e tentei ser tocada. Eu tentei com algumas pessoas. Eu chorei muitas vezes por não ter conseguido... Então eu reencontrei um homem. Um amigo de infância, de quando a gente tinha cinco ou seis anos. Franzino. Tímido de ficar vermelho com um aperto de mão. Eu o convidei pra entrar. E ele entrou. Olhou a sala. Eu disse: “senta”. “onde?”. “onde tu quiseres. Fica à vontade”. Ele sentou e eu fiquei em pé. “tás com medo?”. “não. É que eu sou meio sem jeito”. “não mais sem jeito do que eu”. Acho que ele gostou do que eu disse. Ele sorriu. Ele: “por que é que me convidaste?” Mulher: “pra tu me ensinares”. Ele: “como é que eu vou te ensinar se nem eu sei?” Mulher: “então a gente aprende juntos” Mulher: Daí ele olhou praquele lado e viu o embrulho.


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Ele: “o que é isso?” Mulher (Indo até o embrulho e disfarçando): “isso? Nada, não” Ele: “parece um presente. Ganhaste de alguém?” Mulher: “Não, eu...” Ele: “de outro homem?” Mulher: “deixa pra lá, vem aqui...”

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Mulher: Ele não sabia, nem eu. Eu tinha sonhado perder daquele jeito. Perder por querer. Decidir perder. Tem gente que perde com o homem da vida. Tem gente que perde com a mulher que ama. Tem gente que perde com o primeiro que vê. Tem gente que perde bêbada. Tem gente que custa pra perder. Tem gente que perde na primeira noite. Tem gente que demora mais de dois anos. Tem gente que perde e nem sente. Tem gente que perde e chora. Tem gente que perde e se arrepende. Tem gente que quase perde e desiste. Tem gente que implora pra perder. E tem gente, como eu, que perde duas vezes. Mas é só esta, a segunda, que conta pra mim. A minha segunda foi a minha primeira. A minha segunda foi aquela que eu quis. Cena 12 – Amor Mulher (Para o Homem que ama – representado por alguma roupa masculina ou outra coisa): Fica. Só mais um pouco. Fica comigo. Te atrasa um pouco. Tu fazes mais falta pra mim que pro teu trabalho. Me amas? Eu também. Muito. Lógico! Caso. Quando? Três. Três filhos. (Enquanto a Mulher fala, ela segura a roupa masculina como se fosse o namorado. Aos poucos ela vai soltando a roupa, como se o homem estivesse indo embora). Não vai. Fica aqui. Mora comigo. Tá tão bom. A gente tá se curtindo tanto. Fica mais um pouco. (Mulher solta a roupa) Cena 13 – Separação Mulher (Para o púbico): Mas ele se foi. (Referência à cena 4) Eu não pedi: “Volta. Amor, volta. Eu to te implorando. Volta, amor. Não vai embora. Tu não podes ir. Eu não vou conseguir viver. Volta. Entra. Por


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favor. Volta. Por favor”. (Mudança de tom e de interlocutor) Eu não agi assim. Eu não fiquei ali horas, esparramada na porta da casa dele. Eu sofri. Eu chorei. Ele se foi mas eu fiquei. Eu já tinha sido rasgada demais pra eu me rasgar de novo. Outra Mulher (Falando para a Mulher): Chora!! Chora, porra!! Sofre!! Sofre, porra!!! Tu és mulher! Tu és sensível! Tu és frágil! Tu tens que ser o apoio do homem!! Sozinha tu não és nada!! Chora!! Sofre, porra!! Tu foste abandonada!! Tu foste traída!! Tu foste usada!! Tu foste comida!! Chora, porra!! Sofre!! Tu estás sozinha!! Tu precisas dele pra ter prazer!! Tu dás por obrigação!! Corre atrás dele!! Te ajoelha!! Implora!! Chora!! Chora no meu ombro! Chora no ombro da tua amiga! No ombro da tua sogra! No ombro da vida!! No ombro do mundo!! Chora!! Chora!! Chora, porra!! Chora, tu és mulher!

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Cena 14 – Encontros Mulher: Essa é a mulher que eu gostaria de ser. (pra pessoas da plateia) “Casa comigo? Trepa comigo? Eu não to te implorando. Eu não to te pedindo. É só um convite. Vem. É o meu corpo. Passa o final de semana lá em casa? Desculpa, hoje eu quero ficar sozinha. Eu não quero te ver. Eu não quero transar. Quando der, eu te ligo. Eu só quero ler um livro. Esse é o jeito que eu sou, que eu dou. Quando eu quiser. Como eu quiser. Isso eu não faço. Isso eu não gosto. Eu gosto quando tu fazes assim. Assim eu gozo. Eu gosto de meninas. Eu gosto de meninos. Eu gosto do que eu quiser gostar”. E eu poderia falar qualquer uma dessas coisas. Ser assim, do jeito que eu quisesse. Mas eu ainda não era. Quando eu tiver uma filha, ela vai poder ser qualquer uma delas. Ela vai poder ser qualquer mulher. Ela vai poder construir a história dela. Quando eu tiver uma filha, eu vou falar pra ela: Cena 15 – Filha Mulher: Meu amor, a tua mãe te quis assim: mulher. A tua mãe te quis forte como ela foi, mas sem as guerras que ela teve que travar. A tua mãe te quis leve como ela tentou ser, sem as asperezas todas que ela encontrou no caminho. A tua mãe te quis desejando e conquistando, sem todos os obstáculos que a fizeram desejar sem conquistar. A tua


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mãe te quis orgulhosa do teu corpo, do teu prazer, dos teus amores, sem vergonha de nada que existe em ti, sem vergonha do teu sexo, do teu trabalho, dos teus anseios. A tua mãe te quis nua de toda roupa que todos sempre a vestiram, sem medo dos teus desejos, sem medo da tua pele. A tua mãe te quis mulher. E te quis livre. Vai. Vai, minha filha. Vive o caminho que a tua mãe e tantas outras abriram pra ti. Vive o caminho que só tu vais poder viver. Cena 16 – Final

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Mulher: Eu sou a minha filha. Eu sou a filha delas. De todas aquelas que o mundo rasgou. Eu sou a filha de todas as putas e de todas as senhoras de engenho. Eu sou a filha das cortesãs mais finas e das madames mais bem-vestidas. Eu sou a filha das cozinheiras e das amas de leite. Eu sou a filha das enfermeiras e das mulheres que morreram de fome. Eu sou a filha das loucas e das freiras. Eu sou a filha das virgens e das libertinas. Eu sou a filha da adolescente que morreu no parto e a filha da anciã que resiste no asilo. Eu sou a filha da analfabeta e da doutora, da dona de casa e da operária, da empregada e da patroa, de Lilith e de Maria. Eu sou a filha da filha da filha de todas nós. A filha da filha da filha da filha. Eu sou a última e a primeira da fila. Eu sou aquela que nascerá no mundo que todas nós ajudaremos a construir. (Mulher pega a tesoura e corta um fio que prende a sua roupa. Mulher fica nua) FIM


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Pequeno Inventário de Impropriedades

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Max Reinert1

Peça escrita durante a Oficina Regular do Núcleo de Dramaturgia SESI Paraná, sob orientação de Roberto Alvim, no ano de 2010. Cena 01 (Homem sentado em uma cama. As pernas pendendo para fora. Movimenta-se pouco) Abro os olhos (pausa) Lentamente começo a acordar Minha perna escorrega suavemente para fora da cama (pausa) Primeiro uma (pausa) 1 Dramaturgo, diretor e ator da Téspis Cia. de Teatro.


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Depois a outra As panturrilhas pendem para fora do colchão - Mais um dia! - digo (pausa) Mais um dia Levanto. Vou ao banheiro. Escovo os dentes. Lavo a cara A água gelada me incomoda Não tomo café... Eu nunca tomo café Não fumo. Não tenho vícios Coloco uma cueca limpa. Me visto

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Desodorante. Perfume Me olho no espelho. Estou pronto Vou até a porta. Seguro a maçaneta fria Giro Abro a porta A claridade me incomoda Caminho (pausa) Caminho (pausa) Caminho... Ponto de ônibus - Poderia ter acontecido dentro do ônibus... - penso O ônibus chega Não tomo o ônibus Caminho


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Caminho... Chego a uma avenida Grande. Imensa. Ruidosa. Barulhenta Melhor não... Tomo o ônibus Sento em um dos bancos do fundo Durmo Quando abro os olhos vejo as pessoas olhando pra mim Fecho os olhos

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Minha perna escorrega para fora da cama. Depois a outra - Mais um dia! A água gelada me incomoda Eu nunca tomo café. Não tenho vícios Levanto A claridade me incomoda Caminho Chego à garagem. Ligo o carro. Ligo o rádio. Escuto as notícias Me informo do tempo Me informo da economia Sou um habitante economicamente ativo Leio o jornal. Pago minhas contas


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(Acelerando a fala gradativamente) Tenho uma alimentação baseada em uma dieta rica em vegetais, frutas e grãos. Como pouca gordura, colesterol e gordura saturada. Uso açúcar com moderação. Uso sal com moderação. Eu aprendi que para manter uma alimentação saudável não preciso largar as comidas e bebidas prediletas. Aprendi a balancear minha alimentação. Aprendi a acomodar meus alimentos preferidos e saborear as refeições enquanto promovo minha saúde. Aprendi que devo preferir alimentos como massas, arroz, grãos, pães, cereais; vegetais; frutas (Pausa) (Retorna com rapidez) laticínios com pouca gordura; carne magra, frango, peixe e legumes. Eu aprendi que essas comidas são a estrutura para uma dieta saudável. Não há alimento “bom” ou “ruim”. Minha dieta como um todo é que é importante. Não há alimento “bom” ou “ruim” (pausa)

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Não há “bom” ou “ruim” (pausa) Não há (pausa) Dirijo em direção ao trabalho. Ligo o rádio Sou um habitante economicamente ativo Sou capaz de limpar minha própria sujeira Sou capaz de não deixar pistas Sou capaz. Sou gentil. Sou educado Sou capaz. Sou gentil. Sou educado (pausa) Educado Chego ao trabalho. Cumprimento as pessoas. Sorrio Sou e – du – ca - do


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Sou popular. Sou querido pelos meus companheiros de trabalho Acredito no convívio pacífico Acho todos um bando de idiotas Uma mulher com cabelos vermelhos vem em minha direção Me cumprimenta. Me pergunta coisas Ela sorri. Eu sorrio. Nós (pausa) sorrimos Presto atenção em sua boca movendo-se perto de mim Não escuto o que ela fala

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Ela me pede algo. Eu não escuto Abro uma gaveta da minha mesa. Não há nada. Só uma faca Aprendi a balancear minha alimentação. Aprendi a acomodar meus alimentos preferidos e saborear as refeições enquanto promovo minha saúde Não há alimento “bom” ou “ruim” Carne magra, frango, peixe e legumes Não há alimento “bom” ou “ruim” A mulher de cabelos vermelhos continua falando Seu batom está borrado no canto da boca - Será que ela beijou alguém antes de vir falar comigo? - penso (grita) - A senhora não cala a boca nunca? (pausa) - penso A gaveta aberta e a mulher ali na minha frente A boca da mulher


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Os seus cabelos vermelhos Caindo sobre o pescoço Abro os olhos As panturrilhas pendem para fora do colchão Me olho no espelho Estou pronto Vou até a porta Caminho Caminho Caminho...

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Não tenho vícios Minha dieta como um todo é que é importante Eu aprendi Sou educado Eu sorrio - O dia está apenas começando... - penso - Mais um dia! - digo (pausa) Mais um dia Cena 02 (O mesmo homem sentado na cama, as pernas pendendo para fora. Usa uma cabeça de cavalo sobre a sua. Olha para os lados. Olha para o chão. Estica a perna para tocar o piso. Encosta a ponta dos dedos no chão. Encolhe rapidamente as pernas. Volta a sentar na beirada da cama)


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Cena 03 (O mesmo homem. Gesticula exageradamente) Acordei naquela manhã como em todas as outras manhãs da minha vida Nada indicava que aquele dia seria diferente de todos os outros A mesma preguiça As mesmas providências O mesmo café da manhã O mesmo beijo sem graça na mulher sem graça

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Uma vida de merda, para ser exato! Saí de casa atrasado, como de costume Peguei o ônibus, atrasado, como de costume Levava a vida no atraso, como de costume - A gente se acostuma com tudo diz uma frase que eu tinha ouvido em algum lugar Era verdade Eu havia acostumado com a minha vida, de merda, para ser exato

No ônibus a mesma incomodação de sempre Muita gente, gente demais Ônibus velho e lotado Gente suada, às 7 da manhã Gente dormindo e babando, às 7 da manhã


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Gente sem perspectiva, às 7 da manhã Gente como eu, com uma vida de merda, para ser exato Na saída do trabalho foi que aconteceu Eu passava por uma praça cheia de gente, não percebi que algo anormal estava acontecendo. Quando me dei conta vi um policial correndo na minha direção. Ele me olhava espantado. Não consegui entender o que acontecia. Ele gritou alguma coisa. Jogou-se em minha direção e eu consegui ver o exato momento em que uma bala de revólver acertou seu pescoço Seu corpo caiu sobre o meu. Na verdade, caímos juntos

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Eu não esperava por aquele peso sobre mim Mas ainda tive tempo de olhar em seus olhos e perceber um desbotamento ocorrendo Ele perdia a cor dos olhos, enquanto perdia a vida - Será que ele também tinha uma vida de merda como a minha? pensei Ouvi uma senhora gritar Achei que ela gritava por causa da morte do policial, mas não Levantei os olhos e vi dois homens correndo em minha direção Estavam armados Pensei em sair correndo Pensei em levantar e oferecer meu corpo em sacrifício Seria a chance de me livrar da vida de merda que levava E ainda sairia como um herói que morreu lutando contra bandidos


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para salvar a vida de uma senhora inocente Se é que ainda existe alguém inocente no mundo... Agi por reflexo Não foi um ato heroico Juntei a arma do policial que havia acabado de morrer por mim. Não pensei Apenas empunhei o revólver, apontei para os homens que eu não sabia quem eram e contrai o dedo indicador Uma... Duas...

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Três... Oito vezes A população em volta me olhava estarrecida Deixei o revólver cair e fiquei estático. Não sabia o que estava acontecendo Aos poucos, o mundo começou a se mover ao meu redor Alguns policiais vieram na minha direção. Fizeram milhares de perguntas As redes de televisão apareceram. Todos queriam falar comigo A senhora que estava próxima de mim chorava, me agradecia O mundo inteiro virou uma grande confusão Três horas depois fui levado pra casa Minha mulher, aflita e sem graça, me beijou com uma paixão que há muito tempo eu não via


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Meus filhos me olhavam incrédulos, com admiração Papai é um herói Depois de um tempo os vizinhos foram embora Meus filhos e minha mulher foram dormir Alguém avisou do trabalho que eu não precisava ir no dia seguinte. Meus chefes tinham visto o acontecido pela TV e me deram três dias de folga Eu? Eu não consegui dormir

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Fui para a sala e fiquei sentado no sofá Apenas um movimento do dedo indicador Uma pequena contração do dedo indicador E o mundo ficou cheio de possibilidades Cena 04 Puxas profundamente o ar pelo nariz Fazes força para que os pulmões continuem funcionando Uma sensação de completude te atinge no meio da tarde Não sentes medo. Nunca mais sentirás medo Nunca mais sentirás nada E assim eu fiquei


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Insensível Meu corpo parou de sentir tudo que acontecia ao redor dele Eu continuava vivo, mas não estava mais vivo Seguia caminhando. Seguia comendo. Seguia vomitando. Seguia falando Só não sentia Mas não me compreendam mal: eu ainda tinha o tato Eu ainda tinha visão e audição Ainda tinha a capacidade de distinguir os gostos e os cheiros Só não sentia

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Dessa forma, não senti quando minha mulher cortou os pulsos Não senti o corte e não senti falta dela Logo adiante encontrei outra namorada que, caso eu sentisse algo, diria que era até mais macia que minha mulher A namorada de número 02 - vamos chamá-las assim para facilitar a compreensão – A namorada de número 02 também se matou Gás E eu, nada Nem uma tosse sequer A número 03, décimo quinto andar do prédio Não senti o impacto Número 04, overdose


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E assim poderíamos seguir por um bom tempo aqui contando Meu pequeno inventário de suicídios amorosos Se eu tivesse capacidade de sentir algo poderia pensar que era eu quem estava causando todos aqueles suicídios ao meu redor Depois de um tempo, poderia começar a perceber também que algumas pessoas que eu conhecia estavam cometendo crimes: Meu chefe número 01 - espero que já tenham entendido a numeração – Meu chefe número 01 matou sua secretária O chefe número 02 pôs fogo no prédio

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O número 03 estuprou a secretária 02 O 04 cometeu outro suicídio amoroso O 05 adentrou a sala portando dois fuzis Ficou durante horas falando coisas que eu não entendi e nem fiz questão de entender Depois homens vestidos de preto entraram pela mesma porta e metralharam ele Eu não senti Nada Estes mesmos homens me levaram até uma ambulância e disseram que eu estava em estado de choque Eles disseram isso. Eu não Mas achei que era uma boa resposta para todas aquelas mudanças de rostos ao meu redor Era isso


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Durante toda a minha vida eu estive em estado de choque Eu não era insensível Eu estava em estado de choque Insensível? Estado de choque Então eles me trataram Me deixaram descansar Por muito tempo. Me deram pílulas Me faziam conversar, mesmo contra minha vontade

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Perguntaram sobre meus pais, sobre minha família, sobre minhas namoradas Outras pílulas Outras conversas Outras tantas perguntas. Outras famílias, outros pais, outras namoradas. O meu chefe Falavam sobre tudo Como eu dava todas as respostas que eles gostavam de ouvir e tomava todos os remédios que eles me davam, decidiram que eu era saudável Meu jeito calado era um sintoma pós-traumático Se eu sentisse algo, teria me dado conta de que eu devo ter sofrido um trauma bem novinho Se bem que isso...


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Vol. 6 N° 1 (2017)

não é verdade Às vezes, quando estou dormindo, eu sonho Eu sonho que um homem está segurando minha cabeça dentro de um vaso sanitário Sua mão segura minha nuca e ele segue me afogando. Com força No sonho, os dedos dele seguram a raiz dos meus cabelos Eu me debato. Mas ele é mais forte do que eu Eu o ouço falando coisas que não consigo decifrar E quando estou quase morrendo ele me solta

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Eu respiro aliviado Olho para os lados mas ele não está mais lá Cena 05 (Durante o texto abaixo, o homem pega um balde com água e enfia a cabeça dentro. Com a própria mão segura a cabeça dentro do balde. Debate-se. Ao fundo, cavalos passam correndo. Suando, como no jóquei) Voz feminina em Off: Inspire profundamente Responda com honestidade Expire tranquilamente Mesmo que alguma coisa lhe pareça inadequada responda profundamente


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Nunca pare de respirar Inspire Expire Inspire Expire Adormece facilmente quando vai para a cama? Costuma brincar com os dedos quando está sentado ou deitado? Suspeita que há de pagar um preço pelos prazeres que tem na vida? Alguma vez desejou que a sua consciência o deixasse em paz? Pensa que não merece o afeto das outras pessoas?

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Sente uma grande necessidade de confessar coisas que fez após ter feito? Pensa, algumas vezes, que precisa de um tranquilizante para se acalmar? Sente-se, por vezes, desgostoso por causa dos seus desejos ou fantasias sexuais? Pensa, por vezes, que desapontou os seus pais com a vida que levou? Pensa com frequência que é um perdedor? Quando se olha ao espelho fica contente com o que vê? Suspeita que as pessoas não o olhariam mais se alguma vez descobrissem o seu «verdadeiro eu»? A sua pele é muito sensível e macia? Já alguma vez se interrogou sobre se alguém daria pela sua ausência caso desaparecesse da face da Terra? Sente-se, muitas vezes, infeliz quando acorda de manhã? Pensa que tem uma vida útil e que de alguma forma contribuiu com algo de positivo para o Mundo?


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Responda com honestidade

(Retira a cabeça de dentro do balde. Inspira profundamente) Existe no Mundo pelo menos uma pessoa que realmente o ame? Expire Existe pelo menos uma pessoa que o ame? Expire Existe alguém que o ame?

276 Expire Existe?

(Enfia a cabeça dentro balde novamente) Inspire

(Pausa) Expire

(Pausa) Inspire


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(Pausa) Expire

(Pausa) Inspire

(Pausa) Expire

(Pausa. Para de se debater com a cabeça dentro do balde.)

277 Alguma vez pensou seriamente em se suicidar?

(Pausa. Retira cabeça de dentro do balde. Inspira profundamente. Tosse) Cena 06 (Deitando-se na cama) Vem... deixa eu por minha cabeça no teu colo... fecha meus olhos, não pensa em nada... deixa que a tua mão, passando pelos meus cabelos, leve embora todos os pensamentos ruins... e os bons também... deixe que a vida comece do zero...


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apenas sinta... sou eu... e é você... só... sós... nem mais, nem menos... duas pessoas... só... sós... sem passado...

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depois você levanta e nos apresentamos novamente... as primeiras conversas despretensiosas... o primeiro olhar... o primeiro sorriso... o primeiro toque de pele... a primeira vontade de beijar e ser beijado... tudo de novo, como se fosse a primeira vez... eu e você... só... sós... e então construiremos nossos primeiros segredos... e eu passarei pela primeira vez a tua mão no meu cenho franzido... e dormiremos pela primeira vez juntos... e eu vou segurar a tua mão perto do teu peito...


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e vou brincar com teu mamilo... e vou beijar tua nuca... e eu vou te trazer paz... e você vai me devolver a minha paz... só... sós... e cantaremos juntos... e comeremos morangos... e seremos novamente crianças... só...

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sós...

(Quando finalmente consegue deitar na cama, percebe suas roupas sujas de sangue. Black out) Cena 07 (No escuro, um telefone toca, insistentemente.) Sórdido! Canalha! Filho da puta, corno, desgraçado!!! Imbecil, idiota, grosso, mal amado, filho da puta! Sujo, hipócrita, anão! Viado, podre, filho da puta Animal, verme, filho da puta Filho da puta


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Filho da puta Filho da puta Cena 08 (Homem entra. O telefone segue tocando, insistentemente. O homem pede silêncio. O telefone para) Toda as vezes em que abro os olhos imagino acidentes Mortes Coisas sangrentas Desastres Falta de ar Catástrofes Misérias Torturas

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dor Um flash e vejo uma pessoa voando por uma janela Um piscar de olhos e alguém está arrancando o coração de outro alguém Uma bala perdida Uma faca nas mãos Um negro fudido Uma bicha espancada Alguém empurra alguém de uma escada Alguém mata alguém em algum canto escuro da cidade Alguém confunde alguém com um torturador/estuprador/assassino Alguém sonha, em algum lugar, com alguma coisa Alguma coisa que o ajude a se libertar da realidade Alguma coisa que o ajude a se libertar da dor que sente Alguma coisa Alguma dor


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Alguém Não basta morrer e conter a dor para si É necessário que a dor seja propagada Transmitida Disseminada Contagiada Epidemizada Hereditariezada A democratização dos pecados A socialização das penas

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Nos igualaremos todos através da dor Caminhamos todos para o mesmo lugar Caminhamos todos para o fim O mesmo fim Cena 09 (Homem sentado na cama, as pernas pendendo para fora. Usa uma cabeça de cavalo sobre a sua. Olha para os lados. Olha para o chão. Estica a perna para tocar o piso. Encosta a ponta dos dedos no chão. Encolhe rapidamente as pernas. Volta a sentar na beirada da cama. Ao fundo, cavalos passam correndo. Suando. Lentamente o homem retira a cabeça de cavalo. Inspira profundamente.)

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