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Opinião | Camilo Soares

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A política no Coringa (2):O Homem esquecido no deserto dos tempos Por Camilo Soares

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Tais leituras implícitas ao Coringa leva o colunista da CNN Jeff Yang a afirmar que o filme é uma parábola política de nosso tempo, ao retratar o homem branco ressentido que forma a base eleitoral de Donald Trump (o que é inelutavelmente condizente aos demais líderes da extrema direita mundial, como Jair Bolsonaro). Para Yang, “Coringa, em sua essência, é a história do ‘homem esquecido’, o homem branco metafórico, desalojado e desprovido de privilégios […] cujo status foi reduzido. Um homem que foi esmagado pela elite, acuado por feministas que exigem igualdade e equiparados a massas não-brancas e a imigrantes ascendentes.” O termo é antigo, fez-se ouvir já depois da vitória de Nixon, em 1968, quando Peter Schrag (escritor judeu que chegou aos 10 anos nos EUA, fugindo da Alemanha nazista) falou dos “Forgotten Americans” como a principal razão do resultado das urnas: o eleitor branco da classe trabalhadora, outrora “herói dos livros cívicos […], os ossos e tendões do país. Agora ele é ‘o homem esquecido’, talvez a pessoa mais alienada da América.”

Não à toa, como remarca Yang, Arthur Fleck, antes e depois de virar o Coringa, interage em seu dia a dia sobretudo com pessoas negras (a assistente social, a mulher com a criança no ônibus, a vizinha mãe-solteira com quem ele fantasia um romance, o atendente que nega entregar os arquivos sobre sua mãe no hospital psiquiátrico). Ele próprio vive com a mãe inválida em um prédio arruinado, típico de bairros negros de grandes cidades como Nova York (a já mítica cena da escadaria foi filmada no Bronx). Como homem branco, ele não vive como eles, mas, vivendo entre eles, começa a sentir a violência de ser também um excluído, de sentir a opressão de uma situação em que ele é condicionado a sofrer, a sentir um sistema montado para o massacrar.

Para justificar sua visão de que Coringa não é político, o diretor Josias Teófilo cita Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976), que para ele só será lembrado por suas qualidades estéticas, apesar de ter também gerado tamanha polêmica, sobretudo com a tentativa de assassinato de Ronald Reagan por um homem obcecado pela atriz Jodie Foster (que interpretou uma prostituta de 12 anos na obra). Além do filme retratar mais um caso de violência por posse de armas de fogo (e uma tentativa frustrada de atentado a um político), carrega em sua estética elementos nada neutros em relação a sua mensagem. Paul Schrader (2003: 232), roteirista do filme, lembra que, como os filmes noir refletiam a desilusão e o pessimismo da Segunda Grande Guerra, filmes como Taxi Driver, que ele chamava de neonoir, foram uma reação à Guerra do Vietnã. Travis Bickle (Robert De Niro) é um veterano bruscamente posto na reserva que encontra um emprego noturno por não conseguir dormir. Atravessa a noite de Nova York dos anos 1970 num táxi, deparando-se com a decadência social e moral de uma sociedade doente. A impotência desse macho derrotado (na guerra, na sociedade) em lidar com sua própria vida (dormir, ter uma casa decente, relacionar-se com alguém, etc.) o leva a projetar-se difusamente na sociedade como um herói que ele nunca será. A paleta de cor escarlate do filme, impressa pelo diretor de fotografia Michael Chapman, nos prepara para o banho de sangue que seguirá. Os jump-cuts e a câmera que deixa aqui e ali o personagem no meio de uma cena sugere a desconexão do personagem com o mundo ao redor, como quando ele liga para Betsy (Cybill Shepherd) depois de um encontro desastroso.

Vale lembrar que um dos primeiros atos do próprio Ronald Reagan foi desmontar a Lei dos Sistemas de Saúde Mental (MHSA), em 1981, que dava subsídios aos centros comunitários de saúde mental. Isso depois de, meses antes, ter sofrido o tal atentado com rifle calibre 22, feito por um tal John Hinckley Jr. que queria chamar atenção da atriz Jodie Foster depois de ver o filme pelo menos por 15 vezes. Ele seria considerado não culpado por insanidade mental. No cinema, o desajuste de Travis também vai encontrar expressão quando um amigo pergunta por que ele não porta uma arma para sua proteção. Essa não é a úni-

ca citação de Joker à obra prima de Scorsese (sem contar com a atuação do próprio De Niro em ambos filmes). Ainda há o famoso gesto niilista no final do tiroteiro quando a mão de Travis imita uma arma que ele aponta para a própria cabeça e atira; a cena será repetida pela vizinha de Arthur Fleck, que refaz o gesto ao brincar sobre a situação do prédio onde moram. Muganga, porém, atualmente indigesta no Brasil, sobretudo depois que fazer arminha com a mão se tornou bandeira política, de “homens esquecidos” que tiraram do armário discursos misóginos, racistas e homofóbicos, provocando uma crise de valores éticos e morais alimentada pela desinformação nas redes sociais. Nisso o Coringa tem razão: “É impressão minha, ou as coisas estão ficando muito loucas lá fora?”

Para justificar sua afirmação, Teófilo cita o montador e professor Eduardo Escorel, que escreveu dois artigos intrigantes sobre cinema político em 2017 para a revista Piauí, nos quais ele coloca uma questão primordial: Estaremos à altura do nosso tempo? Ou seja: “nós – cineastas, produtores e demais integrantes da comunidade cinematográfica – temos capacidade de interagir com o público através de filmes que reflitam a gravidade da crise que o país atravessa?” Ele falava sobretudo da crise atravessada em 2013 no Brasil, que culminaria no impeachment de Dilma Rousseff. Apesar dele fazer um decálogo de como deveria ser um filme para ter o selo de político, ele é enfático de que o cinema brasileiro não o é pois não tem apelo popular. Na época, parece que estava respondendo ao filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, que, junto à equipe, levantou a bandeira política durante o Festival de Cannes de 2016 ao chamar publicamente de golpe o processo contra Rousseff. Porém, parece que Escorel esqueceu de olhar para o filme e a julgar seu valor político em relação a sua estética e narrativa. Curiosamente, foi o que ele fez recentemente em relação a Bacurau (novo filme de Mendonça, co-dirigido por Juliano Dornelles), quando, diante de seu fenômeno de bilheteria (de se manter nas top 10 bilheterias do Brasil durante nove semanas, rompendo a marca dos 700 mil espectadores), voltou enfim a analisar os valores narrativos, estéticos e éticos do filme. E ele tem todo o direito de discordar deles, mas invalidar tais valores por questões mercadológicas é bastante criticável. Mesmo porque a política não está apenas nas massas, sobretudo quando se fala de arte. O problema é que Escorel desdenhou a sutilidade das micropolíticas, através das quais questões fundamentais podem ser confrontadas por indivíduos, que as amplificam em suas vivências. Foucault já afirmava que resistências decorrem sobretudo de enfrentamentos de práticas sujeitadas diante das técnicas hegemônicas intrínsecas aos componentes totalitários e individualizantes do poder derivados da razão de Estado (Foucault, 2003).

Arthur Fleck não é redimido no filme Coringa. Sua violência não é justificada. A diferença é que ele não é um monstro a priori, mas se torna um assassino sanguinário e impiedoso. Seu devir não justifica, mas desmascara (entre tantos mascarados revoltados) a crueldade física e moral de um sistema. Atacado pelo Estado, por delinquentes, pelos colegas de trabalho, por jovens yuppies de Wall Street, por seu ídolo apresentador da tv, que o chama apenas para rir de seu desencaixe social. Ele é o fantasma, a ansiedade e a perturbação de quem é oprimido por uma normalidade forçada que indica o que é bom, saudável, engraçado e digno para um homem de bem, que lhe fecha as portas, atropela-o nas faixas de pedestre, desdenha-o cotidianamente. Ele é o retrato da frustração e da intolerância, que podem fabricar mitos e líderes artificias, além de muita violência.

Felizmente, o Coringa é apenas um vilão de cinema. Mas talvez precisamos dessas projeções para entender que o cinema sempre reflete de alguma maneira a sociedade na qual ele está inserido. Como um bom filme, Coringa é uma obra que perturba. Destitui algumas verdades perfeitas, remexe convicções, retira o chão dos habituados com algo que até então lhe pareciam evidente. Não à toa, a China não deve liberar a exibição do filme em seus cinemas depois das revoltas em Hong Kong. Tentar remeter a estética de uma obra a questões puramente técnicas é sinal de quem teme sua natureza livre e incontrolável.

Camilo Soares é Professor de Cinema da UFPE, fotógrafo e doutor pela Université Paris 1 PanthéonSorbonne