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Opinião | Antônio Jucá

JORNALISMO E CIDADANIA | 14 Opinião

Velhos E Novos Carnavais: Moralidade E Democracia Por Rubens Pinto Lyra

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Os velhos carnavais persis- tiram com todo o seu gla- m o u r e m J o ã o P e s s o a a t é o final da década de sessenta: desfi- l e d e b l o c o s e d e f o l i õ e s n a L a g o a ( o c o r s o ) ; b a i l e s a n i m a d í s s i m o s n o s clubes, especialmente os da elite pes- soense, Astreia e Cabo Branco. Vi- v i a - s e e m u m a é p o c a o n d e p r e v a l e c i a a m o r a l t r a d i c i o n a l . N o P i o X e n a s L o u r d i n a s , c o l é g i o s r e l i g i o s o s d o s m a i s r e m e d i a d o s , r e z a v a - s e t o d o s o s dias. Esta moral inspirava-se no Ca- t e c i s m o d a D o u t r i n a C r i s t ã , d e 1 9 5 1 , p r e s c r i t o p e l o P a p a P i o X , e m 1 9 5 3 , p a r a u s o d a j u v e n t u d e . N e l e , e s t á d i t o que merece-se o inferno (o sofrimen- t o , p o r t o d a a e t e r n i d a d e ) a i n d a q u e seja por um só pecado mortal. Nesse contexto, os carnavais propi- c i a v a m à j u v e n t u d e u m a v á l v u l a d e escape, ainda que limitada, da rigi- d e z m o r a l d o m i n a n t e . N e l e s s e p o d i a d e s f r u t a r d e m o m e n t o s e s p e c i a i s d e p r a z e r , p e l o q u e t ê m d e c o n t a g i a n t e a sua música e seu charme. E, sobre- t u d o , p o r e n s e j a r e m m a i s l i b e r d a d e para a aproximação com o sexo opos- to, driblando-se, em meio aos confe- t e s , s e r p e n t i n a s e l a n ç a - p e r f u m e s , a rigorosa vigilância dos pais.

Con- tudo, nessa época de ouro dos carnavais de clube, a ampliação dos es- p a ç o s d e l i b e r d a d e t i n h a l i m i t e n o c a r á t e r f a m i l i a r , e d e c l a s s e , d e s s e s c a r n a v a i s . P a i s , f i l h o s e n a m o r a d o s , m e s m o d e m a i o r i d a d e , i a m “ b r i n c a r ” juntos, sob a vigilância dos primei- ros. Muitas vezes, o faziam nas pró- prias casas dos foliões, que eram vi- s i t a d a s p o r a n i m a d o s b l o c o s , c o m o o inesquecível Camisa Listrada. De- vemos sublinhar o elo entre essa mo- r a l r í g i d a e o c a r á t e r p r é - c a p i t a l i s t a da economia vigente à época, espe- cialmente em regiões como o Nordes- t e , a i n d a n ã o t o t a l m e n t e i n s e r i d a n o mercado. Por exemplo, alguns clien- t e s d o e s t a b e l e c i m e n t o c o m e r c i a l d e m e u p a i , o S t u d i o L y r a , n ã o p a g a v a m p e l o s s e u s s e r v i ç o s f o t o g r á f i c o s , o u p e l o s s e u s t r a b a l h o s a r t í s t i c o s , c o m o a p i n t u r a d e s u a s e s p o s a s , i l u s t r e s damas da sociedade. Em contrapart i d a , e l e t a m b é m f a z i a o m e s m o , e m relação, sobretudo, a médicos da fa- mília. D e s t a r t e , fica evidenciado que a moral que ci- mentava os laços familiares não po- deria também deixar de estar pre- s e n t e n a s m a n i f e s t a ç õ e s c u l t u r a i s , c o m o o C a r n a v a l . D a m e s m a f o r m a , a modernização capitalista acarreta- r i a m u d a n ç a s n o s c o n c e i t o s m o r a i s vigentes. Com efeito, já no remo- t o a n o d e 1 8 4 8 , M a r x a p o n t a v a p a r a mudanças que ocorriam nesse âmbi- to, destacando que “a burguesia arrancou da relação familiar o seu co- m o v e n t e v é u s e n t i m e n t a l e r e d u z i u - a u m a s i m p l e s r e l a ç ã o d e d i n h e i r o.” M o d e r n a m e n t e , a t é carnavais de rua expressam, em blo- c o s f e c h a d o s , a s e p a r a ç ã o , p o r f o r ç a d o d i n h e i r o , e n t r e c l a s s e s . E n ã o s ó carnavais, mas diversos outros entre- t e n i m e n t o s , c o m o o B i g B r o t h e r , c u j o trama tem como único móvel polpu- d a r e c o m p e n s a f i n a n c e i r a , i l u s t r a m exemplarmente essa redução das re- l a ç õ e s h u m a n a s “ a o v i l m e t a l ”. Vê - s e q u e a s t r a n s f o r m a ç õ e s n a e c o n o m i a repercutem diretamente no conte- ú d o é t i c o d a s r e l a ç õ e s s o c i a i s e n a p r á x i s q u e a s c o n c r e t i z a , t o r n a n d o p r e p o n d e r a n t e o i n d i v i d u a l i s m o , o c o n s u m i s m o e a b u s c a o s t e n s i v a d e status e de riqueza, estimulada, in- clusive, por influentes confissões re- l i g i o s a s , c o m o a s i g r e j a s e v a n g é l i c a s . Mas a modernidade capitalista, pro- d u z , c o n t r a d i t o r i a m e n t e , c o n d i ç õ e s

p a r a u m s a l t o q u a l i t a t i v o n o c a m p o d a m o r a l , q u e b r a n d o a r i g i d e z d o s c o s t u m e s n o s c a r n a v a i s , e c o m e l a , o s e u r e d u t o , o s c l u b e s s o c i a i s . E s t e s são substituídos pelos de rua, sen- do os mais tradicionais os de Olin- d a e S a l v a d o r e o s m a i s r e c e n t e s , o s d e S ã o P a u l o e B e l o H o r i z o n t e , c a d a v e z m a i s i m p e s s o a i s e m a s s i f i c a d o s . Consoante famoso trecho da mais po- pular obra de Marx, o Manifesto Co- m u n i s t a , s o b a é g i d e d o c a p i t a l “ t u d o q u e é s ó l i d o s e d i s s o l v e n o a r e t u d o q u e é s a g r a d o é p r o f a n a d o ”. P o r é m , n e n h u m a h e g e m o n i a , n e m m e s m o a do Capital, é absoluta. Atualmen- t e , f l o r e s c e m , e m m u i t o s c a r n a v a i s , práticas e valores que não se mol- d a m p o r f o r m a s d e r e l a c i o n a m e n t o ditadas pelo mercado, prenuncian- d o o a d v e n t o d e u m a s o c i e d a d e m a i s s o l i d á r i a q u e p o d e r á , m a i s a d i a n t e , s u b s t i t u i r a s h o d i e r n a s , g o v e r n a d a s pelo dinheiro. Nas cidades supra- m e n c i o n a d a s , r e v i g o r a m - s e a n t i g o s f e s t e j o s d e M o m o , p o r é m e s c o i m a d o s d o m o r a l i s m o q u e o s c a r a c t e r i z a v a m . Neles se resgatam relações mais li- vres e afetos mais verdadeiros, en- s e j a n d o , s o b r e t u d o n o s c a r n a v a i s d e b a i r r o , q u e o s f o l i õ e s s e d i v i r t a m e s e c o n f r a t e r n i z e m , s e m o t a c ã o d a moralidade repressiva nem dos va- l o r e s d o m e r c a d o . S ã o e s p a ç o s o n d e o e x e r c í c i o d a a u t o n o m i a i n d i v i d u a l s e c o m b i n a c o m r e l a ç õ e s e s p o n t â n e a s d e a m i z a d e , e t a m b é m a m o r o s a s , n ã o l i m i t a d a s a p e n a s à b u s c a d o p r a z e r . Mas há exemplos de recentes carna- vais onde os valores contra-hegemô- n i c o s v ã o a l é m : a l c a n ç a m d i m e n s ã o s o c i a l e p o l í t i c a , t r a n s f o r m a n d o - s e em palco de denúncias contra in- j u s t i ç a s e c o b r a n d o a s u a r e p a r a ç ã o . D e s d e a e s c r a v a t u r a , o s s e n h o r e s d e e s c r a v o s s e m p r e p r o c u r a r a m c o l o c a r l i m i t e s a e s s a f e s t a p o p u l a r . G i l e Caetano compreenderam plenamen- te a sua dimensão libertária ao exal- t a r , e m u m a d a s s u a s c o m p o s i ç õ e s , “ o s a m b a , p a i d o p r a z e r , f i l h o d a d o r , o g r a n d e p o d e r t r a n s f o r m a d o r ”. D i s s o é e x e m p l o o s a m b a e n r e d o d a Mangueira, campeã do carnaval ca- rioca de 2019. Prestando comoven- t e h o m e n a g e m a M a r i e l l e , s u a l e t r a lembra que “tem sangue retinto pi- s a d o a t r á s d o r e t r a t o e m o l d u r a d o ”. E s c o l h e n d o c o m o t e m a d e s e u d e s f i l e a denúncia dos falsos heróis da na- c i o n a l i d a d e , e x a l t a d o s n a l i t e r a t u r a oficial e na maioria dos livros di- d á t i c o s , a M a n g u e i r a p r o p i c i o u u m a magnífica demonstração de contra- -hegemonia traduzida na íntima rela- ção entre protesto, carnaval e demo- c r a c i a . E s t e a n o , a M a n g u e i r a t r a r á , n o v a m e n t e , p a r a a a v e n i d a u m r e f r ã o d e f o r t e c r í t i c a p o l í t i c a : “ N ã o e x i s t e M e s s i a s d e a r m a n a m ã o”. Carnavais, especialmente em mo- m e n t o s d e c r i s e , e n s e j a m p r o t e s t o s que se assemelham a atos de desobe- d i ê n c i a c i v i l , d e i n s u b o r d i n a ç ã o e d e resistência. Quanto maior o descom- p a s s o e n t r e l í d e r e s i n s t i t u c i o n a i s e o s a n s e i o s d o h o m e m c o m u m , m a i s o s c i d a d ã o s - n o c a s o , o s f o l i õ e s e s e u s b l o c o s - e n c o n t r a m n o s f e s t e j o s p o p u l a r e s e s p a ç o p a r a o e x e r c í c i o d a liberdade de crítica, sem a censu- r a d o s g o v e r n a n t e s a u t o r i t á r i o s e d e seus asseclas.

Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política e Professor Emérito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: rubelyra@uol. com.br

JORNALISMO E CIDADANIA | 16 Opinião

À luz das contradições Por Antônio Jucá C omeçando pelas motivações para escrever, tivemos a notícia de que vosso ministro (meu não é) declarou que as pessoas degradam a natureza para comer. Ouvi o mesmo argumento décadas atrás de um advogado famoso aqui no Recife, quando um sujeito foi preso por caçar um tamanduá numa reserva florestal próxima; do mesmo modo justificaram o horror. Contudo, fico também surpreso de ouvir de pessoas tão importantes argumentos tão chulos e envergonhado de saber disto, dito por um representante do país num encontro tão importante. Contudo, reflito, não deveria esperar muito de alguém que, na “brincadeira”, oferece o palácio da alvorada à venda.

Ocorre que um dos papeis do estado é de fomentar as ações coletivas de modo a regular, a criar opções ao tamanduá com a floresta em pé (bobagem apenas para os menos espertos), às depleções dos pequenos conectados aos grandes, que podem se tornar graves degradações, ou às destruições dilaceradoras dos tubarões de que não se fala... Eles não falam, não precisam, se divertem com o servilismo ministerial, afinal eles são o seu modelo.

Agora o mundo ficou bom, todo o mundo virou capitalista, temos o anarcocapitalista, disputando com o capitalismo de estado, em vias imperialistas, a comer pelas beiradas, e o proto-nazi-faci-capitalismo procurando um bote expiatório. Parece que estamos perdidos, nada parece responder bem e ainda mais estas renitentes mudanças climáticas, essa invenção científica que veio para atrapalhar o crescimento econômico e a geração de riquezas, “problema do primeiro mundo”, como colocou há alguns anos um diretor do IPEA em entrevista na televisão.

Quando argumentei que não se tratava de fazer opção sobre em que asa de imperialismo ficar, o meu amigo que escutava limpou sua catota no pano de meu sofá. -Mas rapaz!, pensei, ele viajou, mas deixa para lá. Contudo, isto me dá o gancho de insight, o que muitos já viram desde milênios, os antagonismos nos antagonismos. Isto para mim, não é uma idealização pós-hegeliana de explicação da história, onde as contradições se renovam, mas também mutam, mudam de natureza. Senão vejamos que o mundo do trabalho, suas relações e a distribuição dos frutos do trabalho se dão por uma composição de categorias de gênero, etnia, saberes e culturas (que tem definição numa conjunção de traços sociais comuns). A composição orgânica do capital continua tornando o capital trabalho mais ocioso, redundante, “quem precisa deles”, perguntava um professor inglês-indiano, nos anos 90 em Londres. Isto num mundo do mercado de troca de máquinas, máquinas pensantes, quando não máquinas desejantes, vivas, teleprogramadas a desejar.

Destaco, então, que neste caos de desastre anunciado, a cultura organizativa, o que pode se entender por civilização, bem-estar e estar bem. O que está em questão não é apenas produzir para criar uma civilização de consumidores de gadgets, como assinalou um amigo meu, o que ao final se mostra insustentável.

Então, vejo que essa pulha civilizatória é também uma no pensamento. O que aprendi da teoria da complexidade dos livros do Método e outros tantos é que a realidade é complicada, mas acessível, exigindo esforço de aprender e reaprender pois a coisa muda, o que valia pode não mais valer, ou não valer tanto e valer mais complementando, inclusive, com o oposto, com o que não se vê, com o olhar do outro, portanto, chama-se atenção do complementar, da complementaridade. É preciso lutar, concorrer, mais que concorrência... concorrência burra é um desastre para todos os concorrentes, a população de predadores depende da população de presas e vice-versa, existe mais sabedoria na organização viva em continuar viva do que na pretensão de domínio de qualquer predador. Ah! Mas alguns viverão, pode-se objetar. Sim, mas com que estar bem e bem-estar?

Portanto, tem uma luta por esclarecimento na peleja contra o obscurantismo, que é tanto interna - dentro da sala de aula, nos meios de comunicação, contra a manipulação interna -, quanto externa dos sistemas políticos que muitas vezes coíbem a corrupção do concor-

rente para corromper, fazendo calar a justiça, quando todos os totalitários, na oposição, clamam por liberdades burguesas. Só Canguillem para explicar a “normalidade” de alguns, mas Agamenon do Sertão matou esta charada: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Afinal, normalidade e anormalidade são compreensões, e justiça não é sistema jurídico-político, que parece tanto mais injusto quanto mais político. Outras de nossas dificuldades de discernimento.

Sistematizando, vai aí minha viagem de “pilotagem” de sistemas complexos (não lineares e sujeitos a múltiplos fatores previstos e imprevistos):

Como consideração final, coloca-se que estes princípios de pilotagem, de aprendizagem, podem servir a um exercício que exige nos colocarmos como partícipes e nos vermos na roda viva. Como a estreiteza analítica tem perna curta, o esforço por análises críticas e autoanálises autocríticas com tais princípios da complexidade, quiçá nos ajude a encontrar uma ética transformadora, no desafio de compreender e sair da pulha civilizatória.

Antonio Jucá é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ.