Revista Jaguatirica - Edição Piloto

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Direção Editorial Daniel Silva @danielrifferama Emanueli Dalsasso @emanuelidalsasso

Produção Executiva Emanueli Dalsasso @emanuelidalsasso

Edição Daniel Silva @danielrifferama

Projeto Gráfico Mari Danielski @maridski

Colaboradores Allende Renck @renckallende Amanda Bittencourt @amandala.rte Amanda Nicoleit @amandanicoleit Amanda Ramos @ramosamandda Ana Laura Diaz @ana_laura_diaz Camila Thomazini @camilaxthomazini Cleo Theodora @cleotheodora Elisa Imperial @imperioteca Jade Luckner @lukcner Joana Golin @selectagroove Júlia Matos @juliaamatoss_o Luíse Esquivel @luliesq Manuela d'Eça @manudfotografia Puroisland @puroisland Rafaella Piazza @rafaellapiazzag

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CarTA Da EditOrA Depois de um tempo trabalhando na área da cultura e da música, fui percebendo cada vez mais que a máxima “a gente não faz nada sozinho” faz todo sentido. Quando você é artista, mesmo independente, você vai vendo o leque de coisas que gira ao redor da sua carreira. Precisa de um produtor musical, músicos, fotógrafo, videomaker, produtor executivo, empresário, alguém pra dar um força nas mídias, faz site, faz contrato, cuida da burocracia, obras, fonograma, ISRC (sigla para Código de Gravação Padrão Internacional), aquela coisa toda. Com certeza muitos desses agentes estarão na mesma que você. É o seu amigo fotógrafo que também tá começando, é o seu amigo mais organizado que vira produtor, arruma tua vida, estuda sobre o mercado (e precisa estudar, hein). Mesmo que independente, a gente depende de muita gente pra fazer a carreira. Mas beleza, você fez lá teu trabalho lindo, tocou o coração de várias pessoas. Talvez para um certo público chegue organicamente, por meio dos shows e das redes sociais, mas dentro do universo da música ainda temos presente a importância da imprensa. No meio de uma criação de conteúdo imensa através das redes sociais e no meio de tanta produção, a imprensa ainda faz um papel fundamental de validação do trabalho dos artistas.

Mas a provocação veio daí. Santa Catarina definitivamente tem um leque gigante de artistas potentes, independente do gênero musical, independente da idade desses artistas, independente do tempo de carreira. É incontestável a diversidade no estado e quem trabalha com música sabe disso (pode ser pouco, mas sabe). Mas na mesma medida em que temos artistas espetaculares, temos uma imprensa que nem sempre contempla esses artistas. A cultura já quase não tem espaço de pauta e quando tem é sobre dentro da mesma heteronormatividade masculina, cis e branca. O famoso padrão mesmo. <continua>


Mas o que fazemos quando a validação da imprensa é tão importante para o trabalho do artista independente catarinense, mas a mesma não dá espaço? A gente cria a nossa própria mídia. Assim nasceu a Revista Jaguatirica. Um espaço de provocação, para mostrar de forma ampla o que está rolando no mundo da música de Santa Catarina. E vai além dos artistas, todos profissionais que trabalham diretamente ou indiretamente com música também estão presentes aqui. Assim como um artista independente precisa de vários agentes para fazer sua carreira acontecer, a revista precisou de cerca de 30 pessoas para acontecer. E cada uma dessas pessoas foi muito especial no processo. Foram muitos dias de trabalho, muitas horas com diversas equipes, muitos encontros e desencontros. E essa edição se chama Piloto por isso mesmo, a gente precisava ver como fazer isso, a gente também está aprendendo a ser uma mídia independente. Queremos que você olhe com mais carinho para a música catarinense, que leia mais sobre nossos artistas, que veja que aqui é território rico e diverso. Espero que possamos estar cada vez mais fortalecidos, porque na vida a gente não faz nada sozinho. <3 com carinho,

Emanueli Dalsasso Produtora cultural, @emanuelidalsasso


SuMaRiO Trançando Arte

08

Artistas Daqui

14

O Baile é Delas

16

Sol, Galinhas e Encruzilhadas

19

O Sistema de Animação de Toucinho

23

Por Trás da Canção de Ninar

34

Meu Lugar na Música

35

Manezinha por Escolha

38

Ouvisse?

52

Boa Relação = Boa Música

54

O Fortalecimento da Música Autoral no Oeste Catarinense

67

As Novas Caras da Música Chapecoense

68

(Des)conhecer na Vida e na Arte

70

O Trabalho (de Sísifo) na Cultura

80


Marissol


por Júlia Matos

estudante de Jornalismo UFSC, @juliaamatoss_o

“Quer saber, sei que me vês, e eu vejo você”. É com essas palavras que Marissol Mwaba encanta seu público no último single lançado, ainda em 2021, “Marte”. A música é regada pelo convite ao afeto e desejo por novos olhares para o mundo. Inspirada na amizade, a faixa foi lançada no dia de seu aniversário e celebra esse espaço criado dentro de nós para o carinho entre as pessoas. “Vou para Marte, e é uma viagem sem volta”, brinca ela em suas redes sociais. Apesar de almejar essa consideração mútua entre pessoas, seu caminho na indústria da música não é sempre de afeto, e ser vista, assim como canta em “Marte”, com suas habilidades e potencialidades nem sempre acontece. Mas não por culpa da arte, nunca dela. O maior desafio é estrutural. Marissol cresceu em uma família sonante. De Brasília para Santa Catarina, o sangue brasileiro e congolês — seus pais são naturais da República Democrática do Congo — permitiu que ela e seus irmãos crescessem com referências musicais africanas como panorama cultural, o que lhes possibilitou a criação de uma personalidade artística única. Mas a cantora não atribui sua construção pessoal apenas à infância ou suas raízes. Suas escolhas e sua “rede de apoio”, como descreveu seus amigos mais próximos, fazem parte de suas criações. “Esse encontro de todas essas coisas faz com que tudo o que faço tenha a minha cara. Tudo é fruto desses encontros de multiplicidades, de múltiplos lugares e existências. Isso resulta na maneira como sei me expressar.”, explica.


ANDANDO DE MÃOS DADAS

E que caminho bonito Marissol tem traçado, ou podemos dizer, trançado. Na composição de músicas autorais e interpretação de canções diversas, a cantora aposta em trabalhos conjuntos, com a participação de amigos e colaboração em obras de artistas já consolidados no cenário da música brasileira. Entre suas parcerias, podemos citar Emicida, com a participação de Marissol em seu álbum “AmarElo”, ganhador do Grammy Latino, Rincon Sapiência, Chico César, Fióti e François Muleka. E é através do espaço conquistado e o respeito construído por muitos desses artistas, que Marissol reafirma sua vontade de seguir. "Minha maior conquista musical são as pessoas que acredito e confio dizerem que acreditam e admiram o meu trabalho. Trabalhar com Chico César e saber que ele valoriza meu trabalho, Emicida dizer que aprende comigo, Fióti, François, Drika (Barbosa), Alegre (Corrêa). Esse reconhecimento é incrível. Eu olho para o meu caminho e vejo que faz sentido”.

Esse é o segredo, acredita Marissol: Não andar sozinha. E onde há confiança e partilha, há também crescimento. O Grupo IMANI, que em suaíli significa fé, reúne mulheres compositoras, cantoras, instrumentistas e amigas negras. Considerado um dos propósitos artísticos de Mwaba, o grupo se desenvolve em arte e apoio. “É um jeito de andar bem acompanhada. Nós nos protegemos do mercado, falamos das inquietações. O que acontece com uma, a outra está ali para apoiar. Cada um no seu caminho, mas de mãos dadas”, conta, com sorriso nos olhos. A proteção a qual Marissol se refere, revela-se em sua trajetória pessoal, tanto da música quanto fora dela. “Nós temos que dar saltos muito maiores que a gente o tempo inteiro, dependendo do lugar social que nós estamos. Para mim, uma mulher preta, brasileira, congolesa e lgbtqia+, são vários passos que devem ser muito maiores e exigem muita energia se comparados a outros conceitos sociais. É isso que forma ruído, cria barreiras entre o que eu tenho pra dizer e como isso chega até as pessoas”.


MÚSICA NO SANGUE Além de seus pais, que já tocaram na mesma banda ainda jovens, Marissol não é a única artista dessa nova geração em sua família. A música corre nas veias dela, assim como em sua irmã Alpha Petulay e seu irmão François Muleka. E como esperado, a união fraterna trouxe aprendizados de vida e dentro da indústria musical. “Perrengues que nossa irmã mais velha passou, o François não passou e os que ele passou, eu não passei”, revela a cantora. O irmão ocupa um grande espaço na vida de Mwaba e, como professor, Muleka foi responsável por apresentar Marissol às pessoas, lhe conseguiu acesso a espaços e a colocou nos palcos. A amizade em meio à conexão dos irmãos rendeu um dueto descrito como “parceria de ouro” por ela.

Exaltando a multiplicidade de Marissol, parte de sua história é contada através de sua trajetória na Astrofísica. A curiosidade acerca do mundo, seres humanos e como ocupamos espaços no universo atraiu a cantora para a observação de planetas, astros, estrelas e galáxias. Apesar de engajada com seu curso, Marissol interrompeu os estudos um ano antes de finalizá-los. Motivada pela necessidade de tratamentos contra ansiedade e pânico, a cantora buscou apoio próxima à família, mas não antes de produzir trabalhos dentro da área da física e astronomia, além de estagiar no Instituto de Astrofísica de Paris, na França. A poesia contida nos estudos do universo permanece viva em suas criações. Marissol promete retornar para completar seus aprendizados, mas não agora. Por enquanto, sua carreira e escola de canto tomam a maior parte de sua vida. Mas, não se enganem, pois a astrofísica continua existindo em paralelo. Seu single “Marte” está aqui para provar, encantar e comunicar.


Fotografia: José de Holanda | @josedeholanda_ Direção de Arte e Figurino: Alice Assal | @aliceelassal Assistente de Figurino: Xulia | @euexulia Beleza: Carol Romero | @makeupcarolromero


O QUE A

MOVIMENTA

Através da interação entre a cantora e seu público, os projetos musicais seguem ativos e cada vez mais diversos. Para ela, além dos artistas consolidados que lhe estendem a mão, outro símbolo de apoio são as pessoas, calorosas e dedicadas, que acompanham seu trabalho, esperam pelos shows, engajam suas músicas e compram seu produto. Não há maior combustível do que essas pessoas que olham umas para as outras em igualdade. E é exatamente dessa forma que Marissol deseja ser vista. Sem estigmas ou conceitos anteriores a ela.

“Que alguém que me veja, uma menina preta e poliglota, veja outra menina preta e não presuma que ela não fale outra língua. Não subestime outra pessoa, por ver outras pessoas pretas fazendo coisas. Que isso mexa com o imaginário social. Que pessoas como eu falem cada vez mais sobre coisas que elas querem falar, sem que essa existência seja ameaçada.”

Seus próximos passos estão planejados e pautados em esperança. Superar o que a pandemia causou, emocional e profissionalmente, será um primeiro e importante passo. A promessa de um novo show, totalmente inédito, marca seus desejos para o ano de 2022. Com composições feitas durante esse período e o resgate de outras que estavam engavetadas, Marissol permanece confiando na arte.


ArtIsTas Daqui < 3 uma seleção de artistas catarinenses cuidadosamente pensada para você curadoria por Revista Jaguatirica Foto: Olivia Lago

OrqUidaLia

Ocupar a cidade e neotropicalizar as avenidas: com uma sonoridade que aposta no ecletismo de influências, a Orquidália mistura ritmos da música brasileira e latina com o rock, pop e jazz, criando um caldeirão sonoro para falar do que incomoda, mas também para cantar sobre o que faz bem. Em 2021 lançaram seu segundo álbum, “Boca a Boca”. No trabalho, instrumentais dançantes e enérgicos embalam letras fortes e reflexivas, pautadas em questões políticas, sociais e existenciais. No mesmo ano, com o retorno parcial dos shows presenciais, a banda realizou apresentações em Florianópolis e também em Curitiba, no Festival de Bolso e no Circuito Off da FIMS (Feira Internacional de Música do Sul). | @instadaorquidalia Foto: Evelise Oliveira

VERSA é MC, compositora, arte-educadora, produtora cultural, estrategista musical e mestre na arte do freestyle. Ex-integrante dos coletivos Trama Feminina e Dissemina Produções, a rapper começou a rimar na consagrada Batalha das Minas, nas ruas de Florianópolis. Suas letras retratam seu cotidiano e suas vivências, demonstrando toda a força e perspicácia necessária para sobreviver como mulher artista na sociedade. Com seu trabalho já se apresentou em diversos estados brasileiros, se destacando como uma das artistas catarinenses que despontam na cena nacional segundo o portal NDMais, sendo a primeira artista de rap a estampar a capa do Diário Catarinense. | @salveversa

Mc VerSa


Dandara Manoela é cantora, compositora, percussionista, produtora artística e cultural e educadora vocal. Sua potência musical é um símbolo de resistência das manifestações culturais afro-brasileiras e da mulher negra e lésbica no campo artístico. Vencedora do Prêmio da Música Catarinense nas categorias de melhor cantora (2017) e melhor álbum (2018), Dandara Manoela transita por diversos ritmos brasileiros, como samba e MPB, com influências afro e latinas, cantando lutas, afetos e subjetividades que encontram espaço em um público cada vez mais ávido por uma arte representativa e transformadora. | @dandaramanoela

Foto: Bolivar Alencastro

DandaRa ManoEla Foto: Tainá Bernard

Joana Castanheira é artista independente e começou sua carreira musical na infância, aos sete anos de idade. Em 2014, a cantora criou um canal no Youtube para compartilhar versões de músicas e hoje soma mais de 200 mil inscritos. Em 2016 foi participante da quinta edição do programa The Voice Brasil e, após o lançamento do seu segundo EP,, em março de 2020, Joana iniciou o ano de 2021 com a estreia de um filme, o EP visual “Aparador De Saudades Que Ainda Não Existiram Ou Porta-Retratos”. Para o segundo semestre de 2021, Joana fez o último lançamento deste trabalho, o álbum “Aparador ao Vivo”, com 12 músicas gravadas em um show intimista no começo de 2020. | @joanaccastanheira

JoanA CastanHeira


O Baile E DeLAs por Joana Golin DJ, socióloga e produtora cultural, @selectagroove

TRABALHO E DIVERSIDADE DAS M U L H E R E S D J s N A M Ú S I C A C ATA R I N E N S E Quando convidada para escrever essa matéria sobre DJs mulheres na cena musical de Santa Catarina, a manager e produtora cultural Emanueli Dalsasso comentou comigo que observava o trabalho e atuação de diversas manas DJs de Norte a Sul do estado, mas sentia falta de ver este tema ser abordado pelos seus pares do universo musical catarinense. DJ há onze anos, de cinco anos para cá iniciei uma pesquisa com mulheres DJs, principalmente da região Oeste, onde nasci e atuo profissionalmente como produtora cultural, pesquisadora e artista nas Manivas, uma banda formada por mulheres cis e trans. Encontrei e sigo a encontrar muitas manas DJs, as quais trabalham com os mais diversos gêneros musicais, do eletrônico ao rap, R&B, música jamaicana, funk e outros. Nós manas DJs do estado temos trabalhado há muitas décadas na cena da música atuando em diversas funções, somos: DJs, seletoras, produtoras musicais, beatmakers, produtoras de eventos, managers e produtoras culturais. Não obstante, a DJ Lovesteady ressalta: “Nós mulheres somos multifunções né mana?!”. Lovesteady é DJ, seletora, produtora da coletiva AsMinaDoSom de Florianópolis, composta pelas DJs Goia, MaryJaneDeejay, Naira Iasmim, Scher e Verônica Kist, ceo da Feminine HiFi, embaixadora do WME (prêmio nacional destinado às mulheres da música) e produtora da UH! Manas TV e em 2022 vai para sua terceira turnê pela Europa. Vive há dois produtivos anos na

@imlovesteady Foto: Wally Moraes

ilha do Desterro e conta que desde a infância é muito ligada à música: “Desde pequena meu pai me colocava para ouvir seus discos de vinil de música clássica, soul e sertanejo. Na adolescência comecei a acompanhar assiduamente o canal MTV Brasil e gravava as músicas que mais gostava com meu Gradiente colorido. Dessa época vem minha primeira lembrança de mixtape”. Ao perguntar-lhe sobre a experiência de ser uma mana DJ na cena da música catarinense, Lovesteady enfatiza que: “Ser DJ em Santa Catarina é desafiador, pois nossa arte é desvalorizada. Aqui existe uma cultura forte da música ao vivo, que eu


super respeito, mas com isso DJs em geral têm seus trabalhos tratados com descuido. Geralmente as atrações como bandas, cantores(a) são denominados como artistas e DJs não, mesmo sendo fundamentais ao longo dos eventos, trazendo pesquisa e performance que entretenha o público e traga alegria para todos ouvidos ali presentes. Confesso que estou morando em Santa Catarina há dois anos e já toquei em eventos que não valeram a pena, pois fui tratada como qualquer coisa e não como a artista que sou há 11 anos”. Se por um lado nossa arte ainda é desvalorizada no contexto estadual, estamos tendo um reconhecimento pelo nosso trabalho fora daqui, compondo lines de grandes festivais, viajando para turnês na gringa, produzindo tracks e beats para compositoras e compositores e até participando de reality shows, como é o caso da DJ Brum no Hervolution, da famosa produtora Kondzilla, no qual foi finalista.

@lirouskyo

Foto: Tiago Ghizoni

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DJ Brum no Hervolution , da famosa produtora Kondzilla, no qual foi finalista. Estendendo a reflexão sobre o trabalho da mulher DJ não somente para manas cis, mas também para as manas LGBTQIAP+, entrevistei a DJ, produtora musical e assistente social Lirous K’yo , que vive em Florianópolis e desde a infância possui forte relação com a música. Sobre o seu trabalho como Dj, a profissional enfatiza: “... antes da pandemia eu era a DJ com a maior agenda que existia no estado, então assim, eu pegava por exemplo uma sexta–feira e fazia umas três, quatro festas numa noite. A minha história com a música foi muito sob pressão, porque como eu estudei muito música, estudo até hoje, a minha família dizia assim: ‘pô, tu vai largar a música, tu tem tanto talento pra música, tu não vai fazer nada com a música?!’, então o que eu resolvi fazer, resolvi juntar o serviço social com a música. Então essa proposta que eu levo pra balada, quando a pessoa vai pra balada, ela vai ver algo diferenciado, e daí é desde a minha playlist até a minha técnica. E eu levo tão a sério a discotecagem que fiz o curso pela AIMEC, depois fiz o curso de discotecagem avançada também pela AIMEC, depois eu fiz o curso de produção musical, produção musical avançada e hoje estou cursando design de música”. Sobre o fato de ser travesti e questões de gênero e de orientação sexual, a DJ ressalta: “eu quero é que as pessoas vejam primeiro o meu trabalho, depois a minha identidade de gênero, porque não é sobre isso. Quando a gente vai pra uma festa, uma discotecagem, não é sobre a minha identidade de gênero, não é sobre a minha orientação sexual, é sobre o produto que eu apresento, e com certeza vai ser um dos melhores produtos que você vai encontrar no mercado”.


Lirous planeja seu futuro profissional com muitos projetos musicais que não são só individuais, mas também coletivos. Quando pergunto sobre seus planos futuros, ela comenta sobre o desejo de realizar uma turnê internacional como DJ e vai além, planejando um projeto no qual ela possa capacitar mulheres do Morro da Berreta para produzirem e trabalharem nos seus próprios eventos, em todas as funções da cadeia de produção, não somente na discotecagem. Vatlota Monstra aka Valéria Lima começou a tocar como DJ e a performar em eventos em 2016, em Chapecó e na região Oeste. Como uma DJ travesti ela comenta sobre a questão das drag queens: “Em todas as entrevistas que eu dou gosto de falar sobre a marginalização que as drag queens sofrem. E também sobre a falta de valorização e oportunidades. Chapecó não valoriza os artistas locais e não podemos nem contar com a prefeitura”. Quando a perguntei sobre seu trabalho como artista performer e DJ, fora enfática ao problematizar questões de preconceito que sofre na cidade onde vive: “Não existem oportunidades para artistas queer nessa cidade racista, homofóbica e transfóbica. E quem deveria apoiar a gente (organizadores de eventos e movimentos sociais) não está nem aí para nós, gostam de levantar a nossa bandeira, mas no fim a gente sabe que é tudo mentira”. Seguiremos na resistência, a quebrar os paradigmas da indústria e do mercado da música estadual e mundial, lutando para que todas as manas que possuem o desejo de viver como DJ consigam tornar–se profissionais e realizar seus projetos individuais e coletivos.

Respeitem as manas DJs e viva a música!

@vatlotamonstra Foto: MATHWXX


SoL, galinhas e EncruzilhadAs por Amanda Nicoleit Diretora de Carnaval, @amandanicoleit

Dia 4 de março, sexta-feira após o não-carnaval do ano de 2022, cheguei na Marquês de Sapucaí para uma aula, 11h da manhã, calor escaldante, a pista recém pintada era de um branco branquíssimo, o sol a pino refletindo na pista cegava. Estava perdida, precisava chegar ao setor 3, mas havia descido no setor 10, chamei o segurança que estava tentando se proteger do sol numa das raras sombras do lugar, expliquei qual era meu compromisso. Ele me perguntou quem me esperava, expliquei que era Vivi, que iria encontrá-la na sala do Machine — o nome fez efeito imediato, abriu o portão e me explicou como chegar até lá. O silêncio ensurdecedor que vinha por daquele lugar durante todos os dias do não-carnaval já não existia, o que ouvi foi o barulho de máquinas, a conversa de trabalhadores, o martelar, o barulho da água. A casa estava sendo preparada, se engalanando para receber os iniciados no ritual sagrado do samba. O branco que me cegava naquele dia me fez lembrar uma ideia defendida por Luiz Antonio Simas: o carnaval das escolas de samba é guiado por Oxalufã, organizado, disciplinado, fiel a seus compromissos, mas nada inocente. Foi acordado que a passarela deveria aguardar mais alguns meses para viver o carnaval, mas nada foi dito sobre a Cidade do Samba. Assim, o povo do samba inventou um carnaval fechado, como o daqueles que determinaram que o nosso estava proibido, seguimos a mesma lógica que eles e fizemos um não-carnaval. Nossos tambores rufaram e quem é letrado nessa gramática sofisticadíssima aprendeu um pouco mais da história de um povo que pensa com o corpo, as baianas giraram abrindo os caminhos e em devoção reverenciamos nosso pavilhão.

A minha sensação andando naquele lugar encantado eram que as coisas estavam fora do tempo, eu acabava de viver um carnaval, eu havia ouvido os tambores, havia reverenciado bandeiras sagradas, meu corpo tinha sentido o axé emanado pelas nossas mais velhas, mas ainda sim, naquele lugar o carnaval ainda não havia acontecido.


Encontrei a Vivi pelo caminho, de longe Machine nos viu e veio perguntar quem eu era, expliquei que era historiadora e diretora em uma escola de samba de Floripa, que havia aproveitado o não-carnaval para fazer uma aula. Me perguntou como havia conseguido entrar na pista — lhe contei rapidamente o que havia acontecido, num misto de orgulho e irritação — e nos levou até sua sala. Me surpreendi ao chegar e descobrir que era, na verdade, uma casa dentro das entranhas da Sapucaí. A aula caminhou como se esperava até o momento que ele voltou com papéis e mais papéis, cópias de estatutos, de manuais, fotos… Trazia também uma menina que fiquei sem saber o nome, pediu para que fizesse café. Puxou uma cadeira, se sentou ao meu lado e começou a falar, uma história após a outra, entre elas um comentário sobre a dança de uma porta-bandeira, sobre a altura de outra, sobre uma bossa de uma bateria. Eu segurava os papéis no colo, sem muita reação. Vivi conseguiu um segundo no meio das histórias para explicar que eu já tinha lido todos aqueles documentos. Ele de pronto respondeu que não importava, não era pra mim, eu estava ouvindo tudo ali, mas que era pra eu levar comigo, entregar para alguém do samba em Floripa para que pudessem escutá-lo por lá também.

Saímos da sala, a segunda parte da aula seria na pista da Marquês de Sapucaí, naqueles dias interditada, mas que com o argumento de ser uma diretora de Floripa foi liberado para que pudesse visitar. Descendo o primeiro lance de escadas fui levada até um camarote “vamos aproveitar que liberaram pra conhecer um pouco mais desses labirintos, dessa altura que ficam os jurados", explicou Vivi. Olhando para o camarote em frente ela reparou em um banner do Estandarte de Ouro (prêmio histórico, concedido pelo jornal O Globo a diversos segmentos das escolas de samba), me perguntou se eu sabia o que era, balancei a cabeça em afirmação, me pediu um segundo e foi novamente até sala do Machine. Ela voltou gargalhando, dizendo que o povo do carnaval adora uma fofoca “fui obrigada a ir até lá fofocar, precisava saber se tinham mesmo trocado o camarote do Estandarte de lugar, já estava mandando mensagem pra todo mundo aqui, mas Machine me disse que só estava em reforma, quase que faço fofoca errada por aí”. Sem dúvidas a fofoca e o subúrbio andam juntos, a Vizinha Faladeira, uma das agremiações carnavalescas mais antigas do Rio de Janeiro está aí de prova, o que para uma parcela da sociedade pode ser visto com asco, com desdém, como um característica pejorativa de uma camada social, tem gente que me ensinou a ver pela fresta, e por ela a fofoca é vista como característica de sobrevivência de um povo, ser pobre e suburbano é necessariamente viver em comunidade, é tomar conta sim da vida dos outros, é correr pra contar uma novidade porque é na possibilidade da mudança que se cria vida.


Mudança que no carnaval se confunde com tradição, algo que pode parecer esquisito, mas para um povo que acredita que é a mudança que cria a vida, não existe nenhum contrassenso em afirmar isso. Carnaval é feito por movimento,

por movimento ritmado, sincopado, que cria no meio. Carnaval é cria da precariedade. Por isso não fazemos carnaval porque a vida está boa, fazemos porque acreditamos que ela deve ser boa. Descemos para a pista que parecia ainda mais branca às 13h. Vivi apontou pra rua onde passavam carros e me disse que era ali que ficava o primeiro recuo de bateria. Olhar os carros passarem por aquele lugar era estranho, como se algo sagrado estivesse sendo profanado. Continuamos a aula, ainda havia muito para se conversar, mas o sol nos fez procurar uma sombra. Saímos da pista e fomos recebidas com copos de água gelada e o convite para se abrigar do sol, mais uma vez um labirinto levava para partes da sapucaí que nunca imaginei existir. Embaixo das arquibancadas, entre grades e tablados amontoados, conheci mais uma casa, casa de trabalhadores que montam toda a estrutura para que os desfiles possam ocorrer. O senhor que nos recebeu perguntou de onde estávamos vindo, contamos que estávamos na sala do Machine “Ele recebeu vocês lá a essa hora? Nessa hora o síndico costuma dormir, aqui o povo troca o dia pela noite, é o único jeito de suportar esse calor”.

Voltamos mais uma vez para a pista, tínhamos que terminar a aula, indo até o portão que cruzava com a rua em frente ao primeiro setor encontramos duas galinhas. O senhor que havia nos recebido há pouco viu nossa surpresa e veio explicar como elas chegaram até lá. A branca já estava por lá fazia duas semanas “numa sexta-feira de madrugada parou um carro aqui na frente, desceram dois homens e prepararam todo o trabalho, tinha muita comida e cachaça, ficaram um tempo ali na frente do portão e depois jogaram ela pra cá, estava toda amarrada com fitinha, enfeitada, aí a equipe do Machine pegou ela e desamarrou, agora ela fica por aqui e eles dão comida”, contou que a outra havia chegado numa madrugada de segunda-feira de forma muito parecida. Fiquei olhando para as galinhas, Vivi deve ter percebido minha inquietação, conversando com o senhor lembrou que ali era uma encruzilhada importante, era um lugar propício. O senhor disse que era crente, mas que respeitava, sempre montava uma cobertura num cantinho para que as oferendas ficassem protegidas do tempo. Baixinho ele disse que sabia que não podia chutar, que a comida parecia gostosa e que o povo em situação de rua que vive nos arredores se esbaldava. Vivi, compreendendo o desconforto do senhor, disse que ele podia ficar tranquilo que aquela comida e bebida era pro povo da rua mesmo.


Naquela encruzilhada foi impossível não lembrar de outra tão sagrada quanto Florianópolis, que infelizmente esse ano não irá receber o cortejo sagradamente profano das escolas de samba. Mas foi nela que aprendi que se pode viver na encruzilhada, que é ali que os caminhos se criam, que se negocia e que se faz guerra, às vezes os dois ao mesmo tempo e em batuque de festa, mas tem gente que só vê a festa… Tem gente que acha que um tweet acaba com a festa. Mas, mal sabe ele que pra nós o silêncio não existe, ele não foi o primeiro a tentar e não vai ser ele que vai conseguir, foi em umas das tentativas de conseguir silêncio que a gente criou o carnaval. Aquela encruzilhada este ano não recebeu seu padê, mas em outra, não muito longe pedimos licença às três senhoras donas dessa Ilha, uma nova guardiã do nosso pavilhão foi recebida, mais uma vez a energia exuzíaca estava presente. Quando usam a palavra carnaval como sinônimo de bagunça minha primeira reação era dizer que só fala isso quem não conhece nada de carnaval. Hoje eu digo que só fala isso quem não conhece as festas e as encruzilhadas onde meu povo vive, carnaval é bagunça também porque meu povo é versado na epistemologia das ruas, meu povo sabe que à bagunça não se contrapõe a ordem, a tradição, a hierarquia. Palavras que hoje, por muitos, podem ser vistas como opressoras, mas pra minha gente elas andam juntas e se complementam. É a partir delas que fizemos desfiles grandiosos, em que endinheirados pagam fortunas para ver pobre, preto, favelado desfilar sua arte e — sabe de uma coisa? — tem que pagar mesmo, nossa arte é fruto de saberes ancestrais, uma sobreposição narrativa sofisticada, em que sonoridade, visualidade e corporeidade estão vivas em cada corpo, construindo uma teia narrativa absolutamente complexa, onde contamos diversas histórias.

A aula acabou, mas o carnaval ainda não havia começado.

Laróyè.

Carnaval em Florianópolis 1984, Acervo Casa da Memória.


TOUCINHO Direção de Arte: Amanda Bittencourt - @amandala.rte Fotografia: Manu d’Eça - @manudfotografia



Quantas vezes você conheceu uma pessoa e pensou que a história de vida dela renderia um bom filme? O músico Lourival José Galliani, o Toucinho, é um desses casos raros, mas com a diferença de que o baterista de 71 anos foi homenageado em dois. Influência para uma legião de instrumentistas,

Toucinho é um improvisador nato — com as baquetas, as palavras e em qualquer situação. Autor de frases de efeito e levadas de bateria com

a sua assinatura, o artista estrelou “Sistema de animação” (2009) e “Nada precisou ser refeito” (2018). Dirigidos por Alan Stone Langdon e Guilherme Ledoux, um dos seus principais pupilos, os documentários ganharam prêmios e foram exibidos até fora do país. Mais do que isso, jogaram luz sobre um personagem único na história da música brasileira. No primeiro filme, produzido entre 2003 e 2008 de forma independente, imagens de arquivo, depoimentos de amigos e o próprio Toucinho ajudaram a escrever o perfil de um homem genial, mas pouco conhecido do público. Entre tantos momentos marcantes registrados em “Sistema de animação”, o trecho mais precioso aparece no fim, quando a equipe está comemorando a participação do baterista em um workshop, já tarde da noite, no escuro, e o músico confidencia antes de dormir, aliviado como quem, enfim, percebeu que tinha garantido a imortalidade. “Mas é legal esse Sistema de Animação. É

um documentário que vai provar que eu existi”.


“Sistema de animação” abriu portas, como a turnê realizada em 2009 nos palcos do SESC de Chapecó, Criciúma, Florianópolis, Jaraguá do Sul, Joinville e Lages, com exibição do documentário, bate-papo com o público e show do Toucinho Trio, com Fábio Carlesso (guitarra) e Giann Thomasi (saxofone). As entrevistas nas rádios, os almoços, as brincadeiras no hotéis e na estrada, e até a busca por um filho, tudo foi registrado para o filme “Nada precisou ser refeito”, novamente com direção de Alan e Ledoux, que foram os amigos que o baterista precisava na época.

“Eu morava no Ribeirão e estava numa miséria. Os meus amigos foram sumindo, envelheceram a cabeça, se convidar pra fazer uma filmagem eles não vão, eles ficaram com esse sistema de animação. Muitos amigos são invisíveis, agora que inventaram a Internet, os que eram invisíveis ficaram virtuais. Eram amigos, mas não apareciam. Ninguém ia lá em casa, os únicos guerreiros que assumiram essa identidade foram o Ledoux e o Alan. Eles queriam ir todo dia. Esses dois meninos me ressuscitaram, me deram coragem e até hoje estou tocando”, revela.




ALEGRIA É A CURA Toucinho tem o semblante de um homem que já passou poucas e boas nos seus 71 anos de vida. Mesmo assim, não é capaz de perder a alegria durante as principais adversidades. Nos últimos meses, o músico vem tratando um Mieloma Múltiplo, doença que causa câncer nos ossos. As sessões de quimioterapia semanais, custeadas em parte por doações angariadas pelas redes sociais, afastaram um pouco o mestre da bateria. O instrumento preferido atualmente é o piano digital, usado para dar aulas no quintal de casa ou quando os amigos o visitam. Com otimismo e serenidade, Toucinho está feliz.

“Meu médico me falou que não vou morrer dele, vou morrer com ele. Isso me deu uma esperança. Eu não tenho medo de morrer, meu medo é deixar quem eu amo. Estou muito feliz, tenho uma companheira muito querida, que cuida de mim, e não quero ficar sem ela. O câncer é uma alegria, é a cura da doença. Ficar puto ou triste por quê? A doença já está aí, tem que gostar dela. Se ela veio tem algum motivo. Eu toquei muito na noite, dirigia táxi durante o dia, fumei cigarro numa época, bebi muito uísque. Posso encaveirar daqui a pouco, não é qualquer um que chega nos 71 anos. É um milagre, né?”, afirma.

A grande ironia nessa história, conta Toucinho, é que o câncer foi descoberto uma semana depois de o músico ser presenteado com uma nova “bactéria”, como era chamada a sua antiga bateria. O artista plástico Bruno Barbi e o jornalista Gastão Moreira fizeram uma campanha de financiamento coletivo e arrecadaram mais de R$ 5 mil para adquirir o instrumento, que está montado na sala do Kantu da Donna, onde vive com a companheira Claudia Ramos, grande cantora e principal incentivadora.


“Arte chama arte. O Bruno Barbi tinha acabado de pintar um quadro da Claudia e ela ligou pra ele. Ele é cunhado do Gastão, que trabalhou na MTV, ele acabou botando no programa dele (Kazagastão) e começou a fazer a campanha. Assim que veio a bateria, veio o câncer. Eu não sabia, fui saber depois que fiz uma tomografia, não pude nem tocar direito. Toquei um dia com ela. É um livro que eu não li ainda, ela fica ali como um bebê. A quimioterapia deixa a pessoa muito fraquinha, mesmo assim, estou alegre. Quero melhorar logo para descer a lenha nela”, planeja.


“Minha mãe era muito legal comigo, ela cantava, me inspirava e fui muito sacana com ela. Isso me faz mal. Me arrependo, mas não fico muito triste, não. A minha infância tem um lado que eu enfeito pra galera não ficar muito triste. Tem um lado que parece que não existiu, eu apaguei. Como era o meu padrasto, como ele me tratava. Entrei tanto no mundo da fantasia que tudo isso eu tinha esquecido. Esqueci a minha mãe e tudo, só lembrei quando me disseram que ela tinha morrido. O meu sistema de animação era tão grande em São Paulo que o meu negócio era tocar”, conta.

Criado na Coloninha, Toucinho se encantou pela bateria ainda criança, quando era levado pela mãe até a rádio Diário da Manhã, tendo que atravessar a pé a Ponte Hercílio Luz, para ouvir música ao vivo. Mais tarde, foi presenteado pela mãe com um pandeiro, e começou a tocar bateria aos 12 anos. Aos 19, o manezinho partiu para São Paulo apenas com a roupa do corpo e um par de cuecas em busca do sonho que pode ser resumido pela sua frase clássica “Viver de música não é fácil. Difícil é viver sem ela”. Se um terceiro filme sobre a sua vida fosse feito, Toucinho gostaria de falar sobre a sua infância e a relação com a sua mãe, uma história


E nessa loucura toda, que envolveu experiência com drogas por um período, a música foi o que salvou Toucinho. Uma amiga da vida inteira, que mantém o seu sistema de animação em alta. “Eu tive amigo em São Paulo que furava a veia. O cara que toca na boate tá cheio de diabinho em volta. Eu vi tudo isso aí. Com o uso desses psicotrópicos eu apaguei muita coisa da infância, senti que os neurônios começaram a queimar e parei. A música nunca me botou em roubada. É o que me salva. Às vezes eu fico um pouco irritado com a vida, toco uma música e ela diz pra mim ‘pô, cara, tô aqui’. Eu converso com ela. Não precisa tocar bem, qualquer músico que toca já sente isso aí”, declara.


COM A LANÇA NA FRENTE E SEM VENENO A falta de uma família estruturada, digamos, não impediu que Toucinho chegasse longe, mas fez com que o baterista perdesse algumas oportunidades. Na ativa desde os anos 60, o músico acompanhou vários artistas importantes como Eduardo Araújo, Fafá de Belém, Pery Ribeiro, Nelson Ned, além do pianista César Camargo Mariano. Mas teve uma proposta de trabalho que o baterista não aceitou que poderia ter mudado o curso da sua história. Convidado para tocar na banda de Elis Regina, o músico “estava num galho fraco” e não quis deixar na mão os amigos que foram tentar a sorte com ele em São Paulo.

Eu sempre fui guerreiro, tive que andar com a lança na frente e nunca pude botar veneno nela. Em São Paulo eu senti que era animado, consegui comida e hotel pra mim, tudo sem grana. Tu vai tão animado que o cara não te breca. É o sistema de animação. Eu nem sou tão gente boa assim”, comenta.

siga: @toucinhobatera

“Quando você sobe numa árvore pra pegar goiaba, se pegar um galho fraco, você cai. Se eu pulasse esse galho, como que eles iriam comer? Como pagaria o aluguel da minha casa? A Elis estava numa fase ensaiando o Falso Brilhante (disco) e ensaio não tinha grana. As minhas melhores oportunidades eu não pude pegar por estar num galho fraco. Se eu tivesse uma família com estrutura, ligava para o meu pai e estava resolvido.


Por TraS da CancaO de NinAr por Luli Esquivel Cantora e compositora, @luliesq

Arte por Gabriela Orofino, @gabriela_orofino

Um filho quando à casa chega mexe dentro, mexe fora, paralisa. Cada maternidade é sempre tão única. Quisera usar parentalidade ou uma palavra que não pareça errada para o corretor, relacionada ao cuidar, criar, educar um novo ser humano em conjunto, sem gênero. Não tenho no meu vocabulário. Tem maternidade e tem paternidade, coisas completamente distintas. A maternidade é muito cruel, muito solitária – por mais acompanhada que se esteja. Maternar e existir é uma missão – que parecia impossível – a qual comecei a aprender somente agora, dois anos depois do nascimento do meu filho, e olhe lá. Conseguindo finalmente me “desvincular” da cria, o foco tem sido me reinventar dentro da música, porque me tornar mãe gerou uma lacuna dentro do meu processo que precisa ser retomada. Um filho que nasce antes da pandemia do ventre de uma mãe cantora e compositora é desespero em forma de gente. Se a solidão já acompanha o puerpério, atravessar essa fase isolada e com medo faz a mulher flertar com a depressão constantemente. Daqueles flertes que funcionam. A música virou exclusivamente canção de ninar. Não houve mais encontros com mais musicistas, estes fundamentais para findar a angústia e fazer o trabalho acontecer. E como trabalhar com música e cuidar de um neném? O horário dos shows não encaixa na rotina de sono, tão valiosa. Ah, a privação de sono. Nós músiques estamos acostumades a trocar a noite pelo dia, afinal, é na madrugada que, na maior parte das vezes, trabalhamos – seguindo hábitos (questionáveis) de lazer dos espectadores e afins. Agora, experimente trabalhar de dia e de noite. Por aqui veio de pacote com a maternidade as infinitas noites em claro, algo que inviabilizou qualquer esperança de musicar. É agoniante acompanhar inúmeros trabalhos sendo lançados, músicas surgindo, lives, editais abrindo, editais fechando e não ter força pra mostrar sua música também. Com filho a gente anda numa velocidade paralela ao mundo real. E então começamos a questionar como nossa sociedade olha pras nossas crianças e como esse olhar segrega não só elas, mas as mães. Espaços que não podem receber crianças, não podem receber mães. As mães que fiquem em casa com seus filhos, não é mesmo? E dentro do furacão, veio o barato de se reconhecer no trabalho de outras mães artistas e procurar aquela rede de aconchego no olhar de outra mulher. Cair na real do que é a maternidade e a mulher nessa sociedade. Questionar a maternidade compulsória, a criminalização do aborto. É impossível falar de maternidade e não falar de igualdade de gênero e da luta que enfrentamos diariamente pelo direito ao próprio corpo. Minha amiga Geo falou muito sabiamente que “um filho foi a melhor coisa que eu fiz na vida, que eu não recomendo pra ninguém”. Afinal, um filho quando a casa chega mexe dentro, mexe fora, paralisa.


Meu Lugar na MuSica por Elisa Imperial Fotógrafa - @imperioteca


Sou apaixonada por música desde criancinha e isso sempre me trouxe uma certa angústia, pois eu não conseguia expressar essa paixão de forma alguma: Não canto e tampouco tenho talento para escrever. Tive tentativas frustradas de tocar diversos instrumentos musicais, mas nada me motivava a melhorar. Quando coloquei nas minhas mãos uma câmera amadora para gravar vídeos dos meus amigos, acabei me encontrando — mas não foi no audiovisual. Comecei minha jornada na fotografia em 2016, e nesse percurso já passei de tudo um pouco. Natural de São Paulo, me aproximei de Florianópolis exatamente no amor pela música. Quando somos jovens e consumimos muita coisa de fora, parece que não nos permitimos conhecer e amar a cultura que nossa própria cidade produz. A partir do momento em que passei a registrar os shows daqui, me apaixonei. E não tem como não se apaixonar, fala sério, né? Floripa tem todas as pessoas e cores e sons inimagináveis, além dos amigos que fiz nessa jornada e tenho orgulho de poder retratar. Inclusive, um dos primeiros, foi ele. O Johnny Duluti, o “último punk”.

Fotografei o Johnny tocando bateria em um evento no norte da Ilha em julho de 2016, e acho que ele foi a primeira pessoa da cena que me apoiou como fotógrafa de shows. Desde as recomendações de trampo, dividir eventos trabalhando juntos ou fotografando ele nos palcos, não tinha como não ser cativada pelo Johnny. A morte dele em 2021 foi trágica em proporções imensuráveis

ele que

para a cultura da cidade, mas

deixou um legado nunca será esquecido.

Johnny Duluti por Elisa Imperial, @imperioteca


Foto: @imperioteca

Quando soube do concurso de fotografia para alunos da UDESC, com o tema “Resiliência na Pandemia”, a primeira coisa que veio na minha cabeça foi ele, e como queria poder homenageá-lo. A foto já estava desenhada na minha cabeça: queria uma mulher marcante que também estivesse envolvida no mesmo meio cultural, com uma máscara PFF2, que se tornou um símbolo de resistência nesta pandemia, atrás do Taliesyn, que também representa muito a cena de Floripa, segurando um cartaz com os dizeres “O punk sobrevive”. Recebi o prêmio de menção honrosa do concurso, mas falando sério? Acho que o maior prêmio pra mim foi chegar na Orquestra de Baterias do ano passado e saber que o cartaz que o Matheus Maciel (vocalista da banda Marina Radio Clube) levantou no final da homenagem ao Johnny foi inspirado na foto que eu tirei. E não acreditei, pois realmente nós não temos noção onde nosso trabalho vai chegar e as pessoas que vamos tocar com ele.

JOHNNY VIVE EM NÓS E ORQUESTRA: 12/12/2021

Afinal, acho que a fotografia é isso, sabe? É um presente pra mim poder retratar essa galera que me abraçou e que tanto amo há todos esses anos. Cada pessoa agrega na cultura de uma maneira muito singular, e encontrei o meu jeitinho único de expressar esse amor pela música, o respeito e a admiração pela cultura na fotografia. E mesmo estando aqui já faz seis anos, parece que é só o começo.



MICHU Direção de Arte: Puroisland - @puroisland e Amanda Bittencourt - @amandala.rte Fotografia: Amanda Ramos - @ramosamanda Foto: José de Holanda


manezinha por escolha por Daniel Silva Jornalista e editor do portal Rifferama - www.rifferama.com

Aos 22 anos, a cantora, guitarrista e compositora Michelle Mendez, a Michu, deixou Buenos Aires rumo à Europa. Baseada na Alemanha no começo da década passada, a artista portenha fez mais de cem shows com o Petit Mort por países como Bélgica, França, Holanda, Inglaterra, República Tcheca e Suíça. Depois de rodar pelo Velho Continente em turnês intermináveis, Michu veio parar no Brasil, onde tocou em dez estados e se encantou por Florianópolis. As praias e a natureza, já conhecidas de viagens com a família para cá, foram alguns dos atrativos que trouxeram a hoje manezinha por escolha viver na capital catarinense. Mas a decisão final foi motivada por causa

da música: o público e a cena local fizeram a cabeça da argentina. Antes de adotar Floripa como a sua casa, o Petit Mort já tinha circulado bastante pelo país entre 2012 e 2013. Outras cidades com tradição no cenário independente brasileiro, como Goiânia (GO) e Natal (RN), mexeram com o coração de Michu, mas uma data com os Skrotes na antiga Casa de Noca, na Lagoa da Conceição, mudou tudo. “Fizemos muitas turnês pelo Brasil e me apaixonei pela cena. Teve um show lotado com os Skrotes na Casa de Noca que bateu uma paixão pelo público daqui. A gente fazia bate e volta sempre de Buenos Aires, estávamos sendo chamados para tocar direto. Não foi uma decisão difícil de tomar, por esse vínculo com eles, e também não está longe de casa. O Chico (baixista dos Skrotes) alugou uma casa pra nós e nunca mais fui embora”, afirma.


MaRissoL E N T R E

Foto: José de Holanda

A S

E S T R E L A S


Ainda sobre a cena brasileira, Michu vai além. Se o país estivesse localizado no hemisfério norte, o mundo todo estaria prestando atenção nas bandas daqui. Além da qualidade, outro ponto que impressionou a artista foi o momento de efervescência cultural vivido no Brasil durante o Governo Lula (2003-2011) e o primeiro mandato de Dilma Rousseff, retirada do poder em 2016 via golpe. A conexão entre os produtores de eventos e a quantidade de festivais por todo o território nacional foram coisas que a musicista não viu nem durante o período em que passou tocando pela Europa. “Era impressionante o nível de conexão da cena independente de qualquer canto do Brasil. Todos os produtores culturais sabiam exatamente o que estava acontecendo, mesmo em cidades pequenas todo mundo acompanhava o que rolava no circuito de festivais. Tinha muita banda autoral bombando, uma cena instrumental ativa pra caramba, coisa que eu não tinha visto nesse nível em massa em outros países. Era muito único o que estava acontecendo, quando eu ia para outros países eu falava da cena do Brasil. Floripa me conquistou pelo público mesmo”, comenta.

Não foi uma decisão dif ícil de t o m a r, p o r esse vínculo com eles, e também não está longe de casa. 8



PERRENGUES E SURPRESAS NA ESTRADA Nas primeiras idas para a Alemanha, Michu chegou a cogitar morar no país, pela quantidade de shows que o Petit Mort estava fazendo na região, mas um dia o clima bateu 17 graus negativos e artista conta que sentiu ossos que nem sabia que tinha no corpo e desistiu da ideia. A vida na estrada apresenta muitos desafios, dinheiro contado e zero glamour, mas é uma experiência que Michu recomenda para todas as bandas. O impacto que o contato com outras culturas teve na sua vida não é possível de ser mensurado. “A gente evolui todos os dias, o cérebro não chega a processar a quantidade de coisas que começamos a incorporar: paisagens, pessoas, línguas, comidas. Questões que não estavam sendo debatidas por aqui, como ambientais, de cada um lavar o próprio prato, o movimento vegano, pautas antifascistas, coisas que modificaram a minha personalidade. É uma experiência que toda banda merece ter, essa troca é única, incomparável. É viciante”, conta. Formado em 2007, o Petit Mort lançou o seu primeiro EP, homônimo, dois anos depois. Os próximos trabalhos, Spit In (2010) e Du Bist (2011), foram gravados em Geldern, na região de Colônia, na Alemanha, por Olaf Zwar, um fã da banda. Parece história de filme, mas realmente aconteceu. A primeira turnê do grupo no país foi agendada via Myspace, em uma época sem smartphone ou redes sociais. Olaf, que era proprietário de restaurantes e padarias e falava poucas palavras em inglês, foi assistir Michu tocar em Amsterdam vestindo uma camiseta que ele mesmo mandou fazer.

O resto é história.


O Olaf perguntou pelo Myspace quando a gente tocaria na Europa. A gente tinha marcado uma rota e íamos tocar em Amsterdam, ele chegou com uma camiseta nossa e falou pra gente passar uma semana na casa dele. Um dia ele nos colocou no carro e levou para um estúdio, dizendo para que a gente fizesse exatamente o que ele viu no show da Holanda, que ele gravaria e editaria o disco. Foi muito louco, começamos a acreditar mais na nossa música vendo o disco na mão, com alguém investindo na gente. Ele botou uma estrutura para nós, apresentou a família dele, foi muito amoroso. Tenho muitas histórias pra contar”, revela.


EM RECONSTRUÇÃO No fim de 2019, Michu estava participando de cinco bandas. Além do Petit Mort, reformulado com a baterista Mariel Maciel (ex-Somato), sua companheira também na Menage, a hermana manezinha também estava tocando com o Muñoz e tinha acabado de gravar um álbum com o Mandale Mecha, banda de música pop latina ao lado de Chico Abreu (Skrotes), Gustavo Koshikumo e Juliano Pereira, ambos do ATR. Desses últimos dois projetos surgiu também o Antivibe, com os irmãos Muñoz, o baterista Samuel e o guitarrista Mauro, mais o baixista Chico. A pandemia da Covid-19 interrompeu muitas das expectativas da artista que, acostumada a uma vida de turnês e produção, passou dois anos sem fazer shows – a estreia do Mandale Mecha nos palcos aconteceu em março.

“Está sendo ainda um momento de cicatrização.

Estou sequeladinha, a pandemia bateu muito forte. Eu vim morar aqui, já saí do meu país, escolhi Floripa, não vou embora, mas aguentar Bolsonaro e uma pandemia junto é um combo muito foda.

Me apeguei muito na música para não pirar tanto, foi meu lugar de refúgio.

Gravei mais de 50 músicas, por sorte estava todo mundo isolado se apoiando a distância. A pandemia nos tirou o palco, um lugar de identidade, de expressão, que a gente se reafirma como artista. O momento é de lembrar quem a gente foi uma vez. Temos que nos apegar nas coisas que vão vir também”, salienta.


Fotografia: José de Holanda | @josedeholanda_ Direção de Arte e Figurino: Alice Assal | @aliceelassal Assistente de Figurino: Xulia | @euexulia Beleza: Carol Romero | @makeupcarolromero


MaRissoL E N T R E

Foto: José de Holanda

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E S T R E L A S


D O S R I F F S P E S A D O S À M Ú S I C A P O P L AT I N A “Me sinto pelada sem a guitarra”. Michu teve uma transição entre largar o instrumento e assumir os vocais do Mandale Mecha. Ter tocado baixo na Menage afastou a guitarrista um pouco do microfone e a permitiu dançar. A experiência com o Muñoz tocando percussão e os convites para se apresentar com os Los Desterros trouxeram outro tipo de consciência no palco e também sobre o seu corpo. A mudança de estilo musical se refletiu também na descoberta de outro público. “O Petit Mort é uma banda que tem muito a ver comigo, energeticamente falando, de trazer o peso, a raiva que eu sinto. A vida é dura e os riffs são um lugar de desabafo. Foi incrível soltar a guitarra. O microfone te permite uma liberdade de conexão com o teu próprio corpo. Tocamos em Piracicaba e foi a primeira vez em que vi tanta mulher no público. Estou acostumada com metaleiro, barba, muito homem, e tinha muita mulher dançando, virou uma aula de zumba. Os meninos (do Mandale Mecha) me apoiam bastante, me deixam livre”, conta. Com mais de um milhão de plays apenas no Spotify, o Mandale Mecha se formou por acaso. No meio de uma série de shows com o Muñoz, Michu passou dois dias em São Carlos (SP), cidade onde moram Gustavo Koshikumo e Juliano Pereira, e assim foi criado o material do primeiro álbum da banda. Com apoio do selo espanhol Raso Estudio e muito trabalho, o Mandale Mecha vem tendo um resultado surreal nas plataformas digitais, ainda mais para um projeto que até poucas semanas atrás era virtual. “Nossa química foi tão forte que não era possível deixar isso só num encontro. Somos de três bandas de muita circulação, mais de dez anos de palco, estamos na mesma frequência. Um dos meus melhores amigos montou um selo independente na Espanha, gostou bastante das músicas e lançou. Foi o que permitiu a gente continuar crescendo ainda na pandemia. Tivemos resultados que nunca nem foram sonhados. O Mandale Mecha é uma banda trabalhadora pra caralho, todos muito focados, cada um no seu lugar, no seu forte. Estou muito orgulhosa”, declara.



F O C O N A R E P R E S E N TAT I V I D A D E E NOVO ÁLBUM DE RETOMADA Com dez singles e um álbum lançados, o Mandale Mecha está preparando um disco duplo de “músicas pandêmicas” que deve sair ainda neste ano. Se o ritmo de produção é intenso, os shows devem voltar aos poucos. Os convites já estão chegando, com muitas datas em São Paulo sendo agendadas e, possivelmente, um giro pela Europa no caminho. Com o Petit Mort o objetivo agora é outro.

Ao lado de Mariel, Michu quer inspirar outras mulheres. “Estou tentando ir aos poucos. Eu realmente passei mal (durante a pandemia). Daqui pra frente espero que a cena se mantenha ativa, ir cicatrizando. Com Petit Mort é esse lugar de representatividade, tem duas mulheres na frente do palco. Sou fã da Mari, a gente se potencializa juntas. Minha meta é ter esse refúgio pra nós duas empoderarmos a nós mesmas e outras manas também, com isso já estou satisfeita demais. O que vir será um plus”, finaliza a manezinha por escolha.

siga: @michupetitmort10


álbuns para adicionar inteiros na playlist curadoria por Revista Jaguatirica POEIRA DO INFINITO (2021)

NataCha Kamila Financiado por meio de crowdfunding e lançado com um álbum visual impecável, “Poeira no Infinito” conta a história de uma caminhada em busca de amor e liberdade, em meio a crises existenciais. De acordo com Natacha, o EP foi pensando na sua trajetória de artista independente em um mundo opressor que a narrativa foi desenvolvida. Em cada uma das três faixas a artista mostra a força ao aprender a lidar com os medos e a impor sua voz.

| @natachakamilav

IMANI (2021)

IMaNI IMANI é o encontro musical de Addia Furtado, Anis, Dandara Manoela e Marissol Mwaba. Imani significa fé em swahili e o nome se conecta com a união dessas quatro mulheres negras, pois remonta a uma fé ampla e subjetiva que vem da força do encontro. Fé na música como um instrumento de transformação social. O álbum conta ainda com uma quinta potência, a produtora Dessa Ferreira trabalhou na produção do disco. A arte de capa tem assinatura do músico e artista visual François Muleka. | @imanioficial


E M Q U AT R O T R Ê S D O I S ( 2 0 2 1 )

Fantastico Caramelo A Fantástico Caramelo vem ganhando destaque na cena do rock catarinense e autoral. Com seu álbum de estréia “Em Quatro Três Dois”, a banda apresenta oito faixas que dialogam com o psicodélico e com o indie, focando nos instrumentos básicos do estilo: baixo, guitarra e bateria, utilizando-se de distorções, microfonia e diferentes formas de cantar. Formada em Rio do Sul (SC), a Fantástico Caramelo foi premiada em 1º Lugar no “Festival da Canção Entre Rios”, na categoria Música Autoral, com o single “Pura Conexão”. | @fantasticocaramelo

MASS HYSTERIA (2020)

End of PipE Mass Hysteria é o quarto disco de estúdio da banda End of Pipe e consolida sua formação como power trio, trazendo uma sonoridade rápida muito presente no punk/hardcore californiano. Criada em 2006 no Campeche (Florianópolis/SC), o grupo entra em turnê na Europa ainda em 2022 e vale destacar que em 2020 ganharam o “Good Shit Awards 2020” como melhor lançamento do ano pelo site Punk Rock Mag, com o single-tema do álbum.

| @endofpipe


grillo e os mosquitos

boa música = boa relaçã

Direção de Arte: Puroisland - @puroisland Amanda Bittencourt - @amandala.rte Foto: Rafaella Piazza - @rafaellapiazzag


ão


boa música = boa relação

por Daniel Silva

Jornalista e editor do portal Rifferama - www.rifferama.com

Ter uma banda é como entrar em um relacionamento: pessoas com gostos ou objetivos afins (nem sempre) estão juntos nos momentos bons e ruins até que uma das partes — no caso de um grupo podem ser várias — decida seguir outro caminho. A boa convivência entre os integrantes é um fator determinante para o sucesso de um projeto, tanto quanto a qualidade das composições, arranjos, etc.

E quando escrevo sucesso não me refiro a números de streaming ou métricas semelhantes, afinal qualquer um pode ter milhares de plays no Youtube, basta pagar. O êxito de uma banda também diz respeito à continuidade, desenvolvimento artístico e bom relacionamento, claro, como é o caso do Grillo e os Mosquitos.

Foto: José de Holanda


gustavo

GRILLO

Foto: José de Holanda


No mês de fevereiro, o trio colocou em prática a proposta (Re)tomada Instrumental – Uma vivência Grillo e os Mosquitos, em que Pedro Germer (guitarra), João Peters (baixo) e Gustavo Grillo (bateria) passaram dez dias juntos. O objetivo do projeto, selecionado pela Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, foi possibilitar ao grupo aperfeiçoar o processo criativo, desde a preparação da sala de ensaios, escolha de equipamentos, posição dos instrumentos, até as gravações. Além do resultado que será materializado em forma de repertório, a vivência artística trouxe outro ganho para o Grillo e os Mosquitos.

O relacionamento entre os músicos se fortaleceu.

Juntos desde 2016, Germer, Peters e Grillo nunca passaram tanto tempo no mesmo ambiente quanto durante o projeto (Re)tomada Instrumental. Ainda que esses dias foram diluídos em três semanas, devido aos compromissos profissionais dos músicos, que também tocam com outros artistas, dormir, acordar e trabalhar no mesmo espaço nesse período foi fundamental para a evolução da banda, segundo o guitarrista Pedro Germer. “Buscamos tirar o melhor som possível do estúdio com os equipamentos que a gente tinha e a cada dia fomos evoluindo nesse aspecto técnico. Praticamente dobramos o nosso repertório de música autoral. Antes da pandemia, a gente não tinha uma rotina sólida de ensaio. Amadurecemos bastante nesse tempo e depois dessa vivência estamos num nível de sintonia e intimidade que ficou fácil para criar. Gravamos muita coisa, ao vivo, testamos gravar separados, com overdub (gravações adicionais), e provamos que é totalmente possível uma produção independente ter um resultado fantástico”, afirma.


joão

PETERS


B A N D A C O M E Ç O U C O M O L A B O R AT Ó R I O Com dois singles e videoclipes lançados neste ano, o Grillo e os Mosquitos tem muito material na manga e planos depois dessa vivência artística. Mas nem sempre foi assim. A banda levou quatro anos para produzir a primeira música autoral, “Ata-me”, que saiu no começo de 2020. De acordo com Peters, o grupo começou em um ambiente descontraído e, principalmente, sem cobrança. O objetivo era tocar ao vivo. “Já aconteceu de a gente fazer show do Grillo sem o Grillo. A banda existiu nesses quatro anos sem fazer algo, mas agora somos nós três pensando no que queremos fazer no futuro e não só tocar as músicas que a gente gosta pra nos desenvolver. Acho que foi importante, pra amadurecer junto. Partimos de uma referência em comum que demoramos bastante tempo pra construir”, justifica.

Esse período de experi mentação contribuiu, também, para o desenvolvimento do trio enquanto músicos.c Germer,

Peters e Grillo já tinham tocado juntos em algumas jam sessions na Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina) e a banda se formou por acaso para preencher uma data livre no antigo Taliesyn. As releituras para clássicos de artistas como Bob Marley, Jimi Hendrix e Djavan ajudaram a moldar a identidade musical do Grillo e os Mosquitos, que transita entre diversos estilos. “Quando começamos, a música instrumental era algo diferente pra nós. O Grillo foi durante muito tempo uma espécie de laboratório mesmo, uma escola. A gente pegava uma música popular e fazia do nosso jeito, às vezes mais fiel ao arranjo original, ou desprendido. Quanto mais tocar, mais horas de voo, mais preparada a banda será”, comenta Pedro Germer.


pedro GERMER


GANHO PESSOAL TÃ O I M P O R TA N T E QUANTO O MUSICAL O local escolhido para a vivência artística foi a nova casa do baterista Gustavo Grillo e da produtora cultural Emanueli Dalsasso, que teve a ideia de juntar o trio nesse “regime de concentração”. Em vez de uma sala de jogos ou outro cômodo, o casal decidiu construir um estúdio no mesmo espaço em que divide a vida cotidiana. Também por isso, a banda alternou os dias no esquema 4-3-3 (domingo a quarta, domingo a quarta e domingo a terça). “Eu moro aqui, tem a questão da casa, de arrumar um pouco as coisas. É um movimento grande de coisas acontecendo, então foi bom dividir os dias e ter esse respiro”, explica Grillo.

Fotografia: José de Holanda | @josedeholanda_ Direção de Arte e Figurino: Alice Assal | @aliceelassal Assistente de Figurino: Xulia | @euexulia Beleza: Carol Romero | @makeupcarolromero


Além de não desgastar a relação, algo que provavelmente não aconteceria com o Grillo e os Mosquitos, essa dinâmica também favoreceu a produtividade do trio, que gravou mais de 50 minutos de repertório autoral. A experiência foi captada em vídeo, não só os momentos musicais, mas também do dia a dia — aquela cerveja no fim do expediente para estreitar a amizade. Esse material deve virar um documentário, formato já utilizado pela banda para contar histórias dos cinco anos de trajetória em “Traz o repelente”. “A nossa relação em geral se fadiga muito pouco. A gente conversa e tenta resolver de uma maneira pontual. O Pedro e eu moramos juntos durante um ano numa casa com outro amigo e tivemos fagulhas dessa vivência. Era uma dinâmica embrionária, o Peters dormia lá, mas não nesse sentido que a gente se propôs aqui, de dar tempo ao ócio. Ter o tempo de trabalhar, de

fazer a coisa técnica, e depois poder relaxar, fazer a comida, esse momento de segmentação das coisas foi essencial. São nesses momentos que as questões criativas trabalham mais na nossa mente", declara o baterista.


de olho DE OLHO NA PRÓXIMA A pandemia da Covid-19 afetou a todos os trabalhadores da cultura, do mainstream ao artista independente. Com o Grillo e os Mosquitos não foi diferente. Um mês após o lançamento do primeiro single, “Ata-me”, houve decreto, quarentena (a gente finge que teve por aqui), cancelamentos e muitos outros problemas. Sem a possibilidade de se encontrar durante quase dois anos, a vivência proposta pelo (Re)tomada Instrumental, com todos já vacinados, veio ao encontro da necessidade que o grupo tinha de dar sequência ao que tinha começado. O baixista João Peters não vê a hora de poder repetir a experiência para gravar o primeiro álbum do grupo.

na próxima

“Naqueles dias a prioridade era a banda, a gente esteve lá 100%. Sinto que a gente parecia ter um trabalho atrasado. A gente estava compondo e precisava chegar fresco e criar, também tinham músicas antigas que não estavam prontas e a gente tinha que fazer. A necessidade de ensaiar sem a pressão de gravar, e depois ensaiar para ter o registro era uma coisa que precisava de tempo. Nessa vivência escolhemos que queremos gravar as nossas músicas nós mesmos. Com certeza faremos outra vivência que será (feito) o disco”, informa.



QUAL A MELHOR LEMBRANÇA D E S S A V I V Ê N C I A? JOÃO PETERS: Durante a pandemia fiquei dois anos aprendendo a gravar no computador. Foi massa chegar aqui e ter conseguido fazer com a mesma atmosfera, mas em grupo, os três juntos fazendo as escolhas, editando, ouvindo com fone, e ser o mesmo conforto que sentia em casa sozinho. A possibilidade de ter enxergado isso é uma grande conquista, que será a forma que vamos trabalhar daqui pra frente. É uma lembrança que vai ficar.

GUSTAVO GRILLO: Esse processo de coordenação pra além do estúdio é muito legal, um ajuste fino de comunicação que faz toda a diferença. Pra mim a melhor coisa dessa vivência foi perceber que a gente consegue fazer uma coisa legal nesse espaço, que está dando frutos e vai dar frutos por muito tempo.

PEDRO GERMER: Eu lembro muito de quando tive as minhas primeiras bandas e não tinha compromisso, a gente ensaiava de segunda a sexta. Sempre curti essa atmosfera da banda conviver junto, é um olhar meio romântico, mas a banda é como uma família ou um casamento. A gente ter se juntado e visto o quão produtivo foi, foi só uma confirmação de que a convivência é tudo de bom, é coisa valiosa que a gente pode ter.

@grilloeosmosquitos


O forTaleciMento da MuSica Magnólia Festival - Créditos: Enzo Hofmann. 2022.

AutoRal no Oeste CatariNense

por Ana Laura Diaz Diretora executiva do Magnólia Festival, @magnoliafestival Por anos, a principal fonte de inspiração para a música autoral independente no oeste catarinense veio do rock gaúcho das décadas de 1980/90, seja nos acordes, ou até mesmo na forma de cantar. Tal fato se deu diante o seu distanciamento (até hoje) com a música feita no litoral catarinense, como também diante da sua proximidade com a divisa com o Rio Grande do Sul. Nos últimos anos, apesar dos poucos palcos que oportunizam o espaço para o trabalho independente na região, os artistas locais vêm demonstrando uma forte vontade de produzir a sua arte autoral aliado a facilidade de divulgação junto à Internet, dando espaço não só para o rock, como também para outros ritmos, como a MPB, o folk e o rap. Parte dessa ascensão se dá graças ao surgimento de movimentos coletivos como QGColab (Xaxim), A Barca (Xanxerê) e Subversão (Chapecó), e festivais como Sonora e Magnólia Festival, que têm fortalecido as manifestações artísticas. As políticas públicas como o Edital Aldir Blanc também permitem esses artistas difundirem a sua arte, estimulando uma nova geração de artistas.

Entre os artistas que estão surgindo na cena do Oeste podemos mencionar a Disaster Cities, que tem ganhado espaço na cena do rock nacional, sem esquecer dos veteranos da Banda Repolho, surgida em 1991. Já no folk pop e MPB temos o destaque para Amanda Cadore junto com Laura Tereza, ambas com vozes doces adequadas para o estilo. No rap a representação fica com MC Versa, Agoro e EJ. A música instrumental fica por conta do Os Curiós, que produzem parte dos instrumentos que utilizam em suas apresentações. Existe uma forte vontade e iniciativa de fazer acontecer a música autoral na região, já fazendo algum barulho para ser notado por outras regiões de Santa Catarina, apresentando um grande potencial para romper o seu isolamento geográfico. Que tal escutar um pouco de música feita no Oeste catarinense para animar o dia?


As Novas Caras da Musica Chapecoense Foto: Isadora Martinelli

Foto: Evelise Oliveira

Ej

Foto: Denis Cardoso

Laura Laura tereZa tereZa Laura Tereza, apesar da pouca idade e tempo de carreira, tem se destacado na cena chapecoense com sua voz doce e melodias dignas de se tornarem hits para estar presente sincronizada como trilha sonora de qualquer obra audiovisual, com letras que remetem ao romantismo puro e inocente. No seu único EP, “ Quando o amor acontece”, lançado em 2020, as faixas transitam entre o MPB e o folk agridoce. O destaque fica para “Caro amor”, música em que refrão é daqueles que colam na cabeça, assim como “Temporal”. Diante do seu talento, Laura Tereza pode ter um futuro bastante promissor, caso adote estratégias de carreira adequadas e condizentes com o mercado. | @lauraterezas

Difícil não falar do rap chapecoense sem citar o trabalho de EJ, que nas suas letras traz questões como a aceitação de corpos trans, arte de rua e também aos preconceitos presentes na sociedade, misturado com batidas eletrônicas e funk. Impossível ficar sem vontade de dançar em músicas como “Transviado”. EJ é um artista extremamente necessário na cena da música no Oeste em tempos de combate aos preconceitos, seja pela arte ou pelo movimento LGBTQIAP+, sendo figurinha frequente nas batalhas de rimas do rap da região, sobretudo nas ações do seu coletivo que faz parte, o Coletivo Subversão. | @emiliojuane_


por Ana Laura Diaz Diretora executiva do Magnólia Festival, @magnoliafestival Foto: Kaline Schenatto

Foto: Panarotto

Ej Amanda CadoRe

coletivo

ManiVas Formado exclusivamente por mulheres, o Coletivo Manivas apresenta toda pluralidade da diversidade das músicas regionais brasileiras, conseguindo misturar desde o vanerão do Rio do Grande do Sul em “Mandiocatá”, até o carimbó do Pará, sem deixar de passar pelo funk presente em “Funk da Macaxeira”. O primeiro EP, “Colheita”, lançado em 2021, possui letras que trazem questões como religiosidade, força feminina, sem esquecer do folclore brasileiro, como em “Conta da Maní”, e “Maloca Fantástica”, que faz menção ao sítio cultural “Nossa Maloca”, dentro de uma nuvem mágica e rica, sendo praticamente um convite a curiosidade de conhecer o lugar. Além do EP, a música das Manivas é digna de ser vivenciada em seus shows que conseguem envolver e contagiar o público em uma experiência única.

| @coletivomanivas

Me recordo exatamente quando escutei Amanda Cadore pela primeira vez. Era abril de 2017 quando um conhecido meu enviou no WhatsApp o link para o clipe de “Travesseiros”, que desde o primeiro momento tocou o coração. Foi impossível não me emocionar! Desde então, só vejo Amanda Cadore ganhando posição de destaque na música catarinense diante das suas melodias embaladas no ritmo folk/pop. Apesar de ser de Barão de Cotegipe (RS), foi em terras catarinenses que sua carreira musical foi lançada, tendo passagem pelo The Voice Brasil em 2018. Seu álbum “Verão só se for azul”, de 2019, apresenta participações de artistas como Marissol Mwaba e Jéf, com canções que remetem serenidade e são daquelas que dão vontade de guardar num potinho. Em 2021 foi lançado “Apanhado de Urgências Cantáveis”, contando com músicas já lançadas em formato acústico, produzido através da Lei Aldir Blanc. Em suas contagiantes apresentações ao vivo, além de “Travesseiros”, o hit “Passarinho” é a pedida obrigatória no setlist, digna de causar frenesi no público que canta o refrão em coro, num show bastante animado. | @amandacadore


(des)conhecer

na vida e na arte Jesus Lumma Direção de Arte: Amanda Bittencourt - @amandala.rte Fotografia: Cleo Theodora - @cleotheodora


(des)conhecer na vida e na arte

por Júlia Matos

estudante de Jornalismo na UFSC, @juliaamatoss_o “Sou protagonista da minha vida". Para Jesus Lumma, natural de São Luiz do Maranhão, a música transcende fronteiras. Ao menos, quando falamos de limites geográficos, esses, foram genuinamente ultrapassados e Santa Catarina mostrou-se uma das maiores fontes de apoio em sua jornada artística, caminho pelo qual Jesus está só começando. Há mais de dez anos no estado e há quase sete vivendo de música, a maranhense recorda seus diversos ciclos profissionais que começaram, acabaram e renasceram ao longo de seu amadurecimento. Movida por novos desafios, talvez por ser regida pelo signo de Virgem, Lumma deixou a periferia do estado nordestino inspirada por um amor do passado. Obstinada a reconstruir sua história em Santa Catarina, aos 18 anos, mudou-se para Joinville, onde passou a trabalhar em uma empresa de tecnologia. Sem grana, foi recebida na casa de diversas pessoas e encontrou famílias tão amorosas e acolhedoras quanto a sua, no Maranhão. Algumas delas, inclusive do seu meio profissional, já apostavam no seu futuro. “Eu nem sabia que ia trabalhar e viver de música, mas os catarinenses viram isso em mim e começaram a me apoiar e dar suporte para que eu pudesse fazer minha arte”, conta.


Seus diplomas em Análise de Sistemas e Design de Programação Visual fazem parte de sua história, mas não foram o bastante para mantê-la longe dos palcos, da criação e transformação. Com um EP lançado em 2019 e novos singles durante o período de pandemia, Lumma segue um caminho de ascendência e carrega por aí um público fiel e diverso. “Eu meio que pulverizei, me espalhei pelo Brasil”. Com sua arte espalhada pelo país, seu maior público está aqui em Santa Catarina, o segundo maior no Maranhão e o terceiro em São Paulo. Ela acredita que o motivo esteja relacionado aos temas que traz em suas canções e ao convite constante para que as pessoas se olhem como da mesma família.

M U LT I P L I C I D A D E E é a essa ideia, ligada à ânsia de não se sentir limitada pelas construções sociais e expectativas alheias, que Jesus planeja seu legado como pessoa e artista. À sua visão, a indústria musical, assim como a sociedade, busca intensamente pôr uns aos outros em caixinhas, em definições, reprimindo a diversidade dos seres humanos. “Somos criados em multiplicidade sonora, cultural, linguística. E aceito isso como parte da transição da humanidade. Não me limito”. Prova disso, é sua diversidade musical, com a transição entre rock e MPB, suas vertentes dentro da dança clássica, contemporânea, urbana e de salão, assim como seus processos de reconhecimento. Jesus é artista trans e não binário. “Aceitar essa multiplicidade é o que eu tenho feito com a minha arte. Me identifico com os dois, às vezes com nenhum, e isso é sobre o que eu faço”, afirma. Lumma carrega no corpo sua história plural, assim como o Brasil. Miscigenada, a maranhense possui ascendência italiana, japonesa, indi234443 sado

gena e quilombola, to que lhe rendeu diversos processos em busca de aceitação durante a vida. “Acho que Deus pensou: Já vai nascer pobre, nordestina e favelada. Melhor dar olhos azuis para facilitar”, diz, relembrando sua luta, ainda constante, em ultrapassar camadas sociais que não lhe garantiram travessia livre no mundo da música ou no espaço social. Pelo contrário. Como toda arte surge de um lugar pessoal, as composições de Lumma traduzem seus anseios de libertação, seus caminhos de coragem e sua diversidade, além do crescimento musical. O single “Pode me chamar de bixa”, com clipe produzido em 2019, reuniu quase que um desabafo contra o preconceito e intolerância, ao mesmo tempo que empodera o público LGBTQIA+ e o convida a se orgulhar de sua individualidade. Os mais recentes, frutos da pandemia, “Moços e Moças”, com participação de Natana Alvarenga, e “Final Feliz”, último trabalho lançado ainda em 2021, entregam uma narrativa entre relacionamentos e o caminho de libertação encontrado na compreensão de que nada é real se não for genuíno e verdadeiro.

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MaRissoL E N T R E

A S

E S T R E L A S


Fotografia: José de Holanda | @josedeholanda_ Direção de Arte e Figurino: Alice Assal | @aliceelassal Assistente de Figurino: Xulia | @euexulia Beleza: Carol Romero | @makeupcarolromero


Nessa busca pela verdade, a transição de seu nome social e artístico foi símbolo de liberdade. Em seu “rebatismo”, como chama seu processo de autoconhecimento, buscou honrar suas raízes. Para comunicar que não está dentro da definição imposta, Lumma se apropriou desse nome sem perder a essência da denominação escolhida por sua mãe, Luhcas. Ambos os nomes significam “pessoa de luz”. “Ela diz que é um direito meu”, conta com orgulho.

Lumma não define o artigo que lhe acompanha, feminino ou masculino, e essa é a beleza.

O SEU NÃO LUGAR NO MUNDO Dentre seus inúmeros projetos, duas páginas no Instagram conectam sua visão de mundo e o desejo de tornar discussões sobre a pluralidade do mundo mais reais em seu meio. @omeunaolugarnomundo já nos é apresentado com uma descrição encorajadora: “Como é viver apenas com uma mala, uma mochila, um violão e afetos? Aceitei o meu não lugar no mundo, decidi amar e ser aquelu que faz bem a todes”. Através desse projeto, que já possui um futuro cobiçado, Lumma pretende falar sobre a limitação encontrada em sociedade, com suas ideias, projetos e sistemas. “Nós somos cegados com todo esse mundo dos homens, com seus brilhos e maquiagens, que é muito lindo e interessante, mas eu sinto que faz parte do meu fazer artístico;

O meu não lugar no mundo é exatamente sobre isso, sobre mostrar que eu estou aqui, mas não pertenço a esse mundo.”


Lumma nos convida a procurar o “desconhecido”, a compreensão acerca do que é, de fato, seu, e o que foi construído pela sociedade, família e seus conceitos. O objetivo da página é justamente compartilhar com o público seu processo de desconstrução e reconhecimento. Jovem e nutrida de ideias, a arte de Lumma, assim como seu projeto de comunicação, é pautada em questionamentos cada vez mais necessários ao público. “Muitas vezes, as pessoas me olham e tentam me compreender, e elas não vão me compreender porque elas também não se conhecem. Eu nem me conheço bem. Estou em um processo. Estamos no processo não de se conhecer, mas de se desconhecer.” Um canal no YouTube e um possível livro contendo seu próprio relato de crescimento pessoal e artístico é o que Lumma guarda para o futuro. “Que neste livro haja espaço em branco para que a pessoa possa escolher o final que ela quiser”, imagina, enquanto descreve seu desejo de criação.

Fotografia: José de Holanda | @josedeholanda_ Direção de Arte e Figurino: Alice Assal | @aliceelassal Assistente de Figurino: Xulia | @euexulia Beleza: Carol Romero | @makeupcarolromero


um giro pela Europa no caminho. Com o Petit Mort o objetivo agora é outro. Ao lado de Mariel, Michu quer inspirar outras mulheres. “Estou tentando ir aos poucos. Eu realmente passei mal (durante a pandemia). Daqui pra frente espero que a cena se mantenha ativa, ir cicatrizando. Com Petit Mort é esse lugar de representatividade, tem duas mulheres na frente do palco. Sou fã da Mari, a gente se potencializa juntas. Minha meta é ter esse refúgio pra nós duas empoderarmos a nós mesmas e outras manas também, com isso já estou satisfeita demais. O que vir será um plus”, finaliza a manezinha por escolha.


“...Estamos no processo não de se conhecer, mas de se desconhecer.” Fotografia: José de Holanda | @josedeholanda_ Direção de Arte e Figurino: Alice Assal | @aliceelassal Assistente de Figurino: Xulia | @euexulia Beleza: Carol Romero | @makeupcarolromero


REDES SOCIAIS E INFLUÊNCIA Exposição não é problema. Conciliar as redes sociais, com sua ânsia por números e engajamento, e seu desenvolvimento como artista faz parte do processo dentro da indústria da música, o que Jesus compreende bem. A preocupação com resultados nas redes é deixado nos braços de sua assessora, e a Lumma, resta o desejo de comunicação. “A minha intenção é realmente me expor. O que é muito engraçado porque muitos dizem que eu não deveria me expor tanto, mas é exatamente quando eu me exponho, quando não tenho medo de mostrar o que tem dentro de mim, que eu me conheço. É aqui que eu incentivo as pessoas a se mostrarem também”, explica. E assim, segue compartilhando sua rotina em casa, nos palcos, na gravação de clipes e sessão de fotos O @redeafetos é outro espaço de comunicação igualmente importante para a artista. Quando questionada sobre o papel dos afetos no mundo e se há carência deles entre nós, responde convicta: “Não falta afeto. Afeto é tudo aquilo que afeta. O que falta são afetos positivos. Temos repertórios afetivos de violência, de atrito, confusão, superioridade, ganância, dominação e exploração. A única coisa que quero fazer é afetar o mundo positivamente. Não apenas carinho e abraço. Chegar para alguém e dizer ‘você está sendo violento ou invadindo meu espaço’ também é positivo. Gera aprendizado”.

siga: @jesuslumma

E é através desses constantes ensinamentos e transformações que Jesus constrói sua personalidade enquanto artista. Para o futuro, planeja uma versão diferente do que nos foi apresentado até agora. Acredita que está finalizando seus trabalhos sonhadores, regados a delicadeza, e prevê uma nova fase de sua carreira. “Estou na fase 'boazinha'. Mas ainda quero mostrar meu lado das ‘trevas’, porque também faz parte de mim”. E como público, seguimos na expectativa para testemunhar, se não participar, de seu novo olhar para o mundo.


O Trabalho (dE Sisifo) na CultuRa por Allende Renck Doutorando em Teoria da Modernidade (PPGLit – UFSC), crítico de arte, professor, curador e tradutor - @renckallende

Na mitologia grega, passando por diferentes interpretações e versões, mas alcançando sempre a mesma conclusão, o humano Sísifo foi castigado, depois de morto, pelos deuses, a fazer o que pode ser considerado o epítome do trabalho inútil: sua punição era arrastar uma pesada pedra de mármore ao topo de uma colina todos os dias só para vê-la rolar colina abaixo quando do fim de sua tarefa e começar novamente no dia seguinte. Não havia produto consequente do trabalho de Sísifo e ele o faria por toda a eternidade. A história de Sísifo foi inspiração para o escritor e filósofo Albert Camus escrever o que é considerada a sua obra mais importante; intitulada O trabalho de Sísifo a obra se debruça sobre a condição absurda do ser humano e a sua busca – na visão de Camus, absolutamente infrutífera – por sentido nas coisas que o interpelam pela vida. No entanto, a falta de sentido, o “trabalho sem produto”, pode servir como um dispositivo de leitura em clave dupla quando colocamos em foco o trabalho cultural e mesmo a disposição de se trabalhar na cultura – mais ainda quando adicionamos a isto a localidade geográfica do Brasil. A ideia de um “trabalho inútil”, então, aparece em clave dupla – se estende em duas distintas direções – ao se colocar em foco, aqui, a cultura. Isso acontece, pois, de um lado, no simbolismo quase-mágico do fazer-com a cultura, esse inútil é de absoluta potência: é por agir no “inútil” que a arte pode realmente servir como proposta de metamorfose, jogar com o material no reino imaginário das possibilidades. No entanto, por outro lado, na materialidade das ações que caem sobre os ombros de qualquer pessoa que viva na tangência do trabalho artístico, o que aparece é a barreira nos efeitos possíveis desse trabalho: censura, silenciamento, hiper-burocratização, em suma um esforço de despotencialização dessa disposição imaginária mágica.

É a partir dessa dupla clave que o trabalho cultural, em sua caracterização sui generis, deve ser pensado. Pois que a poesia – a arte de uma maneira geral –, como nos lembra o filósofo francês Jean-Luc Nancy, se impõe como uma demanda. Famosamente, a escritora Clarice Lispector jogou certa luz sobre essa demanda quando disse uma vez ser uma mulher que escreve porque “escrever é como respirar”, adicionando pontualmente que o fazia “para sobreviver”. Confrontado com essa demanda quase-espiritual do fazer artístico, o artista recebe – como que de brinde – uma demanda outra: a de remodelar a punição divina de Sísifo, acabar com a tarefa, mudar a situação material do que é o trabalho na cultura – a bem da verdade, uma demanda de opressivo peso e de difícil ação, mas ainda assim uma demanda imperativa para aquele que faz e vive com arte “para sobreviver”.


Nesse espírito, escrevo o presente artigo, com a intenção de colocar à frente essas potências que muitos tentam invisibilizar e que se demoram em cada artista que acorda escolhendo viver para movimentar a cultura. Compor uma música, escrever um poema, pintar uma tela, criar um filme de nada servem quando existe um esforço de anestesia que impede o acontecimento dessas obras. As obras de arte acontecem quando promovem o encontro, quando iniciam uma mobilização; para que uma obra aconteça é preciso que ela seja experienciada, e é justamente contra a experiência que é possível notar, na estrutura em que vivemos hoje, um palpável movimento. O atual governo federal não é nem um pouco discreto em sua cruzada contra o trabalho cultural. Nos anos que compreendem a atual administração, houve a extinção do Ministério da Cultura, tendo a pasta sido relegada a uma secretaria que parece mais preocupada com o impedir de produções artísticas críticas do que com a gestão do trabalho cultural no país – o que não surpreende, na medida em que o trabalho cultural é frequentemente um incômodo ponto de interrogação para as instituições. Nesse afã, a lei de fomento à produção cultural do país é constante alvo de desinformação e ataques que muitas vezes advém da própria secretaria que a devia gerir. A classe artística é percebida como notória inimiga dos vários secretários que assumiram essa pasta nos últimos anos – um dos quais se sentiu confortável o suficiente para não apenas produzir um vídeo de repercussão midiática nacional influenciado pela estética fascista, mais notadamente de Joseph Goebbels, mas para ir mais fundo em sua inspiração e propor um plano para a cultura nacional que espelhava o plano cultural proposto por Goebbels na Alemanha Nazista. Em suma, a própria possibilidade de acontecimento da arte, hoje, é posta em xeque. É justamente nesse contexto, no entanto, que esse acontecimento mais se faz necessário. A produção artística independente, o artivismo, o financiamento popular e iniciativas nessa linha são os pulmões do trabalho cultural contemporaneamente. É necessário atentar-se a isso, de modo a possibilitar a ação artística como uma forma de construção de válvulas de respiro na nossa cultura. Se podemos afirmar sem muita dificuldade que há um esforço para apagar a influência questionadora da arte na cultura, um projeto de anestesia das experiências estéticas, então mobilizar um discurso que tem o sensível, o estético, como pedra de toque, é de suma importância. Seja no cinema, nas artes visuais, na música, na dança, literatura ou o que mais tivermos a sensivelmente experienciar, fazer e falar sobre arte é de fato um trabalho de resistência. Esse trabalho é sim feito nas brechas, mas de uma maneira tal que produz ele mesmo as brechas necessárias para se fazer existir, como uma retroalimentação simbólica de cortes, de críticas: se só podemos nos movimentar nas brechas, que as criemos.


O crítico de arte Hal Foster, em um livro publicado em 2015 intitulado Maus Dias Novos, traz de volta à baila, ao pensar a arte contemporânea, um conceito proposto pelos dadaístas na Alemanha de 1916: a ideia de uma exacerbação mimética. Para Foster, uma das melhores estratégias críticas presentes na arte é a capacidade de representar de maneira exacerbada o real, o traumático, o ponto que usualmente não temos a capacidade de falar sobre; é a possibilidade de mostrar a rachadura na estrutura simbólica que nos ordena. Esse mostrar simultaneamente produz a consciência de como explorar tais fraturas, de como aproveitar a brecha. Foster argumenta, e eu concordo, que nada faz isso melhor do que a relação Arte-Crítica – pois é nessa relação que as possibilidades presentes na apresentação artística são mobilizadas e elaboradas no discurso. Assim, a iniciativa que abriga o presente texto, se coloca bem no lugar crítico que nossa sociedade demanda hoje: o de criar e expor as brechas que possibilitem a nossa movimentação. Em O mito de Sísifo, Camus explora o absurdo da existência subjetiva, o eterno faltar que constitui a busca de sentido na existência humana. A conclusão disto pode muito bem ser que é necessário um fazer-com o que nos é dado e fazer desse dado uma experiência válida em si, construir um espaço que, consciente da falta de um sentido além, tome todo acontecimento, toda experiência sensível, como oportunidade para o gozo – o encontro, o riso, o choro, em suma: o estético. Poder falar sobre o “inútil” da arte é inutilizar quem do inútil faz pouco e modificar, a cada instância que reverbere na cultura, ao menos um pouco, o outro – e isso é, em

absoluto, nada inútil


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Arte por: Helton Mattei - @heltonjmattei




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