Revista Fólio, ano I, n. 01

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ISSN 1806-0153 Revista do Curso de Especialização em Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard - UEMG. dezembro de 2003

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Índice

APRESENTAÇÃO - 4 Zenir Bernardes Amorim OLHAR A CIDADE, OBSCENA. - 6 José Márcio Barros MEMÓRIAS DA ABJEÇÃO Anotações e esboços sobre arte, corpo e memória - 15 Maria Angélica Melendi “O VISÍVEL E O ENUNCIÁVEL OU A GUERRILHA DOS SIGNOS – Um breve estudo da correlação imagem-texto na obra de Cildo Meireles no auge da ditadura militar” - 25 Luiz Flavio CONTAMINAÇÕES- Um estudo sobre as obras de Lótus Lobo e Rosângela Rennó - 32 Janaina Mércia Alves Melo HOMEM/ ARTE / ESPAÇO: UMA INTERAÇÃO DIALÓGICA - 42 Gisela Eugênia de Castro Alves CENOGRAFIA CONTEMPORÂNEA EM BELO HORIZONTE - 52 Yuri Simon da Silveira IDENTITÁRIAS: relações de representações- Indicativos a uma curadoria - 60 Cristovão Coutinho WEB-ARTE - Construção de uma Linguagem - 68 Afonso C. M. Klein “O LIVRO VERMELHO” uma leitura visual do clássico Chapeuzinho Vermelho - 77 Gracienne Tavares Camargos ESCRITURA ESCULTURA - 88 Ronan Couto ARTE E INTERVENÇÃO: UM OLHAR SOBRE A SERRA DO CIPÓ - 104 Maria Márcia Franco Gomes O QUE SOMOS, COMO EDUCAMOS - 112 Sonia Assis O QUE POSSO SABER DISSO? O sentido da experiência na relação sujeito\objeto de arte - 124 Fabíola Tasca ARGILA: Memória e Transformação - 132 Benedikt Wiertz FRAGMENTOS DE MEMÓRIA - 143 Claudia Renault MONTÁVEIS – Instalações com módulos lineares - 155 Evandro Castro FABRIQUINHA - 163 Juliana Mafra DO SUDÁRIO AO OSSUÁRIO - 173 Miguel Gontijo ALVOS - 185 Sebastião Miguel REDITOS: REFAZIMENTO DA OBRA DE ARTE - 199 Marcos Venuto IMAGENS CALEIDOSCÓPICAS - 211 Paula Fortuna


Apresentação

O lançamento da Revista Fólio, que temos a satisfação de apresentar, reveste-se de especial importância, uma vez que evidencia o objetivo essencial da Escola Guignard de divulgar as pesquisas realizadas dentro da Instituição, tendo como eixo norteador a indissociabilidade entre o ensino e a pesquisa.

Iniciado há quatro anos, o Curso de Especialização “Artes Plásticas e Contemporaneidade” da Escola Guignard tem hoje posição consolidada como espaço de produção e investigação na área de Artes Plásticas. A Revista vem complementar esta trajetória, cumprindo uma parte essencial neste processo.

Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Escola Guignard - UEMG foto Sebastião Miguel

Apresenta a produção intelectual dos alunos do Curso de Especialização, cumprindo seu papel de publicação vinculada à pesquisa das questões que envolvem as Artes Plásticas nos dias de hoje, oportunizando um repensar sobre os assuntos que fazem parte do cotidiano de uma escola de arte.


A leitura dos textos ora apresentados comprova a dedicação e o cuidado do corpo docente do curso, refletidos na qualidade da produção da equipe discente, que oferece a alunos e demais estudiosos de arte um elenco rico de temas. Que as diferentes abordagens apresentadas nestes textos sejam ponto de partida para novas e amplas discussões, propiciem as mais diversificadas experiências e apontem novos caminhos. Certos da importância de se estimular a produção intelectual de nossos alunos, esperamos que a revista incentive a pesquisa propiciando futuras publicações.

Profa. Zenir Bernardes Amorim Diretora Escola Guignard-UEMG 5

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OLHAR A CIDADE, OBSCENA. José Márcio Barros1

Não são poucas e nem restritas a uma ou outra área do conhecimento, as abordagens sobre a questão do olhar, mais especificamente, da atividade humana de olhar o mundo. A Filosofia, a Psicologia, a Antropologia, a História, as Artes e tantos outros campos de conhecimento e experiência produziram inúmeras, diferentes e divergentes perspectivas de se compreender como o homem constitui o olhar sobre si próprio, sobre o outro, sobre o mundo, e assim fazendo, constitui-se como sujeito, transforma o mundo em realidade e produz memória. É necessário lembrar que os termos no singular, olhar, realidade e memória, designam realidades plurais. Platão, Sócrates, Merleau-Ponty, Hegel, Giordano Bruno, Decartes, Kant, Aristóteles, Da Vinci, Lévi-Straus, Bachelard, Marx, Monet, Simone Weil e tantos outros, iluminaram com diferentes luzes, a compreensão da constituição do olhar como o mais privilegiado e requisitado dos sentidos humanos. Ora tomado como instituinte e ordenador da realidade e, portanto, critério e condição de verdade - verdade, contudo, sempre parcial e fugidia. Ora como sentido, sensibilidade, condição para sua criatividade, mas também anteparo obliterador do conhecimento que, para alguns, deveria ser substituído pela razão e pela ciência. Correndo o risco de pecar pela simplificação, acredito ser possível afirmar que o olhar, por diferentes caminhos, foi argüido ora como possibilidade ora como limite, ora como revelador ora como aprisionador. De qualquer forma somos, como afirma Merleau-Ponty, adeptos de uma “fé perceptiva” :

Desde Platão, o olhar assumiu um lugar privilegiado dentre as faculdades do homem, constitui o sujeito, sua relação com o mundo e, portanto, é tomado como configurador da memória. Prova disso, são as inúmeras metáforas da visão: “o amor à primeira vista”, o “olho-gordo”, o “ver para crer”, “os olhos não mentem”, que inundam nossa fala cotidiana e revelam nossos conceitos mais enraizados. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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fotos José Márcio Barros

“Porque cremos que a visão se faz em nós pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós para fora, olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si. Porque estamos certos de que a visão depende de nós e se origina em nossos olhos, expondo nosso interior ao exterior, falamos de janelas da alma.” ( Chaui, 1989:33)


“Pensar parece nascer do olhar, será como um olhar ou um modo peculiar de olhar (com o olho do espírito)”, é o que diz Marilena Chauí. (op.cit.p.39) Não se trata, entretanto, de uma conseqüência natural, algo próprio da natureza humana. O privilégio do olhar sobre os demais sentidos e formas de conhecimento, resulta da trajetória do homem sobre si próprio. É o próprio homem que, através de suas formas usuais e científicas de enfrentar o mundo, faz do olhar sua principal ferramenta para conhecer, venerar a Deus, descobrir o amor e ter poder. Padrão universal de comportamento? Certamente não. Mas princípio universal: o índio que se recusa à fotografia para não perder sua alma e o turista que retorna de suas viagens já com suas fotografias reveladas, participam, cada um seu modo, desta mesma “fé perceptiva”. O olhar é um modo de apropriação imaterial das coisas. É ter, iluminar ou obscurecer as coisas. Por isso, o olhar produz memória. Aqui encontramos a densidade antropológica do olhar: “Cada pessoa é um olhar lançado ao mundo e um objeto visível ao olhar do mundo. Cada corpo dispõe de um jeito de olhar que lhe é próprio e essa particularidade condiciona também sua visibilidade como corpo diferente dos outros.” (Perrone-Moisés,1989:327)

Estamos aqui diante de um tríplice significado do olhar: o olhar como sensibilidade e sentido; o olhar como constituinte do sujeito, e o olhar como configurador da cultura e da memória. O olhar funda o Ser e a Cultura, o Eu e o Outro. Por isso, possibilidade e limite a ser superado. Por isso o olhar liberta e aprisiona ao mesmo tempo. Margaret-Mead2 chega a definir a cultura como uma espécie de lente, através da qual o homem atribui sentido ao mundo, e assim o constitui e a si próprio. Homens diferentes, lentes diferentes, geram mundos diferentes. Visão de mundo, lugar de onde se vê o mundo. Mas também lugar de onde não se vê o mundo do Outro, o mundo das diferenças. Daí uma espécie de crença libertadora na visão antropológica, ao constituir a realidade como um fenômeno ótico, um processo de cruzamento entre diferentes e divergentes olhares. A melhor realidade e a mais efetiva memória devem ser decorrentes daquele olhar que se constrói através do outro: “Desse modo, o olho, ao considerar e olhar o outro, na sua melhor parte, assim como a vê, também vê a si mesmo.” ( cit. Chauí,1989:49) Até aqui falamos do olhar como sensibilidade humana, como movimento que institui o sujeito, como processo que funda as diferenças, e, portanto, a 7

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Cultura. Nas três dimensões, as diferentes abordagens nos diferentes campos de conhecimento, oscilam entre o reconhecimento de possibilidades e a “acusação” de seus limites. Seja na oposição entre corpo e espírito, seja na ambigüidade fundamental que funda o Eu na relação com o Outro, seja no reconhecimento da dialética entre a alteridade e universalidade. O olhar nos remete ao próprio estatuto da realidade e da memória, passando pela questão da imagem, dos desejos, do poder, das virtudes. Coragem, justiça, humildade, tolerância, generosidade, são tantas as virtudes do homem, sempre ancoradas na capacidade do olhar.3 II “Sou fácil de definir. Vi como um danado”. Fernando Pessoa, Obra Poética, Rio, Aguillar,1965:237

Mas o que é o olhar na atualidade? Como pensá-lo na sociedade contemporânea? Que memória ele institui? De forma esquemática, pode-se afir mar que as sociedades contemporâneas são formas de organização coletiva que passam a conviver e substituem a disciplina e a norma, pelo controle contínuo e pela comunicação instantânea. Ou seja, a Pós-modernidade descentra e re-significa os valores da Modernidade. Os meios sociais de controle encontram-se em crise e são reformulados. A contemporaneidade é marcada pela emergência deslocadora de novas formas de organização produtiva e, conseqüentemente, novas formas de organização social. Um outro Capitalismo, agora marcado pela sobreprodução, pelo marketing, pela dispersão. A disciplina e a norma passam a conviver ou são substituídas pelo controle contínuo e pela comunicação instantânea. A produção se informatiza, a disciplina do trabalho operário abrese ao controle informatizado. Trata-se de uma sociedade em que a imagem e a informação assumem papéis centrais e decisivos.4 Segundo Winnicott, estamos diante de um...

A experiência da contemporaneidade é a experiência audiovisual consolidada como categoria histórica de relação com o mundo. Como afirma Brissac (1989), vivemos numa civilização da sobreexposição : “Um mundo onde tudo é produzido para ser visto, onde tudo se mostra ao Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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foto José Márcio Barros

“monumental fenômeno de civilização (que) antes de condená-lo, é preciso compreendê-lo, se quisermos evitar a mortal repetição do mesmo e favorecer a processos abertos de subjetivação e livre cidadania.”( Luz, 1998:185)


olhar, coloca necessariamente o ver como um problema. Aqui não existem mais véus nem mistérios. Vivemos no universo da sobreexposição e da obscenidade, saturado de clichês, onde a banalização e a descartabilidade das coisas e imagens foi levada ao extremo. “

Entretanto, alguns cuidados são necessários, para que não se caia numa análise de cunho impressionista, que limita o lugar da imagem na sociedade contemporânea, a uma espécie de “satisfação alucinatória do desejo”, um empreendimento narcísico. (Luz,1998) Afirmar a contemporaneidade como marcada pelas imagens, significaria reconhecer que estamos diante de uma nova forma de sociedade, que transforma a própria noção de realidade, fundando o que Winnicott chama de uma sociedade ou cultura onde a “busca estética ou consumista de valores simbólicos, e o centramento no Eu, dito narcísico, caracterizam uma reação à desintegração do espaço da representação política e de ordenação ética institucionalizada” (Luz,1998:219) Incide, portanto, diretamente sobre a memória. A imagem ascende ao lugar mesmo de orientador do sujeito no campo social. Os ideais de representação política abstrata, o contrato social, a moral, são tensionados e às vezes substituídos pela auto-referência da apresentação estética. A imagem “torna-se uma exigência de existência pública”, e portanto, seu consumo, transfor ma-se em atividade prevalente, estetizando nossa vida cotidiana. Essa nova forma de organização social, marcada pela emergência de uma “Civilização do Simulacro, da Imagem e do Consumo”, suscita 2 formas de reação, ambas, entretanto, concordantes quanto à complexidade deste fenômeno. Uma primeira, que poderia ser considerada como positiva e otimista, afirma a possibilidade de que a vida possa se transformar numa verdadeira obra de arte e também a memória. O processo alienante da estetização da existência coletiva, deveria se transformar numa “arte do bem viver”. Outra perspectiva, mais sombria e negativa afirma que a estetização da vida cotidiana corresponderia a uma produção de simulacros em que se arruína a distinção entre imagem e coisa, realidade e ficção, memória e lembrança: “...hoje em dia, um dos maiores lugares comuns da crítica da cultura consiste em afirmar que vivemos sob o signo do Olhar, sob o império da Imagem, no âmago de uma civilização do Simulacro, e assim por diante, mais ou menos nos seguintes termos : a favor ou contra, todos procuram demonstrar que a 9

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assim chamada realidade evaporou a golpes de estilização hiper-realista, que numa sociedade do espetáculo ( embora nela nada se represente) a cópia é superior ao original, que tal eclipse se deve a uma avalanche de imagens sem referência, que não há, portanto, informação propriamente dita, sendo a comunicação mera simulação, etc.” Arantes (1989: 257)

A Atualidade propõe a suspensão da distinção entre realidade e artifício, entre experiência e ficção, segundo Brissac (1989). A identidade e o lugar de cada sujeito são construídos a partir de um imaginário e de uma iconografia, ambos criados pela industria cultural: “Vivemos no universo da sobreexposição e da obscenidade, saturado de clichês, onde a banalização e a descartabilidade das coisas e imagens foi levada ao extremo.” (Brissac,1989:361)

A sociedade contemporânea coloca um ponto final na sociedade do espetáculo, afirma Baudrillard. O sujeito não mais estabelece uma relação cenográfica com os objetos da sociedade e da cultura. A relação, antes marcada por um “corpo a corpo em que os objetos lhe devolviam a própria imagem desfigurada pelas mais variadas fantasias de posse” é radicalmente transformada. (Arantes,1989) A sociedade do espetáculo é substituída pela sociedade obcena :

Encontramos aqui uma importante idéia: a obscenidade como marca da contemporaneidade, onde predomina o “êxtase da comunicação”, onde a forma mercadoria é substituída pela forma publicidade, um universo saturado pela hiperinformação. Uma memória, prioritariamente, ótica. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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foto José Márcio Barros

“Não há mais espetáculo, não mais cena - e, portanto, promessa de significação-, quando tudo se torna absolutamente próximo, como no close glacial de um filme pornô. Essa total promiscuidade com as coisas não é nem mais do domínio do olhar. Voltando a W. Benjamin, seria o caso de acrescentar que a chave da promiscuidade assim entendida é tátil. Vemos agora no que se converteu, para pior, a confiança depositada por ele na predominância do tátil na cultura moderna. Hipervisão de uma realidade. Nisto consistiria o obsceno - obliteração da cena. Daí o trocadilho que me interessava : uma paisagem (antes de tudo metropolitana) obscena (ob-cena). Portanto, uma obscenidade que não tem mais nada a ver com o jogo de esconde-esconde da libido e do recalque, mas que exprime justamente o contrário : a extroversão do consumo explícito, da exposição plena, que cega, ao invés de seduzir. A obscenidade é o reino chapado da superfície.” (Arantes,1989:268)


A hiper-realidade resulta do desvinculamento da imagem com o outro: a imagem substitui as coisas, é mais real que os próprios objetos. Enfim, a imagem obscena a realidade. Como então, pensar o olhar e a memória? Há uma ruptura radical na empreitada do olhar, entre a Modernidade e a Contemporaneidade: “A empresa tradicional do olhar não é mais possível, na medida em que pressupunha uma identidade e um significado intrínseco das coisas. Olhar então implicava descobrir um sentido que se tomava por dado nos indivíduos, relações e paisagens. Esta suposição de uma realidade anterior ao olhar, ao complexo processo de exposição que chamamos comunicação, é que, porém vem sendo colocada em xeque.”( Brissac, 1989:361)

Segundo Brissac, o compartilhamento anterior já não mais constitui uma espécie de pré-requisito à empreitada do olhar. O sentido precedia à imagem e se constituía como um conceito dado e socialmente partilhado. Na Atualidade predomina uma estilização hiper-realista, onde a avalanche de imagens sem referências, disponíveis e formadoras de nossa paisagem cotidiana, transforma a cópia, o simulacro, em algo mais verossímil que a própria realidade.(Arantes,1989:257) Funda-se uma outra relação entre o sujeito, a realidade e a memória. O triunfo da pura visibilidade aprisiona o olhar “à hiper-realidade imaginética de caráter eminentemente tátil”. (Arantes,1989: 257) A hiper-realidade, a visibilidade, a presença-poder da imagem, produzem uma espécie de promiscuidade absoluta. A imagem estruturante e apoteótica, transforma-se em elemento central de uma realidade e de uma memória, cada vez mais ex- cêntrica, múltipla, simultaneamente diversa. 11

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III Onde encontrar a manifestação mais radical desta “civilização do simulacro”? Onde perceber as transformações que a pós-modernidade imprime em nossa realidade e prática do olhar ? A cidade não mais apenas se revela através de suas imagens: ruas, avenidas, praças, prédios. Ela própria se edifica como imagem. Não mais apenas um império fervilhante de signos, como quer Ferrara (1993), mas ela própria constitui-se como um corredor de informações e imagens. Ela própria simulacro de si própria, representação estetizada, impregnada pela dimensão pragmática e conceitual. O espaço público não mais se realiza e se configura nas praças e no parlamento. O espaço público é o espaço da midia. A Cidade se “midiatiza”. Tais transformações, como nos lembra Luz (1998) institui novos regimes de sensibilidade, novas formas de presentificação. Trata-se de uma nova forma de existência da cidade, através da imagem. Superfícies e visibilidade, e não mais essências. Se a cidade Moderna até meados deste século pretendeu realizar a redenção social através da ordenação do espaço habitado, a Contemporaneidade resultou em seu exato contrário. A arquitetura e o urbanismo da sociedade do simulacro, constituem-se como um capítulo conclusivo do mito de que a ordenação do espaço sanearia as patologias das metrópoles modernas.

A Utopia Modernista acreditava poder resolver os antagonismos da metrópole através da reordenação do espaço habitado, ancorado no princípio do modelo único com validade internacional. (Arantes,1989) A cidade contemporânea é a cidade obscena. Não mais ordenada pelos projetos geometrizantes dos modernistas, mas feito um palimpsesto pelos produtores de imagens. Nestas cidades nosso olhar se transforma. A cidade não se configura mais como objeto de um olhar atento, contemplativo, enraizador, como na relação com muitas das artes. Tal e qual a dimensão aurática das artes se transforma com a emergência da industria cultural, a cidade, ao nosso olhar, se transforma em fenômeno tátil. Não mais vemos a cidade. A utilizamos. Não Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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foto José Márcio Barros

“...uma Utopia, sem dúvida, mas que tanto mais se transformava em seu contrário quanto mais procurava se realizar, embora parcialmente, através do traçado regulador, da unidade no detalhe, do tipo, da organização das funções, etc., na cidade.”(Arantes,1989:272)


mais cidadãos. Mas usuários e consumidores. Se o olhar, como o definimos mais atrás, “deseja sempre mais do que lhe é dado ver” (Novaes,1989:9), a delimitação, a geometrização e estabilização das relações sociais na cidade, impõe-se como uma violência sobre a experiência natural do olhar. A obscenidade da cidade oblitera, gera uma cegueira motivada pelo excesso de imagens. A onipresença do superficial denunciada por Fuller, delineia um novo olhar sobre a cidade. Não se trata aqui, de denunciar ideológicamente a contemporaneidade, empreitada ingênua e inconseqüente, mas de oferecer novos registros, tentativas sensíveis de captura do já visto e esquecido, e do nunca visto e não-lembrado. Daí o ensaio fotográfico sobre a Avenida do Contorno. Um olhar sobre a maneira como a avenida nos olha. Não um flerte romântico, mas uma rápida navegação por sua galeria de imagens. Não mais um flaneur, mas um navegador cibernético.

Ícone do projeto modernizante da nova capital do estado de Minas Gerais, a Avenida do Contorno transformou-se no que Marc Augé chama de não-lugar.5 Eis aqui um singelo percurso sobre sua realidade obscena.6

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NOTAS Antropólogo, Professor da PUC-Minas e da Escola Guignard (UEMG), Coordenador do Curso de especialização em Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard. - Ver Laraia (1986) 3 - Ver Comte-Sponville (1996) 4 - Ver Vaz (1996) (1997) 5 - Barros (1997) e (1998) 6 - Todas as fotos são de minha autoria e foram realizadas entre 2001 e 2002. 1-

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BIBLIOGRAFIA ARANTES, Otília Beatriz Fiori, “Arquitetura Simulada”, in NOVAES, Adauto (org) O Olhar, SP, Cia. Das Letras,1989, 257:283) BARROS, José Márcio, “ Cidade e contemporaneidade - Um exercício deAnálise”, Trabalho apresentado à Disciplina Representação, Tecnologia e Incerteza, Ministrada pelo Prof. Dr. Paulo Vaz, junto ao Doutorado e m Comunicação e Cultura, da ECO - UFRJ, Setembro - 1998. BRISSAC, Nelson, “O Olhar estrangeiro”, in NOVAES, Adauto (org) O Olhar, SP, Cia. Das Letras,1989, 361:366 CHAUI, Marilena, “Janela da Alma, espelho do mundo”, in NOVAES, Adauto (org) O Olhar, SP, Cia. Das Letras,1989,31:64 COMTE-SPONVILLE, André, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, SP, Martins Fontes, 1996 FERRARA, Lucrécia D’Aléssio, Olhar Periférico : informação, Linguagem, Percepção Ambiental, SP, EDUSP, 1993 LARAIA, Roque de Barros, Cultura um conceito Antropológico, Rio, Zahar, 1986 LUZ, Rogério, “Winnicott : experiência estética”, capítulos 13 a 21, in D.W.Winnicott Experiência Clínica & Experiência Estética”, LINS, Maria Ivone A. & LUZ, Rogério, Rio, Revinter,1998 NOVAES, Adauto, “De olhos vendados”, in O Olhar, SP, Cia. Das Letras,1989 PERRONE-MOISÉS, Leyla, “Pensar é estar doente dos olhos”, in NOVAES, Adauto (org) O Olhar, SP, Cia. Das Letras,1989,327:346 VAZ , Paulo , “A história : da experiência de determinação à abertura tecnológica”, In, AMARAL, M.T.D’(org.), Contemporaneidade e novas tecnologias, Rio, Sette Letras, 1996 “Globalização e experiência do Tempo”, In, MENEZES, P. (org.) Signos Plurais : midia, arte e cotidiano na Globalização, SP, Experimento, 1997 WISNIK, José Miguel, “Iluminações profanas (poetas, profetas, drogados)”,in NOVAES, Adauto (org) O Olhar, SP, Cia. Das Letras,1989,283:300

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MEMORIAS DA ABJEÇÃO Anotações e esboços sobre arte, corpo e memória Maria Angélica Melendi Escola de Belas Artes, UFMG Dos o tres veces había reconstruido un día entero; no había dudado nunca, pero cada reconstrucción había requerido un día entero. Borges ...como num teatro verdadeiro, sem disfarce e sem máscara, o dejeto como o cadáver me indicam aquilo que eu afasto permanentemente para viver. Porque a abjeção é, em soma, o outro lado dos códigos religiosos, morais, ideológicos sobre os quais repousam o sono dos indivíduos e a calma das sociedades. Kristeva

Lembro-me Lembro-me que, numa viagem a Itália no final dos anos 70, não cessava de reparar nas placas pintadas, gravadas, esculpidas na pedra ou fundidas em bronze que proliferavam nas ruas e vielas de grandes cidades e de pequenas aldeias. Não conservo nenhuma fotografia - há coisas que não se fotografam, mas a lembrança das intermináveis listas de nomes das pessoas que tinham sido assassinadas pelos fascistas, persiste. Numa esquina, num beco, no muro, na rua, os nomes, que impregnavam os espaços urbanos com as memórias da morte, multiplicavam-se, misturavam-se com antigas inscrições romanas, medievais, renascentistas ou barrocas, dialogavam com os grafites contestatórios e com os cartazes publicitários. A lembrança dessas inscrições, potencializada pelos acontecimentos dos mais de vinte anos que se passaram entre aquela viagem e hoje, denuncia, a posteriori, a existência latente de uma das preocupações centrais da cultura ocidental contemporânea: a preservação da memória. Naquelas ruas italianas, saturadas pelas imagens de séculos de história, as simples placas com as pequenas listas - às vezes eram três ou quatro nomesalcançavam uma visibilidade intensa. A simples enunciação: o fato, os nomes a data, acionava os processos da memória ao mesmo tempo em que inscrevia, na cidade, aquilo que a cidade não devia esquecer. Memória total Se o século XX nasceu sob o mito das rupturas radicais - os manifestos dos futuristas anunciavam a supremacia do mecânico sobre a beleza clássica e propunham queimar as bibliotecas e inundar os museus - o século XXI come15

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ça obcecado pela memória. A cultura modernista de acordo com Andreas Huyssen, foi energizada por utopias de “futuros presentes” que poderiam ser entendidos a partir da construção dos paradigmas de modernização, incluindo neles as alegorias de purificação racial ou de classe que desembocaram nos genocídios e nos massacres do século XX. O ensaísta utiliza a noção oposta de “passados presentes” para pensar no deslocamento na experiência e na sensibilidade do tempo que se opera a partir da década de 80. Esses passados presentes, talvez formações reativas à globalização, constituem-se através de uma musealização instantânea do espaço cultural e apontam para um desejo impossível de recordação total.1 A conjectura de uma memória total, vislumbrada por Borges em Funes, el memorioso, é aterradora. Ireneo Funes, que não só lembrava cada folha de cada árvore de cada serra, mas cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado, não era, porém, capaz de pensar. Pensar es olvidar diferencias, es generalizar, abstraer. En el abarrotado mundo de Funes no había sino detalles, casi inmediatos .2

O excesso de memória bloquearia o pensamento crítico, pois imoderado amor ao passado impede de viver o presente. Dessa maneira, a sociedade que conseguisse a recordação total estaria paralisada, presa para sempre numa rede infinita de lembranças, refém de uma interminável e dolorosa rememoração de detalhes irrelevantes. Memória ativa Na contemporaneidade, nos países latino-americanos, a memória invocada parece ser de outra espécie. O termo memória ativa criado por Eva Giberti, aponta para uma memória que se colocaria a serviço da justiça para se servir do passado sob o domínio da vida. De acordo com Giberti,

Essa memória se constituiria a partir de uma ação coletiva, consciente e constante que se faria efetiva através da reclamação. Para Giberti, essa reclamação é a função maior de uma memória que não cessa de se fazer ouvir. Uma memória que restituiria as redes de sentidos e, ao repor o que falta, o que não está, ou o que está no modo de não estar, resgataria do vazio aquilo que foi subtraído. A memória ativa se constituiria, assim, como uma memória ativada que permitira aos homens refazer a esgarçada trama dos dias, suturar as Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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fotos reprodução

La memoria conserva la temperatura y la vibración imprescindibles para salir al rescate de lo sucedido porque los seres humanos podemos quedar prisioneros de esa realidade corrompida en la que, por efectos del tiempo y el olvido, se desactivan los recuerdos de lo acontecido [...] porque cuando se carece de memoria se pierde la responsabilidade personal e institucional .3


feridas abertas pela violência do estado e convocar para junto dos vivos os que já foram e os que ainda hão de ser.4 Para o psicanalista argentino Hugo Vezzetti, seria necessário contribuir para um trabalho de reconstrução da memória que nos envolva, que seja capaz de interrogar e, eventualmente, alterar as certezas e os valores que contribuíram a obscurecer a recuperação teórica desse passado. Nesse sentido, uma genealogia da violência e da ilegalização das instituições do Estado não poderia estar ausente de uma memória que deseje ser eficaz na construção de um futuro diferente.5 Os mundos do corpo Em 1999, no Ars Eletrónica Festival, em Linz, Austria, entre fileiras e fileiras de computadores de última geração, distinguia-se uma plataforma isolada do público por uma corda de veludo. O que não seria incomum em outra exposição, parecia muito estranho nessa mostra. Mais ainda, uma placa com a palavra Verboten, mantinha o observador a distancia. A peça em questão era uma vitrine onde parecia acontecer uma partida de xadrez. (Como não evocar a foto da partida de xadrez que Marcel Duchamp jogou com uma jovem nua detrás de uma vitrine, na década de 60?) De um lado, uma máquina estava a ponto de movimentar a rainha branca. O oponente era um homem cujos olhos azuis fixavam o tabuleiro. Mas o homem estava esfolado, literalmente desprovido da pele e tinha seu cérebro exposto. Em toda a extensão do seu corpo, músculos, tecidos e ossos eram visíveis. Mas, o mais terrível dessa cena, organizada num claro contexto estético, era saber que

o corpo do jogador era um cadáver dissecado.6 A instalação, chamada Jogador de Xadrez, estava subintitulada como Arte anatômica. O texto que acompanhava o trabalho descrevia uma nova descoberta científica, um processo chamado plastination (do grego: tornar plástico). O processo, desenvolvido no Instituto de Anatomia da Universidade de Heidelberg, pelo anatomista Gunther von Hagens, como uma tentativa de 17

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aperfeiçoar o método egípcio de embalsamamento através da conservação de substancias orgânicas por meio de materiais plásticos, lograra manter inalteradas as células do corpo e o relevo das superfícies até o nível microscópico. Em 1997, o Dr. von Hagens apresentou, pela primeira vez, em Manheim, no Museu da Técnica e do Trabalho, na exposição Os mundos do corpo: Fascinação das Superfícies, mas de duzentos cadáveres humanos conservados através desse processo. O mais notável, porem, é que esses corpos - pretensos modelos anatômicos - foram esculpidos em pose de estátuas clássicas, as vezes brandindo uma espada, outras esfolados, exibindo sua pele como um troféu, abertos, expondo as próprias vísceras, ou jogando xadrez. A tradição do modelo anatômico, geralmente feito em cera, nascida na Renascença e que perdurou até o século XIX., inseria-se na área da estética ou da teologia. Essas imagens -além de esculturas eram produzidos desenhos e gravuras - eram realizadas por artistas de renome e excediam as estritas intenções da ilustração médica. Os médicos ou os cirurgiões da época não tinham a capacidade de intervir sobre o corpo humano com os níveis de refinamento que as imagens ofereciam. A principal meta da representação anatômica era, então, a exibição da “suprema arquitetura” que residia na criação divina. Nosce te ipsum, era o lema que guiava essas obras; a emblemática justificativa para a produção dessas imagens. As poses da antigüidade greco-romana, ou da iconografia cristã, eram recriadas pelos artistas anatomistas na forma de écorchés, esfolados, como Smugglerius, Écorché of Man in the pose of the “Dying Gaul”, Thomas Pink, 1775, ou a Crucifixão anatômica, Thomas Banks, 1801. Se em Leonardo da Vinci já emergia, sob a pele humana, o anonimato da anatomia, essa pulsão seria, depois, confirmada nas Lições de Anatomia de Rembrandt e, mais tarde, em Gericault, desenhando nos morgues dos grandes hospitais, ou em David e Daumier que registraram os espasmos dos condenados à guilhotina. Mas estes artistas e outros que seguiram seus passos, ainda permanecem no campo da representação ou do simulacro. Von Hagens, porém, invocando as esculturas anatômicas do passado, estetiza cadáveres humanos e os desloca de sua função de objetos de estudo de anatomia, para o campo mais amplo e mais indefinido de objetos estéticos. Quando visitamos museus, esquecemos muitas vezes que somos testemunhas mudas percorrendo galerias que conservam com impunidade os produtos ilícitos das rapinas de guerra, dos massacres étnicos, da violação de túmulos, do desmantelamento de santuários. E, se de alguma maneira, ainda tememos a maldição da múmia, nos tranqüiliza saber que esses crimes e esses cadáveres se perdem na noite dos tempos. Mas os corpos do Doutor Von Hagens são nossos contemporâneos e, mesmo que ele ofereça todas as garantias da legalidade do seu trabalho - não Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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cansa de repetir que foram corpos doados à ciência -, nos inquietam e perturbam. As exposições despertaram indignação em muitos dos lugares pelos que passaram, sendo consideradas doentias e macabras. Em Berlim, a Igreja Católica Romana da Alemanha rezou um réquiem pelas almas dos mortos. É em nome da ciência e não da arte, que o anatomista declara retirar os espécimes do anfiteatro anatômico e exibi-los pelo mundo. É em nome da ciência e não da arte que ele se propõe a criar um museu de corpos . Sua intenção é vã, os corpos plastinados exibem topos artísticos demais para ser considerados objetos científicos contemporâneos. Por mais que o anatomista declare que seu trabalho pertence ao campo da ciência, suas obras são preciosas e intocáveis como objetos de arte e como objetos de arte são vistas e debatidas pelo sistema. Nas últimas décadas, as artes visuais que, segundo Schopenhauer, se constituíam como um espaço de suspensão da dor de viver, tornaram-se o campo da dor e da morte. A arte nunca é imoral, lembra Paul Virilio, mas abandonar todo pudor, toda reserva, não é uma atitude imoral, é uma atitude perigosa.7 To abject/to be abject De acordo com Julia Kristeva, o abjeto é aquilo do que o eu deve se liberar para vir a ser um eu. Uma substancia fantasmática, alheia ao sujeito, mas íntima a ele, tão íntima que sua proximidade produz pânico. O abjeto aponta para a fragilidade de nossos limites corporais, para a precariedade da distinção espacial entre dentro e fora, assim como para a passagem temporal do interior do corpo materno a exterioridade da lei do pai. Espacial e temporalmente, a abjeção é uma condição na qual a subjetividade é problematizada e o sentido entra em colapso.8 Uma das questões da arte contemporânea é a possibilidade de representação do abjeto, caberia pois, se perguntar se é lícito exibir na cultura aquilo que se opõe radicalmente à cultura. A arte abjeta parece não poder evitar o uso instrumental e portanto moralista do abjeto. Assim, haveria duas possíveis direções: a primeira é a de se identificar com o abjeto e se aproximar dele de alguma maneira, para dar testemunho da ferida, do trauma. A outra é representar a condição da abjeção para provocar sua operação, para capturar a abjeção no ato, faze-la reflexiva, ainda que repulsiva por direito próprio. O corpo desperdício, o corpo resíduo que a arte contemporânea nos apresenta - mímesis, simulacro ou índice -, emerge da abjeção de suas próprias secreções e excreções. O que sai do corpo, dos seus poros e dos seus orifícios marca a infinitude desse corpo e provoca a abjeção. Como uma estranha floração, que não cessa de brotar e cair de um corpo que subsiste nesse estado permanente de perda, fezes, urina mas também cabelos, unhas, restos de pele, saliva, sémem, separam-se do corpo para se transformarem indícios, em teste19

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munhas eternas de sua ausência. Mas o que mais assume a abjeção do dejeto é o cadáver, elemento híbrido entre o animado e o inorgânico, um corpo sem alma, um não-corpo. O cadáver, aquilo que caiu, que se desprendeu da vida, transforma violentamente a identidade de quem o confronta. È a morte infestando a vida. Abjeto. É algo rejeitado do qual a gente não se separa, do qual a gente não se protege da mesma maneira que de um objeto.9

O abjeto perturba uma identidade, um sistema, uma ordem, não respeita limites, lugares, regras. É a ameaça do real que nos atrai e acaba por nos devorar.

distribuição dos fundos públicos para o apoio das artes. O autor dessa fotografia, Andres Serrano, norte-americano de origem hispânica e formação católica, é fascinado por religião, por ícones religiosos e pelas releituras kitsch dos mesmos. O artista começou seu trabalho apresentando imagens monocromáticas à maneira das pinturas modernistas. Grandes fotografias de espaços vermelhos, amarelos ou brancos que ao serem contextualizados como sangue, urina e leite eram deslocados do puro conteúdo formal para um campo de sentidos Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Uma pietas contemporânea Em 1989, a imagem um pouco desfocada de um crucifixo que se vislumbra, apenas, envolto por um halo de borbulhas, num campo vermelho, perturbou o mundo das artes. O monocromatismo da fotografia - a cruz e as pequenas bolhas aparecem numa tonalidade rebaixada, entre vermelho claro e laranja intenso-, outorgam um aspeto reverencial ao trabalho. O título, porém, desconstrói a imagem do ícone religioso ao apontar para um campo de sentido que não exclui a profanação e a blasfêmia. De fato, Piss Christ, 1987, foi proclamado blasfemo pela American Family Association que organizou uma campanha junto ao Congresso dos Estados Unidos com o objetivo controlar a


corporal. Na série Morgue (Cause of death), 1992, Serrano fotografa os cadáveres num necrotério. As grandes fotografias exibem enormes fragmentos de corpos mortos, detalhes do que não queremos ver, do secreto, do proibido. O tratamento teatral, estetizado - um fundo negro suntuoso, uma iluminação dramática - contrasta com a da crueza da morte violenta. As imagens, que num primeiro momento desafiam nossa capacidade de ver, em seguida, pela sua compulsiva beleza, nos impedem de desistir de olhar. Da mesma maneira, as fotografias de Joel-Peter Witkin constituem-se como alegorias laicas de sacrifício, danças da morte encenadas por um visionário profano. Uma verdadeira corte dos milagres atravessa suas imagens: Doentes, transexuais antes de serem operados, fenômenos de feira em atividade ou aposentados, indivíduos dotados de rabos, chifres, assas, barbatanas, garras, pés ou mãos invertidos, membros elefantinos, indivíduos que possuem um guarda-roupa completo de borracha, coleções privadas de instrumentos de tortura, de histórias de amor, de órgãos de animais, de seres humanos, ou provenientes de criaturas estranhas. Aqueles que portam os estigmas de Cristo .10

As fotografias do artista transitam por um território erótico e majestoso de imolação e sacramento, onde o sentido naufraga. Em algum ponto entre o sofrimento indizível do Cristo crucificado e a abjeção das torturas e dos genocídios contemporâneos, o ser humano parece atingir as profundezas abissais de um mal que não cessa. As obras de Andrés Serrano e de Joel-Peter Witkin, enquanto testemunhas do horror, mostram-nos os limites da condição humana e, ao provocar a perda simbólica do eu, proporcionam-nos os meios de recriar e de reencontrar nosso eu. Ao se identificar com a abjeção, as imagens desses artistas alcançam uma pietas rara na contemporaneidade. Memória dos corpos O discurso da memória, minado incessantemente por um desejo de esquecimento que se alimenta do medo e da culpa, aparece como um subtexto na obra de vários artistas contemporâneos. Para eles, as experiências extremas do genocídio e da diáspora latino-americana, que culminaram no episódio atroz da desaparição de milhares de pessoas sob as ditaduras militares, implementado através de brutais e sofisticados processos de esquecimento e sutis políticas de amnésia reconduzem a questão da memória a partir dos efeitos do poder sobre os corpos. As práticas de tortura, assassinato e desaparecimento perpetradas pelos regimes ditatoriais do continente, a epidemia da Aids, e a crescente violência dos grandes núcleos urbanos, conceitualizam o corpo como um lugar onde se 21

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Semear a memória O artista argentino Edgardo-Antonio Vigo, opõe-se à representação da abjeção. Vigo é um pioneiro, na América Latina, do que foi conhecido, mais tarde, como arte conceitual. Seu conceitualismo, porém, desconstruía os paradigmas sobre as fontes de instrumentação da obra de arte e as relações do artista e da obra com os espectadores. Os conteúdos políticos dessas primeiras obras limitavam-se ao questionamento do sistema das artes, da crítica e do mercado. As circunstâncias sociais e políticas da Argentina dos 70 e sua circunstância pessoal levaram Vigo a adotar uma postura fortemente engajada. O Mail-Art, Post-Art ou Arte Postal ? Vigo prefere Comunicación a distancia vía postal ? foi criado por Ray Johnson, no começo dos anos 60. Johnson criou um circuito via postal, incorporando certas práticas dos futuristas, dos dadaístas e dos surrealistas. Esses artistas confeccionavam e enviavam cartões postais irôniRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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consumaria uma batalha que ultrapassaria as suas próprias margens e que exibiria, nos seus fragmentos, resíduos de violência e rastros de traumas. A irracionalidade e a injustiça da dominação reaparecem como crueldade, na relação do sujeito com o corpo, seja o seu e o seja o do outro. De acordo com Adorno e Horkheimer, o amor-ódio pelo corpo impregna toda a cultura moderna, que o reconhece como um bem a ser possuído e, assim, distingueo do espírito, lugar do poder. O corpo como objeto é uma coisa morta, corpus, cadáver, tabu, objeto de atração e repulsão.11 O corpo, como lugar de interdição, é ardentemente desejado, ao mesmo tempo em que, por ser considerado inferior e servil, é menosprezado e maltratado. Exibido como lugar do sofrimento e da exclusão, doente ou ferido, repulsivo, às vezes morto, o corpo denuncia uma condição de abjeção. Nessa perspectiva a abjeção é um gesto político, que implica a narração e a exposição do corpo humilhado, do corpo-cadáver, e o retorno permanente de um corpo hipersignificado, que funciona como um suporte eficaz para a política cultural da sociedade pós-industrial. Sintetiza-se, nesse gesto, um sintoma obsessivo - que seria da ordem do patológico -, e um reconhecimento da eficácia concreta da memória na busca do corpo ausente, do corpo subtraído - literal ou metaforicamente - pelo aparato do Estado.


cos, interferindo sobre as imagens com textos, desenhos, pinturas ou colagens. Um fluxo de Arte Postal tinha começado a circular pelo mundo, com as seguintes instruções: add to and return to Ray Jonhson. Desde La Plata, Vigo integra-se a essa rede, que incluía vários artistas e poetas visuais latino-americanos: o chileno Guillermo Deisler, já falecido, Clemente Padín, uruguaio, Mathias Goeritz, mexicano, Dámaso Ugaz, venezuelano. O desaparecimento do seu filho mais velho, Abel Luis, o Palomo, faz com que Vigo, através desse circuito de Comunicación a distancia via postal, difunda, no exterior, informações sobre as atrocidades cometidas pela ditadura argentina. Selos com o nome do filho, postais e cartas são enviados para todos os cantos do mundo, numa corrente de indignação e esperança. Nesse período, o artista participa das mobilizações das Madres de Plaza de Mayo e promove a criação do poema coletivo Sembrar la memória para que no crezca el olvido, que se transformaria no lema das Madres. Para ele, Há coisas, como a violência, que tem um sentido muito real. Essas coisas podem se comunicar só através da enunciação. Penso que a violência não tem que ser representada num ato criativo. Eu não posso ser testemunha da tortura nem obrigar os outros a sê-lo .12

Quando as realidades físicas da tortura e da abjeção se impõem, Vigo recusa-se a encená-las. Para o artista, o ato da enunciação deve bastar. A violência não pode ser reproduzida como um ato criativo. Só a subversão das palavras permitiria o distanciamento e a resistência. Corpos espetaculares/ corpos ausentes A obra da artista visual brasileira Rosângela Rennó aponta, através da desconstrução de arquivos fotográficos, para a reatualização de memórias apagadas pelos processos amnésicos da sociedade pós-industrial. A Série Vermelha, 2000, é constituída por retratos de homens, jovens e meninos em uniforme militar. Soldados russos, prussianos, norte-americanos, brasileiros, membros da Juventude Nazista, alunos do Colégio Militar posam solitários, hieráticos, contra um fundo neutro. As fotografias de figuras masculinas fardadas, extraídas de álbuns de família que a artista coleciona, abarcam um arco temporal que vai de finais do século XIX até a década de 60 do século XX. Rennó refotografou as imagens, tratou-as para que perdessem o contraste e as virou para um intenso vermelho sangre. De acordo com a artista, essas fotos são exemplos do retrato burguês, mas, a posteriori, as imagens refotografadas proliferam sentidos e apontam para um universo significativo do qual pareciam estar afastadas. Destinadas à rememoração íntima dos afetos, esquecidas, depois, junto com o álbum de 23

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família em algum canto da casa e, finalmente, vendidas em mercados de antigüidades, as imagens dos homens e dos meninos fardados, alcançam uma visibilidade outra. Tristemente enfileirados, os vultos militares emergem das grandes fotos laminadas, sinistros e distantes, sombras que apenas se vislumbram na rica superfície escarlate. Como uma memória da abjeção, encharcados em sangue, atravessam o século. Uma genealogia da violência alinhava-se nessas imagens aparentemente inocentes. Não podemos deixar de pensar que lá, na nossa casa, uma caixa esquecida, um álbum olvidado deve conservar alguma imagem semelhante. O tio avô, aquele primo distante orgulhoso na sua farda, posando naquele retrato feito para salvaguarda-lo do aniquilamento espiritual. A Série Vermelha, ao recortar de cada álbum de família uma figura fardada e ao reinseri-la em outra série (outro álbum de família), aponta para uma retificação da memória. O trabalho de Rennó deixa entrever, para além da brilhante superfície vermelha, as imagens dos corpos que não podem ser representados, que não suportam a visão, que não podem se constituir como imagem. Solitários mas juntos, esses corpos espetaculares apontam, de viés, para a memória dos corpos ausentes.

NOTAS 1- Huyssen, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. p.7. 2- Borges, Jorge Luis. Obras Completas. 1923-1972. Buenos Aires: Emecé, 1981.p.490 3- Giberti, Eva. Memoria Activa. Publicado en Pagina 12, diciembre de 1992. http://spot.net.ar/evagiberti/artículos 4- Cf. Terán, Oscar. Tiempos de Memoria. In Punto de Vista n.68, p.12. 5- Cf. Vezzetti, Hugo. La memoria nos involucra. www.pagina12.com.ar/ 6- Newman, Marisa. Chess Players Stripped Bare by the Scientists, Even . http://residence.aec.at/rhizome/12.html. 7- Virilio, Paul. A Bomba Informática. São Paulo: Estación Liberdade, 1999. p.53. 8- Foster, Hal. The Return of the Real. Cambridge: The MIT Press, 1997. p.153. 9- Kristeva, Julia. Poderes de la perversión. Buenos Aires: Catálogos/Século XXI, 1988. p10. 10- Witkin, Joel-Peter. Joel-Peter Witkin. Coleción Photo Poche. Introdución por Eugenia Parry Janis. Paris: Centre National de la Photographie, 1991.s/n 11- Cf. Adorno, Theodor W. e Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p.217. 12- Entrevista concedida por Edgardo-Antonio Vigo à autora, junho de 1997.

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“O Visível e o Enunciável ou a Guerrilha dos Signos – Um breve estudo da correlação imagem-texto na obra de Cildo Meireles no auge da ditadura militar” Luiz Flavio Silva

“É preciso admitir, entre a figura e o texto, toda uma série de entrecruzamentos, ou antes, ataques lançados de um ao outro, flechas dirigidas contra o alvo adversário, operações de solapamento e de destruição, golpes de lança e os ferimentos, uma batalha.” (MICHEL FOUCAULT. Ceci n’est pas une pipe, 1973).

As dialéticas imagem-texto, visibilidade-legibilidade, signo-pensamento se colocam como uma questão complexa, especialmente no campo específico das artes visuais, pelo fato de questionar a idéia de fronteira no binômio visualverbal. Na nossa cultura, a construção do conhecimento se fez, de um lado pelo olho — “órgão semiótico”, responsável pela percepção sensível e símbolo da percepção intelectual — e do outro pela linguagem, haja vista a adoração da palavra, verificada desde a tradução judeu-cristã, cuja explicação para a origem do universo e do homem é a de um Deus invisível que cria tudo falando... No pensamento de Michel Foucault —epistemologia que assinala uma verdadeira crise da Razão — o saber é analisado como um composto de “estratos” ou “formações históricas”, agenciamento prático de “regiões de visibilidades e campos de legibilidade”. As “visibilidades” seriam formas não discursivas dotadas de leis próprias e de autonomia, sendo irredutíveis aos enunciados. Elas não devem ser confundidas com os elementos visuais ou de qualidades sensíveis, como os objetos, pois são “formas de luminosidade, criadas pela própria luz e que deixam as coisas e os objetos subsistirem apenas como relâmpagos, reverberações, cintilações” (DELEUZE, 1988:88). Já os enunciados seriam formas discursivas, funções que cruzariam as diversas unidades lingüísticas sem, no entanto, se confundirem com elas, sejam as palavras, as frases, os significantes, etc. Assim, visibilidades e enunciados são dois “registros em disjunção”, porém, que não cessam de se interpenetrarem, compondo as duas vertentes do conhecimento, da verdade. A arte, enquanto parte do conjunto de formas que compõe o saber, pode ser pensada como um espaço de modos de comunicação privilegiado onde se entrecruzam visualidades e regimes discursivos. Para Ricardo Basbaum, esse entrecruzamento é tanto maior quanto as obras de arte começam a anunciar os “limites do visível” — momento em que se inicia a “crise” do modelo clássico da representação e a pesquisa artística se volta para os próprios elementos formadores de linguagem plástica. Basbaum cita o historiador italiano 25

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Lionello Venturi, que relatou o “excepcional florescimento crítico que se deu na França por alturas da metade do séc. XIX, a propósito da pintura moderna”, comprovando a sua afirmação de que “a própria noção moderna de arte não se faz sem um preciso agenciamento entre práticas visuais e práticas discursivas”. Argumenta ainda a importância que tiveram os enunciados — justapostos às obras — no sentido de permitir a nossa compreensão atual da arte. Paradoxalmente, no momento em que a pintura abandona a narrativa (recusando-se a falar) é justamente quando se começa a verbalizar com maior freqüência sobre ela. Percebemos aí a proliferação de textos críticos, depois seguidos de manifestos durante o séc. XX, que apontam para o avanço crescente do discurso na validação das imagens e práticas artísticas. A substituição do modelo de iconicidade — que passa da “representação” (VÖRSTELLUNG) para a “apresentação” (DÄRSTELLUNG), impõe a necessidade de construção de um novo sistema de significados capaz de sustentar o “encontro de objetos que se pretendem pura e completamente visíveis com um campo enunciativo que, adequadamente, posiciona-se junto desses objetos, atravessando-os”. Como defende a visão semiológica, a matéria visual tem aí reafirmadas as suas significações ao ser repassada, ou atravessada, por mensagens lingüísticas. Entretanto, como observa Deleuze — interpretando a “Arqueologia do Saber” (Foucault) — as relações entre o visível e o enunciável sempre apresentarão “diferenças de natureza” e “heterogeneidade” das duas formas, além de “combates e capturas mútuas”. Sendo assim, tanto o campo de enunciados (os discursos) que se desenvolve, quanto os objetos (as obras de arte) que o reivindicam não deixam escapar sua diferenciação, especificidade e materialidade próprias, preservando-se enquanto entidades autônomas. Por outro lado, será do choque entre estas entidades que surgirão as possibilidades de “combates” e “capturas”, além de um território especificamente moderno da arte, que segundo Basbaum, “se identificará, então com um território híbrido, no qual entrelaçam-se objetos e significados”. Relações Texto e Obra de Arte Ao demonstrar a irredutibilidade das visibilidades em relação aos enunciados, Focault aponta para a impossibilidade das práticas enunciativas transporem os limites que as separam das “formações não discursivas”, assim como afirma a primazia dos enunciados que, entretanto, “fazem ver, embora façam ver algo diferente do que dizem” (DELEUZE, 1988:76). Atento a essa questão, Basbaum demonstra em seu texto que a “leitura correta” de uma obra de arte “torna-se uma relação problemática entre duas metades do verdadeiro”, principalmente se levarmos em consideração a conhecida passagem de Foucault: “Por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas o que as sucessões da sintaxe definem” (DELEUZE, 1988:74).

Diante do problema, Basbaum enumera três possibilidades de relações texto/obra de arte: 1. A possibilidade da institucionalização da arte, a partir de discursos oficiais e academizantes, que disputa o poder de nomear a obra para, em seguida, determiná-la, aprisioná-la a uma rotulação, a um arquivamento: “um discurso frontal, que obscurece a obra, rivalizando-se com ela”. 2. A possibilidade de o discurso atravessar a obra, e ser por ela atravessado, constituindo-se como discurso que é também criação — remetendo a um universo em que se confluem narrativas interpretativas, poéticas, analíticas e ficcionais, caras ao próprio Deleuze, quando define a filosofia como a “arte de formar, de inventar e fabricar conceitos”. Esse tipo de crítica remete ao espaço inaugurado por Baudelaire, para quem a crítica deveria ser “parcial, apaixonada, política (...) [de] um ponto de vista que abra novos horizontes” compartilhando com a obra descobertas, novidades, etc. (VENTURI, 1984:207). 3. A possibilidade dos textos de artistas, “discursos que compartilham de uma proximidade física quase absoluta com a produção plástica”, que se tornam uma rua de mão dupla, pois colocam, de um lado, a impossibilidade de evidenciar questões que exigiram um olhar do outro. Mas, em contrapartida, de acordo com Ricardo Basbaum: “(...) a proximidade do produtor da visualidade com o próprio trabalho tangenciaria um discurso que surpreenderia a obra no seu próprio momento de formação, uma cumplicidade absoluta, quase que a superposição das matérias expressivas verbais e visuais.”

Neste momento, diferencia-se a atitude tipicamente moderna e a contemporânea, segundo Basbaum. Enquanto que o artista moderno adotava geralmente o manifesto como prática discursiva (modalidade de texto que se soma às obras, mas não se confunde com elas), o artista contemporâneo atua no entrecruzamento dos dois discursos: do visual e do verbal, na mesma dimensão espaço-temporal, onde enunciados e visibilidades se confrontam num único processo: “a palavra migra para dentro da obra”. Para o artista moderno, o manifesto atuava numa temporalidade diferente da obra, precedendo ou sucedendo o objeto plástico. O artista contemporâneo faz coincidir o signo plástico e o enunciado verbal, colocando o enunciado criativo no interior da obra e não fora dela, sendo parte constitutiva de sua estrutura. Basbaum aponta ainda que “tal deslocamento da palavra para o interior da obra testemunha a condição enunciativa contemporânea do artista” e esse processo, mais observável a partir dos anos 1960, multiplicou expe27

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Texto e Imagem na Obra de Cildo Meireles As articulações entre imagem e texto na arte conceitual constituem um campo complexo de investigação teórica ainda pouco estudado no nosso país. Além do caráter essencialmente lingüístico e filosófico da maior parte da arte conceitual, há que se levar em consideração a multiplicidade de discursos, idéias e meios utilizados e, no caso específico do Brasil, todo um contexto histórico marcado pela emergência de uma nova ordem política, social e cultural. Com o Golpe Militar de 1964, seguido do AI-5 (1968), as décadas de 1960 e 1970 se apresentam como um período de grande represália e interdição à atividade intelectual e artística, mas também como um momento fértil de reflexão e elaboração de uma nova concepção cultural no país. No campo delimitado pelas Artes Plásticas, as novas proposições investiram numa outra maneira de focalizar a relação arte-política, estabelecendo conexões com movimentos como a Pop Art e o Noveau Realisme, assim como também a Minimal Art e a Conceptual Art, sem perder de vista as diferenças culturais e questões locais. De forma análoga àquela em que os expoentes da poesia concreta aproximaram seus poemas da forma visual, os artistas plásticos desse período passaram a inserir o texto nas suas obras, ora combinados às imagens, ora praticamente autônomos, adotando a palavra como portadora de conceitos, idéias e metáforas cujos referenciais eram a própria realidade brasileira. Um dos artistas que mais soube expressar essas questões foi sem dúvida, o carioca Cildo Meireles que, principalmente entre 1969 e 1978, produziu obras que fundiam imagens visuais e verbais, visibilidades e enunciados que tanto refletiam a própria noção de arte quanto o conturbado mundo real no qual se inseriam. Buscando a “possibilidade de pensar sobre arte em termos que não se limitassem ao visual” (CAMERON, 2000), Cildo criou um discurso artístico onde as relações entre o que é visível e o que é legível se apresentam, na maior parte das vezes, como dois registros em disjunção: diferentemente das legendas, que têm por função explicitar algo, as frases justapostas às suas imagens negam ou subvertem as certezas daquilo que é visto. A partir de “Árvore do Dinheiro” — uma “escultura” composta por cem cédulas de um cruzeiro dobradas, amarradas com elásticos e colocadas sobre uma base na qual se lê: “título: 100 notas de 1 cruzeiro. Preço: 2 mil cruzeiros” —, o artista começa a elaborar uma obra que, segundo o crítico de arte Paulo Herkenhoff, é “concebida e estruturada em torno de um ponto nodal em que o Real, o Simbólico e o Imaginário se articulam e encontram sua medida” (CAMERON, 2000). Este é o seu primeiRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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riências e hibridização de meios — audiovisuais, videoarte, etc — assim como o uso da palavra como parte integrante da materialidade da obra, conjugada ou não a outros elementos visuais, abrindo novas possibilidades para a arte.


ro trabalho a questionar diretamente a defasagem entre os conceitos marxistas de “valor de troca”e “valor de uso”, ou entre valor simbólico e valor real. Além disso, esta obra remete ao “cheque Tzank” — desenho de um cheque em tamanho natural feito por Marcel Duchamp com o qual pagou a conta no seu dentista. Ambos os trabalhos nos faz refletir sobre a forma em que no Ocidente, cultura da abstração e do conceito, tanto a Arte como a Economia constituem Linguagem, e como tal, conjuntos de signos cambiáveis. A série “Inserções em Circuitos Ideológicos”, desenvolvida a partir de 1970, acrescentaria a essas questões a idéia de “meio circulante”, e o texto passaria a ser interferência (ou “inserção”) fundante da estratégia artística. Um dos trabalhos mais conhecidos desta série foi o “Projeto Coca-Cola”, que consistia em gravar nas garrafas vazias (vasilhames retornáveis) do refrigerante da marca “Coca Cola” — um dos grandes ícones da expansão do imperialismo norte-americano — informações e opiniões críticas, como “yankees, go home!”. A técnica utilizada na impressão do texto sobre as garrafas, tinta vitrificada branca, permitia que a interferência passasse despercebida quando a garrafa era devolvida aos postos de compra do produto; porém, após o reabastecimento da mesma garrafa (que é feito por processo automatizado) e a sua recolocação à venda, o texto ficava visível, devido ao contraste com o líquido escuro do refrigerante e, assim, o produto passava a ser comercializado ao mesmo tempo em que divulgava mensagens contrárias à sua própria ideologia. Dessa forma, Cildo Meireles, se utilizou do texto numa operação contrária a dos veículos utilizados e seus mecanismos de funcionamento, desenvolvendo uma estratégia de cunho político. Ronaldo Brito, comentando a série “Inserções...”, nota que ela “erradica e dissemina de uma maneira que os aparelhos não detectam, produz surdos que não são assimilados pela política, (...) lapso ativo e significativo no Discurso dominante.” BRITO (1981:10) O “Projeto Cédula”, que também compõe a série, alia imagem e texto de uma forma inteligente e desafiadora: o artista carimbava cédulas com a pergunta: “Quem matou Herzog?” e a devolvia à circulação. A indagação causava muito incômodo pelo fato de que o jornalista Wladimir Herzog tivera sua morte anunciada oficialmente como suicídio quando, na realidade, como tantos outros, havia sido torturado até a morte. Além disso, a ques29

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tão propunha a instauração de uma dúvida que deveria ser mantida, pois ninguém em sã consciência destruiria o dinheiro por causa da frase. O mesmo expediente seria utilizado de uma outra forma, numa outra obra, intitulada “Conhecer pode ser destruir”, onde o artista escreveu um texto sobre um papel que foi dobrado várias vezes, perfurado e trancado com um cadeado e sua chave. A única forma de se saber o conteúdo do texto seria destruindo o objeto, paráfrase afiada da famosa frase de Francis Bacon (“Conhecimento é poder”) e metáfora perfeita para o contexto político do Brasil na época. Outras obras importantes da série “Inserções...” foram as cédulas de “Zero Cruzeiro” e “Zero Dólar”, confeccionadas de forma praticamente idêntica as cédulas autênticas. Nestes trabalhos também se observa a utilização dos textos (alfabético e numérico) no sentido de negação não das imagens, mas, dos objetos a que se associam. Nas cédulas, as imagens também são alteradas, de modo a intensificar a mensagem pretendida. Enquanto que em “Zero Cruzeiro” as efígies tradicionais de heróis nacionais são trocadas pelos “vilões” índio e louco, em “Zero Dólar” a troca se faz por uma imagem do Tio Sam e do Forte Knox. Essas obras são críticas explícitas à lógica que rege os valores de uso e de troca, assim como também às políticas monetárias capitalistas do Brasil e dos Estados Unidos. Em operações paradoxais, elas operam numa diluição do código vigente para a leitura da realidade nos circuitos de informação estabelecidos, se utilizando dos próprios “códigos fundantes” das sociedades capitalistas para criar a consciência a partir da ruptura. As “Inserções em Circuitos Ideológicos” nasceram a partir da constatação de que os mecanismos de funcionamento do sistema seguem um programa baseado em critérios da Razão Positiva, lógica dualista em que há pólos emissores e pólos receptores. A “memória” desse programa não seria capaz de absorver mensagens cifradas em códigos diversos àqueles a que não está programada, então o caráter dessas “Inserções” nesses circuitos seria o de “contra informação” (BRITO, 1981). O que estava em jogo não era uma questão objetiva de agenciamento de sentidos nos contextos dos circuitos de informação, mas o questionamento da inteligência das leis que regem estes circuitos e da sua infalibilidade. Portanto, estas obras são mais que simples espécies de discurso artístico ou de sociabilidade: são interferências políticas na medida em que objetivam um certo grau de esclarecimento do receptor. Além disso, elas alteram a relação produtor-receptor, pois, como observou Hal Foster, quando o artista passa a intervir na linguagem do cotidiano ele se torna “um manipulador de signos mais do que um produtor de objetos de arte”, enquanto que o espectador se torna “um leitor ativo da mensagem mais que um


contemplador passivo da estética.” (FOSTER, 1996). Assim como nas obras de Hélio Oiticica e Lygia Clark, artistas neoconcretos que emergiram no contexto nacional no final da década de 1950, na obra de Cildo Meireles de fins dos anos 1960, bem como durante toda a década seguinte, há um interesse renovado em trabalhar com a “idéia de público”. Isso ocorre em vários trabalhos seus do período, como em “Para Ser Curvada com os Olhos”, em que é exigido — assim como em inúmeras obras de arte conceituais — uma participação mental do espectador na obra. Diante deste objeto, uma maleta com duas barras de metal (sendo uma curva e outra reta), uma placa contém o seguinte enunciado: “duas barras de ferro iguais e cur vas”. O jogo de discordância entre o que se vê e o que se lê é mais uma vez utilizado, porém, outro texto — o título — sugere uma saída para o impasse. Mas, será possível tornar iguais as duas barras simplesmente com os olhos? Novamente, o discurso textual é colocado em xeque diante da “verdade” absoluta da imagem. Aqui a operação é inversa a do famoso cachimbo de Magritte (“Ceci n’est pas une pipe”.), pois a veracidade da imagem parece trair quaisquer dúvidas acerca da exatidão da legenda que a ela se sobrepõe. Parodiando Foucault, por mais que se escreva sobre o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se escreve. A propósito, certa vez Magritte escreveu: “o que vê, e pode ser descrito visivelmente, é o pensamento”. (DELEUZE, 1988:68).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRITO, Ronaldo. Cildo Meireles. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981.(Col. Arte Brasileira Contemporânea). CAMERON, Dan et alii. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. FOSTER, Hal. “Signos subversivos”. In: Recodificação, Arte, Espetáculo, Política Cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. VENTURI, Lionello. História da crítica de arte. São Paulo: Martins Fontes, 1984. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988. BASBAUM, Ricardo. “Migração das palavras para a imagem”. In: Gávea, Rio de Janeiro, nº 13, set. 1995, pp. 373-395.

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CONTAMINAÇÕES Um estudo sobre as obras de Lotus Lobo e Rosângela Rennó Janaina Mércia Alves Melo (Pós-graduanda em Artes Visuais pela EBA/UFMG)

1-Introdução A sedução que as obras de Lotus Lobo e Rosângela Rennó provocam resulta de uma crescente preocupação com a produção plástica da contemporaneidade e com seus aspectos formadores. Este texto apresenta algumas das formulações alcançadas a partir da pesquisa desenvolvida na pósgraduação da Escola Guignard (UEMG) e aponta os caminhos que essa investigação tem tomado ao longo do curso de Mestrado da Escola de Belas Artes (UFMG). Em Lotus Lobo a pesquisa concentra-se na produção realizada entre 1969 e 1979, quando a artista desenvolve suas litografias a partir de imagens de antigas matrizes e marcas litográficas usadas pela indústria mineira durante a primeira metade do século XX. Em Rosângela Rennó investiga-se a série em que se apropria de fotografias do arquivo do Museu Penitenciário do Estado de São Paulo. Produzidas entre 1920-1940 no Complexo Penitenciário do Carandiru, são fotografias que registram marcas, cicatrizes e tatuagens dos detentos e teriam por objetivo auxiliar no processo de identificação e controle da população carcerária. 2- Contaminação Contaminar tornou-se um conceito chave para empreender a pesquisa. Detive-me nesse conceito a partir da análise que Tadeu Chiarelli faz da arte fotográfica contemporânea brasileira, no artigo intitulado “A fotografia contaminada”. Nesse texto o crítico propõe que a fotografia contamina-se pelo olhar do fotógrafo, do fotografado, do outro que vê/lê a foto, pelos corpos que compõem a fotografia, pela existência de seus autores e pelos “usos” e “funções” que se fazem dela.1 Nesse jogo de significância desaparece o autor/criador, a fotografia se abre ao “encontro de olhares que permite construir jogos em que sujeito e objeto, em mão dupla, interagem” 2, contaminam-se. Nesse sentido fotografia contaminada seria aquela que habita as margens, situa-se nas fronteiras, locais de trânsito/passagem, só perceptíveis durante o processo de fruição, no enfrentamento sujeito (autor/espectador) -obra. As fotografias (re)produzidas por Rosângela Rennó a partir de negativos de vidro do Museu Penitenciário contaminam-se pelo passado e pelo presente. Tanto a foto “original”, ao ser deslocada para o universo da arte, quanto a foto artística contaminam-se mu33

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tuamente. As litografias de Lotus Lobo, do período que manipula rótulos industriais, também podem ser compreendidas como litografia contaminada, à medida que essas imagens são ao mesmo tempo litografias artísticas e registros de uma prática industrial esquecida e/ou superada – a litografia industrial. Tanto Rennó quanto Lobo apropriam-se de matrizes – negativos de vidro, pedras litográficas – cuja função primeira é produzir cópias, provas. Essa função, preservada pelas artistas, contamina-se através de dois movimentos. O primeiro, quando se apropriam das imagens e as deslocam para o universo da arte; o segundo, quando intervêm diretamente sobre elas, manipulando, saturando, desmanchando, marcando. A reprodução da foto e da gravura solicita a contaminação. A multiplicação, a manipulação, a inversão, o grifo, a (re)contextualização, o deslocamento, a apropriação são alguns dos movimentos possíveis de contaminação engendrados pelas artistas enquanto técnica, linguagem e/ou conteúdo. Nesse sentido, novos contextos visuais são apresentados para aquelas imagens que se encontravam em processo de esquecimento. Sem a intervenção de Lotus Lobo e Rosângela Rennó, tanto as imagens da litografia industrial quanto do arquivo penitenciário estariam destinadas ao desaparecimento. Os desenhos das antigas estamparias seriam perdidos, apagados para novos usos da pedra litográfica, ou ainda descartados como sucata, uma vez que os meios de impressão usados pelas estamparias no final da década de 1950 passavam por mudanças. As fotografias recuperadas por Rosângela Rennó também estariam fadadas à lenta destruição, pois se encontravam arquivadas em péssimas condições no Museu Penitenciário e até aquele momento não haviam merecido qualquer intervenção para catalogação, organização ou restauração. Ao interromper o processo de esquecimento a que estavam destinadas essas imagens, as artistas recuperam um material e trabalham com o que antes era considerado “resto sem utilidade”. Processando antigas gravuras e fotografias, reanimam o “corpo morto”, esse corpo reanimado contamina o ambiente da arte, contamina o espectador e o pesquisador, suscitando a crítica social, a discussão sobre história e memória, arte e vida. 3- Lotus Lobo e a questão litográfica Lotus Lobo tem sua atuação artística marcada pela linguagem litográfica. Na década de 1960 foi uma das fundadoras da litografia artística em Minas Gerais, e durante os anos 70 e 80, atuando à frente de importantes oficinas litográficas como o Grupo Oficina (1964), o ateliê de litografia da Escola Guignard (1966), a Casa Litográfica (1978) e a Casa de Gravura Largo do Ó (1984), foi responsável pela consolidação dessa linguagem no meio artístico nacional. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Os rótulos industriais solicitaram a artista desde seu primeiro contato com a litografia. As pedras que compunham o acervo da Escola Guignard traziam registradas em suas superfícies a memória de seus antigos usos na Imprensa Oficial de Minas Gerais. Eram desenhos de mapas, diplomas, faturas comerciais e bilhetes de loteria. Mais tarde, as matrizes adquiridas pelo Grupo Oficina3 também apresentavam desenhos; desta vez, de marcas de produtos da indústria mineira, como manteiga, queijo, bala, doces, banha, fumo etc. A artista, ao encontrar-se com essas imagens, teve um primeiro impulso de preservação. O que a atraiu foi a pedra, suas possibilidades de texturas, comunicação e memória. Minha primeira atração foi pela pedra litográfica, sua forma e matéria. Fiquei completamente envolvida. Desenhar em sua superfície foi um desafio. A pedra é dura, tem volume e mistério. Eu não senti vontade de desenhar nada, queria representar a própria pedra. Sua presença inspirava-me respeito e história de um tempo muito antigo .4

Interessava-lhe a possibilidade de refletir sobre o processo e o fazer da gravura. Sua atração pela pedra foi tão forte que, em 1965, ao realizar uma tríplice gravura para a montagem da peça Ato Sem Palavras, de Samuel Beckett, quis representar a pedra litográfica, refletir sobre seu formato e suas possibilidades de impressão. Nesse trabalho, que se chamou Mutação/Transformação/ Mutação-Transformação, Lotus Lobo apropriou-se da forma da pedra, investigou seus possíveis desdobramentos numa mesma superfície, num jogo entre a forma e seu duplo, negativo/positivo, branco/preto, cheio/vazio que informou a artista sobre as possibilidades da impressão litográfica. À medida em que a superfície se tornou mais compacta, tentei uma imagem mais aberta: busquei a possibilidade de um desenvolvimento. Na gravura realizada para o espetáculo de Samuel Beckett, essa idéia está latente na utilização de uma imagem-tríptico, ou seja, de uma imagem final produzida por associação de fragmentos unitários. Cada um destes fragmentos continha, ademais, uma área simples definida: as três, em sucessão, indicavam um desenvolvimento: branco-preto-branco, três momentos de uma única estrutura .5

Em 1967, Lotus Lobo apresentou seus primeiros trabalhos com os rótulos industriais no Salão de Belas Artes de Belo Horizonte. Em 1969, foi convidada para participar da Pré-Bienal de Paris. Para realizar os trabalhos da mostra, procurou a Estamparia Juiz de Fora – Indústrias Reunidas Fagundes Netto – em Juiz de Fora, onde teve acesso a novas matrizes de pedra e zinco, além de tintas gráficas de todas as cores. Nesse mesmo ano, desdobrou seus trabalhos em três lito-objetos manipuláveis, apresentados na X Bienal Internacional de São Paulo, e no ano seguinte realizou sua primeira mostra individual, onde expôs, além dos lito-objetos, marcas impressas em materiais transparentes – plásticos, papel vegetal e acetato –, bobinas de papel e maculaturas.6 Ao apropriar-se de marcas-embalagens produzidas para um pequeno 35

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grupo de produtores/consumidores situados numa região específica7 – das margens do São Francisco à Zona da Mata – Lotus Lobo se apropriou de um repertório icônico extremamente rico, resgatando matrizes da estamparia litográfica “e os combinando para novas impressões – transplantando o signo de um nível de realidade para outro, sem quase tocá-lo, sem a menor sombra de artifício”.8 Porém, suas apropriações não se restringiram ao mero deslocamento da imagem de um lugar para o outro. Ao repetir a impressão da gravura industrial, a artista recuperou um fazer obsoleto, mostrando seu processo artesanal de fabricação, resgatando a memória de um mundo em extinção. Este paradoxo passa a informar o seu próprio trabalho: ao reproduzir, mais uma vez, ela reproduz mais de uma vez – intensificando a expressividade, a dimensão emocional deste artesanato. A multiplicação, a inversão, o desdobramento em transparência na profundidade, a superposição, traduzem para um novo contexto visual estas imagens produzidas no tempo e no espaço: e o que se recupera, nesta tradução, é a dimensão histórica de uma economia em processo de desgaste, de uma técnica de reprodução ultrapassada. (...) E o que poderia não passar de um tema extravagante, ou saudosista assume a dimensão de uma meta-linguagem: Lotus opera um ato criativo de modo renovadamente crítico, em relação aos signos, situações, lugares e objetos repertoriados: em relação à cultura de que eles participam: em relação à própria litografia industrial de que ela se serve para comentar esta cultura .9

Sua maior invenção artística não estava na apropriação pura e simples das marcas litográficas10 , mas no trato com essa matriz primeira. A recuperação de um traço anterior permitiu reviver, através de novas gravuras, antigas imagens da litografia industrial, recuperando com ela todo um repertório icônico que falava sobre um universo de costumes e hábitos de uma deternimada época e lugar. 4- Rosângela Rennó e a imagem fotográfica Rosângela Rennó constrói seu fazer artístico a partir da década 1980, quando, ainda estudante da Escola Guignard e da Escola de Arquitetura da UFMG, inicia sua investigação da linguagem fotográfica. Interessada nas possibilidades de ressignificação da imagem fotográfica, nega-se a fotografar, voltando seu fazer para a apropriação de fotografias preexistentes. Nesse processo, cria um dos conjuntos plásticos mais significativos da arte contemporânea brasileira, promovendo, com sua arte, discussões sobre o universo feminino, cotidiano, memória e identidade. Ao dar início à sua produção plástica, em meados da década de 1980, a artista escolhe a fotografia como linguagem. No entanto, desde seus primeiros trabalhos, afasta-se de seu caráter documental para refletir sobre seus possíveis desdobramentos através de movimentos de deslocamento, apropriação e manipulação de fotográficas pré-existentes. Nesse processo Rosângela Rennó Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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chama a atenção para a incapacidade de assimilação do número excessivo de informações visuais que nos atropelam todos os dias. Esse turbilhão leva-nos a um processo de esquecimento, “um mar abissal de egos em sombra (...) de banalização e perda de significado”.12 O trabalho com os arquivos fotográficos do Museu Penitenciário do Estado teve início em 1995, quando Rosângela Rennó descobriu, nos arquivos do Museu, inúmeros negativos de vidro que traziam registros de fragmentos de corpos de perfil e frente, marcas, cicatrizes e tatuagens. Essas imagens foram produzidas entre 1920 e 1939, por um fotógrafo desconhecido, supervisionado pelo Dr. José de Moraes Mello, então psiquiatra-chefe do Departamento de Medicina e Criminologia da Penitenciária do Estado. Os negativos de vidro haviam permanecido por quase meio século esquecidos nos porões no complexo penitenciário do Carandiru, sem nenhuma identificação, registro, catalogação ou acondicionamento. Entre 1995-96, Rennó, interessada em acrescentar essas imagens ao seu material fotográfico, dedicouse a um projeto de organização, limpeza e acondicionamento do acervo. Para realizar o trabalho articulou as fotografias dos presidiários com textos do projeto Arquivo Universal, que teve início em 1992. Trata-se de um arquivo construído a partir de textos que falam de fotografia ou remetem à imagem fotográfica, recolhidos em jornais. Rennó recorta os textos, que num segundo momento são transcritos para o computador; nesse deslocamento retira toda e qualquer referência a nomes, locais e data que possam contribuir para a identificação do sujeito. Retirando a identidade fica apenas o corpo, que segundo a artista transforma-se numa: (...) informação polida e transparente que contém uma imagem latente que o espectador realiza durante o exercício de leitura. O corpo da letra, da palavra e do texto se tornam o corpo fotográfico. A virtualidade do arquivo permite que sejam realizados diferentes conjuntos de imagens, cumprindo tarefas diferentes, em diferentes suportes, em função do espaço destinado à sua veiculação, do contexto e do próprio teor da mensagem .13

Ao subtrair a própria imagem, negá-la em função de um outro veículo de comunicação – o texto, Rennó realiza uma equação em que o texto se transforma numa imagem. “Quando exponho o texto, obrigo o espectador a ler. Ele compreende o conteúdo e constrói sua própria imagem. De uma certa maneira ele destrói o texto que acabou de ler no momento em que constrói uma imagem mental”.14 No projeto Cicatriz apresentado em 1996 como uma instalação no Museum of Contemporary Art of Los Angeles, nos Estados Unidos, a artista apresenta 18 fotografias de tatuagens e 12 textos do Arquivo Universal. Consignando texto/imagem – Arquivo Universal e fotografias de tatuagens dos presidiários – Rosângela Rennó cria um novo arquivo visual, gerado pela tensão entre o texto sem imagem e a imagem sem texto. O espectador é convidado a entrar 37

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no jogo atuando como proponente de novas intertextualidades visuais. Naquele momento eu estava interessada em reforçar que aqueles indivíduos não são anônimos. Mesmo sem saber nomes, meu propósito era provocar no espectador o desejo de conhecer e compactuar com aquela dor, ou as várias dores. Então por isso escolhi deliberadamente certos textos do Arquivo Universal, para atuarem junto com as imagens, quer dizer, tirá-las de uma espécie de limbo coletivo do presídio. Os textos não têm nada que ver com os presos, mas tratam igualmente de singularidades, de situações extremamente particulares. (...) Gosto da idéia de fazer você descobrir o indivíduo, se relacionar com ele ou recuperar através dele sua própria história pessoal .15

Se num primeiro momento a artista pretendia recuperar essas imagens para “usaá-las” esteticamente, num segundo momento seu interesse volta-se para a preservação desse “arquivo que se inscreve no corpo”, num desejo de propor uma reflexão sobre memória. Refletindo sobre os sistemas punitivos da sociedade brasileira, ela questiona se a memória da carceragem deve ser vista como algo a ser preservado. Do ponto de vista conceitual, o projeto que tinha uma intenção estética baseada na intertextualidade entre imagem e texto provenientes de repertórios diferentes adquiriu o caráter de ação política em dois níveis. Primeiramente, o aspecto menos visível, tratava-se também da intervenção direta sobre uma instituição governamental, o Museu Penitenciário. Numa segunda instância, a recontextualização e a visibilidade de um conjunto de fotografias do Museu dariam o ‘tom da conversa’ sobre anonimato, identidade, memória, disciplina e poder .16

Na verdade o que se coloca em questão nas fotografias dos detentos é a impossibilidade de recuperação da identidade do sujeito fotografado. A cicatriz, marca e tatuagem que são características específicas do indivíduo ou foram feitas no intuito de diferenciá-lo do grupo, tornam-se, através do olho fotográfico, nada além do que meros fragmentos de corpos. A identidade social lhes é negada, pois não é possível recuperar a partir dessas imagens suas identidades pessoais, a face não se dá a ver. É somente através da marca, cicatriz e/ou tatuagem que se torna possível (re)construir a narrativa. Paralelamente, as fotografias que foram desenvolvidas pelo departamento médico do presídio não possuíam nenhum registro, relatório ou procedimento de consulta. Perderam portanto todos os referenciais oficiais de leitura; o sujeito não pode mais ser identificado, e a marca/cicatriz/tatuagem fotografada como um objeto de análise perdeu esse sentido primeiro. No entanto, o corpo tatuado ainda está ali, ele funciona como um diário, e é através do corpo que se faz a leitura. Nesse sentido as tatuagens tornam-se a narrativa da marca, da linguagem e da expressão. O corpo se exibe como suporte para um texto, um código cifrado cuja mensagem só pode ser desvelada pelos leitores “aptos” a lê-las. Os presos parecem levar escrito na pele tudo que têm a dizer sobre si mesmos. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Uma névoa espessa recobre a história do sistema penitenciário e a torna opaca. É nessa opacidade que reside meu interesse pelas imagens que já tinham a origem e o destino selados: a invisibilidade. Origem: invisibilidade, quando me refiro à característica intrínseca daquelas imagens que foram produzidas para serem arquivadas e para que seus referentes definitivamente esquecidos. Destino: invisibilidade, porque estas imagens que se confundem com a escatologia do próprio sistema penitenciário foram quase destinadas ao lixo .17

As imagens são, portanto, testemunhas de um projeto que buscou tornar invisíveis aqueles sujeitos privados de suas liberdades. Afastar a fotografia de seu contexto natural de identificação (...) não é esvaziá-la de seu conteúdo simbólico inicial, mas libertar seu referente da condição de estatística penitenciária. Devolver visibilidade a essas fotografias significa expor a dor da privação do direito de ser livre e da perda da identidade e o desejo de resistir à amnésia e ao anonimato. (...) A tatuagem dentro do presídio pode ser considerada como um índice de resistência do indivíduo ao anonimato, a perda da identidade, à amnésia. (...) Ao relatar e imaginar os pequenos dramas humanos, os textos do Arquivo Universal entram em sintonia com os desenhos das tatuagens e potencializam as imagens do Museu Penitenciário. Atuam como cúmplices das imagens, devolvem a dimensão de particular e individual às imagens de “arquivo morto” e humanizam aqueles indivíduos que não têm mais nome .18

As fotografias foram realizadas como tentativa de dominar toda e qualquer possibilidade de expressão pessoal, mantendo sob vigilância até as marcas/tatuagens inscritas no próprio corpo do presidiário. No entanto, as mesmas marcas que nesse primeiro momento foram aprisionadas pelo olhar fotográfico, no universo da arte, através desse mesmo veículo perpetuam a memória e negam o esquecimento – tornando-se “a vingança daquele que, por não poder falar, escreveu na pele” e ainda “o triunfo/redenção da imagem abandonada”.19 Nos trabalhos da artista, a fotografia que teve em sua origem o caráter de “prova” é destituída dessa função primeira. Em Rennó a prova dá lugar à linguagem, é por meio da linguagem que burlamos as imposições e criamos novas possibilidades. Ao mesmo tempo é na linguagem que se encontra o lugar da incerteza – “a linguagem é por natureza ficcional”.20 5- Considerações finais Acredito que no processo de deslocamento da matriz – a litografia industrial e o arquivo fotográfico – levado a cabo pelas artistas, as fronteiras do universo da arte são redefinidas. Nesse sentido, muitas das possibilidades apontadas neste artigo permanecem mais como perguntas do que como respostas: como se realiza o processo de contaminação? Qual é a leitura a se fazer de uma obra contaminada? Em que medida uma obra de arte pode ser ponto de parti39

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da para a reflexão sobre a história e memória? Em que medida uma obra de arte é um monumento? Em Lotus Lobo a litografia industrial e todo o universo que a compõe invadem o território da arte, remetendo o nosso olhar para a memória de uma antiga prática. Da mesma maneira Rosângela Rennó promove o deslocamento de arquivos fotográficos, propiciando a discussão sobre o esquecimento e sobre a perda de identidade e processos de exclusão. Nas mãos das artistas, as fotos das marcas litográficas e do arquivo penitenciário são deslocadas de seus antigos usos, construindo novas visualidades para a arte contemporânea brasileira. Ao trazer para o território da arte e atribuir novos significados a essas imagens, Lotus Lobo e Rosângela Rennó redefinem seus usos e fronteiras, propiciando um amplo campo de investigação para os historiadores e críticos de arte. Mesmo tendo perdido o seu “instrumento oficial de leitura”, essas imagens são, no universo da arte, abertas a outras leituras. Visitando lugares esquecidos, as artistas contribuem de forma decisiva para a costura da uma memória brasileira. NOTAS Cf: CHIARELLI, Tadeu. Arte Internacional Brasileira, 1999, pp. 115-120. CASANOVA, Vera. A foto(grafia) como leitura. In: TEXTURAS: ensaios, 2002, p. 65. Em 1964, um grupo de jovens artistas – Lotus Lobo, Eduardo Guimarães, Frei David, Klara Kaiser, Nívia Bracher, Paulo Laender e Roberto Vieira – criou o Grupo Oficina, cujo interesse era experimentar a litografia e realizar através de reflexões, palestras, cursos e debates a ampliação de suas ações criativas. Em 1966 o grupo se desfez, mas sua ação na cidade de Belo Horizonte contribuiu com um salto qualitativo da arte mineira rumo à criação de vanguarda, fazendo suas produções saírem da dominante tradição guignardiana, “buscando não só tratar de assuntos novos, como também tocar as tendências recentes do abstracionismo de fundamento lírico e construtivo, como as novas figurações, o matérico e o realismo crítico.” SAMPAIO, M., A Litografia em Minas Gerais, 1986, [s. p.]. 4 LOBO, L. Lotus Lobo - Depoimento, 2001, p. 13 5 LOBO, L. Depoimento inédito. s/d, [s.p.] 6 As maculaturas, são impressões em folhas de flandres usadas na fábrica para o acerto das prensas. Na Estamparia, sempre que os impressores faziam uma nova impressão, usavam essas chapas – que denominavam chapas sujas – para acertar as cores. As chapas eram (re)utilizadas várias vezes até serem descartadas como sucata. 7 Para ver um pouco da histórica da litografia industrial em Minas Gerais é conveniente a leitura de Márcio Sampaio. A Litografia em Minas Gerais. In: 25 Anos de litografia de arte em Minas, 1986, [s.p.]. 8 ARAÚJO, Olivio Tavares de. Ver/Ler Minas: um Roteiro. In: Ícones da utopia, 1990, p. 8 9 GUSMÃO, Luciano. Release para a exposição de Lotus Lobo Marca Litográfica, 1970, [s.p.] 10 SAMPAIO, Márcio (1970) e RIBEIRO, Marília Andrés (1997) destacam que a apropriação das imagens da litografia industrial aproximariam o trabalho de Lotus dos ready-mades de Duchamp e que nesse movimento estaria “a sua grande invenção”. No entanto, a própria artista refuta essa observação ao esclarecer que o deslocamento era um mero pretexto para a reflexão sobre a memória da litografia industrial, a recuperação de uma prática em desuso e de todo o repertório icônico em processo de esquecimento. 11 Nas primeiras impressões fotográficas realizadas no Brasil no século XIX, bem como durante a primeira metade do século XX, privilegiava-se o caráter documental da fotografia. “A razão de ser da própria fotografia passou a ser, o registro – ou a construção – da identidade do brasileiro.”(CARVALHO, M. e WOLFF, S., Arquitetura a fotografia no século XIX. In: FABRIS, A. (org.). Fotografia: usos e funções no século XIX, 1998., p. 160.). Essa perspectiva mudou no início da década de 60 “quando, a fotografia deixou de ser apenas um documento para se transformar, também em linguagem.”(CHIARELLI, T., Sobre a fotografia brasileira atual, s/d, [s.p.]) Os artistas procuravam organizar a linguagem visual rompendo com as categorias técnicas tradicionais – pintura, escultura e desenho – para refletir sobre as possibilidades da arte como experimentação de todo e qualquer suporte. Nesse sentido não só “materiais estranhos” ao universo da arte são apropriados para a elaboração de novas visualidades como também, as novas mídias – a fotografia, o vídeo e o filme – veículos comumente relacionados à comunicação, são apropriadas pelos artistas para realização de experiências estéticas. 12 HERKENHOFF, P., Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In: Rosângela Rennó, 1998, p. 152. 13 RENNÓ, Rosângela. Fotografias de tatuagens do Museu Penitenciário Paulista e textos do Arquivo Universal. In: GOIFMAN, Kiko. Valetes em slow motion - a morte do tempo na prisão: imagens e textos, 1998, s/p. 1 2 3

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RENNÓ, Rosângela. In: Rosângela Rennó - depoimento, 2003, p. 11. Idem ibdem, p. 17. 16 RENNÓ, Rosângela, op. cit., 1998, [s.p.]. 17 RENNÓ, Rosângela, op. cit, 1998, [s. p.]. 18 Idem, ibdem. 19 RENNÓ, Rosângela, op. cit., 1998, [s.p.]. 20 BARTHES, R, A câmara clara, 1984, p. 128. 14 15

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ARAÚJO, Olívio Tavares de. Ver/Ler Minas: um Roteiro. In: Ícones da utopia. Belo Horizonte, Palácio das Artes, 1990. BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. CASANOVA, Vera. A foto(grafia) como leitura. In: Texturas: ensaios. Belo Horizonte: Editora da PUC, 2002. CHIARELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira. São Paulo: Lemos-Editorial,

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HOMEM/ARTE /ESPAÇO: UMA INTERAÇÃO DIALÓGICA Gisela Eugênia de Castro Alves

Desde que a obra de arte passou a ser considerada não apenas o objeto plástico por si só, mas tudo o que este evoca e suscita no homem quando ambos se inserem em um mesmo campo espacial, já não se pode ter acesso à obra, sem que se tenha acesso à toda situação que ela gera. Na verdade, grande parte da produção artística contemporânea é o resultado de uma experiência que se apresenta quando os elementos expostos - homem, objeto artístico e espaço - se associam dialeticamente, interagindo mutuamente. “Uma obra tem início quando se inscreve em um espaço e começa a dialogar com ele. A partir daí, nunca será uma forma e o fundo, uma figura e um espaço, mas o profundo diálogo de um com o outro, a relação que vai se estabelecer entre os dois. Desse corpo a corpo nasce uma obra” (BERGSTEIN apud POIAN, 2001: 35). Obviamente, esta interdependência entre o objeto artístico e o espaço em que este se inscreve, sempre existiu. Porém, quanto a este aspecto, o que diferencia a produção artística anterior à da fase contemporânea, é o fato de que o espaço da obra coincidia com o espaço físico do objeto artístico. Toda narrativa da obra se dava no interior desta, num espaço bem definido, bem delimitado. Até a modernidade, o limite espacial do objeto artístico o separava do mundo cotidiano. Não existia comunicação entre o espaço físico da obra e o espaço do mundo, pois a moldura na pintura e a base na escultura, constituíam os limites entre estes dois espaços. Foi a partir dos anos 60, quando alguns artistas, enfatizando o aspecto conceitual e o sensível em suas obras, começaram a expandir o espaço poético de suas criações. Essas manifestações acarretaram profundas transformações nos padrões de espaço e percepção, pois até então, “a legibilidade do mundo pressupunha apenas referências visuais através da experiência e da observação ocular” ( BRISSAC, 2001: 24). Considerando os questionamentos que nos defrontam ao apreciar grande parte da produção contemporânea de arte, o presente ensaio pretende com base na análise de parte das produções artísticas de Hélio Oiticica, Robert Smithson, Cildo Meireles e Richard Serra, instaurar uma reflexão em torno das possibilidades de uso e exploração do espaço pela arte. Hélio Oiticica: do pictórico ao ambiental. A escolha de Hélio Oiticica para dar início à reflexão aqui proposta, surge do fato de que seu itinerário artístico ilustra exemplarmente a busca por um novo espaço estético capaz de instaurar novas relações entre fruidor e Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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obra e de promover uma reconceituação da ‘obra’em si. O artista inicia sua produção na Arte Concreta, em 1954. Mas, foi a partir do Neoconcretismo, mais precisamente, dos Metaesquemas em 1957/58 até os Núcleos em 1960/63 que Oiticica deu início à uma seqüência notável de propostas com o objetivo de romper com a estrutura bidimensional do quadro. Ao analisá-las nota-se como cada uma surge como efeito colateral da anterior. Era como se cada proposta anunciasse o desencadear de outra, gerando uma proliferação de trabalhos em cadeia, que propiciaram, no decorrer do processo, retirar a pintura do plano, promovendo a desintegração do quadro e a espacialização da cor. Durante estes anos, apesar de seus trabalhos ainda manifestarem a experiência pictórica, Oiticica leva a pintura ao seu limite explorando através dela mecanismos como instabilidade gráfica na relação forma/fundo, monocromatismo e destacamento da tela da parede e por fim a suspensão dos trabalhos por fios presos ao teto levando o espectador a transitar em torno deles. “A partir daí, só há um caminho: sair para o espaço, soltar a cor”.(FAVARETTO 1992: 58) Como conclusão desta fase o artista desenvolve os Núcleos e dá o primeiro passo em direção ao Programa Ambiental.

Os Núcleos consistem em placas de madeira pintadas, com dupla superfície, que estão fixadas a um teto ripado em posições marcadas. Estas placas, dispostas arquitetonicamente, pendem soltas, criando uma estrutura em forma de labirinto que incorpora o espaço como elemento constituinte da obra permitindo ao apreciador entrar e percorrer o campo de ação desta. A partir de 1964, Oiticica desloca sua obra para a criação de ambientes participacionais que compõem o Programa Ambiental, focalizando seu trabalho na construção de lugares abertos para serem vivenciados, espaços onde se processam a transformação da arte em sensações de vida. Tais produções por 43

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consistirem em uma “arte penetrável”, foram denominados de Penetráveis. O espectador, agora, pode não só ver o trabalho proposto pelo artista, como também tocar, ouvir, sentir e pisar, ou seja, “organificar o espaço” (FAVARETTO 1992: 66) da obra. Com o Programa Ambiental, Hélio Oiticica, afirma que o artista não é mais um criador de objetos para contemplação, e sim um motivador para a criação, que só se conclui com a atuação do público. A Tropicália (1967) é um exemplo bastante propício do que vem a ser o Programa Ambiental de Oiticica. Tropicália é um ‘ambiente-acontecimento’ que articula signos tipicamente tropicais, uma espécie de labirinto feito de dois Penetráveis, que proporcionam experiências visuais, tácteis, sonoras e lúdicas. O participante caminha sobre areia e brita e depara com araras e com poemas por entre folhagens que exalam um forte aroma. No final do labirinto uma televisão permanentemente ligada no escuro transmite as imagens que absorvem o participante na sua trajetória. No Programa Ambiental o essencial não é dar um sentido a objetos e espaços, mas sim, proporcionar o confronto dos participantes com as situações do ambiente. Todo este processo de ruptura com os formatos e suportes tradicionais da arte, até então vigentes, motivou o trabalho de Hélio Oiticica. Suas produções promoveram um suave deslizar da pintura para o ambiente-mundo que desencadearam no decorrer dos últimos cinqüenta anos, manifestações como as Instalações e a Arte Pública, mostrando-nos que por meio da arte a relação interativa entre homem e espaço não só se evidencia, como também se potencializa. Robert Smithson: do espaço imaginário ao real. O artista norte-americano, Robert Smithson, um dos pioneiros da Land Art desafiou com sua produção o sistema da arte predominante, viabilizando, uma abertura e expansão deste para as possibilidades espaciais do mundo. Para Smithson a arte representava o meio, o instrumento com o qual o ser humano pode atuar no mundo em um processo contínuo e renovado. Através de seus trabalhos ele não só relacionou arte e espaço, estabelecendo um diálogo entre o espaço museístico e o espaço social, ou o ‘espaço imaginário’ e o ‘espaço real’, como também, questionou a legitimidade do ‘lugar’, enquanto local para instalação e exposição da obra de arte. Portanto, o que delineia e diferencia o seu questionamento é o fato de que sua atuação artística viabilizou uma “ampliação e repotencialização do fenômeno arte” (JUNQUEIRA, 1996: 568). Para viabilizar tais reflexões, ele lidava com as ações de apropriação e deslocamento de elementos do reino mineral como terra, pedra e areia, acompanhados de fotografias, desenhos, mapas e outros materiais que os remetem ao local de onde foram retirados. “Esse deslocamento só pode então ser realiRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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zado a partir da ‘metáfora’, que em grego significa o transporte do incomensurável para o confinado. Os poucos elementos que compõem suas obras [...] constituem-se como uma situação metafórica, um sistema de signos que remetem sempre para outro lugar, fora e distante da exposição” (N.E. XXIV BIENAL,1998: 6). Com este procedimento, o artista promovia um confronto em torno dos limitados espaços institucionais em relação aos ilimitados espaços do mundo natural. Para Robert Smithson, “ao ser exposta numa galeria, a obra de arte perde sua força, torna-se um objeto portátil, ou superfície desconectada do mundo exterior”. (N.H. XXIV BIENAL,1998:1) Em 1968, deu início a uma série de projetos nomeados de Sites e Nonsites - Lugares e Não-lugares que explicitam o campo de convergência entre arte e espaço. Os Non-sites são elementos naturais como, terra ou pedras, recolhidos em um lugar específico, colocadas em caixas e expostas em museus. Estes trabalhos eram denominados Non-sites pois ocupavam um lugar que não o seu legítimo. Destes trabalhos Smithson partiu para obras ambientais de grande porte, denominadas Sites. Sempre propondo reflexões sobre o lugar, o artista realizou em 1970 o trabalho Spiral Jetty - Molhe Espiral , que consistia em uma formação espiralada feita de terra, rochas e cristais de salitre, que se estendia da costa até o grande Lago Salgado em Utah / E.U.A.. É interessante notar que antes de selecionar o espaço para execução de Spiral Jetty, Smithson não tinha noção do que iria realizar. Segundo o artista, a idéia da espiral só surgiu quando ele escolheu o local e o experimentou

fenomenologicamente em um processo interativo. É somente na interação sujeito-espaço que a obra se configura. “Ela é fruto de uma experiência fundadora. A potência da obra confirma sua constituição relacional: não existe obra, sem o lago e sem o espaço circundante. Relação espacial indissolúvel, obra e espaço tornam-se um todo constituinte, que inclui o sujeito que ali possa estar”. (JUNQUEIRA, 1996: 552). A máteria prima da arte de Smithson é o mundo. Para o artista, a arte é fruto da experiência cotidiana e, portanto, deve extrapolar o espaço das galerias e museus e, desta maneira, contribuir para sua reconceituação e seu 45

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reposicionamento, não apenas no sentido de transpor uma escultura para o ar livre, mas no de transformar o próprio mundo natural em arte.

Dentre os trabalhos desenvolvidos por Meireles, destaco a instalação Desvio para o vermelho, composta por três ambientes sucessivos em forma de U, criados em três períodos distintos. O primeiro deles, Impregnação (1967) é uma sala típica de um flat, um espaço amplo e bem iluminado onde se dispõem móveis, adornos e utensílios domésticos. Alguns objetos espalhados pelo ambiente, como casacos, xale, boina e bolsa em conjunto com a televisão ligada e a geladeira com alguns alimentos evidenciam o uso do local, levando a concluir que alguém está ou esteve ali. Até então, tudo parece normal, exceto pelo fato de que excluindo as paredes pintadas na cor branca, todos os objetos expostos, inclusive o carpete no chão se apresentam na cor vermelha. O primeiro impacto vivenciado pelo visitante é de uma tensão visual provocada pela saturação desta cor nas retinas. É impossível transitar pela sala buscando apreender visualmente a especificidade dos objetos que nela se encontram. O que sobressai é a cor forte, dominante e agressiva que confere unidade a todo o conjunto. Buscando absorver os detalhes à volta, desencaRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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O Espaço Ambiental de Cildo Meireles O artista Cildo Meireles nasceu em 1948 no Rio de Janeiro, onde atualmente vive e trabalha. Muitos de seus trabalhos assumem a forma de Instalações, ou seja, ambientes que permitem a inserção do espectador no espaço da obra. Tais produções demandam que o artista aproprie-se de um determinado local, visando estabelecer um campo no qual irá projetar uma configuração espacial capaz de criar uma situação de envolvimento a ser experimentada por quem ali se adentra. Na descoberta das Instalações o essencial não é mais o objeto, mas sim a percepção sensorial e mental do espaço elaborado para estimular e potencializar os sentidos do espectador- participante.


deiam-se sensações simultâneas de euforia e de vertigem que oscilam entre o êxtase e a náusea e direcionam o participante às associações que esta cor remete, como a paixão e a morte. Paradoxalmente, a presença de uma única cor parece conferir um incômodo equilíbrio e uma harmonia inquietante àquele espaço monocromático. Ao percorrer a sala nota-se que na parede de fundo há uma saída que leva a uma espécie de circulação, um local de passagem . No momento em que se depara com este acesso denominado Entorno (1980) não há como ignorá-lo e apesar de vacilante, o apreciador prossegue desvendando este espaço menor que o anterior, sem nenhum móvel ou peça, além de uma garrafa caída no canto do chão. Dela escorre-se um líquido vermelho que se estende pelo solo negro. A desproporção entre a pequena garrafa e a enorme quantidade de seu conteúdo esparramado pelo chão leva quem ali está a questionar o visível. Naquele momento, mesmo que arrebatado por uma tensão resultante do efeito surreal daquela cena, o participante, envolvido pelas paredes estreitas que escurecem gradualmente à medida que se avança, segue em direção ao último ambiente denominado Desvio (1980). Este, consiste em um espaço sem saída, uma sala mergulhada em total escuridão, com uma pia branca instalada ao fundo em um ângulo perturbador. O som da água que jorra pela torneira aberta dá uma vaga idéia da distância entre o observador e a pia pontualmente iluminada. Ao aproximar-se é impossível evitar o choque que se leva quando se depara com aquele líquido vermelho que insiste em sair incessantemente. É interessante notar que além dos estímulos visuais existem ainda os estímulos auditivos que intensificam a percepção sensorial de quem a frui. Um som ambiente com ruídos de líquidos que escorrem acompanham o visitante em todo o trajeto. É inegável que o artista, tendo se apropriado da cor ao elaborar esta instalação, conseguiu de forma notória promover um encontro enfático entre sujeito e espaço fundado no envolvimento direto dos sentidos. O Campo Espacial de Richard Serra Richard Serra, artista norte-americano nascido em São Francisco, no ano de 1939, realizou seus primeiros trabalhos em 1966. Sempre considerando o espaço um fator determinante no modo de pensar o seu processo de criação, o artista, a partir dos anos 70, trocou os espaços confinados das galerias e museus pelos espaços públicos da cidade. Instaladas no contexto do cotidiano urbano, suas monumentais esculturas configuram uma situação espacial. O espaço, no sentido de ‘site especificity ’, em tradução literal, ‘lugar específico’, define a obra. Em outras palavras, a experiência do trabalho não é dissociada do local onde ele se insere. A produção de Serra resulta da ‘instalação’ do espaço que surge imanente à presença escultórica. Para melhor exemplificar e ilustrar tal afirmação destaco, dentre 47

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citada ao artista pelo governo federal americano. No entanto, oito anos após sua instalação, em 1989, foi destruída, pelo mesmo governo que a encomendara, motivado por conflitos sociais e políticos. Os próprios transeuntes argumentando que o simples percurso em linha reta ao atravessar a praça foi estendido, obrigando-os a contornar a escultura e, desta forma, demandando mais tempo por prolongar o trajeto, exerceram pressão para que ela fosse removida daquele local. Diante daquela situação, Serra declarou que remover a obra seria o mesmo que destruí-la. Segundo o artista, Titled Arc havia sido concebida para atuar de modo crítico no espaço público ao qual se destinava. “Removê-la, recolocá-la em outro contexto, significaria anular a ‘situação’ que a constituía enquanto obra” (JUNQUEIRA, 1996:560). Ao instalar esta grandiosa peça em aço como um corte no espaço da praça, o artista criou um novo espaço que relaciona a obra em questão com o lugar em que esta se inseriu, dando início assim, a um diálogo entre o espaço físico da chapa em aço, o espaço da obra e o espaço da cidade, o espaço real. A comunicação gerada pela interação entre estes dois espaços confere novas significações à obra, levando-nos a concluir que a obra já não é mais delimitada por seus contornos. Ela expandiu-se, de maneira a solicitar o espaço da praça para nela instaurar-se como arte. Desta forma pode-se afirmar que a obra passa a ser o espaço físico da peça e suas vizinhanças. A grande lâmina de aço que compõe a escultura de Serra, não alcança individualização por si mesmo. Ela é uma entre as partes da obra, é um elemento do contexto, que só se conclui mediante a interação com o espaço da praça. Ao caminhar próximo àquela imensa chapa de aço, têm-se a impressão de que quanto mais se busca um núcleo em seu interior, mais ela lhe remete ao espaço exterior à ela. Limitando-se a percorrê-la em sua extensão, visando apreender a sua especificidade, a sua condição aparente, o olhar atento de quem a aprecia é irremediavelmente lançado para o espaço Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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outras, a escultura, Titled Arc (Arco Inclinado). Instalada em 1981, na Federal Plaza em Nova Iorque, Arco Inclinado (Fig.4), consistiu em uma escultura em aço de 3,66 m de altura x 36,58 m de largura x 6,5 cm de espessura. Esta enorme chapa de aço ligeiramente curvada foi soli-


circundante. Percebe-se então que a sua totalidade não está isolada do espaço fora dela. Existe uma interdependência constitutiva entre o objeto escultórico e o espaço ao seu redor. “As coordenadas de percepção que são estabelecidas não existem somente entre o espectador e o trabalho, mas entre espectador, a obra e o espaço habitado por ambos”. (GRIMP apud JUNQUEIRA, 1996:559) Considero que esta, entre as monumentais esculturas de Richard Serra, constitui-se um exemplo bem adequado e ilustrativo das relações entre o espaço físico de uma obra e o espaço do mundo real. Pontuando Interseções “É a alma que vê e não o cérebro; é através do mundo percebido e suas estruturas próprias que se pode explicar o valor espacial atribuído, em cada caso particular, a um ponto do campo visual”. Merleau-Ponty A partir das reflexões conduzidas neste ensaio, é possível estabelecer um cruzamento entre as produções dos quatro artistas. Três deles nasceram na década de 30, em anos consecutivos, Oiticica, no Rio de Janeiro, em 1937, Smithson, em 1938, e Serra no ano de 1939, em São Francisco. Já, Cildo Meireles nasceu em 1948, no Rio de Janeiro e deu início à sua carreira artística em 1965, ano em que, Oiticica, tendo deslocado sua obra para a criação de “ambientes participacionais”, ocupava-se com a produção de seus “Penetráveis”. Serra e Smithson se conheceram em 1967, ano em que iniciavam suas produções no mundo da arte. Herdeiros do Minimalismo, ambos estavam inseridos em um contexto artístico que buscava negar a interioridade da obra. Ao se recusarem a dotar o espaço físico da obra de arte de uma narrativa interna, ou seja, um núcleo que a justificasse, eles não negavam um significado ao objeto estético, mas reivindicavam que este significado se estendesse ao espaço circundante e na relação deste com o observador e a obra. “Em termos estruturais ou abstratos, os expedientes compositivos dos minimalistas negam a importância lógica do espaço interior das formas – um espaço interior que fora celebrado por boa parte da escultura do século XX até então”. (KRAUSS, 2001:301) Seja em terra ou em aço, os trabalhos de Smithson e Serra, representam uma modalidade de composição em que a razão de ser da obra não mais se encontra no espaço físico desta. A crítica e historiadora, Rosalind Krauss afirma que, ao analisar tais produções, nota-se a expansão, a ampliação do campo de atuação destas. A arte a partir dos anos 60 evidencia cada vez mais que “ [...] a criação artística está na relação entre o objeto artístico propriamente dito e aquilo que não é ele, a arquitetura e a paisagem” (BRISSAC,2001:23). Saindo do contexto internacional, é interessante notar que, Cildo Meireles, entre 1967 e 1970 estava envolvido com uma série de trabalhos baseados nos 49

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princípios euclidianos do espaço, que incluíam Espaços Virtuais: Cantos, Volumes virtuais e Ocupações. Sabe-se que, mais tarde, estes trabalhos deram origem à instalação Desvio para o vermelho. Paralelamente, ainda em 1970, encontrava-se Oiticica desenvolvendo seus projetos dentro do Programa Ambiental. Em 1971, os dois artistas brasileiros tiveram a oportunidade de se conhecerem, quando viviam em Nova York, nos EUA. Diante das propostas de Oiticica e Meireles, pode-se afirmar que seus trabalhos, também estruturaram o espaço de modo a enquadrarem-se, na situação ampliada do “campo expandido” de Rosalind Krauss. Ao traçar paralelos entre as produções de Oiticica, Smithson, Meireles e Serra, conclui-se que seus objetivos convergem para o mesmo ponto. Em suas produções, “[...] o observador deixa de contar com um ponto de vista privilegiado, sendo obrigado a deslocar-se através da situação espacial reconfigurada pela obra. O caminhar introduz a experiência temporal da obra: a apreensão é resultado de uma multiplicidade de visões. Este dispositivo fenomenológico, fundado numa configuração espacial mutante e numa percepção transitiva, pressupõe o observador inserido no ’horizonte interno’ da obra” (BRISSAC, 2001:23). Seus trabalhos, qualificados como, ambientes participacionais, instalações, in situ, site especifity, refletem um novo modo de configurar e perceber a obra, no qual as relações internas que antes definiam o objeto artístico se transformam e se deslocam para o espaço exterior a ele. As produções analisadas neste ensaio, dentre outras inúmeras com propostas similares que a arte da fase atual vem apresentando, tratam a percepção estética numa perspectiva fenomenológica explicitando que “ser é sinônimo de ser situado” (M.-PONTY 1999: 339). Por terem sido criadas para serem experimentadas e vivenciadas, estas obras só se concluem quando exploradas pelo apreciador/expectador. É neste, mais precisamente na interação deste com a ‘obra’ e com o espaço que os contém, que se encontra o significado destas criações. Em 1968, Roland Barthes, quando escreveu sobre “a morte do autor”, referiu-se também a produções como estas, afirmando que por mais que houvessem sido criadas por alguém em um dado momento, aquele alguém e aquele momento não correspondem à realidade de quem as vivenciam, agora, no presente. A obra nasce quando o leitor/apreciador interage com ela, experimentando-a, não quando o autor/artista a cria. O apreciador passa a ser coautor, já que é ele quem confere sentido à obra. Estas produções interagem com quem as vivenciam e com o contexto espacial que os contém. É na relação arte/homem/espaço que surge o significado da obra. Os diferentes posicionamentos dos artistas apresentados neste ensaio deixam evidente a influência que suas investigações exercem na maneira do Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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homem lidar com o mundo, pois modificam suas formas de sentir e de relacionar com o espaço à sua volta. Ao se evadirem cada vez mais dos formatos e suportes tradicionais, as propostas dos quatro artistas selecionados para este ensaio demandam que nossas formas de apreciação, ou seja, de relação com as suas produções sejam reavaliadas. Enquanto aos artistas e teóricos cabe continuar explorando e investigando novas possibilidades de relações entre arte/homem/espaço, aos expectadores/participantes cabe aguçar seus sentidos para que eles se expandam, a fim de acompanhar o campo de atuação destas produções artísticas. Buscando novas maneiras de interagir com a arte, relacionando-a com o espaço à nossa volta, podemos lançar um novo olhar para o mundo que habitamos, e assim, propor novas formas de composição por meio dos elementos que dele fazem parte, como a arquitetura e a paisagem.

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fotos - créditos na legenda

1.A Casa de Bernarda Alba (arquivo) 2.Amor e Restos Humanos (Guto Muniz) 3.Beijo no Asfalto (arquivo) 4.O homem da Cabeça de Papelão (Guto Muniz) 5.Partido (Guto Muniz) 6.Perdoa-me por me Traires (Guto Muniz) 7.Pobre Super Homem (guto muniz) 8.Sonho de uma Noite de Verão (Guto Muniz) 9.Zaak & Zenoel (Guto Muniz)


CENOGRAFIA CONTEMPORÂNEA EM BELO HORIZONTE - um estudo da influência das artes plásticas contemporâneas sobre a produção cenográfica nas artes cênicas Yuri Simon da Silveira

Esta pesquisa explorou a construção cenográfica das mais relevantes montagens teatrais que foram produzidos durante, aproximadamente, os últimos dez anos na cidade de Belo Horizonte, apresentando conceitos de arte contemporânea e uma intersemiose em diversas linguagens do fazer artístico. O cenário é apenas um dos signos, utilizados na construção do espetáculo. Ele compõe plástica e esteticamente o espaço tridimensional, estabelecendo-se especificamente no lugar teatral, onde ocorre uma relação cena/público, sendo impossível sua desvinculação do meio, pois só aí se configura como obra de arte. O cenário contemporâneo não se propõe a uma intervenção passiva: ele envolve o espectador, sensibiliza-o, provoca-o, desperta-o, questiona-o e desloca-o para dentro da cena contida no roteiro e proposta pelo encenador. Configura-se na manipulação da realidade numa busca formal relacionada com a narrativa, alimentando as metáforas e realizando uma troca de significados. A cenografia é o ato criativo responsável pela organização visual do espetáculo, utiliza-se, assim como as artes plásticas, de elementos estéticos básicos de uma composição visual; aplicando à cena conceitos do pensamento contemporâneo. Se encarrega plasticamente da temática do espetáculo, das representações imaginárias despertas no universo do espectador, propondo um espelhamento em um jogo de referências implícito a partir de convenções preestabelecidas, envolvendo-o em estados de alma, sentimentos e emoções. O cenógrafo é o artista responsável por essa criação, pois detém o domínio técnico necessários a concepção visual do espetáculo. Ele cria um espaço dramático, tendo como centro o ser humano e a relação entre os elementos plásticos tridimensionais, o corpo dos atores e o espectador. Para o cenógrafo o espaço cênico adquire o caráter de superfície de trabalho como a do pintor ou escultor. Ele recria a realidade de forma vertiginosa, apropriando-se de elementos da história da arte e da cultura contemporânea na geração dos elementos visuais, carregados de significação, e transitando entre todos os círculos da alta e da baixa cultura, escolhendo a forma mais adequada de contar as histórias das entrelinhas do texto. Na criação cenográfica contemporânea não existe um único caminho a ser seguido, pois ela está além das características formais, sendo criada para cada projeto e contexto específico. PAVIS em seu Dicionário de teatro (1999), 53

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subdivide a cenografia por suas funções dramatúrgicas: figurativa, construtiva e subjetiva. O cenário figurativo utiliza elementos existentes na realidade do texto, numa estilização do universo representado, variando segundo a abordagem do cenógrafo; de forma mais naturalista, onde os elementos podem confundir-se com a própria realidade, ou de forma mais conceitual, onde uma evocação deste universo é proposta. O cenário construtivo não pretende transmitir uma representação mimética da realidade, se estabelece através da evolução e manipulação dos atores sobre passarelas e maquinarias pelo espaço. Os locais e exigidos na cena serão representados pelas disposições espaciais. O cenário subjetivo não se preocupa com as linhas e massas que compõem a cena, mas com a atmosfera estabelecida e transmitida ao público através da luz, cor, textura e da impressão de uma realidade onírica e fantasiosa. Mesmo subdividindo a cenografia nestas três funções, não devemos supor que sejam códigos imutáveis e restritivos. A cenografia contemporânea se utiliza da articulação de mais de uma dessas características na sua composição visual. Alguns conceitos de criação cenográfica atual, como a singularização e o distanciamento, nos remetem a idéias estabelecidos por: Bertold Brecht. Anna Mantovani, em seu livro Cenografia, afirma que para Brecht o espectador deve se manter lúcido, capaz discutir objetivamente aquilo proposto pelo texto; o teatro não poderia ser catártico, e o envolvimento, tanto dos atores como o dos espectadores com a cena não poderiam ser estabelecidos de forma que estes perdessem a lucidez. Para que isso ocorresse todos os elementos plásticos idealizados deveriam produzir um efeito de distanciamento opondo-se a catarse. Qualquer efeito ilusionístico, qualquer camuflagem é eliminada do palco, é retirado tudo o que possa esconder que, o que ocorre ali, é teatro. Este efeito de distanciamento na cenografia, pode ser alcançado através do “deslocamento” de determinado objeto de seu contexto na cena; chamado também de “estranhamento” ou “singularização”, como denominavam os Formalistas Russos, liberando o objeto do automatismo do olhar. Recursos semelhantes são utilizados por artistas contemporâneos, desde Duchamp, a dessacralização do artista na possibilidade de questionar o que foi concebido por ele: uma troca do valor estético pelo valor cognitivo. Esses artistas não almejam, um observador passivo, mas um participante ativo, pois a obra só se completa como arte na relação com o indivíduo que a aprecia e a questiona. Como princípio estético e/ou ideológico, o distanciamento é um dos elementos mais utilizados na criação cenográfica da encenação contemporânea. Especificamente em Belo Horizonte, as características contemporâneas de criação cenográfica demoram muito a aparecer. Nos anos 50 quase a totalidade da produção teatral se utilizavam dos famosos telões pintados, abandonados na Europa desde o início do século XX, e os mais arrojados utilizavam Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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apenas o cenário naturalista ou de gabinete. Alguns críticos teatrais e encenadores entrevistados, declaram que o grande destaque na composição cenográfica contemporânea na cidade de Belo Horizonte, é a capacidade dos cenógrafos de sintetizarem uma proposta de cenário. A síntese da imagem, através da escolha de um único objeto como forma representativa de um espaço cênico, e o despojamento estético, auxiliado por uma iluminação teatral expressiva, caracterizam a criação cenográfica de forma geral. O principal fator que contribuiu para essa necessidade criativa sintética, originou-se na experimentação das artes cênicas, iniciada principalmente na dança, pois as coreografias sempre necessitavam de espaços amplos para realização de suas propostas visuais. Esta dança/teatro, teve início com coreógrafo Klaus Vianna, nos anos 50 com a utilização, como elemento plástico, do corpo do ator, sendo este o elemento vivo na cena, em espetáculos como O Caso do Vestido, de 1959, inspirado na obra de Carlos Drummond de Andrade, uma partitura coreográfica sem a utilização de música, tendo ao fundo atores do Teatro Experimental recitando o poema; uma inovação do teatro e da dança numa fusão das linguagens visuais e da literatura. O ator como uma parte dinâmica do cenário, que com ele se transforma, remetendo-nos ao pensamento do encenador suíço Adolph Appia, que em 1921 escreveu sobre a plasticidade e mobilidade do corpo e sua aproximação com a forma escultural, sem poder, no entanto, se identificar com ela, graças a mobilidade. Vieram ainda contribuições significativas de diversos outros coreógrafos que continuaram este trabalho e uma estética visual semelhante em suas próprias companhias, como o Grupo Transforma; o Grupo Corpo; o Studio Anna Pavlova; a Benvinda Cia de Dança e o Grupo Primeiro Ato. Uma outra característica contemporânea na criação cenográfica em Belo Horizonte, se deve ainda a influência do encenador carioca João das Neves, que manipulava, em suas encenações, o espaço físico real, transformando-o em espaço cênico, envolvendo assim o público e lançando-o para dentro da cena, seja em apresentações ao ar livre, seja na utilização de espaços não convencionais ou alternativos. Com esta característica podemos destacar, nos anos noventa, a montagem, de Circo Bizarro com direção de Eid Ribeiro e cenografia de Ana Gastelois e Marney Heitmann, onde uma colagem de diversos textos característicos do teatro do absurdo do autor espanhol Fernando Arrabal serve de roteiro para a montagem; nesse espetáculo, o título de um dos textos: Cemitério de Automóveis, servia de cenário referencial para trama, em uma instalação cenográfica lembrando um ferro velho, montada em um porão no Palácio das Artes. Outra montagem marcante que utilizava desta característica foi realizada pelo encenador Fernando Mencarelli, para o texto A Casa de Bernarda Alba, de Garcia Lorca, onde o casarão antigo do TU, serviu de cenário para a trama. As cenas ocorriam dentro e fora da casa, o público era conduzido pelos atores/personagens e divididos entre homens, que ocupa55

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vam o pátio, e mulheres, que permaneciam nas varandas internas da casa. As cenas pareciam sempre fragmentadas, como se parte delas acontecesse no lado de fora e o público só tivesse acesso às conseqüências resultantes. Seguindo este esquema Mencarelli montou ainda Divinas Palavras, de Ramón del Valle Inclán, num galpão utilizado para seleção de lixo pela SLU e Alice, uma interpretação da obra de Lewis Carrol, apresentada em um porão repleto brinquedos dos tradicionais playground. Nos anos noventa diversos cenógrafos realizaram um trabalho inovador e contemporâneo, carregado de significação e repletos de elementos que se transformam ao decorrer da cena. Podemos destacar, primeiramente, dois trabalhos de André Cortez: Ricardo III de Shakespeare, com direção de Yara de Novaes, que propôs a renovação do conceito de palco em dois planos, no teatro do tipo à italiana, com telas de aço que configuravam, tanto na dureza do metal como na permeabilidade proporcionadas pelos vazados a intangibilidade das personagens; e Amor e Restos Humanos, de Brad Fraser, dirigido por Carlos Gradin, onde a espacialização realizada em um galpão coloca o público em uma arquibancada acima e em volta de telas de aço que compõem o piso superior do cenário, e onde o público tem acesso visual parcial às ações que ocorrem no piso inferior, transformando o público em um voyeur da cena. Nesta mesma característica a Id3 Design também desenvolveu uma cenografia de destaque em três espetáculos: Pobre Super Homem, de Brad Fraser, com encenação de Luiz Otávio Gonçalves; onde de acordo com a cena, projeções de palavras e imagens, como balões das revistas em quadrinhos, indicavam locais, o tempo e o sub-texto das personagens; e biombos de tela de metal limitavam os espaços compostos por objetos nas cores significativas do Superman (vermelho, amarelo e azul), remetendo a histórias em quadrinhos em movimento. Em O Corcunda de Notre Dame, adaptação da obra de Victor Hugo, dirigida por Marco Amaral, a representação visual da catedral de Notre Dame, e os símbolos góticos religiosos foram relidos de forma contemporânea através de estruturas móveis de andaimes trabalhadas com tecidos rústicos e telas metálicas. E em Dorotéia, de Nelson Rodrigues, com direção de Marcos Vogel, um carrossel giratório de madeira e metal permitia que as cenas fossem vistas por diversos ângulos, conforme a utilização pelas atrizes e o interesse do encenador. Uma cenografia que utiliza da transformação e singularização de um objeto em cena, é utilizada pelo diretor Wilson de Oliveira, citando como exemplos duas montagens com cenografias de Raul Belém Machado, um dos mais respeitados cenógrafos mineiros: Algo em Comum, de Harvey Fierstein, uma única mesa de jantar e uma instalação com diversas caixas empilhadas de uma mudança compunham o espaço cênico. Já em O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, rampas de madeira conduziam a uma porta de metal correRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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diça, que anunciava dramaticamente a entrada e saída das personagens; poucos elementos representavam o local das cenas: mesa para residência, maquina de escrever para o jornal e cadeiras para delegacia de polícia. A desconstrução cenográfica daquilo que o público vê em cena foi muito utilizada nos últimos trabalhos do grupo Galpão, com criação visual de Márcio Medina. Em Partido, inspirado numa obra de Ítalo Calvino e dirigido por Cacá Carvalho, o espectador na sala de espetáculo acredita estar frente a um palco à italiana, que no desenrolar da trama, se transforma com tapadeiras moveis, revelando transparências com impressão de palavras e uma outra estrutura de palco completamente inusitada. Em Um Trem Chamado Desejo, com direção de Chico Pelúcio e dramaturgia de Luís Alberto de Abreu; onde se acreditava ser a frente do palco se torna o fundo, e o público assiste ao espetáculo pelas costas dos personagens que representam para uma platéia imaginária. Diferente em estética visual dos últimos trabalhos, o Grupo Galpão, no início dos anos 90 realizou dois trabalhos com direção artística de Gabriel Vilela, que trazem ao público, de forma contemporânea, características da cultura popular do interior e do barroco mineiro, para dentro de nossa realidade urbana: Romeu e Julieta, de Shakespeare, e A Rua da Amargura, inspirado em uma obra de Eduardo Garrido. Nos últimos quinze anos a cenografia em Belo Horizonte esteve diretamente relacionada com a produção de trabalhos realizados pelos grupos de teatro que surgiram e com a linguagem teatral que cada grupo pretendia desenvolver. Dentre os grupos de maior evidência podemos destacar a Zap 18, antiga Cia Sonho & Drama, que realizou inúmeros trabalhos desde os anos oitenta, nesse período inicial se destaca a montagem de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, com direção de Carlos Rocha, onde o cenário era constituído por um monte de terra árida em um palco completamente vazio de objetos. Esta estética despojada permaneceu como característica visual do grupo nos trabalhos como: A Casa do Girassol Vermelho, montagem inspirada no realismo fantástico da obra de Murilo Rubião, Caminho da Roça, inspirado em contos populares dos contadores de estória do interior de Minas Gerais, e Sonhos de Uma Noite de Verão, de William Shakespeare, todas com a direção de Cida Falabella. Nos últimos anos, novos grupos teatrais surgiram em Belo Horizonte, tendo sua origem nas escolas profissionalizantes de teatro, como o TU da UFMG e o CEFAR da Fundação Clóvis Salgado. Vale destacar dois grupos: a Cia Luna Lunera com a virtuosíssima montagem de Perdoa-me por me Traíres, de Nelson Rodrigues, e concepção cênica de Kalluh Araújo, que incorporava em uma cenografia despojada um chão de terra batida que suja os atores à medida que o espetáculo é apresentado; com cenas de extrema violência e realidade, que geralmente choca o espectador; e o Grupo Trama. com O Homem da Cabeça de Papelão, de João do Rio e adaptação de João das Neves, 57

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com direção de Marcelo Bones e concepção cenográfica do diretor e de Wesley Simões, onde no palco completamente vazio chove torrencialmente durante grande parte do espetáculo, deixando a platéia ao mesmo tempo admirada e angustiada. O grupo que mais representa a experimentação visual no teatro contemporâneo de Belo Horizonte é sem dúvida a Oficcina Multimédia, com a direção artística de Ione de Medeiros. Seus espetáculos unem, de forma dramática, a dança e o teatro, sempre com uma visão particular do mundo, trabalhando com textos poéticos abordados de forma não naturalista. Fundada no início dos anos oitenta, foi uma das primeiras companhias a realizar um teatro sem palavras. A concepção visual era despojada e leve, o corpo, relacionado diretamente as performances, era o comunicador fundamental, elementos repetidos e singularizados como tecidos, cordas, cadeiras e escadas completavam a cenografia. Espetáculos inspirados na obra James Joyce: Navio, Noiva e Gaivotas de 1989, Epifanias de 1990, Alucinações de 1991, Bom dia Missisliff de 1993, Happy Birthday To You de 1994, e Babachdalghara de 1995. No final dos anos noventa ocorre uma mudança radical na concepção cenográfica dos espetáculos. Mantendo uma linha performática, um caos urbano é agora representado em cena; elementos que antes eram trabalhados de forma sutil, como a morte e a tentativa de vida eterna, são representados de maneira trágica e grotesca. Lembrando uma imagem pós-apocalíptica, peças de demolição se amontoam meticulosamente no palco dispostas de maneira aparentemente desordenada; o desequilíbrio reflete a instabilidade das personagens. A caracterização levemente figurativa nos remete às características psicológicas que elas nos apresentam. A projeção de imagens é colocada nos espetáculos de forma extremamente enfática e utilizadas também como meio de fuga e lembrança. Uma articulação de signos sagrados e profanos são apresentados em um banquete visual para o espectador em espetáculos como: Zaac & Zanoel de 1999, Indigestão de 2000, e A Casa de Bernarda Alba de 2001. Estes foram apenas alguns exemplos de concepções cenográficas realizadas na cidade de Belo Horizonte nestes últimos dez anos, percebemos que os conceitos de contemporaneidade foram incorporados, de forma intrigante, por cada um dos encenadores e cenógrafos de forma pessoal mas bastante integrada as Artes Plásticas. As possibilidades de se estabelecer um novo olhar para cena são praticamente infinitas, e podem avançar visualmente de forma inovadora sobre tudo que já foi proposto. Novas tecnologias são apresentadas constantemente, e rapidamente são incorporadas pelas atividades artísticas. A cenografia é uma forma de arte que podemos considerar multimídia por natureza. O resultado visual final é uma soma de elementos pictóricos e dinâmicos, mas é sempre regido por uma dramaturgia, mesmo quando a presença de um texto é dispensada. Por essa razão, diferencia-se de uma instalação. Os elemenRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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tos que são revelados em cena tem que fornecer uma contribuição a narrativa apresentada. Contudo verificamos que tanto as artes plásticas contemporâneas, assim como a cenografia contemporânea, nos parecem serem marcadas pela diversidade, pela experimentação e pela interdisciplinaridade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPIA, Adolphe. A Obra de Arte Viva, Lisboa: Arcádia, 1921. BORNHEIM, Gerd Alberto, Brecht: A estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. BOSI, Alfredo. Reflexões sobre arte. São Paulo: Brasiliense, 1984. CAMARGO, Roberto Gill, Função estética da luz. Sorocaba, SP: TCM, 2000. COSTA, José de Anchieta, Áuleum - a quarta parede. São Paulo: A Books editora, 2002. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. MACHADO, Bernardo Novais da Mata, Do transitório ao permanente - teatro francisco nunes 1950-2000. Belo Horizonte: PBH, 2002. MACHADO, Raul Belém (org.). Oficina cenotécnica. Rio de Janeiro: Funarte, 1997. MANTOVANI, Anna. Cenografia. São Paulo: Editora Ática, 1989 RATTO, Gianni. Antitratado de Cenografia, variações sobre o mesmo tema. São Paulo: Senac, 1999. IGARDEM, Roman. NUNES, Luiz Arthur (org.). O signo teatral: semiologia aplicada a arte dramática. Porto Alegre: Globo, 1977. ROSENFELD, Anatol, O teatro épico, São Paulo: Perspectiva, 1994 PAVIS, Patrick, Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. SERRONI, J. C. (org.) Espaço cenográfico news. São Paulo: Espaço Cenográfico, edição bimensal, 2000 a 2002. STANGOS, Nikos (org.) Conceitos de arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. VASCONCELOS, Luiz Paulo da Silva, Dicionário de teatro. São Paulo: LP&M, 1987.

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IDENTITÁRIAS: relações de representações – Indicativos a uma Curadoria Cristóvão Coutinho

O texto apresentado é resultado de um exercício de arte tanto no seu aspecto cultural quanto nas relações estabelecidas, onde o trabalho de cada um dos participantes faz parte, em sua conjuntura, de outros que poderiam também estar presentes. No entanto, o feixe abordado é o distanciamento e a capacidade de surgirem propostas sujeitas a elementos materiais e do pensamento, locais ou não, mas que absorveram posturas em sua representação, de tantos e de outros lugares, e com posicionamentos híbridos participam de um processo. A curadoria se fez pela vontade de um grupo, de um local, de uma região, de um “mundo globalizado”. O trabalho está dividido em indicativos, com discursos separados, visando pensamentos concisos com uma abrangência para o diálogo e a construção de outras suposições para a arte. Doze artistas das cidades de Macapá, Belém, Manaus e Porto Velho, foram mapeados e muito contribuíram na aproximação de pessoas e informações, possibilitando a existência dessa simulação. CRÍTICA PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA CURADORIA Como inúmeros subjetivos do complexo aparelho montado pelo sistema vigente de idealização e construção da arte contemporânea, pode-se acreditar que não existe “método” ou metodologia única. A qualidade material dos significantes e a capacidade de levar em conta as superfícies são o que fazem a diferença, produzem a experiência estética, literária e determinam a histórica. As apresentações de arte e seus resultados submergem à especularização dos lugares a ela destinados e suas imagens midiáticas, na confusão entre criação, marketing, entretenimento, volúpia niilista e conformismo. A relação com outros jogos “high tech” de interatividade estéril, objetos baseados num ecumenismo cultural, conduz a subjetividades num modo politicamente correto de aproximação com o outro, absorvendo e elaborando os efeitos na obra de arte. As tendências de estilo e categorias das instituições, das regras e dos mapas dos sentidos, fazem o aprender a se sustentar à beira do acontecimento e se fazer da obra de arte a construção de pontes para o invisível, saber que as tendências dão a uma obra a chancela de contemporaneidade. 61

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A autenticidade é um valor despachado pelo auto-comprazimento das narrativas pós-modernas, mas um estímulo poderoso para a reflexão responsável sobre a pluralidade dos sentidos. O LUGAR A SER ESPECÍFICO, UMA LÂMINA O limite e o espaço de acolhimento são determinados pelas circunstâncias do próprio trabalho feito a partir do Programa Rumos Visuais 2001/2003, do Instituto Itaú Cultural, em que a Região Norte foi mapeada levando em consideração os artistas que apresentam proposta contemporânea. Nesta pesquisa, realizamos uma aproximação entre os artistas, através de uma curadoria, cujo meio de construção apontou algumas identidades e esforço de conhecimento da arte local. Porém, uma curadoria “interpretativa”, com objetivo de mostrar aspectos a serem declarados e vistos com sentimento artístico e tecnológico, de acordo com o interesse e a disponibilidade do campo da arte. Como experimento de contatos, realizei visitas às cidades de Belém, Macapá, Porto Velho e Manaus e me aproximei do território apropriado que cada artista ocupa para a realização de seu trabalho, assim como a inserção de sua obra junto à comunidade local. IDENTITÁRIA, IDENTIDADE E RELAÇÕES INTERPESSOAIS Como apregoamento de uma suposta linguagem a ser definida, os termos aqui empregados não tem por distinção uma verdade, pois, da impossibilidade de firmar uma relação direta com os rumos da arte e da sociedade contemporâneas, ocupei o lugar de espectador e em alguns momentos fui atrás de perguntas que pudessem ser participativas num processo de exercício da construção da curadoria. A palavra identitária aqui mencionada, ajusta-se primeiro ao “fato” de surgir de maneira hipotética, como também para proporcionar aos leitores um campo de proximidade e relações num determinado espaço geográfico. Os trabalhos fazem parte de escolhas mútuas entre curador e artistas, visando um diálogo de idéias a serem expostas em dimensões visíveis que coloquem a pluralidade de experiências e contextos diferenciados, conforme o envolvimento de cada artista com sujeitos e objetos de outras “paragens”, termo popular mas que tenta evidenciar os interesses e combinações particulares do indivíduo em outros territórios. A procura efetuada tem sentido adicional de conhecer um pouco mais sobre as concepções e as aproximações possíveis entre densidades, como processo de aglutinação e fragmentos de significados, mistura com resíduos ainda não inteiramente assimilados de um regionalismo híbrido e temático. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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TRADIÇÕES, RUPTURAS E IMPULSOS Como programa de simulações que podem originar concepções convincentes para representar o pluralismo das identidades culturais, eficientemente articuladas entre tradição cultural e sintonia com outras linguagens, romper fronteiras e dialogar com outras latitudes e ideologias, influências trazidas pela dispersão pelo mundo. Manifestações culturais em efervescência na nova cultura híbrida, com práticas, costumes e visões da realidade e que na arte encontram-se todas as representações coletivas, comunicando idéias, conceitos, símbolos ou não. Dos impulsos, processos de diferenciação, perda e encontro de si, interações diversas com o mundo e com outras consciências, compartilhar o antigo e o novo como solução para um registro próprio, arquétipos. Rotinas e formas artísticas, nas quais as pessoas se identificam e se reconhecem. Uma busca de si mesmo, auto-consciência, no seio de sua própria displicência, miscigenação e complexidade sensorial, uma auto-representação, o indivíduo contaminado e operando no meio de uma sociedade em que a arte, como arte, não se origina, serve de troca e se auto-reproduz. O Sistema constitui-se sobre a identidade, a comunicação pronta e a novidade contínua, expulsa de uma só vez a imaginação e o passado, o caráter descartável e o irrompimento do novo. Os impulsos e fricções de modernidade e os cruzamentos das heranças indígenas e coloniais permanentes, associados com a arte contemporânea, são resultados dos trabalhos desta curadoria. Assim, a arte se serve de experimento para se redefinir conceitos de nação, povo e identidade, poder renovador que não se esgota, para ampliar a compreensão do mundo. DISCURSOS DA APRESENTAÇÃO O substantivo é um dos termos necessários para orientar os aspectos que formam o conjunto de trabalhos aqui apresentados, pois, as aproximações supostamente alcançadas, visam dispor roteiros individuais, mas que exercem determinada complementaridade, nem que seja a primeira de uma determinada região. Os artistas escolhidos fazem parte de seu local de “atividades” e as conversas mantidas entre o artista e o curador, também artista, estabelecem uma atitude de construção recíproca, permitindo aferir um diálogo de experi63

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ências e a não realização de enunciados pré-estabelecidos.

Encontram-se propostas de grupos com aproximação e táticas de envolvimento com o sujeito na qualidade de espectador/participante, como é o Grupo Urucum (Amapá), cujo contato principal foi Arthur Leandro, que numa prática de envolvimento com outros artistas permitiram-se ao confronto com a rua e seus pedidos. Os artistas Sérgio Neiva (Pará) e Lúcia Gomes (Pará) estão contidos na cidade, pelas amostras nos desenhos de fachadas do centro de Belém, fruto de uma observação da história e de sua memória causuística e não comprometida com a sua real arquitetura. Assim como as linhas paralelas numa rua qualquer, de Lúcia, em que a relação “pó branco” (cocaína) e o uso da goma de tapioca, sugere distorções culturais. O artista Tadeu Lobato (Pará) visita uma obra inacabada de outro artista paraense de nome Waldir Sarubi, feita a partir do “universo amazônico”, ou seja, uma série de labirintos, de inúmeras leituras, podendo ser, ora desenhos marajoaras, ora fluxo dos rios, ora um paradigma islâmico, sendo na releitura de Tadeu, um “Labirinto Inacabado”.

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Pela maneira a ser abordada do que se chama apresentação, segue a composição na elaboração de cada projeto/trabalho, cuja constituição é uma reflexão, um exercício de linguagem de emulação e superação desta arte atual.


O artista Roberto Evangelista (Amazonas), em seu projeto de elementos de forma regional, participa de uma reutilização de idéias e formas, para sugerir o conjunto aquabólico, cujo manejo e significado vão do lúdico, segundo Roberto, à inventividade do ribeirinho no que este relaciona a sobrevivência. No trabalho de Jandr Reis (Amazonas), um grande mapa, onde a abstração tem como metáfora o encontro das águas. Suporte de copos de vidro, com conteúdo retirados dos rios Negro e Solimões, marca princípios de territorialidade e composição global. O artista Roosivelt Pinheiro (Amazonas), vive no Rio de Janeiro, porém acumula substâncias culturais da sua origem nortista. Seu projeto visa a construção de uma “casa” ou espaço reservado, seu “tapiri”. É uma instalação em que o visitante está contido e em cujo interior buscam-se relações com uma natureza viva, esquecida, porém de um cotidiano mais simples. Como procura de um reconhecimento de junção ou remendo, o trabalho de Sílvia Feliciano (Rondônia) reconstrói cidades, árvores e sonhos pessoais de integração do sujeito com sua alma, sendo que o indivíduo e a matériaprima não existem mais, sucumbiram aos desejos. Também nessa área de convenções mais próximas da organização humana, Bernadete Andrade (Amazonas), procura na sua obra de intervenção, revelar a necessidade do lugar como fenômeno de arte, onde abrangência de interesses étnicos, agora, artísticos. Nas fotografias de sobreposições de Adroaldo Pereira (Amazonas), como nos trabalhos de compotas de Turenko Beça (Amazonas), a presença do homem que manipula um símbolo - o peixe, além de todas as suas significações imagéticas, cumpre uma função estética e visceral, pois, ambos documentam o “tratar” e o “conservar” da forma e da representação. 65

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Os indicativos apresentados descrevem a relação de aprendizado e conversas mantidas entre o curador e os artistas, com o propósito principal de manter uma direção de construção de textos que permitissem um esclarecimento sobre o conteúdo de cada trabalho, sendo que, o foco de descrição teve como discurso a prática e o relato do próprio artista. Do trabalho de curadoria exercido neste espaço geográfico (Norte) e como os artistas envolvidos viveram ou vivem também em sua maioria nesta região, demonstra as possibilidades do fazer e sua representatividade contemporânea, do que o termo possa absorver e a promoção da própria informação como acontecimento na arte.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BAUDRILLARD, Jean. O Paroxista Indiferente; entrevistas com Phillippe Petit. Rio de Janeiro: Pazulin, 1999, 144p. BAUDRILLARD, Jean. Tela Total: mito – ironias da era do virtual e da imagem, tradução de Juremir Machado da Silva. Editora Meridional Ltda, 2002, 3ª edição. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da Modernidade. São Paulo, EDUSP, Coleção Ensaios Latinos Americanos, 2001. FABRINI, Ricardo Nascimento. A Arte depois das Vanguardas, Campinas, SP, Editora UNICAMP, 2002. FARIAS, Aguinaldo. Arte Brasileira Hoje, São Paulo: Publifolha, 2002. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade; tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro, Rio de Janeiro: DP&A, 2002, 104p. HOLLANDA, H. e RESENDE, B. Arte Latina: Cultura, Globalização e Identidades Cosmopolitas, Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

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O trabalho de Armando Queiroz (Pará), tem como referencial os anúncios de propaganda a que estamos submetidos no dia-dia, e que inúmeras vezes não percebemos o conteúdo dessa informações de rua. Assim, o artista se utiliza desse meio de comunicação e demonstra em grandes cartazes/fotografias situações sociais cujo teor estético tenta lidar com o direcionamento do olhar do espectador.


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WEB-ARTE Construção de uma Linguagem

Introdução Nos últimos dois anos, me senti compelido a lidar com a imagem em movimento, num sentido amplo. Dando prosseguimento a uma pesquisa empreendida na área de síntese de imagem por meios computacionais, cerqueime de apetrechos não profissionais para lidar com isto, tais como webcams 1 e dispositivos de captura de vídeo no PC. Escolhi o formato de pequenas animações do tipo GIF 2 utilizados em larga escala na WEB, e protelei o momento de lidar com os formatos de vídeo propriamente ditos. Esta direção me levou a escolher o suporte de página da web para o meu trabalho. Refletindo sobre o meu processo de busca e construção de uma linguagem, identifico agora certas similaridades com o antigo modelo educacional da Idade Média, o das artes liberais. O currículo das universidades medievais consistia do trivium e do quadrivium, as sete artes liberais. O trivium, a educação primária, objetivava ensinar aos estudantes como aprender, enquanto o quadrivium, a educação secundária, tinha por meta estabelecer um quadro geral de todo o conhecimento humano. Em meu processo construtivo, posso identificar congruências com o trivium, cujos componentes são as artes da gramática, da retórica e da lógica (ou dialética). Na gramática, são estudados os fonemas, entidades pré-signo (fonologia), e a seguir, as unidades de significado, sua estrutura, grafia, seus radicais (morfologia). Culmina esta arte com a sintaxe, que estuda a palavra dinamicamente, em relação às outras, e como elas se unem para exprimir um pensamento. A retórica, a arte da persuasão através da linguagem, utiliza-se da invenção para o desenvolvimento e o refinamento de um argumento (Logos, uso da lógica e da razão nesta construção); utiliza-se ainda da escolha, estruturação, disposição e seleção, para com isto obter o maior efeito (Pathos, apelos emocionais). Finalmente, utiliza-se a retórica da elocução, em que o caráter do locutor leva uma audiência a considerálo verídico e confiável (Ethos). Culmina o trivium com a lógica (dialética), que busca a não-contradição, estabelece as regras de inferência, define a estrutura da afirmação e do argumento, bem como fórmulas para a sua codificação.

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Afonso C. M. Klein


Gramática Na minha prática, busco entender o mecanismo das coisas, a maquina-mundi, a idéia por trás do fenômeno. Isto, unido à vivência na área digital, computacional, me conduziu em princípio à simulação numérica, com suas leis claras e objetivas para os fenômenos (se comparadas à realidade). Utilizando técnicas de “ray tracing”3 , em que raios de luz matemáticos, dotados de perfeitas propriedades de refração, reflexão e absorção são disparados sobre formas geométricas ideais, fisicamente inexistentes, construí um conjunto de imagens que são também formas modeladas, exercícios de cor e composição, fotografia virtual, ou mesmo esculturas, pois podem ser observadas de qualquer ponto de vista, apenas mudando as coordenadas da câmera virtual. Este fase do meu trabalho iniciou-se com a descoberta do “Persistence of Vision Raytracer (POVRay)”, um programa de uso livre, disponível gratuitamente na rede. Este programa, com sua linguagem de definição de cena, construída nos moldes de uma linguagem de programação de computadores, veio ao encontro da minha prévia experiência em programação, e levou-me a experimentar com suas primitivas4 , dispondo esferóides, paralelogramos, anéis, cilindros, cones, fontes de luz e o que mais pudesse descobrir, em sistemas de coordenadas cartesianas. Minha emoção passava pela descoberta e emprego do variado repertório de texturas, metálicas, pétreas, opacas, translúcidas, variando refração, reflexão, transparência e iluminação (fig. 1). Naquele momento, em meados da década de 90, com as máquinas então disponíveis, não pude experimentar amplamente com animação, devido ao grande tempo de processamento necessário. Estes experimentos com “raytracing” se constituem, no meu entender, nos primeiros elementos da minha gramática visual, parte de sua fonologia e morfologia. A sintaxe veio a se desenvolver com o advento da Internet. O contato com a linguagem html 5 , suas possibilidades de manuseio da imagem estática e da animação, me induziram à experimentação e à busca de uma linguagem na criação de páginas, com a finalidade, na época, de exibição de imagens na rede. Posteriormente utilizei, em conjunto com o POVRay, programas de modelagem mais sofisticados, buscando introduzir um sabor aleatório, orgânico, e que funcionaram como codificadores e amplificadores do gesto (fig. 2). Em http://webfernalia.ontheweb.com, pode ser vista uma parte desta pesquisa. Cada uma das imagens é apresentada de três formas diferentes, como imagem estática, como conjunto de instruções para a síntese numérica (roteiro, programa), e como uma animação, obtida por meio da variação sistemática de 69

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um ou mais dos elementos de seu programa. No dizer de PLAZA (1999 p.75), “(...) as imagens numéricas se traduzem e se comutam instantaneamente, através dos diversos meios. O meio já não é a mensagem, pois não existe mais meio, somente trânsito de informações entre suportes, interfaces, conceitos e modelos como meras matrizes numéricas.” Se considerarmos o arquivo de dados que foi utilizado para imprimir uma qualquer das imagens constantes deste artigo, como a própria imagem, que a seguir foi materializada no papel, esbarramos na dificuldade relativa à resolução desta mesma imagem dentro do referido arquivo, imagem esta que foi gerada (calculada, sintetizada) como uma matriz de 1600 por 1200 pixels6 , cada ponto constituindo-se de um número entre 0 e 224-1 (cujo valor aproximado é de 16 milhões), indicando a cor daquela posição da matriz. Esta resolução é adequada para a impressão, mas não seria de forma alguma adequada à exibição na tela do monitor de vídeo, ou numa fita VHS, ou num DVD. Para materialização em cada possível suporte, o número (absurdamente grande) que representa a imagem sofreria modificações, por algum processo de transdução7 para adaptar-se as peculiaridades do novo meio. Para diferentes suportes, são necessárias diferentes resoluções em termos de matriz de pontos (pixels) e em números de cores (profundidade do pixel). Aonde então está a imagem? Penso que no conjunto de instruções escrito na linguagem de programação do sintetizador numérico (o programa de raytracing) que foi utilizado para criá-la. Para clareza, darei a este conjunto de instruções o nome de roteiro. Diferentes programas de raytracing, ou mesmo de outras tecnologias de síntese, implementarão diferentes linguagens para a criação da imagem, alguns através do uso de linhas de texto contendo comandos e definições (o roteiro), como no caso do POVRay, outros como resultado da interação de mouse e teclado com o programa, ou mesmo alguma outra natureza de interação. Cabe lembrar que o roteiro, o conjunto de instruções que define a imagem numérica, e, portanto, a própria imagem, depende amplamente da lógica, da implementação de idéias, do esforço de programação que estão contidos no sintetizador numérico, este por sua vez, um software, uma camada de inteligência de uma máquina cerebral, como são denominados os computadores por Lucia Santaella (1997, p.33). Paralelamente a esta experimentação com a imagem numérica, fiz uma experiência de intermediação, da imagem digital que se torna fotolito, da serigrafia lambuzada de algoritmos, que depois é esquadrinhada (“scanned”, “escaneada”) eletronicamente e volta ao computador, sendo novamente trabalhada. Algumas destas serigrafias se transformaram em páginas de um livro de artista 8 . Este livro incluiu um componente codificado em html, que foi minha primeira incursão no terreno da web arte 9 . Neste trabalho, a nota fundamental do processo de criação, foi a apropriação de imagens e estruturas na Internet. A integração de formatos que ora existe entre as muitas ferramentas de síntese Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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me permitiu obter a estrutura química de uma molécula de proteína a partir de um banco de dados de informação biológica na rede e em seguida converte-la para um formato legível ao POVRay, para finalmente usá-la na construção de uma animação. Utilizei imagens de trabalhos de vários artistas, especialmente os surrealistas, bem como outras, ligadas a signo, significado, semiologia e semiótica. A sintaxe que propiciou a união dinâmica destes elementos foi a animação, a simultaneidade de animações, colocadas lado a lado, integradas na 71

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ferramenta web-página. (este e os demais trabalhos citados estão publicados em <http://webfernalia.ontheweb.com>). Sua intenção foi a de pensar sobre o texto em diferentes formas, começando nas páginas do livro, e deslocandose para animações com suporte em meios digitais, passando pelo genoma 10 , pensando nos conceitos da semiótica (primeiridade, segundidade e terceiridade - qualidade, relação, mediação), contemplando as letras de Erté e as quatro estações de Arcimboldo (analisados por Roland Barthes em “O Óbvio e o Obtuso”), soletrando o semeion, imaginando o signo desconhecido nos campos de trigo. Retórica Após esta fase de construção da gramática, unindo imagem infográfica11 e dinâmica de hipertexto, busco agora conferir uma visão de informação, de simultaneidade, de hipertextualidade ao próprio trabalho, e não apenas aquela preexistente na ferramenta html. Essa necessidade de uma retórica modificou a mensagem. As geometrias, as formas cerâmicas e viscerais, impressas e exibidas na Internet, destinadas à contemplação, foram substituídas, ampliadas, tornaram-se “movimetrias”, tendo como alvo uma interpretação pelo movimento, movimento esse da forma, da coordenada, da cor. A singularidade e o isolamento de cada imagem foram substituídos pela pluralidade de exibição, pela simultaneidade de mensagens, como pode ser visto, por exemplo, no trabalho ”óbvio” (fig. 3). A animação, ou melhor, a simultaneidade de animações, lado a lado, como múltiplos cinescópios, a interação, ainda que limitada, no momento, ao que tenha sido previamente programado, previamente estabelecido, a “overdose” de signos visuais, são elementos de sedução que busco incorporar à retórica do trabalho. Em “quo vadis?” (fig. 4), fiz amplo uso de “clipes” de vídeo, capturados em várias caminhadas diárias, com uma webcam, um dispositivo pequeno, pouco visível, que passa despercebido na maioria das vezes, muito prático, mas severamente limitado quanto ao tempo de gravação. Esta característica da máquina sensória 12 se reproduziu no trabalho, no sentido de me conduzir à utilização de pequenos trechos, que buscam transmitir uma idéia inusitada a partir de uma cena corriqueira, cada um deles algo como um haicai 13 visual. Editei, recortei, lidei com cor e contraste, interferi de várias formas nestes “clipes”. Ainda neste trabalho, digitalizei texto de jornais e apropriei-me de fragmentos de outras web-páginas, sempre interferindo, reagrupando e transformando. Em “800 x 600” (fig. 5), o esforço “oratório” passa pelo uso combinado da animação com o texto, sempre incluindo a apropriação, de imagens estáticas e de trechos de vídeo, jogando com a singularidade e o inesperado dos mesmos, como no caso da performance de Robert Watts14 , do FLUXUS, que se transforma em “O Grande Vidro”, de Marcel Duchamp, mas também usando a fotografia e a macrofotografia, na criação de imagens originais, como, por exemplo, as tríades de pontos vermelhos, verdes e azuis, que são Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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macrofotografias dos pixels de um monitor de vídeo. Lógica Em algum momento, li ou ouvi a afirmação de que o computador não seria útil, pois só forneceria respostas; interessante, pois a capacidade de formular as perguntas é vital, mas talvez a assertiva seja inexata. No meu entender, a infografia é algo que suscita perguntas. Afirma PLAZA (1999, p.72): “Assim como a fotografia produziu um profundo impacto nas iconografias do século XIX, na extrema contemporaneidade, assistimos a uma transformação profunda e radical no que se refere à produção de imagens. Isso se deve à mudança radical de sistemas produtivos, não mais o domínio de sistemas artesanais ou mecânicos, mas sim sistemas eletrônicos que transmutam as formas de criação, geração, transmissão, conservação e percepção de imagens. São as Novas Tecnologias de Comunicação (NTC).”

Além da infografia, também a modelagem científica e a prototipação suscitam perguntas. Em outra oportunidade, pude ouvir outra afirmação, a de que a Física - na medida em que seus esforços de compreensão da estrutura da matéria, assistidos pela modelagem computacional do mundo das partículas subatômicas, puderem dispor de máquinas mais e mais poderosas - poderá chegar a deduzir diretamente desses modelos todas as propriedades da matéria, sem necessidade da atividade experimental, o que condenaria outra ciência, a Química, à obsolescência. Trata-se de uma afirmação ousada, mas que dá a dimensão dos horizontes descortinados pelas máquinas cerebrais. Em “800 x 600” (fig. 5), resgato emoção e reflexão de uma fase prematura de minha vida profissional, em que, como programador de computador, lidava com a tecnologia de então. O matemático, o numérico, estavam muito presentes naquele momento, na própria linguagem de programação, o FORTRAN, um acrônimo de “Formula Translation”, unidos a um aspecto intensamente material, substancial, propiciado pela lide com o cartão perfurado, com as máquinas ainda fortemente eletromecânicas, barulhentas, vibratórias, que demandavam grande envolvimento manual. A tecnologia da informação se alicerçava nos computadores de grande porte, não existiam computadores pessoais, terminais ou monitores de vídeo, o suporte dos dados era preponderantemente o cartão de 80 colunas, no qual se registrava a informação com combinações de perfurações. Para preparar meus programas, antes de submete-los para execução no templo iniciático que eram “Centros de Processamento de Dados” da época, sentava-me em frente ao teclado da máquina, e digitava as linhas de texto, cada linha um cartão. Cada letra, cada caractere do texto era uma combinação de uma, duas ou três perfurações numa mesma coluna, entre doze posições disponíveis, e era mesmo possível perfurar todas elas simultaneamente, por meio de um processo especial. Vinha-me à mente com freqüência que, se unisse todas as linhas de todos os meus programas, obteria um cartão, 73

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ou vários cartões, uma infinidade deles, com as oitenta colunas inteiramente vazadas, novecentos e sessenta orifícios em cada um, todos os algoritmos reunidos, toda a informação, todos os programas, já escritos e por escrever, ali condensados. Enquanto escrevo este texto, faço-o num computador, visualizo-o num monitor de vídeo, e a tela deste monitor é na verdade uma matriz de pixels, com um determinado número de linhas e de colunas. Fatores tecnológicos e econômicos fazem com que no momento se use um esquema, uma resolução, de oitocentas colunas por seiscentas linhas, na maioria desses monitores. Se hipoteticamente registrássemos, com uma velha e boa máquina sensória, uma filmadora, qualquer cena, ou mais ambiciosamente, uma quantidade imensa de cenas, uma infinidade de vídeos, todas as cenas do universo, em todos os instantes do tempo, em todas as posições do espaço, todo o continuum do espaçotempo, poderíamos reproduzir estas imagens numa tela, digamos de oitocentos por seiscentos pontos, se houvesse tempo suficiente. Sofisticando o raciocínio, poderíamos manter esse processo em andamento indefinidamente, registrando e exibindo o registro até o sem-fim dos tempos. Naturalmente, os detalhes ínfimos das cenas registradas, menores que um único pixel, seriam automaticamente eliminados durante o processo de registro ou de exibição, mas o infinito fluxo de signos roubados se manteria, as usurpadoras 15 e doadoras máquinas continuariam trabalhando. Entretanto, por causa da Análise Combinatória, um ramo da Matemática, seríamos forçados a desligar a filmadora, e a repetir a programação. Uma quantidade ilimitada de videogramas, exibida a uma resolução de oitocentos por seiscentos, ou seja, quatrocentos e oitenta mil pixels, cada um deles podendo apresentar uma entre cerca de dezesseis milhões de cores diferentes, se esgotaria, se a taxa de exibição fosse de trinta quadros por segundo, em um período de tempo absurdamente grande, porém finito. Algo como o valor do número dois elevado à potência de onze milhões, quinhentos e dezenove mil, novecentos e setenta, em anos decorridos. Neste trabalho, com as considerações acima, busquei indagar sobre o dualismo entre digital e analógico, entre representação e realidade, entre númeno 16 e fenômeno. Em “quo vadis ?”, havia a proposta de dialogar com a cidade, o que busquei fazer imaginando-a em três diferentes níveis, um nível físico, onde se desenrola a ação diária, um nível emocional, onde os desejos, frustrações, esperanças e inquietações se manifestam, e um nível mental, onde a estratégia, o planejamento, as regras e a administração se desenvolvem. No percurso pela cidade, registrei momentos vários com a webcam, e os associei ao meu repertório de sensações quotidianas, gerando os clipes que constituíram a manifestação física da cidade. Dos jornais, recortei anúncios classificados, que resultaram nas animações que constituíram a expressão emocional. De jornais e de páginas da Internet, obtive metas e desapontamentos, que utilizei para construir o Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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estrato mental da urbe. Entre os diferentes planos, existem passagens, que ora sobem escadarias, em direção a um nível mais rarefeito, ora entram em túneis, voltando à densidade, visando reproduzir o vaivém das sensações, emoções e idéias. Conclusão Em minha avaliação, escolhi metas e atingi parte delas, ficando muito por realizar. Remetendo-me ao trivium, a educação básica dentro de uma cultura, e pensando na infografia, na imagem de síntese, na simulação e na realidade virtual, percebo que há um grande esforço por empreender. A gramática precisa ser fortemente ampliada, precisa experimentar bastante com as possibilidades de interação e tele-presença. Outra direção promissora seria a da “software art”17 , em que, entre outras possibilidades, se utilizam peças de programação para geração de som e imagem em tempo real, dirigidas por algum fenômeno aleatório, como por exemplo, o tráfego de um segmento da rede naquele momento, ou a estatística das letras ou das palavras que empreguei neste artigo, ou ainda o padrão do movimento do “mouse” por parte do espectador-ator. Haroldo de Campos (1997, p.207), em seu “Depoimento Sobre Arte e Tecnologia: O Espaço Intersemiótico” faz uma resenha dos experimentos com os “novos meios”, na literatura, na poesia, e nas artes plásticas, mencionando entre outros, Waldemar Cordeiro, que já em 1968 começara a trabalhar com um computador na UNICAMP, mencionando ainda os esforços da poesia concreta em se vincular às atividades interdisciplinares e à semiótica, relatando também as experiências com cor e “timbres” (que seriam determinados grupamentos fonosemânticos) de Augusto de Campos (e este, tocado pela “Máquina de Cores”, de Abraham Palatnik, exposta em alguma das Bienais da década de 50, expressava seu desejo de ter à disposição “luminosos e filmeletras”). Descreve ainda seus próprios experimentos com a “arte permutatória”, que buscava incorporar o probabilístico e o aleatório. Contemplando o cenário contemporâneo, é impossível não verificar que todas essas possibilidades e demandas estão amplamente viabilizadas pelas “Novas Tecnologias de Comunicação”, e talvez muito mais. Em “Estas Imagens em Busca de Identidade”, falando daquelas cujo estilo revela a origem eletrônica, POISSANT (1997, p.82) diz que: “(...) é preciso mudar de atitude, de corpo e espírito para captar em que estas imagens inovam e, sobretudo, como elas estão transformando fundamentalmente o nosso meio. Primeiramente, elas dão acesso, sob uma forma sensível, a diversos universos cuja representação permaneceria abstrata sem a visualização que o computador permite. Depois, pela animação, estas imagens podem reproduzir o movimento de objetos e de processos ou a criação e as metamorfoses da própria imagem. Enfim, seus destinos privilegiados, a simulação e ultimamente a realidade virtual, implicam em reorganizações profundas da sensi75

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bilidade, em trocas num modo de circulação dos corpos e das imagens e em novos registros”.

Meus web-trabalhos tiveram o mérito de me levar a desenvolver uma linguagem, que precisa agora amadurecer. “Óbvio”, talvez o mais bem-sucedido, poderia implementar um maior grau de interatividade, com mais possibilidades respondendo ao “clique” do internauta. Já “800 x 600” demanda um desenvolvimento maior do tema, associado igualmente a mais interação. Um próximo passo seria a inclusão do espaço tridimensional, pela reflexão sobre as possíveis combinações de átomos dos diferentes elementos químicos, numa determinada região do espaço, e o determinismo disto resultante. O respeito à retórica, naturalmente, requer um tratamento diverso daquele utilizado na determinação da quantidade de imagens e nos necessários anos de exibição de vídeo. Por último, “Quo Vadis ?”, pede um tratamento mais cuidadoso dos estratos emocional e mental da cidade, talvez por meio da animação e da síntese numérica, buscando dar vida a timbres, luminosos e filmeletras. Dentro desta realidade, virtual ou não, o trivium, esta tríplice entidade, deverá encontrar e trilhar novos caminhos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Maria Margarida de. Como preparar trabalhos para cursos de pós-graduação. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2002. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. BUCK, J. The recursive ray tracing algorithm. Disponível em: http://www.geocities.com/jamisbuck/raytracing.html>. Acesso em: 23 de abril de 2003. CAMPOS, Haroldo de. Depoimento sobre arte e tecnologia: o espaço intersemiótico. In: DOMINGUES, Diana (org.) A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: UNESP, 1997. p.207-215. Classical education. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Classicall_Education>. Acesso em: 8 de abril de 2003. Grammar. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Grammar>. Acesso em: 8 de abril de 2003. Logic. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Logic>. Acesso em: 8 de abril de 2003. Liberal arts. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Liberal_arts>. Acesso em: 8 deabril de 2003. PLAZA, Julio. As imagens de terceira geração, tecno-poéticas. In: PARENTE, tecnologias do virtual. 3. ed. Rio deJaneiro: editora 34,1999. p.72-88.

André (org). Imagem máquina. a era das

POISSANT, Louise. Estas imagens em busca de identidade. In: DOMINGUES, Diana (org.) A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: UNESP, 1997. p.81-93. Quadrivium. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Quadrivium>. Acesso em: 8 de abril de 2003. Rethoric. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Rethoric>. Acesso em: 8 de abril de2003. SANTAELLA, Lucia. O homem e as máquinas. In: DOMINGUES, Diana (org.) A arte no séculoXXI: a humanização das tecnologias. 1. ed. São Paulo: UNESP, 1997. p.33-44. The fluxus home page. Disponível em: <http://www.nutscape.com/fluxus/homepage>. Acesso em: 14 de maio de 2003. Trivium. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Trivium>. Acessoem: 8 de abril de 2003.

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“O LIVRO VERMELHO”UMA RELEITURA VISUAL DO CLÁSSICO INFANTIL ‘CHAPEUZINHO VERMELHO”

Projeto Gracienne Tavares Camargos

Graciene Tavares Camargos

Introdução Convido você, caro leitor, a conhecer o “Livro Vermelho”: uma releitura de “Chapeuzinho Vermelho” e outros clássicos da literatura ‘infantil’. Através de textos e fotografias, passeio por várias histórias, onde encontro personagens e artistas que fazem parte da minha trajetória. Com os textos e imagens produzidos, procuro refletir sobre a arte, a literatura e, especialmente, a fotografia. “O Livro Vermelho” tem como tema principal a história de “Chapeuzinho Vermelho”, mas outras histórias são citadas, pois trata-se de um intertexto, onde as idéias de vários contos se entrelaçam, se cruzam e são costuradas. “Pinóquio”, “Alice”, a “Bela Adormecida” e outros personagens são, diversas vezes, mencionados no “Livro Vermelho”. 77

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Foto Gracienne Tavares Camargos

No “Livro Vermelho”, trabalho textos e imagens (fotografias). É mais um trabalho de arte contemporânea onde as palavras migram para a arte. Linguagem plástica e pensamento teórico caminham lado a lado, produzindo o que nós podemos chamar de “texto de artista”. Afinal, não há mais limites rígidos entre a palavra e a imagem, entre o artista plástico e o escritor. Através de palavras e imagens, abordo questões como a memória visual da história, o pensamento que essa imagem pode produzir, a imagem construída, o falso, o inventado, a ficção. Procuro mostrar que os contos de fadas falam de temas universais, e, portanto, atuais e que, por isso, resistem ao tempo. A partir da memória do clássico de Charles Perrault e de outras histórias infantis, produzi textos e fotografias que tratam de questões contemporâneas, como a busca do corpo perfeito e o culto exagerado à beleza e à juventude. “O Livro Vermelho” pretende discutir essas e outras questões, que procurei elucidar através da minha leitura. Pretendo trazer à tona algumas dessas mensagens subliminares que identifico nas histórias infantis e instigar o leitor a fazer novas leituras. A literatura, o cinema e as artes plásticas não se cansam de fazer alusões aos contos de fadas. Dois exemplos recentes são os filmes “Inteligência Artificial”, de Spielberg, e “Matrix”, dos irmãos Wachowski. “Matrix” traz claras referências a “Alice no país das Maravilhas” e “Inteligência Artificial” recorre à história de “Pinóquio” para narrar o drama do protagonista: um ser ‘criado’ que queria se tornar humano. Tal como Chapeuzinho, que inicia sua trajetória com um passeio pela floresta, proponho um passeio pelo processo de construção/confecção do “Livro Vermelho”. O passeio começa com O ENCONTRO COM O LOBO, onde falarei do meu ‘primeiro contato’ com o lobo e outros personagens dos contos de fadas. O encontro se dá, ainda na infância, através da leitura/escuta das histórias em questão. No segundo capítulo, ABRINDO A BARRIGA DO LOBO, falarei do que encontrei no interior do lobo, ou melhor, do que encontrei na pesquisa do tema escolhido - os contos de fadas. Proponho um mergulho no mundo do maravilhoso e, especialmente, no maravilhoso mundo de “Chapeuzinho Vermelho”. No terceiro e último capítulo, RECONSTRUINDO O LOBO, explicarei o processo de construção do “Livro Vermelho”, de como cheguei à definição plástica do trabalho. Finalmente, na conclusão, apresentarei não uma conclusão definitiva, mas apenas considerações finais desse percurso.


CAPÍTULO 1 - O ENCONTRO COM O LOBO 1.1 Memórias de leituras A partir da lembrança do conto “Chapeuzinho Vermelho” e outros clássicos infantis, comecei a escrever, desenhar e a fazer fotografias que correspondem à minha leitura dessas histórias. Mas porque os contos de fadas ficaram na minha memória a ponto de se transformarem num trabalho de arte? É difícil falar da minha infância sem mencionar o mundo do ‘faz de conta’, do conto de fadas, da fantasia, da ficção. Os livros e discos de histórias da série DISQUINHO (discos coloridos de vinil com histórias e músicas para crianças) foram um refúgio para mim, um mundo à parte que se revelava através do simples ato da leitura/escuta. Atravessar espelhos como a Alice de Lewis Carrol, encontrar uma casa de chocolate tal como João e Maria; eram coisas possíveis, passíveis de acontecer, mesmo que não fosse naquele momento, ainda que não fosse comigo. Para mim, aquele era um mundo mais atraente, mais justo e até mais lógico que o mundo ‘real’. Eu acreditava nas histórias que lia/ouvia, na possibilidade de atravessar superfícies e encontrar novos mundos. Mesmo que isso, obviamente, nunca tenha acontecido, eu acreditava que algum dia, em algum momento, algo fantástico poderia acontecer. 1.2 O processo de criação do “Livro Vermelho” Quando iniciei este trabalho, optei por não pesquisar, ler ou me aprofundar nos estudos de outros autores acerca do tema. Procurei escrever, desenhar e fotografar a partir das impressões que eu tinha dessas histórias, a partir da minha memória, das minhas lembranças. Comecei a escrever textos sem muita pretensão ou censura, para depois fazer uma edição. Editei o texto inicial, fiz alguns cortes e acréscimos e apresentei à professora Maria Angélica Melendi que fez uma revisão bastante acertada e que foi usada inteiramente por mim. Depois dos textos, comecei a fazer as fotos. Os professores Ronan Couto e Rui Cezar dos Santos me ajudaram a selecionar as cinco primeiras fotos que deram início a este projeto. Para realizar tais fotos, comprei marionetes dos personagens da história de “Chapeuzinho Vermelho”: uma peça de veludo vermelho para a capa da personagem, uma peça de pelúcia para o corpo do lobo mau, e mais tarde, fui incorporando outros materiais como: saco plástico, lençol de cetim, rosas vermelhas, touca plástica, dentre outros. 79

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Fiz mais 72 fotos coloridas, 2 filmes de 36 poses, para depois escolher as fotos que entrariam no trabalho final. Usei de uma técnica comum aos fotógrafos de moda para que as cores fiquem mais saturadas. Fotografei com filme para slide e mandei revelar como filme normal para papel. Assim as cores ficaram mais saturadas e com a aparência mais artificial, mais de acordo com o clima que eu queria dar ao trabalho. CAPÍTULO 2 - ABRINDO A BARRIGA DO LOBO 2.1 As origens dos contos de fadas A literatura maravilhosa sofreu grandes modificações até chegar aos dias de hoje. As narrativas precursoras dos contos de fadas vêm de tempos muito remotos e não foram escritas com o intuito de encantar as crianças, como muitos acreditam. Segundo Nelly Novaes Coelho, as fontes ou os textos-matrizes desse caudal de literatura maravilhosa, são de produção anônima e coletiva. (COELHO, 1987:16) Além das fontes orientais, com as narrativas “Calila e Dimna”, “Os dois irmãos”, “Sendeebar ou O Livro dos enganos das mulheres” e “As mil e uma noites”, COELHO (1987) cita mais duas fontes como as originárias dos contos de fada: as fontes célticas, com o poema “Beowul”, os “Mabinogion” e os “Lais de Marie de France”; e as fontes européias com “Noites Prazerosas” (de Gianfrancesco Straparola da Caravaggio) e “O conto dos contos” (de Giambattista Basile). As fontes mais antigas são as orientais e as célticas, e as mais recentes são as européias. Com o passar do tempo, a essência dessas narrativas foi se transformando e se aproximando das narrativas que conhecemos atualmente. Segundo COELHO (1987:65): “O início dessa transformação deu-se concretamente, no século XVII, na França, com Charles Perrault”. 2.2 Porque os contos de fadas resistem ao tempo As narrativas maravilhosas falam de temas universais, e interessam não só às crianças como aos adultos. É claro que para as crianças, que ainda estão descobrindo o mundo, os contos de fadas adquirem outra importância e sentido. De acordo com Bruno Bettelheim, no conto de fadas, não é apresentado à criança um mundo cor-de-rosa, sem perigos, lutas, sofrimento, envelhecimento e morte. O conto de fadas confronta a criança com os predicamentos humanos básicos. Ele mostra que a luta contra dificuldades na vida é inevitável, faz parte da existência humana. Mas, por outro lado, mostra também, que, ao não se intimidar, ao lutar contra as injustiças e obstáculos, alcança-se a vitória. Embora tratem de problemas universais, os contos de fadas falam na linguagem dos símbolos e não da realidade cotidiana. Coisas fantásticas acontecem nos contos de fadas, e não na vida da criança e isso fica claro até mesmo Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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no início das histórias. O “Era uma vez”, “Há mil anos atrás”, etc, sugerem que o relato não pertence ao aqui e agora. (BETTELHEIM, 1980:78) 2.3 “Chapeuzinho Vermelho” à luz da psicanálise Optei por fazer uma análise de “Chapeuzinho Vermelho” à luz da psicanálise, de acordo com o livro “A psicanálise dos contos de fada”. O autor, ao mesmo tempo em que aponta aspectos selvagens nesta e em outras histórias, defende a leitura dos contos de fadas para as crianças como um auxílio para um melhor entendimento da vida, das tentações, dos perigos e escolhas a que estamos todos submetidos. A primeira publicação de “Chapeuzinho Vermelho” é de Charles Perrault, em 1697. Na versão de Perrault, a história termina com a avó e Chapeuzinho sendo engolidas pelo lobo. Muitas traduções da história terminam assim. Mas, segundo BETTELHEIM (1980:204) o relato de Perrault continua com um poema do tipo ‘moral da história’: “O relato original de Perrault continua com um pequeno poema no qual propõe uma moral a ser deduzida: que meninas bonitinhas não deviam dar ouvidos a todo tipo de gente. Se o fazem, não é de surpreender que o lobo as pegue e devore. Quanto aos lobos, eles aparecem com todos os tipos, e entre eles os lobos gentis são os mais perigosos, especialmente os que seguem as mocinhas nas ruas, até mesmo à casa delas. Perrault não desejava apenas entreter o público, mas dar uma lição de moral específica com cada um de seus contos. Por isso é compreensível que ele os modificasse de acordo com o que desejava. Infelizmente, com isso, tirava muito do significado dos contos. Quando conta a estória, não há ninguém que advirta Capinha Vermelha para não perder tempo no caminho para a casa da avó, nem desviar-se da estrada certa. Na versão de Perrault também não faz sentido que a avó, que não cometera nenhum erro, termine destruída. (BETTELHEIM, 1980:204-205) Para BETTELHEIM (1980:203), a versão de Perrault de “Chapeuzinho Vermelho” ou “Capinha Vermelha”, como é mais conhecido na tradução em inglês, “é destituída de escape, recuperação, e consolo; não é - e Perrault não pretendia que fosse - um conto de fadas, mas uma estória admonitória que ameaça deliberadamente a criança com seu final produtor de ansiedade”. D e acordo BETTELHEIM (1980:205), “Capinha Vermelha” de Perrault perde muito de seu atrativo porque fica óbvio que o lobo não é um animal ávido, mas uma metáfora, que deixa pouco à imaginação do ouvinte. Ele explicita tudo ao máximo, não deixando nada para que o ouvinte dê um significado pessoal à história, o que é o grande valor dos contos de fada. “Quando a menina se despe e entra na cama com o lobo e este lhe diz que os braços fortes são para abraçá-la melhor, não sobra nada para a imaginação. Como Capinha não responde a esta sedução óbvia e direta com uma tentativa de escapar ou lutar, ou ela é estúpida ou deseja ser seduzida. Nos 81

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Foto Gracienne Tavares Camargos

dois casos não é uma figura própria com quem alguém possa se identificar. Com estes detalhes Capinha Vermelha se transforma de uma menina atraente e ingênua, que é induzida a negligenciar as advertências da Mãe e a divertir-se com o que acredita conscientemente ser um caminho inocente, em uma mulher decaída”. (BETTELHEIM, 1980: 205) Concordo em parte com a análise feita acima, mas percebo que, apesar dela se referir apenas à versão de Perrault, nota-se que muitas pessoas pensam da mesma forma em relação à versão mais divulgada da história, a dos Irmãos Grimm, versão esta que não se refere tão explicitamente à relação sexual. Mas, para se ter idéia de como as opiniões divergem a respeito do tema, transcrevo um comentário encontrado no livro “Contos de Perrault”: “O Chapeuzinho Vermelho está longe de trazer à lembrança uma rapariga maliciosa. Trata-se da própria inocência, em seus verdes anos - uma menina tão nova que nem ainda tem um nome. Mais tarde, pela altura de seus treze ou quatorze anos, ela será chamada de Nicette. Uma de suas irmãs mais velhas já recebeu o nome de Nicolette, e uma outra, a mais velha da família e já casada, chama-se Perrette Pote-deLeite, a leiteira da fábula de La Fonntaine. Uma de suas primas serviu de criada para o senhor Arnolphe e foi aia de Agnes, a pupila desse velho burguês. Todo esse gracioso bando de jovens aldeãs foi o enfeite e o encanto das narrativas dos nossos antigos contadores de histórias.” (PERRAULT, 1992:223-224) Transcrevo também do mesmo livro, “Contos de Perrault”, a versão do final de “Chapeuzinho Vermelho” segundo os Irmãos Grimm: “O Chapeuzinho Vermelho é encontrado também na Alemanha, e no livro dos Irmãos Grimm tem (nº 26) o mesmo título que o do conto francês. A diferença é que as amas alemãs, tomadas de compaixão por Chapeuzinho Vermelho e sua avó, deram à história um novo desfecho, no qual o crime é punido e a inocência vingada. “Quando o lobo”, dizem elas, “se viu de barriga cheia, ele tornou a deitar na cama e adormeceu, pondo-se a roncar ruidosamente. Ora, sucedeu que um caçador ia passando perto da casa: “Oh!”, exclamou ele, “como ronca a avozinha! Vou ver se ela não está passando mal”. Entrou no quarto e, ao chegar perto da cama, viu que era o lobo que roncava tão alto. “Ha ha! Já te pego, seu patife!”, falou ele. “Há muito tempo te procuro”. E já ia dar-lhe um tiro com a sua espingarda quando percebeu que o lobo tinha evidentemente comido a avozinha, mas que talvez ainda houvesse um meio de salvá-la. Em vez de atirar, ele passou a mão numa enorme tesoura e começou a cortar a


vasta pança de Sua Excelência o Lobo, que continuava a roncar. Mal havia dado duas tesouradas quando viu aparecer o chapeuzinho vermelho; mais dois cortes, e a menina, libertada, saltou por terra gritando: “Oh, que medo eu tive! Estava tão escuro dentro da barriga do lobo!” Logo em seguida veio a avó, ainda viva, mas mal podendo respirar. E então Chapeuzinho Vermelho foi correndo apanhar um punhado de pedras, com as quais encheram a barriga do lobo. Quando ele acordou e viu todo mundo ali, quis saltar da cama, mas as pedras eram tão pesadas que ele desabou ao chão com estrondo e morreu da queda. “Foi então que os nossos três amigos se alegraram. O caçador pegou a pele do senhor lobo e a levou para a sua casa; a avó comeu o bolo e o potezinho de manteiga que Chapeuzinho Vermelho tinha trazido e achou-os deliciosos. Quanto à menina, disse consigo mesma: “Nunca mais vou desobedecer minha mãe e me desviar do caminho na floresta.” (PERRAULT,1992:225-226) De acordo com BETTELHEIM (1980:210-211), os Irmãos Grimm apresentam duas versões da história ou, melhor, uma variação importante dela. Trata-se essencialmente de um acréscimo no final: Na Segunda versão da história dos Irmãos Grimm, quando “Chapeuzinho Vermelho” leva de novo doces para a avó, outro lobo tenta atraí-la para fora do caminho correto (da virtude). Mas a menina conta para a avó e juntas elas trancam a porta para que o lobo não entre. Ao tentar entrar pelo telhado, ele escorrega e cai numa tina de água, morrendo afogado. Ainda segundo o estudioso já referido, essa segunda versão da história é importante porque nos mostra que, ao proteger Chapeuzinho e planejar com êxito a morte do lobo, o papel dos avós está sendo cumprido: “É desta forma que se supõe que os avós ajam; se o conseguem, nem os avós nem a criança precisam temer o lobo, por mais esperto que ele seja. Também o papel dos contos de fada se cumpre, que é o de orientar as crianças e mostrar o que é correto e deve ser seguido. CAPÍTULO 3 - RECONSTRUINDO O LOBO 3.1 Do livro ao “livro de artista” e ao “livro-objeto” No primeiro capítulo falei da importância dos contos de fada na minha infância e nas formas como estas histórias chegaram até mim: através dos livros, disquinhos, slides, etc. Falando dos livros, hoje percebo que tão importante quanto o conteúdo é a sua forma de apresentação. Livros de capa dura, livros ilustrados, livros com letras douradas, livros coloridos, livros empoeirados, 83

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guardados, amarelados, livros que revelam o nosso passado. Para seus amantes, é um objeto de fetiche, de desejo, de admiração, respeito, cuidado, ciúmes. Os livros preferidos são guardados no espaço mais nobre da estante, nas portas de vidro, para serem vistos, mas trancados à chave, inacessíveis aos intrusos que desejam levá-los. As velhas coleções, o papel, o cheiro, as traças, a flor seca encontrada em suas páginas. Tudo é motivo de prazer e zelo. Ao iniciar esta pesquisa, ainda não sabia qual seria a forma de apresentação do “Livro Vermelho”. À princípio, o que mais me atraía na proposta de fazer um livro era o poder de reprodução e conseqüente popularização do trabalho. Através do “livro de artista” é possível levar a obra/pensamento do artista para além das galerias de arte, já que o livro permite o acesso de um número maior de pessoas. Tive que me decidir entre fazer um objeto único ou “livro-objeto” para exposição em galeria, ou um livro, livreto ou catálogo de grande tiragem para distribuição ou comercialização. No decorrer da pesquisa, já não tinha tanta certeza se a reprodução do livro, ao menos num primeiro momento, seria a melhor opção. À medida em que eu ia pesquisando e escrevendo sobre os fatores que me motivaram a realizar o trabalho, outras alternativas de apresentação foram se delineando. 3.2 O “livro-objeto”, “O Livro Vermelho” Optei então por um “livro-objeto” que pode ser visto por várias pessoas ao mesmo tempo e pode até mesmo ser exibido em vários lugares, pois permite reprodução. Trata-se de uma projeção onde serão utilizados dois projetores de slides para projetar as imagens do “Livro Vermelho” em duas paredes de uma sala escura, onde as fotos e textos serão mostrados numa ordem préestabelecida. A idéia é utilizar o encontro das paredes de uma sala para projetar as fotos e textos do “Livro Vermelho”. Serão usados dois projetores para que o resultado sugira um livro aberto, sendo, geralmente, uma página de foto e outra de texto. O angulo de 90º formado pelas duas paredes, funcionará como um livro aberto, onde as páginas serão viradas pelo processo mecânico, o projetor de slides, que também faz referência ao processo mecânico da câmara fotográfica. Ao projetar meu livro no encontro de duas paredes, procuro fazer menção à parede como o lugar onde o artista pode expressar suas idéias, sua página em branco, o suporte tradicional para os artistas plásticos. A parede é o livro do artista plástico, onde ele ‘escreve’ seus textos/obras. Quase todo artista plástico utiliza ou já utilizou da parede como suporte para seus trabalhos. Apresentado dessa forma, o livro é projetado, ampliado, homenageado. Não o meu livro, mas o livro como objeto de encantamento. Tudo foi pensado para o momento da exibição ser um momento único, silencioso, poético e Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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introspectivo, como o próprio ato da leitura. O silêncio na sala de exibição só será interrompido pelo som do projetor de slides, o som do projetor mudando os slides. Um som que me lembra a infância, tempo de poucos recursos tecnológicos. A precariedade, o antigo, o ultrapassado. O passado que bate à minha porta. A infância, a radiola, o retroprojetor, o mimeógrafo, os disquinhos coloridos. Voltando a falar de livros, que questiono em vários momentos do meu trabalho de arte, traço um paralelo entre imagem e texto, e neste caso especificamente, entre texto e fotografia. Tanto texto quanto foto ‘vivem’ no bidimensional. A foto, assim como o texto, aprisiona a tudo e a todos no papel. Os personagens de um livro (e aqui entenda-se tanto livros de texto quanto livros ilustrados) são prisioneiros do livro. Prisioneiros do papel. Mas, ao mesmo tempo em que os personagens do livro são prisioneiros do mesmo, eles libertam o leitor, porque abrem novos horizontes, novos mundos. Através do conhecimento, o leitor se descobre, se liberta, se modifica. E, se é verdade que papel aceita tudo, o mesmo não acontece com o leitor, que escolhe suas leituras, elege seus autores preferidos e repudia o que não lhe convém. 3.3 - As fotografias no “Livro Vermelho” As fotografias, assim como outras formas de representação, são abstrações do mundo real, fazem parte do ‘mundo das representações’; onde nada é real, tudo é signo. A aparente verdade a que nos remetem as fotografias derivam da sua semelhança com a realidade. Semelhança que deve ser questionada. Afinal, as coisas reais são tridimensionais, tem volume, cor, cheiro, sabor etc. A fotografia ‘aprisiona’ a tudo na superfície do papel, no bidimensional. Os maiores e menores objetos ‘cabem’ dentro do papel fotográfico. Mas, como afirmou COLEMAN (1976:2): “o povo crê em fotografias”. Um dos fatores que faz com que isso aconteça e sua credibilidade não seja muito questionada, segundo ele, é que “a fotografia institucionaliza a perspectiva do Renascimento, reificando científica e mecanicamente aquele modo de perceber herdado”. (COLEMAN, 1976:2) Apesar da fotografia ser um meio em que as pessoas tendem a confiar, acreditar; podemos perceber, até mesmo baseados na História, que a fotografia serve para muitos fins e um deles é mentir. Se não mentir, melhorar, ocultar ou privilegiar certos aspectos ou pontos de vista. Até mesmo fotos documentais, de registro de um acontecimento, podem ser manipuladas de forma a parecer mais interessantes ou para nos levar ao mesmo raciocínio ou entendimento da imagem que o fotógrafo deseja. Através da fotografia é possível criar todo tipo de imagem, usando os mais diversos artifícios para se criar o clima, o temperamento da foto. Concordo com a afirmação de COLEMAN (1976:4): “é possível criar qualquer ima85

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gem que se conceba; essa possibilidade, é claro, está condicionada a ser capaz de pensar e criar. A maior fonte potencial de imaginária fotográfica é a mente”. Portanto, não é estranho dizer que pode-se até mesmo criar uma ‘falsa’ realidade. Para o “Livro Vermelho” produzi fotografias que não são flagrantes do cotidiano, são imagens totalmente construídas. Assim como o texto, é também ficção, algo criado, inventado. Através deste tipo de imagem posso deturpar e criar uma nova realidade; uma realidade construída, forjada, ampliada. Dar corpo às mais estranhas formas, criar todo tipo de imagem. Infinitas possibilidades do mundo bidimensional. Segundo COLEMAN (1976:4): “existe uma vasta tradição de fotografia diretorial enquanto tal. Mas a atividade diretorial também desempenha um papel em outros modos. Eu sugeriria que o arranjar de objetos e/ou pessoas à frente da objetiva é essencialmente diretorial.” A fotografia, e ainda mais a fotografia diretorial, tem o poder de melhorar aspectos da realidade, melhorar a aparência das coisas e das pessoas. Nas palavras de (SONTAG,1986:83): “é comum alguém que tenha se deparado com alguma coisa bela exprimir seu pesar por não ter podido fotografá-la. O papel da câmara de embelezar o mundo tem sido tão bem-sucedido que a fotografia, e não o mundo, tornou-se o padrão de referência do belo”. Segundo (SONTAG, 1986:15): “tomar uma fotografia é como participar da mortalidade, vulnerabilidade e mutabilidade de uma pessoa (ou objeto). Precisamente por lapidar e cristalizar determinado instante, toda fotografia testemunha a dissolução inexorável do tempo”. Concordo com sua afirmação. No “Livro vermelho”, além de mostrar as fotos produzidas, faço um questionamento sobre a fotografia. E uma das coisas que ressalto é justamente isto: a verdade da fotografia é eternizar um instante que não pode voltar, manter a juventude e a beleza enquanto o corpo real envelhece. Procuro evidenciar que o germe da morte está presente em todas as fotos, num instante único que não tem volta. 3.4 Referências artísticas Cindy Sherman é uma das artistas com quem me identifico e percebo semelhanças na forma de trabalhar a fotografia. Cindy Sherman construiu imagens a partir da pornografia, dos contos de fadas, da história da arte e da moda. Usando seu próprio corpo, manequins e próteses, ela cria personagens, cenas fictícias, imagens construídas. Assim como eu, não documenta cenas existentes e sim, cria ilusões. O resultado plástico do meu trabalho não se assemelha ao de Cindy Sherman, mas detecto em ambos, além das imagens ficcionais, uma questão recorrente : o universo feminino. Outro artista com quem compartilho de certa afinidade é Paul McCarthy. Ele trabalha com cenas totalmente construídas a partir de referentes da cultura de massa. Assim como McCarthy, tenho referências na cultura pop, em imagens artificiais, nos videoclipes, filmes B, etc. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Conclusão “O Livro Vermelho” demonstra ser um trabalho aberto, passível de ser apresentado de várias formas. Proponho neste momento a apresentação do livro-objeto “Livro Vermelho” e deixo em aberto novas formas de apresentação/divulgação do trabalho. Afinal, nada impede que possíveis desdobramentos sejam feitos a partir do “Livro Vermelho”. Se bem aceito pelo público, se realmente tiver algo a dizer, a acrescentar no cenário da arte contemporânea, ele será, certamente, reproduzido e acessível a um número maior de pessoas.

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Ronan Couto

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ARTE E INTERVENÇÃO: UM OLHAR SOBRE A SERRA DO CIPÓ

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Auqarela Maria Márcia Franco Gomes

Maria Márcia Franco Gomes


Introdução A pesquisa que realizamos objetiva promover uma forma de intervenção e sensibilização através das artes plásticas, propondo um novo olhar sobre um assunto presente na contemporaneidade. Os novos interesses pelas artes plásticas, no mundo contemporâneo, nos leva a uma reflexão sobre a necessidade de tornar a arte, arte pública, visto que a manifestação artística se liga à realidade na medida em que envolve o conhecimento e a conscientização de problemas atuais da sociedade. A arte atua, assim, como veículo de sensibilização e estruturação de pensamentos. Paralelamente ao interesse pela arte pública, nossa pesquisa procura, também, demonstrar que a arte figurativa não apenas reproduz passivamente a natureza, já que ela desloca, tira o objeto do lugar-comum, do contexto no qual estamos habituados a vê-lo. Em um tempo em que uma das maiores preocupações da humanidade é a devastação do ambiente natural, a ecologia, hoje, é uma das ciências mais atuantes, e o olhar de alguns artistas em relação à natureza expõe uma visão lúcida e contemporânea de uma diversidade biológica que precisa ser conhecida e preservada. No séc. XIX, a arte dos naturalistas estrangeiros serviu como meio de conhecimento de terras exóticas e desconhecidas. A questão hoje, além de documentar a natureza, é pretender preservá-la. É neste sentido que arte e ciência se tornam aliadas, revelando uma face muito pouco conhecida de nosso ambiente natural. Na pesquisa realizada, a produção de uma série de aquarelas é uma tentativa de demonstrar, na prática, a questão exposta neste trabalho. A Serra do Cipó foi a região escolhida para a seleção das espécies da flora, por ser considerada, pelos estudiosos, como área prioritária para conservação da biodiversidade de Minas Gerais. De início, foi feita uma revisão bibliográfica e algumas entrevistas com profissionais da área de ecologia e botânica. A partir destas pesquisas e entrevistas, foi escolhido o local posteriormente usado como tema para este projeto, a região da Serra do Cipó. Foram coletadas informações sobre as espécies vegetais bem como os dados sobre a realidade ecológica do local. A pesquisa de campo se processou através de várias visitas à Serra do Cipó, com o acompanhamento de um geógrafo e de botânicos pesquisadores que estavam estudando a região, naquele momento. Nessas viagens, foram realizados os esboços a lápis das plantas encontradas, além de algumas anotações no diário de viagem. Cerca de duzentas e cinqüenta fotografias foram tiradas e usadas principalmente como referência para as pinturas executadas em ateliê, à medida em que as viagens eram realizadas, já que as plantas não foram coletadas para a produção das aquarelas. No trabalho em ateliê, além das aquarelas, foi criado um modelo de catálogo, trazendo as pinturas em formas de pranchas, com algumas informa105

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ções básicas sobre a região, a importância da preservação da flora local, bem como a identificação das plantas retratadas. A apresentação final deste trabalho reúne o memorial analítico, as pinturas, o diário de viagem com as fotografias e o catálogo. O desenho científico na atualidade “O modelo de representação artística adotado pela ciência clássica coincide sobretudo com um modelo de conhecimento exercido a partir da visão. A história natural constitui um primeiro parâmetro valioso para nossas considerações. A história dos seres naturais e, no seu interior, o reino da botânica, oferecem o exemplo mais logrado desse modelo de conhecimento e ordenação do universo, para a construção do qual se aliaram arte e ciência”. (BELLUZO, 1994: vol.2, p.9)

Os desenhos científicos atualmente são usados em teses, publicações periódicas, livros, arquivos e apostilas. São ilustrações que devem representar uma planta ou animal com a maior fidelidade possível, permitindo o reconhecimento e a identificação do modelo; muitas vezes com resultado expressivo. Os artistas que se dedicam a esta produção geralmente adquirem conhecimentos em botânica e zoologia, através do contato com os cientistas, durante a realização do trabalho. No Brasil, não existe formação superior em desenho científico e a profissão não é reconhecida. Em geral, estes desenhistas são artistas plásticos que aprendem ao longo da observação e da prática. Torna-se um requisito essencial, nesta profissão, que os artistas se envolvam e se interessem pela natureza. O que se mostra evidente no trabalho que eles realizam, hoje em dia, é a preocupação em chamar a atenção das pessoas para a preservação da natureza, retratando, na maioria das vezes, animais e plantas ameaçados de extinção. Apesar de pouco conhecidos no Brasil, o trabalho de alguns desses artistas é reconhecido e bastante valorizado no exterior. A figuração na contemporenidade A figuração sempre esteve presente em toda a história da arte, desde a pré-história até os dias de hoje, e pode ser entendida, sob os conceitos das artes plásticas, como uma maneira de representar qualquer tema sob forma reconhecível . Podemos ver, através de uma obra figurativa, uma outra realidade além daquela que nos é apresentada, desde que a nossa percepção não se limite a um registro passivo daquilo que vemos. A realidade contida na obra pode transmitir a consciência do artista, sua intuição e sua expressão objetiva na apreensão de dados do mundo exterior. A imagem figurativa pode ou não ser considerada uma obra de arte. Isto está, acreditamos, relacionado à maneira de como o artista reproduz a realidade, e se transmite sua expressão através de sentido estético. Nesta refleRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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xão, KANDISNSKY (1987: 114) afirma: “A imitação da natureza que for feita por um artista com capacidades espirituais nunca poderá ser uma reprodução morta. Mesmo sob esta forma, a arte pode falar e fazer-se entender.” A representação do mundo visível na arte contemporânea ultrapassa os limites da obra. A idéia de figura aparece sob ângulos diferentes, surgindo mais por meio do conceito do que da forma. Os materiais são usados de modo a revelar as características sensíveis do tema, e passam a valer mais do que as próprias imagens. Se pensarmos na figuração dos novos tempos, podemos perceber que o assunto da obra se relaciona, muitas vezes, com a construção de relações sociais, adquirindo, assim, um sentido diferente daquele que já foi transmitido até hoje. Apoiando-se nessa nova abordagem da representação, entendemos que as obras com temas figurativos têm em comum, ao longo dos tempos, a capacidade de transmissão de mensagens ao espectador. Novas Funções da arte A arte que cria, ensina ou imita, também transmite idéias ao espectador. Ao ser entendida como um agente de comunicação, a arte deixa de ser um assunto fechado em si mesmo, com existência própria: o olhar identifica o mundo e estabelece relações através das imagens, abrindo, desta maneira, uma nova perspectiva sobre as funções da arte contemporânea. A reprodução de imagens é um fato que provocou uma grande mudança nas artes plásticas, pois o significado de uma obra de arte muda radicalmente quando a imagem é reproduzida. O sentido da arte se diversifica mediante a reprodutividade das imagens no mundo contemporâneo – nisto reside uma das funções da arte que procuramos demonstrar neste trabalho de pesquisa – a reprodução de uma pintura faz uso da imagem enquanto linguagem e construção de conhecimentos. A esse respeito, BERGER (1999: 33) analisa: “O que fazemos daquele momento pintado quando ele está diante de nossos olhos vai depender daquilo que esperamos da arte, e que, por sua vez, hoje depende de como já vivenciamos o significado de pinturas através de reproduções.”

Nesta pesquisa, a divulgação de uma série de pinturas, retratando plantas em extinção, é um meio de revelar um significado que está além da mera representação pictórica de um tema da natureza. E a reprodução dessas imagens faz com que a arte seja usada para diferentes propósitos e vivenciada por públicos diversos. Sem destituir das obras o seu valor original, importante na medida em que aproxima o espectador do fazer artístico, as imagens reproduzidas, ao atuar no mundo contemporâneo, propõem uma nova linguagem visual. Uma outra função da arte, na vida contemporânea, apresenta-se através de várias manifestações que procuram sensibilizar o homem em busca de so107

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luções para problemas atuais. Estas manifestações surgem pela “arte pública”, levantando importantes questões sociais, ecológicas e urbanas. Conceitos como preservação, conservação e desenvolvimento, são algumas das diversas propostas levadas ao encontro do espaço coletivo dos homens com esta nova manifestação artística. Na arte pública, o artista se desloca do seu trabalho tradicional em ateliê e, nesta nova configuração de um fazer artístico, uma troca de experiências e de conhecimentos se dá entre artista e espectador, surgindo, assim, a nova linguagem – principal característica da arte contemporânea. ROCHA (1998: 31) afirma, em seu ensaio sobre arte pública: “Se considerarmos a manifestação artística basicamente como um discurso, uma fala, uma notícia, ela só pode ser essa notícia sobre o conhecimento, e a questão do conhecimento envolve a idéia de resolução de problemas (...). Adotando-se uma visão intrigante do que seja a arte pública ou arte não-pública, é quase natural se dizer que a essência da arte é sua dimensão pública já que, enquanto discurso, ela tem de versar sobre a política do desenvolvimento dessas questões entre os homens, do apaziguamento das contradições, da idéia da fraternidade e da esperança quanto à realização dos destinos humanos. Quanto a isso, a arte se manifesta ou suas manifestações são, ainda enquanto discurso, ensaios sobre esse mesmo conhecimento, que assumem no tempo uma dimensão histórica, no sentido de uma experiência sobre nossa existência no universo.”

A Pesquisa de campo A Serra do Cipó se localiza a 90 km de Belo Horizonte, na área central de Minas Gerais e ao sul da Cordilheira do Espinhaço. Apresenta um relevo montanhoso, com um conjunto de rios e dezenas de cachoeiras, com altitudes que variam de 700 a 1.600 metros de altitude. Na parte baixa da serra ocorre a vegetação de cerrado, enquanto na região, com altitudes acima de 1000 metros, ocorre a vegetação de campos rupestres, ou campos de altitude, com solos arenosos de pouca profundidade e pequena capacidade de acumular água. A temperatura pode chegar durante o dia até a 50ºC perto do solo, e a 0ºC, à noite. Apesar dessa aparente aridez, a vegetação de campos rupestres da serra abriga uma flora bastante diversificada, com flores raras e únicas na região (mais de 1.600 espécies diferentes já foram catalogadas). As difíceis condições climáticas fizeram com que as plantas criassem várias estratégias para sua sobrevivência, evidentes, principalmente, nas várias espécies de canelas-de-ema, que nascem entre as formações rochosas da região. As bromélias, orquídeas e sempre-vivas nativas na serra apresentam características muito atraentes, trazendo com isso a ameaça de extinção devido à coleta e conseqüente comercialização. O Parque Nacional da Serra do Cipó foi criado em 1984, com o objetivo primeiro de proteger a fauna e a flora da Serra do Cipó, e preservar seus importantes elementos históricos e culturais. Antes de iniciarmos as viagens, buscamos informações em bibliografiRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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as e em várias entrevistas com profissionais da área de ecologia e botânica. Esclarecedoras informações, além de ricas sugestões foram recebidas, direcionando a idéia inicial do projeto sobre a escolha do local e das plantas que seriam, em seguida, retratadas. A Fundação Zoo-Botânica de Belo Horizonte teve uma importante participação neste trabalho, com as biólogas que acompanharam as várias etapas da pesquisa, fornecendo informações e fotografias da flora da Serra do Cipó, e identificando as espécies retratadas. Durante as viagens, o acompanhamento da pesquisa foi feito com o geógrafo Adriano Pontello, visando o reconhecimento e a localização das plantas na região. Durante a pesquisa no local, as flores foram procuradas nos mesmos locais e trilhas onde os pesquisadores da UFMG realizam seus estudos. Elas foram localizadas, basicamente, em três pontos da Serra do Cipó, onde predomina a vegetação de campos de altitude. As plantas não foram coletadas para a realização das pinturas, pois além de serem espécies em processo de extinção, e protegidas por lei, elas não sobreviveriam fora de seu habitat natural. Sendo assim, as flores foram retratadas por esboços a lápis, no próprio local. Alguns esboços foram registrados no diário de viagem, e outros, concebidos diretamente no papel das aquarelas. As fotografias tiradas configuram o mais importante meio de registro das flores e também da pesquisa de campo. Cada espécie foi fotografada em partes e no todo e, para que pudéssemos captar todos os detalhes e cores, chegamos a tirar uma média de dez fotos de cada planta encontrada. O Trabalho em ateliê O trabalho em ateliê foi realizado paralelamente à pesquisa de campo e as fotografias foram o requisito básico e essencial para que as aquarelas fossem realizadas. As plantas não foram desenhadas em tamanho natural, como é o normal em um trabalho científico. Mesmo com a ajuda dos esboços, o trabalho das pinturas exigiu um grande exercício de memória visual. As variações de luz e cor das fotografias precisaram ser compensadas pelos registros do diário, enquanto a forma e a composição dos desenhos foram estudadas através de verdadeiras investigações nos vários ângulos diferentes em que as plantas foram fotografadas. O resultado final do trabalho em ateliê se mostrou satisfatório, mas o ideal é que, em um trabalho deste tipo, as plantas sejam retratadas ao vivo, desde o esboço até a pintura final, pois vários de seus detalhes só podem ser vistos e analisados a olho nu. Procedemos, em seguida, à criação e editoração do modelo do catálogo, que foi produzido em computador. Esse catálogo apresenta as pinturas com os nomes científicos das plantas e um pequeno texto sobre a Serra do Cipó, com suas principais características. Nossa intenção de publicar o catálogo foi realizada através do patrocínio cultural da Usiminas, em Belo Horizonte, no ano de 2002. As aquarelas foram impressas em forma de pranchas no formato 109

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21X30cm em papel couché fosco, e o texto sobre o trabalho realizado acompanha a embalagem, impressa em tipografia sobre papel kraft 420grs. Conclusão Esta pesquisa apoiou-se na idéia de que a linguagem artística pode ser um meio de informação e conscientização de um problema da atualidade. As imagens por si só podem formar nossa dimensão cultural, à medida em que estabelecem relações com a realidade. Ao analisarmos a questão relativa às pinturas realizadas para este trabalho, é importante que se perceba a arte associada a questões ecológicas, que não se subordina a resultados vistos somente sob a lógica da ciência. Através da observação minuciosa da natureza e do desenho figurativo, a realidade ecológica de uma determinada região foi transportada para as imagens, aproximando as relações entre visão, conhecimento e representação. Com a divulgação dessas pinturas, por meio do catálogo, não buscamos fornecer uma simples cópia do mundo real; ao contrário, a natureza foi retratada e apresentada ao espectador, transmitindo um conteúdo que está além das aparências estéticas. O importante é o que a obra pode suscitar, intervindo na vida como um todo e em nosso ambiente. Todas estas reflexões nos levam a acreditar que a divulgação do catálogo vem alcançando os efeitos desejados inicialmente, atuando como uma forma de arte pública. Do total da tiragem publicada (1000 exemplares), a metade foi destinada a Usiminas, que por sua vez distribuiu e divulgou o trabalho, principalmente no exterior. A outra metade foi reservada à artista e autora do projeto, assim como os direitos autorais das reproduções e sua comercialização. O catálogo vem sendo divulgado em importantes instituições públicas e privadas ligadas ao meio-ambiente, universidades, bibliotecas, jornais e tv. Todo o processo de produção permitiu uma experiência muito gratificante dentro e fora do ateliê, e a busca de informações e o convívio com profissionais de outras áreas, como a botânica, revelou outras realidades e diferentes visões sobre a arte e a natureza. Concluímos, assim, que o sentido da arte não se esgota no fazer artístico; mais que isto, a arte nos convida a entrar em relação com o mundo e a realidade, levando o espectador a algo muito além da mera contemplação.

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apresentados nos Seminários de Arte

VICTORIANO, Benedicto A. D., GARCIA, Carla C. Produzindo monografia São Paulo: Publisher Brasil, 1996.

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O QUE SOMOS, COMO EDUCAMOS Sonia Assis

Introdução Os textos de filósofos e humanistas contemporâneos demonstram que há uma preocupação de vazio, de incerteza e muita angústia quanto ao ser –do verbo ser – somos, sois. Quem somos, para onde vamos, como estamos? Qual é a nossa realidade? A realidade acadêmica demonstra que leis e estruturas caminham pedrantes dentro dos seus próprios mundos e que por isto não espelham as necessidades. Quero dizer com isto que caminham circunscritas em seu próRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Ilustração Sonia Assis

O essencial é saber ver, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê Nem ver quando se pensa Mas isso ( triste de nós que trazemos a alma vestida!) Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem do desaprender. Fernando Pessoa


prio valor, criando uma estrutura anacrônica que as desidentifica com a própria vida que continua desamparada. Acredito no grande poder de construção da arte, proporcionando desenvolvimento individual e grupal amplo e consistente burlando de certa forma esta petrificação. Eterno redescobrimento através da imaginação intuitiva e produtiva. Bachelard (1985 p. XVI) define que a imaginação não é como o sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade. Avaliar a humanidade de homens e mulheres em seus momentos históricos, percebendo-os indivíduos em evolução e buscar compreender as reais possibilidades que se manifestaram e quais os argumentos didáticos oferecidos pela arte que coexistem é o estudo que se faz necessário. Quem sou eu? O que é este mundo, onde e como reconheço o campo ilusório? Qual é este tempo para ser, como estar no mundo e para qual mundo? Por quê arte e cultura? A idéia de “sujeito coletivo ou trans-individual” definido por L.Goldmann (apud Foucault, op.cit. pag.74) me fascina na medida que me obriga a uma pesquisa séria e bem fundamentada, e me coloca como possível responsável por uma linguagem ordenada e clara de um processo já instaurado pelo próprio comportamento humano mais no sentido coletivo, sem, no entanto, desprezar o indivíduo que forma o coletivo. Os textos - O que é um autor ( Foucault 2000) e A morte do autor ( Barthes 1987) - me oferecem uma visão diferente daquela preconizada por outras escolas filosóficas, ou seja, eu me localizo como indivíduo, com as minhas questões e depois eu me amplio no sentido humanitário; me desvinculo do sentido individualista e me percebo indivíduo incluído no todo. Parece-me que estes filósofos “leram” a alma da humanidade e explicitaram que a necessidade de homens e mulheres que se faz presente é pensar inserções, viver integração . É a própria alma que há que constituir naquilo que se escreve; todavia, tal como o homem traz no rosto a semelhança natural com seus antepassados, assim é bom que se possa aperceber naquilo que escreve a filiação dos pensamentos gravados na alma. Pelo jogo das leituras escolhidas e da escrita assimiladora, deve tornar-se possível formar para si próprio uma identidade através da qual se lê uma genealogia espiritual inteira. (Sêneca, apud Foucault, op.cit. p.114)

Justifico minha preocupação de entender o sujeito contextualizado, produtor e fruidor, buscando características da humanidade numa visão atemporal da história, ou seja, o ser humano, enquanto pessoa, repetindo suas questões individuais em contextos históricos diferentes, porque quero compreender o indivíduo em si mesmo, independente das situações contingentes. Essa constatação me permite pensar o sujeito – educando e educador – com suas 113

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necessidades básicas de indivíduo em evolução no seu tempo, em sua cultura e discutir uma arte-educação que esteja realmente servindo à comunidade como instrumento de crescimento e desenvolvimento. Viajante no tempo A observação imediata de si está longe de ser suficiente para aprender a se conhecer: precisamos de história, pois o passado continua a correr em nós em cem ondas; nós próprios nada somos senão aquilo que sentimos dessa correnteza a cada instante. Até mesmo aqui, se quisermos entrar no rio de nosso ser aparentemente mais próprio e pessoal , vale a proposição de Heráclito: “não se entra duas vezes no mesmo rio”. ( Nietzche )

O estudo da história para entender a humanidade me sugere uma grande viagem no tempo, dentro de uma potente nave. Me vi inserida numa máquina que se aproximava de um espaço desconhecido numa velocidade igual à da luz, minha mente meio que liquidificada tentava me situar – eu , indivíduo, século XXI . Vêm-me a idéia de velocidade e revejo a questão do tempo pontual instaurado pelas redes de informáticas. O tempo pontual não anunciaria o fim da aventura humana, mas sim sua entrada em um ritmo novo que não seria mais o da história. Seria um retorno ao devir sem vestígios, inassinalável, das sociedades sem escritas? Mas enquanto que o primeiro devir fluía de uma fonte imemorial, o segundo parece engendrar a si mesmo instantaneamente, brotando das simulações, dos programas e do fluxo inesgotável dos dados digitais. O devir da oralidade parecia ser imóvel, o da informática deixa crer que vai muito depressa, ainda que não queira saber de onde vem e para onde vai. Ele “é” a velocidade. (Lévy , 1993, p.115)

O mergulho é indolor e não desejo contê-lo, entretanto uma grande pressão me faz perder o sentido da identidade – pele e sentimento se unem numa tentativa de absorver o indefinido. Visões se multiplicam em grandes telas. Janelas? De onde para onde? Guerras napoleônicas passavam lado a lado com cortejos faraônicos. As salas de ópio na Índia enfumaçavam a Europa. Os discursos iluministas se misturavam com a lógica discutida na Acrópole. Roma ardia e em sua ambição se deixava consumir pelas intrigas, as mesmas que alimentavam as fogueiras da Inquisição. Terras selvagens recebiam injeção de tecnologia e os homens discutiam a velocidade do tempo. A história se planificara. Mesmos homens, muitas eras. Idas e voltas. Boécio ( 1998, p.70), poeta e filósofo da Roma antiga, clamava de sua prisão os versos que ecoavam por todos os tempos: Pobres dos mortais! Porque falsos caminhos vos leva a vossa ignorância! Com efeito, não buscais ouro sobre a verdejante árvore Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Ilustração Sonia Assis

Nem pedras preciosas numa vinha; Vós não estendeis vossas redes no cimo das montanhas Para ter peixes em vossas refeição; E se quisésseis caçar um cabrito montês Não exploraríeis os fossos abissais do Tirreno. Os homens conhecem os pélagos marinhos dissimulados pelas vagas, Sabem onde pescar pérolas transparentes E onde encontrar a brilhante púrpura, Que litoral fornece os melhores peixes, E mais frescos, e o espinhoso ouriço do mar, Mas onde se encontra o bem que eles cobiçam mais, Pouco lhes importa ignorá-lo; Ao invés de procurar para além do céu estrelado Eles o procuram mergulhados na Terra. Que insulto há que seja da mesma medida? Que seja! Busquem eles riquezas e honras. Quando reconhecerem a vacuidade de tudo isso, Aí aprenderão a distinguir os verdadeiros bens

Eu notara em mim a inobservância da velocidade ao mesmo tempo que era permeada por um poderoso sentimento de eterno presente. No silêncio absoluto ecoava quando reconhecerem a vacuidade de tudo isso. Quantos caminhos serão descritos pela humanidade, - idas e voltas, para aprender a distinguir os verdadeiros bens? Por quê nos permitimos “passar pelo filtro da indústria cultural”, que segundo Adorno/Horkheimer (1969/85 , p.118) redundou na atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural, produzindo um homem contemporâneo fragmentado e desordenado? Percebo fragmentos e lembro-me de Foucault ( op.cit. p.52 ) e as heterotopias quando discute um grande número de mundos possíveis fragmentários, ou mais simplesmente, espaços incomensuráveis que são justapostos uns aos outros. Ao mesmo tempo a memória retida em minha mente me forçava a um 115

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gancho fantástico e a vacuidade de tudo isso se misturava com grandes números de mundos possíveis – espaços incomensuráveis e me jogava literalmente no mundo contemporâneo. As questões que sobrevêm são tantas que busco apoio em Geertz ( op.cit. p.37) na sua Teoria Interpretativa da Cultura para afirmar a necessidade de inter-relações e definir um grande fio que justifica o comportamento do homem com sua ação e produção. O ser humano é de tal maneira envolvido pelo esquema do mundo contemporâneo que perde o tema de indivíduo autônomo e torna-se descentrado. Isto implica numa produção em série e em, sentimentos iguais a intensidades auto sustentados e impessoais. ( Lyotard , apud Jameson – op.cit., p.43) Se antes, as idéias de uma classe dominante ( ou hegemônica) formavam a ideologia da sociedade burguesa, os países capitalistas avançados são, em nossos dias, , o reino da heterogeneidade estilística e discursiva sem normas. Senhores incógnitos continuam a reajustar as estratégias econômicas que limitam nossa vidas, mas não precisam ( ou não conseguem) impor sua fala; a pós-alfabetização característica do mundo do capitalismo tardio, reflete não só a ausência de qualquer grande projeto coletivo, mas também a inviabilidade das antigas línguas nacionais. ( Jameson, op.cit. p.44)

Se senhores incógnitos criam estratégias que limitam nossa vidas, estratégias essas que invadem nossos lares e nos abafam como as propagandas que se avolumam em nossas cidades, o homem reflete todos os interesses do alto comando mundial com uma série de puros presentes não relacionados no tempo. ( Jameson, op. Cit. – p.53). Neste contexto podemos visualizar a importância da arte-educação como meio de humanizar a escola e de ajudar à formação de uma identidade cultural ( Mae, 2001, p. 171), na medida em que oferece ao indivíduo a possibilidade de desenvolvimento criativo consciente de seu eu e de sua realidade próxima e ampla. Arte da Educação Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade. Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar descomprometidamente como se misteriosamente, de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante do mundo, alheado de nós e nós dele.( Paulo Freire)

Longe da verdade das generalizações, à qual me entreguei prazerosamente para compreender o homem devo me ater ao estudo dos valores da educação Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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para compreender e responder as questões básicas formuladas pelos educadores, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais para a Arte ( 1997- p.24): • Que tipo de conhecimento caracteriza a arte? • Qual a função da arte na sociedade? • Qual a contribuição específica que arte traz para a educação do ser humano? • Como as contribuições da arte podem ser significativas e vivas dentro da escola? • Como se aprende a criar, experimentar e entender a arte e qual a função do professor nesse processo? Reconhecidas as necessidades das atividades pedagógicas da arte é importante que, refletindo sobre a influência cultural imposta pelos países dominantes se possa escolher autores que nos permitam, em nossas pesquisas, desenvolver argumentos para pensar uma ética universal do ser humano. Se para Paulo Freire educação é um meio de libertação no sentido político mais estrito, é possível aprender nele as possibilidades humanistas deste fazer para perceber a importância de compreender educação através do reconhecimento cultural contextualizado, priorizando a formação do indivíduo em seu meio. A ética universal do ser humano não é outra senão aquela que busca a identidade do indivíduo nele próprio favorecendo a evolução da espécie. A ética de que falo é a que se sabe traída e negada nos comportamentos grosseiramente imorais como na perversão hipócrita da pureza em puritanismo. A ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe. É por essa ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar. ( Freire, 1996, p.17)

Se Paulo Freire acredita que através da força política o homem pode devolver ao homem a sua dignidade perdida através dos tempos, acredito da mesma forma que a arte na educação pode ampliar a consciência criativa do indivíduo e acelerar o processo evolutivo coerente com essa dignidade. Esse discurso está situado no universo metalinguístico daqueles que acreditam no ser humano como parte integrante do nosso meio ambiente natural. ( Capra, 1982, p.291 ). A ética de que fala Freire sugere o retorno à ordem natural sistêmica do universo onde inter-relações produzem a evolução natural. Se algo não se move em consonância, há uma degeneração sistêmica que vai produzir elementos que se tornam não só nocivos quanto destrutivos, segundo Capra.(op.cit.) A educação, portanto é a conscientização dessa ética, ou seja, a formação dessa consciência ética do universo, o conhecimento bio-metafísico dessa realidade, inserido na necessidade evolutiva do homem.

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A evolução humana, portanto, progride através de uma interação dos mundos interno e externo dos indivíduos e das sociedades, da natureza e da cultura. ... As instituições sociais evoluem no sentido de uma complexidade e diferenciação crescentes, à semelhança das estruturas orgânicas, e os modelos mentais apresentam a criatividade e o ímpeto de autotranscendência característicos de toda vida. ( Capra, p.292 )

A adaptabilidade do indivíduo às condições sociais está diretamente ligada à educação na medida em que se reconhece indivíduo em seu meio, autônomo, livre, criativo. Assim se define que a educação do educador é prioridade, assim se coloca a responsabilidade de transformação e evolução social nas mãos de educadores assumidos e conscientes. Enquanto educadores, transformam-se em sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, quando conseguem sair da inércia cultural e assumem a parte que lhes cabe na evolução da humanidade. Isto sugere a busca da realidade em consonância com a evolução sistêmica dentro das inter-relações. Portanto, ensinar é educar, educando-se e é saber-se incluído, incluindo; inacabados, caminhando, sugerindo a nossa habilidade de apreender a substantividade do objeto aprendido. ( Freire, op.cit.,p.77). Através deste texto penso na arte como objeto de apreensão da substantividade, arte na educação. Arte na educação Nunca temos diante de nós puros indivíduos, geleiras de seres insecáveis, sem essências sem lugar e sem data, não que existam alhures, mas porque somos experiências, isto é, pensamentos que experimentam, atrás deles, o peso do espaço, do tempo, do próprio Ser que eles pensam, que, portanto, não têm sob o olhar um espaço e um tempo serial, tendo, entretanto, em torno de si mesmos um tempo, o espaço de empilhamento, de proliferação, de embricação, de promiscuidade – perpétua pregnância, parto perpétuo, geratividade e generalidade, essência bruta e existência bruta que são o ventre e os nós da mesma vibração ontológica. Merleau-Ponty

A educação é, conforme viu-se no texto anterior, a possibilidade de formação do indivíduo em si e em seu meio. A arte na educação se caracteriza pelo conhecimento contextualizado das manifestações culturais no decorrer da história, pela leitura das possibilidades estéticas nas obras dos artistas, pelo compreensão do fazer estético e apreensão da realidade pelo olhar. A arte não é um produto exterior nem um comportamento externo. É uma atitude do espírito, um estado da mente – aquele que exige para sua própria satisfação e realização na formulação de questionamentos uma forma nova e mais significativa. Perceber o significado do que se está fazendo e se regozijar com ele, unificar, simultaneamente em um mesmo fato, o desdobramento da vida emocional interna e o desenvolvimento ordenado das condições Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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externas materiais – isso é arte. Os sinais externos de sua presença - ritmo, simetria, arranjo de valores, o que se queira – essas coisas são sinais de arte na qual se exibem a união de pensamento agradável e o controle da natureza.. ( Mae,2001, p.30/31)

A arte na educação proporciona a formação do indivíduo de maneira ampla. Desenvolve-lhe a capacidade criadora através de exercícios e vivências e proporciona-lhe meios para reconhecimento de seu meio cultural, permitindo-lhe o prazer de ser/estar no mundo. Bem administrado, o conhecimento da arte pode estimular no indivíduo o gosto de ser: o gosto de saber ver a imagem através da imagem, de perceber o sabor intuitivo nas entranhas do mundo sutil, compreender as delicadezas implícitas nos acordes e harmonias propostas nas construções univérsicas. Segundo Bachelard ( 1996, p. 4 ), em sua simplicidade, a imagem não tem necessidade de um saber. Ela é a dádiva de uma consciência ingênua. Em sua expressão, é uma linguagem criança. A pureza do olhar construído pela vivência da arte não deve ser um saber que bloqueia essa consciência ingênua, mas um estímulo para a percepção do mundo que nos rodeia e que é permeado pelas obras de arte produzidas pelos homens e mulheres de todos os tempos. O gosto de ser gente se difunde através do conhecimento, do reconhecimento do prazer estético que se insere em uma realidade cultural. Se o indivíduo amplia suas perspectivas de vida através da arte-educação, se aprende a reconhecer os valores estéticos necessários à vida, a sociedade como um todo evolui no sentido de afirmar uma identidade sistêmica universal. A arte na educação é a grande possibilidade do indivíduo reconhecer-se humano por inteiro, dentro e fora, aprendendo, como diz Bachelard (op. cit. ) a redondeza do ser. Assim, ele poderá viver reconhecendo a linha na dança de seu corpo, nos movimentos de suas mãos, no capim que se move sob o impulso de uma brisa! O gosto por um viver estético traz a excelência de uma vida em consonância com estas harmonias próprias do universo manifestado. Se o educador tem em si bem trabalhadas todas as possibilidades da arte, provavelmente, ele será capaz de introduzir seu aluno no prazer estético. O poema que cada um traz dentro de si é despertado pelo conhecimento e vivência da arte que proporciona-lhe o sentido de unidade com seu meio e ensina-lhe avaliar, criticar e construir inserido na harmonia manifestada na matéria. O interesse das gerações mais jovens pela arte e por problemas estéticos é um esperançoso sinal de crescimento cultural. Mas, se tornará um mecanismo escapista a menos que se desenvolva em um interesse e alerta para as condições que determinam a estética ambiental de vastas multidões que agora vivem, trabalham e se divertem em um meio que, forçosamente, degrada seu gosto e, inconscientemente, os educa no desejo por qualquer espécie de atividade que os distraia, desde que seja barato e excitante.( Dewey, apud Mae –s.data., p.86)

Dewey, norte americano, foi um grande teórico da educação do 119

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período modernista e influenciou arte-educadores da Europa, como Perrelet que trabalhou posteriormente no Brasil. O seu resgate pelo pós-modernismo nos propõe uma reflexão sobre a atemporalidade da história. Questões que foram abordadas em um determinado período se tornam importantes e relevantes para o ser humano em períodos posteriores; questões que pertencem aos indivíduos e não apenas a um período histórico. Segundo Mae ( op.cit.), Dewey afirma que através do olhar construído pela arte-educação o indivíduo se amplia e se percebe inserido em seu meio social e cultural. Ao lidarmos com indivíduos, precisamos vê-los, principalmente do ponto de vista da educação, como companheiros de jornada, sensíveis, portadores de infinitas possibilidades e capazes de enxergar o sentimento sutil de todos os poetas. O professor licenciado para atuar como arte-educador deve estar consciente das possibilidades da arte. O reconhecimento do fazer criativo e da expressão individual diante do visível e do invisível, à partir de si próprio, é fundamental para que reconheça no outro seus limites e suas possibilidades. Na medida em que o educador se constrói através da arte, ele descobre um aprofundamento intuitivo das necessidades estéticas do outro. A delicadeza das estratégias do arte-educador sugere um indivíduo profundamente construído pelo sistema de ensino do terceiro grau. Cassilda Martins, diretora da Fundação Osório definiu o método de ensino de Guignard como intuitivo e instintivo: “Despertar na criança a idéia e o senso da linha, a expressão e o valor do colorido, dar à aluna liberdade de expandir sua imaginação, tal é o seu objetivo para a iniciação, que depois se disciplinará na observação, na cultura, no estudo, na prática da arte. Ele nada impõe e tudo consegue das crianças.” ( Morais, s. data, p.11 )

Olhar a vida, a natureza, cada homem e cada mulher com seu senso mais profundo ensinava Guignard a ensinar. Guignard aprendera com o olhar, descobrira o invisível no visível, seus quadros tornaram-se textos de uma gente, de um viver, dos sonhos de nossas paisagens. Livre e lírico nos encantou como artista e professor, trazendo para o ensino a necessidade da disciplina ordenando a liberdade criadora e expressiva do indivíduo. O professor de arte educação precisa lavrar cultura, buscar nas raízes culturais os valores para uma retomada da consciência estética de um povo. O que se chama hoje – folclore – é, infelizmente uma reprodução insensata e saudosista e separa as raízes do povo, na contemporaneidade. O ensino da arte para formação de professores deve atentar para os apelos do mundo pós-moderno . A arte-educação constrói homens e mulheres contextualizados, indivíduos com origem na “terra”. O povo é “resgatado”, as raízes são “preservadas”. A história pertence aos museus. Povo é vida, homens e mulheres acrediRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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tados e educados, sensíveis e conscientes povoando a história no dia a dia. A arte na educação transita com discernimento por todas as áreas do contexto cultural – do conhecimento, da compreensão dos valores estéticos e da experiência expressiva e criativa para oferecer aos indivíduos a possibilidade de crescimento individual e consequentemente coletivo. Repetindo Drummond o tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. Penso no tempo visível e no tempo invisível que deixa marcas indeléveis, tempo de qualquer momento, de qualquer história. Tempo do homem e da mulher estéticos, com o olhar preenchido pelos gestos crianças, e reconhecendo como Pitágoras a música entre as estrelas. Conclusão Este milênio que se inicia chega com várias questões que devem ser vistas e elaboradas pela arte-educação, questões estas que foram mapeadas nesse texto. Problemas que estão atormentando e pressionando a humanidade e que de forma velada têm sido enfrentados, mas que carecem de seres conscientes e bem elaborados para administrá-los. Ao buscar uma visão atemporal da história e compreender o ser humano no seu contexto evolutivo, confirmei que os homens e mulheres do século XX tornaram-se fragmentados, angustiados, oprimidos, enfrentando e se libertando dos múltiplos preconceitos inseridos no corpo humanidade através dos tempos, e que hoje, mais conscientes, buscam uma visão mais ampla do próprio eu, inserido no processo sistêmico, com adaptabilidade à velocidade da evolução. O fragmentado, compartimentado e comprimido se distingue do movimento da multiplicidade que compõe as inter-relações e que é próprio do mundo contemporâneo. Este movimento pede um saber amplo em todas as áreas, pede o conhecimento e a vivência da ética e da sutileza, argumentos que deverão estar contidos na formação de arte-educadores. Enquanto a multiplicidade amplia o indivíduo em direção ao todo universal, o fragmentado separa e estanca na medida em que o ser humano perde o sentido de totalidade. A flexibilidade do pós-moderno identifica o indivíduo pelo indivíduo – a expressão individual é valorizada e as linguagens, as mais diversas, usam a ironia como argumento mesclada de uma nova poética em busca de uma visão global , mesmo que ainda um tanto desconectada e insegura. Os pilares de uma civilização estão ameaçados e carecem de reforço e reconstrução. A arte embutida neste processo educativo é o elo das inter-relações. Para ser verdadeira, precisa ser vista no contexto pós-moderno. Enquanto cultura responde aos apelos da humanidade, enquanto educação deverá compor e desvelar o indivíduo, sua alma, sua forma. A formação consistente de arte-educadores no 3º grau, portanto, é fundamental para que o processo de reconhecer e sutilizar os valores da humanidade possa se concretizar dentro 121

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das realidades contemporâneas. Finalmente concluo que educadores e educandos, homens e mulheres, neste século XXI, estejam a postos além das arbitrariedades da existência, para compreender aquilo que denomino o Fenômeno Total, ou seja, o Todo da consciência , das relações, das condições, das possibilidades, das impossibilidades. ( Valéry, apud Calvino, 1990, p. 132)

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O QUE POSSO SABER DISSO? O sentido da experiência na relação sujeito\objeto de arte Fabíola Tasca

1 - PRINCÍPIO Todo empieza por razones que me afectan. O projeto O que posso saber disso? O sentido da experiência na relação sujeito\objeto de arte tem sua história oficialmente datada a partir da realização de dois trabalhos: 12 imagens guardadas e Sala de Estar que, posteriormente, nomeei como trabalhos-procedimento. Ambos colocaram-se como resposta às questões emergentes de um esgotamento em relação à experimentação pictórica que desenvolvia até então. Defrontava-me com as questões: Até onde seria possível nomear o trabalho como pintura na medida em que fui suprimindo os seus elementos constituintes: bidimensionalidade, cor, gesto? Qual a efetiva importância dessa nomeação para a apreensão do trabalho? Nesse processo, na medida em que a pintura foi ocupando o espaço, apresentando tridimensionalidades, também foi exigindo menos do meu procedimento usual e evocando questões afins ao objeto. Sala de Estar e 12 imagens guardadas foram formulados na tentativa de instaurar um processo que me permitisse trabalhar. Em um momento posterior à primeira realização dos trabalhos, ocorrida no Festival de Inverno da UFMG em julho de 2001, estes foram nomeados como procedimentos, enfatizando a sua natureza processual, bem como a intenção de repeti-los, e trazendo ao centro do debate questões acerca do fazer artístico na atualidade: interrogaRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Foto Fabíola Tasca

Sophie Calle


ções endereçadas aos lugares envolvidos no sistema da arte. Enquanto procedimentos, são simultaneamente partida e chegada, pergunta e resposta, processo e produto, e vão ganhando consistência e espessura em sua insistência e repetição. Nesse sentido, propus a sustentação dos trabalhos como elemento formal dos mesmos, direcionando o projeto a um desenvolvimento no curso de Mestrado da EBA na UFMG que, atualmente, segue em curso. Cada vez que um trabalho-procedimento é novamente realizado, ele atualiza e reafirma o seu fazer como modo de estar no mundo, modo de operar, modo de agir, modo de proceder, modo de instaurar um processo. Nos trabalhos em questão a idéia de “criação” é substituída por uma “operação” de reordenação, no sentido de dispor determinados elementos em uma ordem que favoreça a proliferação de sentidos, conduzindo a pesquisa a um tensionamento dos limites entre o objeto ordinário e o objeto de arte e, conseqüentemente, a indagações acerca dos papéis do artista e do espectador. Tais questões, cuja gênese remonta à operação readymade e à lógica que a sustenta (a lógica que a fotografia faz emergir – lógica do índice), fundamentam-se na implicação referencial como constituinte do olhar, favorecendo o deslocamento da pergunta essencialista “O que é arte?” para a pergunta formulada a partir da noção de contingencialidade “Quando há arte?”. Essas problemáticas sinalizam um caráter recorrente em apostas estéticas contemporâneas: o alojamento da figura do artista num lugar de manipulador de signos em detrimento do lugar de produtor de objetos e, conseqüentemente, o deslocamento da noção de espectador para a de leitor. No texto que se segue, discorrerei sobre tais trabalhos-procedimento que aproximaram minha produção de questões afins à fotografia, explicitando a finalidade dos mesmos: inscrever no “produto” o “processo” do qual é resultado. 2 - MEIO E FIM É claro que para descrever a forma do mundo a primeira coisa a fazer é estabelecer em que posição me encontro, não estou dizendo o lugar, mas o modo em que estou orientado. Ítalo Calvino

2.1 – Sala de Estar – Procedimento Instalação Tenho tendência para me considerar como um encenador de teatro que tenta veicular certas idéias reinterpretando a noção de distribuição de papéis: autor, público e encenador. Félix GonzalesTorres

Sala de Estar é realizado pela primeira vez em um evento paralelo ao 33° Festival de Inverno da UFMG, denominado “Sala Escura”, e constitui-se na tentativa de responder à demanda de produzir um trabalho para a referida sala 125

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onde não haveria luz. A proposição me oferecia uma oportunidade de intervir frente à estagnação de minha produção pictórica, uma vez que a visão, enquanto sentido privilegiado pela pintura, estava sendo interditada. Investi na questão da implicação referencial como constituinte do olhar, ou seja, na consideração de que o que se vê é modulado e conformado pelo lugar de onde se vê, o que me conduziu às indagações evocadas pela instalação como prática que problematiza o conceito de lugar. No sentido aqui proposto, “instalar” é considerado como diacrítico de um questionamento acerca do ato de expor, força motriz de uma série de trabalhos que, nas décadas de 60 e 70, interessados em aproximar arte e vida, contrapuseram-se ao argumento de autonomia da arte identificado com o discurso do crítico de arte Clement Greenberg. Convém pontuar que o termo “instalação” hoje, assimilado como procedimento canônico, refere-se muito mais a uma categoria artística, embora algumas das questões às quais deve sua gênese, postulassem, justamente, um anacronismo dessas mesmas categorias. Na tentativa de suscitar tais questionamentos, sistematizei Sala de Estar como uma instalação cujo procedimento era escrever o nome das coisas e pessoas que estavam ou estiveram naquela sala escura (uma sala da escola onde as oficinas eram realizadas), utilizando adesivos que brilham no escuro. Tal procedimento assinalava a minha experiência diante daquele lugar, quer entendido enquanto espaço físico, quer entendido enquanto espaço social de convívio com determinadas pessoas. Os nomes foram afixados nas paredes, teto, portas, etc, bem como nos objetos presentes na sala, e não coincidiam com os seus referentes. Assim, na situação de blackout, as palavras ocupavam o espaço tal qual os objetos, tridimensionalmente, conformando um outro lugar. A descontinuidade entre o nome e o referente alude à lacuna a ser preenchida pela significação, isto é, pela operação de conferir sentido às coisas. Operação que solicita um engajamento por parte do sujeito leitor como tentativa de reorientar-se nesse espaço. Os nomes de coisas e pessoas que brilhavam no escuro assinalavam pela sua desordem, um lugar de outra ordem; um lugar sobreposto ao espaço físico da sala, mas cujo acesso envolvia a condição do escuro. A noção de lugar desenvolvida pelo trabalho envolve tanto o espaço físico(onde), quanto a condição temporal para o acesso a esse lugar(quando), quanto o modo de proceder para promover a situação temporal de encontro com o trabalho(como), corroborando a intenção de reconstrução crítica do espaço, tal como ambicionado, em tese, pela prática instalacionista. Num segundo momento, Sala de Estar foi realizado na conclusão do projeto de pós-graduação da Escola Guignard, sendo proposto para 09 espaços referentes ao circuito artístico na cidade de Belo Horizonte. A instalação foi executada em outros espaços que não o expositivo, de modo a se alojar em locais inesperados, apontando para as vinculações do mundo da arte com o mundo comum. Salientar tais vínculos, intenta evocar a idéia de implicação Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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referencial do próprio sistema artístico enquanto submetido a imperativos e dinâmicas de ordem social, política e econômica, em detrimento de uma suposta autonomia. Na Galeria COPASA, onde foi realizada a exposição conclusiva do projeto, Sala de Estar esteve presente por intermédio da listagem dos locais da instalação. O espaço expositivo se oferecia como um convite para o leitor dirigir-se a esses locais, em cada um dos quais havia a mesma ficha técnica, sugerindo ao leitor uma itinerância, tal como: Sala de Estar – Procedimento Instalação Um lugar completamente escuro, onde são visíveis apenas os nomes das coisas e pessoas que ali estão ou estiveram: • Celma Albuquerque Galeria de Arte – Copa • Centro Cultural UFMG – Sala 04 • Centro de Cultura Belo Horizonte – Sala de vídeo • Escola de Belas Artes da UFMG – Sala de Projeção 2011 • Escola Guignard – UEMG – Sala do Centro de Pesquisa • Galeria de Arte COPASA – Sala Depósito da Galeria • IAB – Instituto de Arquitetos do Brasil – Sala da Biblioteca • Itaú Cultural Belo Horizonte – Auditório • Palácio da Artes – Sala do Departamento de Artes Plásticas e Musicoteca Belo Horizonte, de 30\04 a 03\06 de 2002 Adesivos que brilham no escuro sobre objetos em determinados espaços Fabíola Tasca O leitor era convidado não apenas a dirigir-se ao local da instalação, mas também a agir no sentido de promover a condição necessária para aceder ao trabalho – o escuro. Como Sala de Estar estava alojado num local comum, no sentido de não estar num espaço de exposição, para promover a situação conveniente (completamente escuro) o leitor estava sujeito às condições particulares de cada espaço, que podiam dificultar ou mesmo impedir a experiência, quer seja por limitações físicas, quer seja por limitações de ordem administrativa. Vedar as entradas de luz e nomear as coisas e pessoas vinculadas àqueles espaços são as operações executadas pela instalação que, em tudo o mais, propôs manter o local inalterado, inclusive na sua disponibilidade ou não para a visitação. A eventual impossibilidade de concreção da experiência é considerada como elemento que configura o próprio caráter da experiência como sujeita aos imperativos e contingências das variáveis oferecidas pelo contexto. Nessa perspectiva, podemos considerar que Sala de Estar aproxima os lugares “autor” e “leitor”, na medida em que solicita ao segundo um movi127

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mento que envolve o seu modo de proceder, de tal sorte que este possa perceber-se numa posição algo similar a do primeiro, a posição de instalador, ou seja, daquele que intervém em um dado espaço, numa dada situação, conformando um outro lugar. O procedimento Sala de Estar pretende repetir-se configurando circunscrições cuja finalidade reside na sistematização de um lugar possível: um lugar comum colocado numa situação de exposição pela confluência de alianças entre as funções: “artista”, “instituição” e “público”. 2.2 - 12 imagens guardadas - Procedimento Jogo O jogo acrescenta algo à minha vida. Vencer não importa. Interessa apenas aguçar o apetite de compreensão. Saber, como um bom jogador, prever muitas possibilidades. Lembrar que são apenas possibilidades e que, em geral, quando as pessoas dizem ‘eu sei’, elas não sabem, elas acreditam, estão jogando. Marcel Duchamp

A origem de 12 imagens guardadas remonta a um dia qualquer e a uma pessoa em particular. Mal nos falamos no passeio a uma belíssima cachoeira dada a exigência de sua incessante tarefa: capturar imagens. Alguns dias depois, me contou, bastante contrariado, sua grande surpresa ao revelar as fotos e encontrá-las sobrepostas a imagens de duas décadas atrás. Tais fotografias, às quais havia se dedicado durante todo um dia, estavam maculadas por imagens anteriores e, segundo ele, conseqüentemente perdidas. Imagens esquecidas, silenciosa e insuspeitamente guardadas naquelas bobinas há 20 anos. Ele ficou muito decepcionado, eu muito animada. A frustração de meu colega fotógrafo é o mote para a sistematização de 12 imagens guardadas, produzido concomitantemente ao trabalho Sala de Estar, em julho de 2001. Elaborado com o intuito de subverter a expectativa daquele que busca encontrar o objeto artístico disponível à fruição, o trabalho foi estruturado como um jogo, aludindo aos lugares implicados na constituição da “obra de arte” - artista, público e instituição - e à demanda de inclusão do espectador para a concreção da obra, aspecto recorrente na estética contemporânea que, desde meados do século XX, vem convocando um “novo leitor”, ou seja, um leitor que seja levado a colocar “algo de si”, conformando uma figura próxima do “decifrador de enigmas” em detrimento de uma figura do “contemplador receptivo”. O jogo consiste na exposição de 06 bobinas de filme fotográfico 12 exposições, contendo imagens não reveladas, acompanhadas de seus respectivos títulos, sobre uma mesa para seis lugares. A partir da situação de exposição essas bobinas são disponibilizadas para serem levadas pelo público sob uma proposição de troca: “Uma bobina por seus dados”. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Tendo conhecimento apenas dos títulos das imagens, o leitor pode dispor de qualquer bobina, caso queira, deixando em troca os seus dados pessoais que, então expostos, ficam disponíveis para qualquer outra pessoa, assim como os dados pessoais do autor. 12 imagens guardadas propõe um hiato entre o nome da imagem e a imagem. O encontro com o título da imagem se dá no local expositivo enquanto a visão da imagem se dará em outro lugar, a partir de uma ação que envolve a apropriação da bobina ou o contato com aquele que se apropriou desta, uma vez que, pela disponibilidade dos dados é possível acessar qualquer pessoa para ver qualquer imagem. O trabalho propõe uma troca de lugar entre a imagem em potência e o sujeito que deseja ver esta imagem, representado por seus dados. A partir dessa troca é estabelecida uma possibilidade de contatos futuros para além do tempo e espaço expositivo. O trabalho é, pois, a sistematização dessa possibilidade. 12 imagens guardadas configura uma ação que pretende repetir-se acumulando dados, de modo a construir um catálogo de endereçamentos possíveis. Os endereços coletados nas exposições são alojados em uma pasta A-Z e acompanham a itinerância do jogo. A recusa em oferecer uma imagem “pronta para fruição imediata” intenta aguçar o apetite do espectador incitando-o ao movimento de apropriação do objeto bobina, conseqüentemente implicando-se como peça do jogo. Enquanto tal, o trabalho coloca a questão da aposta pela suposição, por parte do leitor, da existência dessas imagens e, por parte do autor, da veracidade dos dados recebidos. Ao disseminar virtualidades e coletar endereçamentos Sala de Estar estrutura uma rede de pontos que podem ser ligados, religados e desligados imprevisivelmente por qualquer um que exerça a atividade possível pela existência deste jogo que se inicia no ato de sua proposição. Em primeira instância jogam artista e instituição. Se nessa jogada há o aceite por parte da instituição, o jogo prossegue em segunda instância oferecendo ao público a oportunidade de ocupar um lugar para o conhecimento das imagens guardadas. Se a instituição recusa a proposta, as bobinas destinadas a esse jogo são alojadas em vitrines e serão expostas em uma próxima oportunidade. Assim, as recusas são consideradas como parte integrante dos movimentos circulatórios, ou seja, do movimento que objetiva a itinerância do jogo, a continuidade das apostas. Pode-se dizer que o jogo está armado (funciona) em três instâncias: no ato de sua proposição, no ato de sua exibição e num potencial momento pós expositivo. Nessa perspectiva, o espaço expositivo é pensado como um lugar de mediação, de encontro, de experiência socialmente compartilhada, onde o leitor se vê interpelado a comprometer-se como condição para o conhecimento das imagens. Embora o jogo convoque a ocupação de um lugar, e enquanto tal vincule-se à noção de atividade e participação do espectador, convém reiterar que não tem como objetivo tal ocupação efetiva. O que está em questão é o 129

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entendimento dessa possibilidade, ou seja, a “leitura” de que apostar consiste em colocar “algo de si”. O primeiro jogo foi realizado no encerramento das oficinas do Festival de Inverno da UFMG em Diamantina-MG, em julho de 2001. Nessa ocasião as bobinas foram expostas em carteiras individuais da escola onde se dava a mostra. As seis bobinas foram retiradas e os respectivos endereços inseridos numa pasta A-Z. A partir de então o trabalho foi sistematizado para uma única mesa, enfatizando a dinâmica do jogo pela acentuação do caráter relacional entre os seis lugares. O segundo jogo aconteceu na “Mostra do Festival de Inverno”, no Centro Cultural UFMG, em Belo Horizonte, em março de 2002. As seis bobinas foram retiradas e os respectivos endereços incorporados à pasta A-Z. O terceiro jogo foi realizado na exposição conclusiva do projeto de pós-graduação da escola Guignard, na “Galeria COPASA.”, em Belo Horizonte, em maio de 2002. As 06 bobinas foram retiradas e os respectivos endereços incorporados à pasta A-Z. O quarto jogo foi proposto para o “lX Salão da Bahia” em outubro de 2002 e recusado. A recusa foi assimilada e consta da pasta A-Z. O quinto jogo foi proposto para o espaço “AGORA”, no Rio de Janeiro em março de 2003, o material foi devolvido inviolado e sua recusa justificada pelo fechamento do referido espaço, sendo também incorporada à pasta A-Z. O sexto jogo foi proposto para o espaço “Torreão”, em Porto Alegre, em abril de 2003. Não houve um posicionamento explícito, o silêncio foi incorporado à pasta A-Z. O sétimo jogo foi proposto para o “X Salão da Bahia” em setembro de 2003 e recusado. A recusa foi incorporada à pasta AZ. A partir de então, o procedimento é complexificado pela inclusão, nas futuras itinerâncias, das bobinas referentes à proposta recusada, integrando o conjunto de peças do jogo. Desse modo, a recusa implica na impossibilidade de circulação dessas bobinas, conseqüentemente, no “congelamento” dessas imagens, que são definitivamente guardadas em vitrines de dimensões 28 x 07 x 07 cm. As propostas formalizadas constam da explicitação das regras do jogo juntamente com a remessa das 12 folhas contendo os títulos das imagens e um termo de adesão a ser assinado pela instituição, posicionando-se pelo aceite ou recusa da proposta. A partir do aceite, as bobinas serão enviadas juntamente com a pasta A-Z e as vitrines. A mesa é uma peça do jogo a ser oferecida pela instituição, e possui como critério para sua definição apenas a dimensão: uma mesa para seis lugares (200 cm X 090 cm). Essa condição salienta que o foco do trabalho reside na proposição de uma aliança entre artista e instituição para a sistematização da possibilidade de inclusão do leitor como parte do jogo. A circulação das propostas intenta mapear espaços institucionais porosos à problematização dos lugares envolvidos na constituição da “obra de arte”. Opera, pois, enfatizando a noção posicional para a constituição das fiRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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guras do autor e do leitor como pólos de um dispositivo dinamizado por um aparato institucional, ao qual ambos estão enredados. Como estratégia, o trabalho subverte os papéis usuais, aproxima produção e recepção pelo artifício do jogo, sugerindo deslocamentos e trocas de lugares. Incita a pergunta: O que é exposto quando exposto?

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Argila: Memória e Transformação Benedikt Wiertz

A proposta de uma pesquisa no campo das Artes Plásticas dá continuidade ao trabalho e indagações que venho construindo como ceramista, há mais de vinte anos. Inquietações e indagações que dificilmente se separam do processo de produção-ação. Nos últimos anos, o próprio ato da elaboração dos objetos em cerâmica despertou-me um interesse crescente sobre o processo de transformação do material argila. A ação do fogo (fogo descrito na física como processo caótico), no qual a cerâmica está exposta, submete-lhe a uma drástica transformação e coloca um fim no processo milenar. O processo milenar é entendido como o ciclo da argila, desde o processo de intemperização das rochas até a formação dos sedimentos do solo. Tal pesquisa investe na busca da “forma natural” que é o resultado da estrutura interna da argila, explorando as possibilidades da estética do material e como empregá-lo, além de sua funcionalidade cotidiana, e compreende a argila como um material que aparece, se forma e se transforma, através do tempo e do espaço. A transformação da matéria não termina, e a sua modificação permanece. Em assim sendo, é possível considerar que a argila traz consigo a memória ancestral e os processos do tempo, do seu tempo no tempo. Materialidade e memória são dois conceitos que instigam e inspiram os artistas e os teóricos da arte a refletir e pensar sobre o seu “fazer artístico”. Diz Paul Klee: “O objeto expande-se além dos limites da sua aparência pelo conhecimento que temos de que ele significa mais do que o que vemos exteriormente, com os nossos olhos.” Ressaltando o que escreve Jean Bazaine: “Um objeto desperta o nosso amor simplesmente porque parece ser portador de forças maiores que ele mesmo.” Segundo Aniela Jaffé, tais declarações lembram o velho conceito alquimista “do espírito da matéria”, espírito que se encontra dentro de objetos inanimados e, segundo ela, é o inconsciente. Didi-Huberman ao escrever sobre Walter Benjamin reforça que “ele compreendia a memória não como a posse do rememorado – um ter, uma coleção de coisas passadas –, mas como uma aproximação sempre dialética da relação das coisas passadas ao seu lugar, ou seja, como a aproximação mesma de seu ter-lugar”. Depois o autor acrescenta “(...) pois o ato de desenterrar um torso modifica a própria terra, o solo sedimentado – não neutro, trazendo em si a história de sua própria sedimentação – onde jaziam todos os vestígios.” Memória e transformação são temas que acompanham minhas reflexões sobre a arte. A partir destes temas, lanço ao forno das discussões sobre a cerâmica contemporânea, duas questões que se completam: Pode-se transmiRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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tir esta força primária, que deu origem à própria argila, em um objeto de cerâmica? Um objeto de arte feito em cerâmica pode nos levar a uma reflexão sobre memória/evolução/transformação? Essas questões irão transpassar todo este trabalho, menos com o objetivo de chegar a respostas e conclusões, do que em contribuir com novas luzes e cores que renovem o espaço e os territórios da produção ceramista da atualidade. Da Argila à Cerâmica: O Ceramista e a Poética da Transformação O principal objeto da pesquisa é o material “argila”, enquanto memória e expressão de materialidade. Escreve Luigi Pareyson sobre a matéria na arte: “os materiais físicos já chegam à arte carregados de uma dimensão espiritual e artística a qual, unicamente, torna-os capazes de interessar a arte: a matéria da arte nunca é virgem e informe, mas já prenhe de uma carga espiritual e assinalada por uma realidade ou por uma vocação de forma, quer estas possibilidades lhe tenham sido oferecidas pela própria natureza, quer pelo contrário, o homem as tenha inserido nela, no decurso de uma tradição de manipulação artística.”

A argila é um dos materiais mais antigos usados pela humanidade. Aparece em muitos mitos e lendas como o material do qual o homem foi gerado, como no mito dos Mayas sobre o nascimento do tempo: ”(...) El décimotercer día mojó la tierra y com barro amasó un corpo como el nuestro...” (GALEANO, Eduardo. Memória del fuego); ou em outro mito africano: “(...) apontou para o fundo do lago com seu ibiri, seu cetro e arma, e de lá retirou uma porção de lama. Nanã deu a porção de lama a Oxalá, o barro do fundo da lagoa onde morava ela, a lama sob as águas, que é Nanã. Oxalá criou o homem, o modelou no barro...” (PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás).

Esses dois exemplos nos mostram como que, desde tempos remotos, a argila está ligada ao nosso inconsciente, ao campo dos arquétipos. Além de ser um referencial arqueológico, considerando-se que atualmente é possível encontrar cerâmicas datadas com mais de nove mil anos, e desenhos em argila há mais de trinta mil anos atrás. A própria argila vem se transformando ao longo do tempo, através da intemperização, metamorfismo e sedimentação. Portanto, ela é também o resultado de processos históricos e da ação do tempo e das forças biofísico-químicas que a originaram. Trabalhar com o material argila permite, como nenhum outro material, dar forma a uma idéia, utilizando as mãos sem necessidade de outros artefatos ou materiais. Esta surpreendente maleabilidade se deve à plasticidade do material argila, resultado de sua forma molecular e da capacidade de absorver e manter água, outro elemento essencial na sua elaboração. “As águas, massa indiferenciada, representando a infinidade dos possíveis, contém todo o virtual, todo o informal, o germe dos germes, todas as promessas de desenvolvi133

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mento, mas também todas as ameaças de reabsorção.” (Jean Chevalier, sobre a água como símbolo). Ilimitadas e infindas são também as possibilidades da argila, porque ela como tal não tem forma própria, e o ceramista sabe que são principalmente os caprichos do material que o limitam. Por isso argila é uma matéria amorfa que pode ser “formalizada”, e que contém uma grande “potencialidade para formas”. Uma das palavras freqüentemente empregadas na elaboração da cerâmica é a palavra “modelagem”, um processo eminentemente sensorial e criativo, onde podemos plasmar conteúdos do aqui-e-agora, do passado e do que virá. Bernard Leach, o grande renovador da cerâmica européia no século XX, comenta em seu livro “Manual do Ceramista”, em 1940 que “la cerâmica, como cualquier otra forma de arte, es una expresión humana: el placer, la pena o la indiferencia que provoca depende de su naturaleza, y ésta es inexorablemente proyección del espíritu de su creador”. E Gaston Bachelard, no seu ensaio sobre o escultor Henri de Waroquier escreve: “Mas como se trata de um tempo de metamorfose, de uma hora embrionária da obra de arte, o homem que desfruta do poder demiúrgico do modelar chega até o extremo das forças nascidas da substância da terra (...) Modelar é psicanalisar.” A palavra forma (morphé), criada por Aristóteles denomina, segundo ele, o estado que segue ao devir, que aparece depois do movimento e a transformação. A palavra modelagem em alemão significa “formen”, palavra que vem de “form” (forma), e é utilizada normalmente para referir-se ao trabalho com argila, o que nos indica como esse material, desde tempos longínquos, está ligado à expressão cultural, artística e religiosa, dando forma a uma idéia, a um conteúdo ou a um pensamento. A Cerâmica e a Evolução da Forma Durante milênios, e em quase todas as culturas, a cerâmica foi um elemento essencial na construção do patrimônio cultural da humanidade. No decorrer da história, a maioria das civilizações, nas suas expressões culturais, religiosas e artísticas, com freqüência se expressou por meio da cerâmica. É importante observar também que desde aqueles tempos remotos até os dias de hoje, na sua essência, a forma com que a cerâmica artística e artesanal é elaborada é praticamente a mesma. Com certeza, nenhum outro ofício tenha tanta tradição nem tantas possibilidades para encontrar formas de expressão sempre novas como esta arte. De fato, nós podemos constatar que em muitos casos são objetos de cerâmica que nos restam como únicas testemunhas das civilizações e culturas remotas, tanto do ocidente como do oriente, e sem dúvida são valiosas e imRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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prescindíveis testemunhas da evolução formal ou morfológica dos primeiros objetos criados pelo homem. Herbert Read observa, em 1967: “a cerâmica é simultaneamente a mais simples e a mais difícil de todas as artes. A mais simples por ser a mais elementar; a mais difícil por ser a mais abstrata. Historicamente situa-se entre as primeiras artes. Os primeiros vasos formavam-se à mão empregando a argila crua extraída do chão, secando-se depois os vasos ao sol e ao vento. Mesmo nesse estágio, antes do homem de poder escrever, antes de ter literatura ou mesmo religião, já possuía esta arte e os vasos então produzidos ainda nos tocam pela forma expressiva.”

De fato, nós podemos constatar que em muitos casos são objetos de cerâmica que nos restam como únicas testemunhas das civilizações e culturas remotas, tanto do ocidente como do oriente, e sem dúvida são valiosas e imprescindíveis testemunhas da evolução formal ou morfológica dos primeiros objetos criados pelo homem. Em seguida nos deparamos com a evolução funcional da forma e uma multiplicidade de variações, determinadas em função do uso do objeto. Segundo Max Raphael, as tigelas de paredes baixas transformaram-se em travessas, as tigelas de paredes altas tornaram-se taças e potes. Para a proteção do conteúdo se inventou a forma da moringa, com um estreitamento da abertura que, ao mesmo tempo, evitou o derramamento do conteúdo; e apareceu a tampa com os mesmos fins. A simetria foi imposta pela necessidade do equilíbrio, como a base e o pé, e as alças para poder suspender e carregar as vasilhas maiores. Segundo Read, quando a eficiência funcional alcança o seu ponto ótimo e se começa a estabelecer, é que aparece uma consciência da forma independente. Em um determinado momento da evolução, o homem começou a utilizar algumas dessas vasilhas para funções rituais, como as urnas funerárias, que podem justificar o aperfeiçoamento não exigido pelo uso normal. Com respeito a esse importante passo, Read fala da transformação do formato utilitário numa obra de arte, o que acontece quando “nesse processo de evolução formal, a forma corresponde não apenas a um propósito utilitário, mas também a uma necessidade espiritual.” Desde aqueles tempos até a modernidade, a cerâmica se desenvolveu em quase todas as partes e culturas do mundo, com uma enorme riqueza e variações de formas e todo tipo de aplicações, tanto no âmbito dos objetos, como no aproveitamento na construção e na arquitetura. Reavaliada a trajetória da cerâmica, desde o começo da modernidade, podemos verificar que hoje ela está plenamente integrada na multiplicidade da produção artística. A cerâmica assimilou os estímulos da modernidade e os incorporou na tradição. Por outro lado, se contemplarmos o panorama da cerâmica contemporânea ou pós-moderna, em nível mundial, percebemos que os efeitos da globalização têm provocado profundas transformações na mesma. Tradição e globalização 135

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são questões chaves para análise da cerâmica contemporânea. As matrizes da cerâmica eram a natureza e o modo de vida das pessoas de cada região, e hoje, através de um intenso fluxo e intercâmbio de informações, essas vão sendo substituídas por outros paradigmas, mais globais e mais subjetivos. O ceramista contemporâneo se encontra entre o dilema da tradição e o ecletismo, entre o regional e o global. O ceramista encontra-se diante de um desafio: fazer justiça à contemporaneidade e, ao mesmo tempo, manter o vínculo com a tradição. Dessa maneira, o desafio do ceramista/artista contemporâneo consiste em encontrar a sua poética entre esses paradigmas do passado, do presente e do futuro, entre a continuidade e ruptura, entre sobrevivências e permanências, entre experiência e intuição. A vida contemporânea é fortemente marcada por relações binárias, ou antes, conflitos duais: objetividade e subjetividade, razão e emoção, indivíduo e sociedade, mercados globais e culturas locais. Na produção da cerâmica contemporânea encontramos reflexos desta situação, que por um lado nos abre um vasto horizonte de infinitas possibilidades, e por outro lado nos obriga a refletir e buscar novos paradigmas para uma poética consistente e adequada. O Fogo O fogo é um dos fatores mais importantes no processo cerâmico, como procedimento de transformação da argila, como material moldável em uma forma definitiva e inerte que é a cerâmica. O fogo não só é um logro técnico, mas sim um fator sumamente relevante na história cultural da humanidade. Em um determinado momento da história da evolução humana o fogo deixou de ser um privilégio dos deuses e passou a fazer parte do domínio das ações humanas, que gradativamente foram descobrindo diferentes técnicas de acendêlo e dominá-lo. Com a domesticação do fogo teve início uma série de infindáveis e sucessivas etapas que foram imprescindíveis para a evolução da espécie humana por sobre o planeta. Quando nos perguntamos, “O que é o fogo?”, segundo Gaston Bachelard, recebemos respostas vagas ou tautológicas que repetem inconscientemente as teorias filosóficas mais antigas e mais quiméricas. Na visão da antigüidade, o fogo fez parte dos elementos principais, como a terra, a água e o ar, e se entendia por elementos o componente básico, que através da junção ou da separação condicionaram por um lado à gênese, e por outro lado à morte e a desaparição, e Paracelsus (1493-1541) que era um defensor das ciências naturais, ainda distinguia os quatro espíritos elementares, ligados aos quatro elementos. Sem dúvida, esses são alguns dos exemplos da rica mitologia e simbologia, composta pelo símbolo do fogo que faz intuir a forte e importante influência no nosso inconsciente. De modo que o fogo manteve muito tempo, de certa maneira até hoje, a sua aura mágica, mística. Gaston Bachelard (1937), escreve sobre o fogo destacando: Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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“Vamos estudar um problema em que a atitude objetiva jamais pode se realizar, em que a sedução primeira é tão definitiva que deforma inclusive os espíritos mais retos e os conduz sempre ao aprisco poético onde os devaneios substituem o pensamento, onde os poemas ocultam os teoremas.”

As ciências naturais demoraram em poder esclarecer o fenômeno do fogo, mas na atualidade ela consegue explicar a maioria dos fenômenos que acontecem durante o processo de combustão. São a termodinâmica, a termoquímica, a energia cinética-molecular e a oxidação alguns dos acontecimentos que provocam o que chamamos de fogo. Entretanto, o que a ciência nos explica de maneira tão racional, a mitologia e a história nos contam com poesia e encanto, criam imagens e associações que inspiram e convidam para o processo poético. Segundo Bachelard: ”inicialmente, deveremos criticar as explicações científicas modernas que nos parecem bastante inadequadas às descobertas pré-históricas. Tais explicações procedem de um racionalismo seco e rápido que pretende beneficiar-se de uma evidência recorrente, mas sem relação com as condições psicológicas das descobertas primitivas. Portanto, haveria lugar, acreditamos, para uma psicanálise indireta e segunda, que buscaria sempre o inconsciente, o valor subjetivo sob a evidência objetiva, o devaneio sob a experiência. Só se pode estudar o que primeiramente se sonhou.”

Sente-se, desde o começo, a importância do fogo no trabalho com a cerâmica. Tipos de queima diversos como o Raku, originário do Japão, e queima de buraco, tipo de queima utilizado por povos da África e índios da América do Sul, mostram-nos que através do contato direto as chamas marcam com os seus vestígios a superfície dos objetos e interferem na sua expressão. Trabalhando com o fogo começa-se a intuir que o acaso e o caos (o fogo é um processo caótico) são os maiores reveladores, e que eliminar-lhes significaria suprimir as descobertas. Junito Brandão define esse caos como “vazio primordial, vale profundo, espaço incomensurável (...), matéria eterna, informe, rudimentar, mas dotada de energia prolífica”. O caos cumpre aqui uma função dialética: ele precede a criação, ele é o estado original de desordem, mas é também o criador. Nos processos da queima da cerâmica este acaso não é um efeito supérfluo ou artificialmente sobreposto, mas sim um acontecimento original, primário e espontâneo. Reflexões e Trajetórias do Fazer A Poética do Fazer A poética compreende, por um lado o estudo da invenção e da composição, a função do acaso, da reflexão e da imitação; a influência da cultura e do meio; e por outro lado, o exame e análise de técnicas, procedimentos, instru137

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mentos, materiais, meios e suportes de ação. Segundo Sandra Rey “A pesquisa em arte vai encontrar respaldo teórico na poética, que propõe-se como uma ciência e filosofia da criação, levando em conta as condutas que instauram a obra”. A poética se refere à instalação da obra como um todo, ou seja, a todos os aspectos relacionados com o processo de instauração da obra. A trajetória que percorri, no campo das artes plásticas, sempre esteve ligada ao mundo da cerâmica. Iniciou-se com o trabalho em que elaborava e executava peças em torno. O torno, compreendido inicialmente como instrumento para produção de cerâmica utilitária até chegar a uma linguagem própria a partir do torno, no qual eu produzia peças únicas que ganharam outras dimensões, tanto em relação ao tamanho como ao conteúdo. Para o ceramista o torno significa o reencontro da técnica com a arte, onde se unificam a força e a eficácia da máquina com a criatividade e a habilidade do artífice. Partindo de um pedaço de argila o ceramista cria em poucos minutos uma nova forma, um recipiente oco e equilibrado, sempre revelando a mão do criador. O fazer, a elaboração das formas e a experiência adquirida no manejo do fogo para a queima das peças de cerâmica, inspiraram-me encorajaram-me a pesquisar cada vez mais e abandonar o “porto seguro” do torno e a cerâmica utilitária. O fogo é um elemento vital na instauração da obra e, ao mesmo tempo, uma grande fonte de inspiração. Dessa maneira, a poética está intimamente ligada ao material com o qual trabalho, a argila, e ao processo de queima através do fogo, que transforma a argila em cerâmica. O fazer do ceramista implica uma série de complexos processos interligados uns com os outros, que de alguma maneira se refletem no produto final. Tanto os procedimentos da modelagem e da secagem, como os diferentes processos da queima necessitam de um conhecimento detalhado dos problemas e das dificuldades que podem aparecer. Para se transformar com êxito uma idéia em um objeto de cerâmica faz-se necessários, portanto, conhecimentos técnicos e processuais, sem os quais este fazer transformador não alcançaria seus objetivos. Para poder solucionar os problemas da formação do objeto especifico e garantir o resultado previsto e desejado, o ceramista precisa saber exatamente quais das diferentes argilas e materiais escolher; quais são as técnicas e ferramentas adequadas. Decisões que dependem tanto do tamanho, volume, espessura, tonalidade e textura desejadas, como da temperatura e o tipo da queima que serão utilizadas. Da mesma maneira o ceramista precisa ter uma idéia dos problemas e riscos que aparecem durante o processo da secagem, e uma noção sobre a resistência e o comportamento dos materiais, para evitar trincas e perdas de seus trabalhos, ou poder integrar esse tipo de “efeitos” no seu trabalho. Por último, o processo da queima, o mais complexo e imprevisível de Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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todas as etapas, exige experiência e intuição para que todo o fazer se integre na conclusão do trabalho: a transformação da matéria em obra de arte. A arte como construção, como conhecimento e como expressão, três sentidos, que Luigi Pareyson unifica no seu conceito de formatividade – um tipo de prática que não só produz um objeto, mas é o modo de produzi-lo. Segundo Pareyson, a arte ”é um fazer que, no ato de fazer, inventa o por fazer e o modo de fazer”. A arte é “uma atividade na qual execução e invenção procedem pari passu, simultâneas e inseparáveis”. Lidar com a especificidade e a materialidade da matéria cerâmica, é buscar uma nova matriz de sentidos, capaz de ampliar o horizonte da própria experiência. É, neste sentido, que Giulio Carlo Argan, articula o fazer com o mergulho experiencial provocado na relação entre o artista e a matéria, entre o gesto e o objeto: “Situando a arte num nível pré-lingüístico e pré-técnico, a atividade do artista reduz-se ao gesto, a obra à matéria não-formada, mas ainda assim animada e significante. A arte já não tem relação com a sociedade, com suas técnicas e linguagem; é regressão a partir do objeto, existência em estado puro e, como a existência pura é a unidade ou a indistinção de tudo o que existe, na matéria o artista realiza sua realidade humana.”

É o universo composto de “materiais” e “circunstâncias” onde o ceramista mergulha e nos quais se incluem: o conjunto dos meios expressivos; as técnicas de transmissão; os preceitos codificados; as várias linguagens tradicionais e os próprios instrumentos da arte, onde o artista desenvolve o seu trabalho, a sua poética e seu estilo. Pois, o artista, segundo Umberto Eco, “formando, inventa efetivamente leis e ritmos totalmente novos, mas esta novidade não surge do nada, surge, como uma livre resolução de um conjunto de sugestões, que a tradição cultural e o mundo físico propuseram ao artista”. O Projeto Trabalhar com a terra é trabalhar com matéria que ao tocarmos com as nossas próprias mãos somos levados a sonhar com o nascimento da forma e da vida. Trabalhar com a terra é fundamentalmente um ato de moldar e inventar, a partir do solo formado, vasos e objetos e entregar-lhes ao fogo. Algumas vezes, as idéias que surgem durante o processo de trabalho são instintivas e espontâneas, “muitas vezes a mão treinada sabe muito mais do que a cabeça”, anota Paul Klee no seu diário. Outras vezes aparecem junto a leituras, diálogos, reflexões ou simplesmente “a permanência”, que abrem novas possibilidades, novos caminhos a recorrer. Durante a realização da pesquisa empírica desse projeto foram elaborados dois objetos que continuam e ampliam as investigações dos últimos tempos. Os dois objetos foram modelados sem o emprego de ferramentas ou outros artefatos. O primeiro objeto, uma bacia grande com 70 cm de diâmetro 139

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modelada com as mãos, e o segundo, um círculo de 180 cm de diâmetro, elaborado no chão com ajuda dos pés e o peso do corpo. O primeiro objeto (fig.1) foi queimado numa queima de Raku. A superfície deste objeto foi impregnada com óxidos metálicos como óxido de cobre e óxido de ferro e fundente alcalino, que se fundem na queima em conjunção com a argila e as chamas num universo próprio e único. Metais e argila fundidos criam, através de um processo de simbiose, um novo universo, que nos conta uma nova história e nos revela novas possibilidades do devir. Ponto final de um processo de transformação através da intervenção do artista e do fogo da queima do Raku. Durante a criação de um objeto de cerâmica, através da técnica do Raku, a parte referente à queima é ação e performance. A cerâmica incandescente é retirada do forno e colocada dentro de uma matriz redutora, como serragem, folhas secas, papel ou outros materiais combustíveis. Neste momento de interação entre o ceramista e o processo da queima, as decisões têm que ser tomadas rápidas, guiadas pela intuição e a experiência. Os gestos são fluidos e precisos, os calores e a fumaça do fogo não permitem vacilar ou demorar nas atitudes a serem tomadas, que decidem sobre o êxito dessa tarefa. Em decorrência desses processos de instauração e interação criou-se um objeto com uma superfície que, vista de perto, parece áspera e caótica, informal e em estado de formação (fig.2), mas vista à distância se percebe um ritmo, uma pulsação impregnada na superfície, através do movimento das mãos na hora da formação. Terra em formação, materialidade que domina a sensação. Matéria informal, dentro de uma forma bem definida, o círculo, e dentro desse espaço cada detalhe visto por si, cria um microcosmo dentro de um cosmo . Nesse objeto reconhecemos e reencontramos as formas primárias, através de uma organização pessoal da matéria-prima, proposta e formada pelo artista. “Existe, portanto, um ponto limite, uma linha de separação, antes da qual a aceitação jubilosa da matéria no estado bruto ainda não existe – e depois torna-se experiência vital” , escreve Umberto Eco. O segundo trabalho consiste em uma grande roda no chão. Modelada a partir de uma bola de argila que se foi abrindo e estendendo lentamente debaixo do peso do corpo e dos pés. Círculos que se vão formando, os vestígios dos pés visíRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Fotos Benedikt Wiertz

veis, o ritmo que deixa seu rastro na forma de um círculo.(fig.3;4;5) A memória dos homens pisando na terra, vestígios de passagens, circulares, infinitas, repetitivas como os ritmos musicais. Testemunhas de um ato de formação, o andar na terra, a dimensão temporal congelada e fixada. Uma metáfora da metamorfose dos materiais e da memória em conjunção com o processo formativo. Uma plástica no sentido “Beuysiano”. Formação de caráter orgânico, que cresce do interior. Dessa maneira, o objeto torna-se testemunha da sua própria formação, contendo em si a memória e os vestígios do processo da instauração e da metamorfose. Esse trabalho foi queimado primeiro numa queima de gás e depois, uma segunda vez, numa queima de buraco, queima de fogo aberto(fig,6;7}, que demorou três dias, transformando o objeto num estado definitivo. Para poder acontecer estas queimas, o círculo foi cortado em 12 peças. Fragmentada e separada, por razões técnicas, a peça perde-se de sua unidade e organicidade, que só depois, com a queima consegue recuperar em parte. Os vestígios das chamas em conjunção com as formas criadas na modelagem, criam dentro do círculo, como foi possível observar no primeiro objeto, uma infinidade de imagens que formam uma série de pequenos mundos que, vistos juntos, unificam a cerâmica de novo, até um certo ponto –ponto necessário para que as partes se reconheçam no todo da peça. (fig.8;9)

Sedimentos e Sentimentos As questões iniciais, quais sejam as relações entre as forças originais da argila e a cerâmica, no sentido da transmissão destas forças para o objeto e as reflexões sobre memória e transformação, a partir deste mesmo objeto de 141

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cerâmica, aparecem agora como reflexos instigantes dos próprios resultados empíricos dos trabalhos. Os materiais de tempos imemoriais, que formam e sedimentam a argila, emergem nos objetos de cerâmica a partir da evocação do olhar e do sentir, da sedimentação/transformação da memória na cultura e no fazer. E a memória só existe se permanece o seu elo afetivo com o objeto. Esse elo se transforma com o tempo. Como se transformam, mudam e evoluem as culturas. Assim como as mãos que transformam a argila também se transformam, através do tato, do contato, do tornear, do tornar novo o arcaico sedimento argiloso em cerâmica. Sinto, ao fazer um objeto de cerâmica, que ele traz em si as memórias e as transformações do tempo e das culturas, advindas das infinitas possibilidades da matéria argila e da etérea e incorpórea materialidade do fogo.

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FRAGMENTOS DE MEMÓRIA Cláudia Renault

Tudo Flui

Lançando um olhar retrospectivo ao meu trabalho em Arte, sempre me surpreendo. Comecei pela xilogravura, sulcando a madeira e daí chegava às linhas mas, principalmente, passei a me interessar pelo que sobrava de matéria ao fazer os sulcos. As lascas têm sua origem aí e hoje acabaram virando as letras de meu livro de artista. Portanto, esta monografia será o depoimento de um processo que até a mim me escapa e escrever é uma forma de recuperá-lo. Aprendi com a Psicanálise que não se pode fazer uma auto-análise. Pergunto-me se teria a isenção necessária para ver profundamente o que executei. Arte é feita de perguntas e indagações. Acredito que todo trabalho reflete o autor, mas será que o autor consegue se ver? Será que o artista sabe o seu caminho? Hou Kíeou-tsen decía: ? Cuál es el objetivo supremo del viajero? El objetivo supremo del viajero es ignorar adónde va 2. Só num movimento a posteriori, algo do caminho se revela. O artista não está exatamente buscando responder a todas as suas dúvidas sem nunca conseguir? A arte não é feita de respostas, pois quem as encontra não tem necessidade de buscá-las..!

Fotos reprodução

Uma coisa extraí das indagações: de fragmentos somos feitos ! Na Escola Guignard nomeei a xilogravura como meu meio de expressão porque, dentre tudo que havia experimentado, tinha mais afinidade com a madeira. Nunca gostei de pintar. Não sou colorista, sou mais monocromática. Fiquei uns cinco anos dedicando- me à “xilo”. Sempre em preto e branco. Gostava do cheiro da madeira,da textura, do tato. Nesta época, enquanto gravava, enchia o chão de lascas de madeira, fragmentos da matriz trabalhada. Com o tempo, fui me desinteressando da gravura. Gostava de gravar, gostava da matriz , gostava dos restos de madeira, das lascas espalhadas pelo chão. Mas não gostava mais de ti143

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rar cópias. A cozinha da gravura me cansava , como me cansava ver a mesma imagem repetida. Eu sabia que não queria mais fazer gravura ,mas desconhecia meu rumo. Comecei a freqüentar o atelier de litografia . Gostava de conviver com artistas como Amilcar de Castro, Lotus Lobo e muita gente interessante que passava por lá. “Lito” também não era a minha . Lotus falava que eu queria fazer “xilo” na pedra. Sem saber, eu procurava a minha marca, o meu estilo . O estilo, de acordo com Goethe “repousa nas mais profundas bases do conhecimento, na essência íntima das coisas, na medida em que nos é dado compreender isso em formas visíveis e tangíveis”.3 Nesta época estava me mudando de casa. Mandei um marceneiro tirar o fundo de um armário embutido para caber mais coisas. É um trabalho rude...Ele metia grosseiramente o martelo no compensado e vinha arrebentando a madeira. Cada pedaço que ele arrancava eu achava mais instigante que o outro. Chamavam-me a atenção as texturas, os tons e as variadas direções que os veios da madeira formavam, verdadeiros desenhos para mim. Estes fragmentos acirravam minha imaginação. Não consegui me desfazer de nem um daqueles restos de madeira . Fiquei completamente perplexa! Não tinha nenhuma consciência do porquê daquela atitude, mas sabia no íntimo que havia encontrado minha matéria. Guardei tudo debaixo da minha cama e dormia sobre meus fragmentos. Sonhava Arte. Paralelamente, trabalhava “ meus pedaços” na minha análise pessoal. Tinha uma exposição de litografia marcada, mas trabalhava compulsivamente com os fragmentos de madeira. Completava estes pedaços com desenho (pastel oleoso) na tentativa de formar o todo... dar continuidade...passar uma intenção...fazer a própria história.

Estes trabalhos eram abstratos, mas sugeriam paisagens, geleiras, grutas, estalactites e estalagmites. Paisagens insólitas, sombrias e solitárias. Nesta época já havia introduzido cor. Ela aparecia no trabalho com uma parcimônia absoluta, completamente econômica e a minha palheta oscilava dos tons terra ao preto, passando pelo creme e o grafite. Fazia então uma Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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De restos somos feitos: Cheguei (há séculos? Ou há pouco?)4


brincadeira com o olhar. Era a tal ponto integrada a colagem com o desenho, que o interessante era o todo e não só o fragmento colado. Na confirmação do pensamento de Cocteau: “Os cachos de uvas pintados já não atraem mais os pássaros. O ‘Trompe l’oeil’ está morto, nasceu o “Trompe l’Esprit”. Só a mente reconhece a mente.”5 Os melhores trabalhos desta série foram recusados no salão. Não tive nenhuma dúvida , eu os incluí na minha primeira individual que inauguraria três dias após o resultado do salão. Eu parecia determinada, queria mostrar o que havia feito. Dito assim, parece muito fácil e tranqüilo. Enfim, havia colocado “o trem no trilho”, meu caminho estava a começar. Como produzia bastante, aqueles pedaços de madeira do armário foram-se acabando. Passei a catar madeira, ganhar madeira, a viver às voltas com este material. A dimensão do trabalho foi crescendo e comecei a me interessar por portas velhas e descascadas, janelas de demolição, malas velhas catadas na rua, lascas de madeira, latas velhas e enferrujadas com restos de tinta, pregos retorcidos, material sem nenhuma valia. Sabia que não tinha mais a necessidade do desenho. Nestes trabalhos eu unia latas e madeira ou madeiras carcomidas e pregos. Interferia neles com tinta para reforçar a pátina do tempo, para marcar sua identidade até então de bens inúteis. Eu não precisava mais de usar vidro para proteger os trabalhos. Eles se soltavam da parede, adquirindo volume e vida própria. Muitos deles não tenho idéia de onde estão; outros, às vezes deparome com eles. É sempre uma surpresa revê-los, independem de mim. Continuava ajuntando os meus restos, cada vez mais acumulativa. Eu já tinha então um apartamento só para guardá-los. Morava, dormia e vivia cercada de madeira velha, podre, jogada fora . “Amar o perdido deixa confundido este coração”.6 Esta frase de Drummond passou a ser a definição do meu trabalho .Havia encontrado alguma coisa que parecia ter sido escrita para mim. Sabia que estava resgatando algo, dando vida , transformando em arte o que já parecia perdido. Estava dando sentido, um novo sentido a cada coisa. Meus objetos nunca gritaram, nunca chamaram muita atenção, mas falavam do tempo, do tempo passado, do tempo das coisas, de onde vieram, de quem foram e para que serviram. Que estórias contêm no seu âmago! Eles falam da transitoriedade das coisas e do homem, mas falam também do mistério que as coisas e os homens guardam só para si. Freud em seu texto intitulado “Sobre a transitoriedade” relata que “a propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência pode dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva a um penoso desalento, ao passo que outro conduz à rebelião do fato consumado” . De toda forma,”a beleza deve ser capaz de persistir e escapar dos poderes da destruição (...) O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo”7 . 145

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Freud registra no mesmo texto, toda a dificuldade do ser humano com a perda daquilo que amamos. E o medo e a certeza de que um dia nos transformaremos em pó, como toda a natureza . Somos feitos de fragmentos. Traços herdados de nossos antepassados, restos que vamos ajuntando, que vamos somando ao longo do tempo, nesta nossa caminhada. Sempre tive esta sensação de ter meu olhar roubado, fisgado por um determinado objeto que também me olha. Uma cumplicidade com os objetos perdidos – material fonte de inspiração . É como se me reconhecesse, como se cada objeto falasse da nossa condição humana: pobre, largado, até que, recolhido e reconhecido, adquirisse o sentido de ser novamente útil. Útil para falar poeticamente de dor e de beleza, sentimentos tão humanos. É como a necessidade de dizer a que veio.É a intenção de todo ser humano marcar o sentido da sua trajetória neste mundo. Ou como já disse Roland Barthes, é buscar “a assinatura do homem no mundo”. 8 Cada objeto passa a ter vida própria e viaja por caminhos que o seu criador não consegue acompanhar. Cada material recolhido sai do limbo e se impõe com outra aura dentro do atelier do artista. O movimento é e sempre foi de pesquisa, de recolher dados- fragmentos para construir uma história. Cada um tem uma forma de se encontrar. esta talvez seja a minha. A base de todo o meu trabalho. O trabalho de arte é legítimo quando ultrapassa o autor e fala do outro ou permite que o outro se identifique nele. Evocar em si certos sentimentos que se experimentou e ao evocá-los,


transmiti-los por meio de linhas , cores, sons, palavras, para que outros também os possam experimentar. “A arte constitui atividade humana que consiste nisto: um homem conscientemente, mediante certos sinais externos, passa para outro, sentimentos através dos quais viveu, ficando este imbuído daqueles sentimentos, passando também a experimentá-los.”9 Estamos falando quase sempre da vontade de não deixar as coisas se acabarem, como se pudéssemos interromper o ciclo da vida. Em arte podemos. Podemos mudar e interferir no destino das coisas e deixar que o próprio objeto fale e denuncie a nossa precariedade, a nossa pobreza , a nossa transitoriedade. Trazer à luz a nossa frágil existência talvez seja uma escolha ameaçadora, que incomoda o espectador que não consegue ouvir e se reconhecer neste imponderável e ininterrupto caminho da vida. Nascemos, vivemos e morremos, gastos, feios, velhos- sem mais razão de ser. Não se trata de material reciclado (como se vida pudesse ser reciclada!). Vida começa e acaba , interesso-me é por este movimento de um pólo ao outro. Não falo de moda! Não se trata de transformar em abajur ou castiçal, falo da existência. Houve uma época em que todos os Salões de Arte eram temáticos. Em deles, cujo tema foi “ São Francisco”, fiz uma imagem de tamanho natural, a partir de um manequim antigo. Esta imagem ficava assentada sobre troncos grandes de madeira, brutalmente cortados. São Francisco, com a mão no rosto e a cabeça baixa, deixava aparecer uma lágrima . A instalação foi montada no Palácio das Artes. Participei também de outros salões: um com o tema, “A cidade” no qual fiz uma instalação com muitas antenas de TV; outro, cujo tema era “A casa”. Fiz uma casa de João-de-Barro, com uma escala muito ampliada, toda enrolada em arame farpado. Tentei transmitir a falta de espaço para o lirismo, poesia e singeleza de uma casa do João-de-Barro. Também a pressa na grande cidade , o barulho infernal, e poluição sufocante, acabando com o espaço para a pureza, a beleza, e a sabedoria da natureza. A este propósito, vale a reflexão sobre a chamada Arte Povera, que Margit Rowell fez em contraponto à Minimal Art: A Arte Povera , este movimento que nasceu nos anos setenta, parecia flexível, acomodante e empírica, instintiva e subjetiva, lírica e poética, paradoxal ‘a margem dos aspectos irracionais e incontroláveis da experiência vivenciada. A Arte Povera não era um movimento formal, mas traduzia antes de mais nada uma atitude moral e uma atitude crítica. Ela colocava um olhar crítico, no sentido amplo, sobre a tecnologia, sobre o progresso, sobre a padronização dos produtos e dos comportamentos humanos e, muito particularmente sobre a História da Arte e as categorias estéticas em vigor. Os objetos da Arte Povera são de materiais orgânicos (em oposição aos materiais industriais). Eles dão ao olhar substâncias naturais instáveis que evocam processos biológicos ou físicos. As obras de Arte Povera traduziam uma “demarche” e voluntariamente intuitiva. Elas exigem uma suspensão das prioridades e dos mecanismos racionais a fim de solicitar a sensibilidade poética no amplo sentido. Os objetos da Arte Povera são despro147

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vidos de uma história ou de uma sedimentação corporal. Ao contrário, eles carregam em si esses extratos sedimentarios acumulados ao fio do tempo, que constituem toda experiência: de um inconsciente coletivo, de uma subjetividade pessoal, de uma objetividade histórica, e mesmo das realidades míticas em perpetuo retorno. Eles exprimem estruturas temporais ; da razão , da intuição, dos gestos e dos atos. Enfim, eles abrigam e designam as fases cíclicas das matérias orgânicas: crescimento, decomposição, deliqüescência, movimento, sinais do tempo que avança. E assim que as formas concretas desses objetos e suas contradições internas provocam sensações de uma complexidade inquietante. A visada de um tal face a face, não se limita somente ao que o espectador vê em totalidade mas advém também com todo um fundo de lembranças instintivas, às vezes viscerais 10.

Não sou ecologista, mas acreditava que o trabalho deixava claro estas questões. Em minha primeira exposição individual na Itaugaleria., trabalhei lascas de madeira, emolduradas com vidro. Na Galeria Corpo, o vidro desaparece. Na Galeria Cidade, dentro da mesma temática, ele se torna mais elaborado. Nesta exposição existia uma instalação em homenagem a Arthur Bispo do Rosário. Talvez poucas coisas tenham me tocado tanto como a exposição de Bispo no Museu da Pampulha. Estupefata. Parecia a síntese de uma idéia de arte, para mim preciosa. Estava ali a necessidade vital do fazer , sem mentiras, sem interesses, sem modismo. Aquela motivação que vem das entranhas. Bispo estava elaborando os parâmetros tanto de sua identidade como de sua posteridade: todos os objetos e bordados, sobretudo o manto da apresentação, haviam sido executados para o momento do juízo final. “linguagem e delírio estão entrelaçados na formulação da verdade do sujeito”11 Depois desta exposição fiquei 10 anos sem fazer uma individual em galeria de arte. Fiz uma pequena individual em uma livraria, outra em Juiz de Fora. Entretanto, participei de uma infinidade de Coletivas. Meu trabalho seguia, eu sempre insatisfeita, achando insuficiente minha dedicação, mas nunca parei de trabalhar. É um trabalho difícil, custoso e lento. Não consigo trabalhar, como alguns artistas, em muitas obras ao mesmo tempo. Acho que é uma questão de temperamento, de maneira de ser. Na natureza há árvores que dão flor uma vez, outras de tempos em tempos e outras que nem produzem flores. Esta diversidade talvez seja para nos mostrar que há lugar para todos os diferentes fazeres. Fiz uma exposição na Galeria Circo Bonfim. Os trabalhos foram elaborados diretamente na parede da galeria, mas coloquei molduras sobre eles. Uma instalação de quadros pequenos e médios. Gosto de lançar um olhar de provocação lúdica no mercado de Arte e sobre o desejo de aquisição. A irreverência lúdica, o espaço do brincar, gosto de lidar com Arte assim, meio provocando. Fazer o espectador participar, perguntar-se, dialogar com a obra, porque a gente só dialoga com quem tem algo a dizer. Como prêmio, no ultimo salão de Arte do MAP, fiz uma exposição na Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Galeria de Arte Manuel Macedo, em 2001. Quando se conquista um espaço, comercial, consistente, um espaço difícil de conseguir, para uma individual, mais que um prêmio, há aí um desafio, quase um castigo. Somos exigidos no nosso além, naquilo sobre o qual nem nós mesmos sabemos. Durante todo o tempo, a sensação era de que não ia dar conta, mas curiosamente, em nenhum momento pensava em desistir, lidei com duas sensações, permanentemente: de força e de fraqueza. Sabia que se desistisse ou adiasse, a desistência ficaria com sabor de derrota antecipada em um jogo que sequer começou. Ao falar deste processo estarei falando do trabalho, são intrínsecos. O tempo passava e não conseguia definir a exposição.Só sabia que partiria do último trabalho do salão, lascas e vidros colados na parede. Diante do desafio comecei juntando as lascas de madeira, as tiras de vidro, sobras inúteis da construção de minha casa. Coloquei-as numa disposição que destacasse a forma, mas privilegiei principalmente um tom, uma musicalidade na disposição, buscando, neste caos, a harmonia. O trabalho continuava me instigando e se apresentando à minha mente com insistência, quase uma idéia fixa; preferi, no entanto, que a idéia permanecesse móvel e assim foi criando seu próprio interesse. Só depois dele montado na Galeria Manoel Macedo, pude perceber, com toda a intensidade, sua musicalidade e ritmo. Os vãos criados entre uma peça e outra iam se abrindo como frestas, criando caminhos e atalhos. Queria que os vidros fossem do teto ao chão, não se sustentassem só na parede, pensava em superposições, com peças umas na frente de outras. Foi quando passei a ter certeza da uma amplidão da idéia. A acumulação de materiais que sempre esteve presente no meu atelier, dando às vezes a impressão de um depósito de lixo, foi se revelando a partir desta instalação mais despojada, destacando-se da própria obra uma leveza, uma fragilidade, delicadamente perigosa, que me surpreendeu exatamente por não ter sido antecipada como intenção. É como enxergo hoje este trabalho.Acredito que quando falo dele, falo da vida, falo dos fatos, falo da memória, falo das relações entre as pessoas e do indivíduo com a vida. Fiz também um grande rio de lascas de madeira por todo o chão da galeria. É claro que não é qualquer lasca que serve, por mais aleatório que possa parecer ao espectador menos informado. Demorei três dias na montagem da instalação de parede. Ela me gerou, ao montar, uma grande ansiedade, porque só soube que ficara boa depois de pronta. Ela resumiu para mim o próprio processo de criação. Nesta instalação, interessava-me o ritmo, o equilíbrio, a musicalidade, a variedade de tons. Senti como se estivesse escrevendo uma partitura que só eu compunha. Tinha uma vaga idéia da musicalidade que dela poderia advir, só o espectador me devolveria sonoridades inauditas. “Todas as artes aspiram à condição da musica”12 . 149

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Estava à procura do tom certo é na falta que o trabalho tenta se completar. Estamos sempre buscando. Daí porque o espectador acaba se tornando um co-autor. É na falta, também, que nos encontramos e é pela falta e por causa da falta que criamos. Em uma palestra recente, Bartolomeu Campos Queirós fez algumas pontuações sobre isso. Somos marcados pela falta. Nosso próprio corpo guarda a cicatriz, a marca da falta do outro. Falta que, por ter a marca da impossibilidade, põe-nos sempre no movimento de procura. O primeiro movimento que surpreendi em mim foi fazer quadrinhos de 25x 25 cm. Muitos! Entregava-me a esse fazer sem muita preocupação com onde isso ia dar. Mas, foi também aí, olhando em retrospectiva, que ia experimentando a ultrapassagem do limite, rompendo a barreira do quadrado, da moldura. Já esboçava, nestas experimentações, aquilo que viria a ser a matriz da instalação. Eu só sabia que era um exercício. Fazer só se resolve fazendo. Entender este processo, na Arte, é sempre a posteriori. É um ressignificar sentido em novos sentidos. O bom trabalho já é um texto, um trabalho consistente desvela o texto que tem em si. O livro do artista, no meu ponto de vista, parece livro, tem folhas, mas as letras são lascas. Estilo é uma palavra que, em sua origem, designa um instrumento duro que fazia marcas nas tábulas dos escribas. Então, no estilo, há a marca de cada um. Neste livro do artista, como o construí, mais do que as letras que se desenham nos sulcos, fui recolhendo, o excesso, sobra da sulcagem, e a recuperei como coisa, como finas lascas, de maneira que as páginas viraram suportes para estes restos. As letras portanto, só poderiam ser as letras-lascas com as quais vou tentando escrever meu estilo. Apresentei um livro de folhas transparentes (acetato), com fragmentos de lascas de madeira.. Resolvi fazer, para a exposição, um objeto a partir deste livro. O título do trabalho é Memória. São vários fragmentos que a gente não sabe bem em que compartimento está. São camadas, cada hora vem um fragmento de memória à tona. O objeto tem luz que abre e fecha, conforme opere o desejo. Caminho praticamente todos os dias em uma mata e, no percurso há uma água corrente que em certos trechos, às vezes, dá a impressão de estar em repouso. Ando olhando aquela água que corre, ininterruptamente cheia de fragmentos, de folhas, de galhos, de lascas de madeira. Wordsworth diz que a poesia “se origina da emoção colhida na tranqüilidade... quando se contempla a emoção até que, por uma espécie de reação, a tranqüilidade desaparece gradativamente e uma emoção aparentada à que constituía antes o motivo da contemplação, produz-se gradualmente, passando a existir de fato no espírito”13.

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O artista absorve o seu meio, o seu em torno e o devolve em forma de arte. Ninguém cria a partir de nada. Acredito que as nossas vivências são assimiladas de tal modo que, inconsciente, as coisas surgem. Neste trabalho, nada foi premeditado, tudo era feito sem saber o porquê ou o que era melhor. Nele eu via a transparência, o reflexo, o mergulho no trabalho, objeto-memória, direcionando-me para a água. Resolvi então fazer trabalhos com água. Já que a instalação não seria mais no grande salão e que ocupar só as paredes com grandes obras seria o óbvio, não me sentia atraída por esta concepção. Já havia resolvido o assunto quando pensei em uma parede inteira com fragmentos colados. Seria monumental, belo, mas não seria eu. Minha escala não é gigantesca, é mais intimista. Ao resolver fazer o trabalho com água e usar o chão da galeria em vez da parede, a questão tomou mais forma. Sabia que estava obrigando o espectador a fazer uma inversão no olhar. Olhar para o chão pode ser muito perigoso, como já dizia Guimarães Rosa referindo-se ao viver. É que o chão, na verdade, é a nossa ultima morada; olhar nesta direção sem se horrorizar , em retrospectiva seria estar comprando um desafio. Contudo, a idéia ia se impondo e não conseguia mais me desviar desta forma. Naquele espaço isto não havia sido feito até então. As pessoas entram, principalmente em galerias comerciais, para ver obras nas paredes. Instaleimeu trabalho no chão. Eram bandejas de alumínio com água, e dentro fragmentos-lascas de madeira e, em algumas, tiras de vidro ora verdes, ora pretos, ora transparentes, criando objetos dispostos cuidadosa e pensadamente no chão. Cada objeto tinha sua autonomia e ao mesmo tempo fazia parte de uma unidade. A água suscitara um interesse especial e é onde entra minha maior ligação com o trabalho, porque convidou o espectador a chegar perto, a se interessar pela obra , a se agachar. Alguns colocaram a mão para se certificarem de que era água. Mais que um desafio ao espectador, havia um desafio à percepção. Uma espécie de “tromp l’oeil tátil”. Não se sabia se era vidro, se era água, a maioria das pessoas apostava no vidro. Só tocando e sentindo a fluidez da água é que se resolvia a questão. Se fosse só vidro, uma instalação 151

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com muitos quadros no chão seria mais um modismo, mas uma instalação que só pode ser montada no chão por ser feita com água é resolvida. Foi surpreendente também, um efeito não calculado, o fato de que, depois de inaugurada a exposição, começassem a aparecer fungos nas grandes bandejas de água e que a tinta desprendida da madeira, por sua vez também interferisse na coloração da água, tornando mais visível uma organicidade. Mais uma vez o confronto com a transitoriedade. A cada dia, e dia após dia, o trabalho se diferenciava como um dia depois do outro. O tempo passa , e, no final, o registro, as marcas daquilo que um dia foi água - transparente, turva e que no final se recolhe como pó. Finalmente, instalação montada e exposição finalizada, encontrei-me ali, quieta, silenciosa, intimista e com uma breve sensação de inteireza. Todos os trabalhos induziam o espectador a se aproximar e conversar, chegar bem perto e às vezes tocá-los. O trabalho não é feito pelo artista, ele é executado pelo artista, mas feito e criado dentro de cada espectador, onde ele adquire uma forma diferente. Senão, qual o sentido de expor? Podemos dizer que todo o trabalho é também texto, posto que o ato de fazer pede referências, reflexões e associações. Esta é a diferença que faz a diferença. Se somos constituídos, enquanto sujeitos humanos, através do outro, e se arte e vida andam juntas, também uma obra se constitui através do outro. Sem pressa e sem antecipações do processo, seguindo seu ritmo , como a nos lembrar , aquilo que Heráclito, deixou como fragmento: “todas as coisas fluem, nada permanece quieto e, comparando as coisas existentes com a correnteza de um rio, ninguém pode mergulhar nele duas vezes”.14


NOTAS 1

TOSI, R. Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas. Fragmento 40 de Heráclito.SP:Ed.Martins Fontes,1996.p.252.

2

TÀPIES, Antoni. Memória Personal. Barcelona: Seix Barral Editorial, 1983.

3

READ, Herbert. Arte e Alienação. O papel do artista na sociedade. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1983.p.73

4

RENAULT, Abgar. Obra Poética. Ed. Record. 1990. p.117.

5

ÁVILA, Sara. Apresentação no convite de exposição de Claudia Renault. Belo Horizonte: Itaugaleria, 1983.

DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Antologia Poética. RJ: Editora Sabiá,1973.

6

7 FREUD, Sigmund. Sobre a transitoriedade, Obras Psicologicas Completas. RJ: Imago Editora.1976. Vol.XIV (19141916) p.345 8 BARTHES, R. In: Farias Agnaldo Porque Duchamp? Leituras duchampianas por artistas e críticos brasileiros. S.P.:Coleção Itaú Cultural, 1999.

TOLSTOI, L. In: Read,H. O Sentido da Arte .S.P. :Ibrasa,1972.

9

ROWELL, Margit- Qu’est que la sculpture moderne? Arte Povera anti-minimal. Centre Georges Pompidou,1986.Trad. Patricia Franca

10

FOUCAULT, Michel- Citado por Lisete Lagnado.Porque Duchamp?Leituras Duchampianas por artistas e críticos brasileiros.Col. Itaucultural

11

12

SCHOPENHAUER, citado por Read, Herbert. O sentido da arte. SP: Ibrasa,1972.

13

READ, Herbert. O sentido da arte. SP: Ibrasa,1972. p. 161

14

MORA, J. Ferrater. Dicionário de Filosofia. Ed. Loyola, 2001. Tomo II, p.1318.

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MONTÁVEIS Instalações com módulos lineares Evandro Castro

Foto Rosa Maria

Introdução Ultimamente, meus trabalhos foram se tornando cada vez mais abstratos, até caírem em composições concretas: seções do cubo, da pirâmide, da esfera, mas não estáticas. Sempre composições lúdicas, mutáveis, elementos de um jogo de armar. Recentemente, quando retirei a massa dos volumes e os construí com barras, encontrei uma seção do cubo, então linear, que imediatamente se impôs como módulo. Estudar esse módulo linear, suas dimensões, manuseabilidade, ferramentas e materiais adequados para sua construção, acabamento e etc, passaram a ser parte de um problema. Outra parte, não menos importante, se apresentou quando o módulo, ao ser multiplicado, ainda em maquete, apresentou um sem números de possibilidades de formas e de relações interativas. Os módulos As primeiras experimentações para a construção dos módulos lineares foram desenvolvidas com um cubo feito através de dobras em um arame liso e maleável. Interessava determinar um processo construtivo que, de preferência, não envolvesse soldas ou parafusos. Na direção de dois vértices opostos de um cubo linear foi dado um corte diagonal, que decompôs o cubo em dois diedros de 900. As duas peças resultantes foram complementadas com uma aresta cada para formarem figuras tridimensionais fechadas, as quais foram tomadas como módulos, tendo 2 faces, 7 arestas, 6 vértices. Esses módulos lineares, base do trabalho, imediatamente remetem a artistas que, em nossa época, criaram estruturas com formas geométricas semelhantes. Sol LeWitt, norte-americano minimalista, utilizou-se de cubos aber155

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tos modulares em diversas instalações. Alguns sistemas de arranjo com cubos lineares, por ele empregados, saem da serialidade repetitiva, característica do minimalismo, para constituírem relações pré-determinadas de alternativas “entre-partes”. As estruturas de LeWitt, mesmo que tenham interesse em si mesmas, são formuladas a partir de conceitos prévios da obra. Segundo ele, “a aparência que o trabalho tem não é importante[...] O que importa é o processo de concepção e realização em que o artista está envolvido” (LeWITT, apud BATCHELOR, 1999:47). Waltércio Caldas, que há mais de três décadas presta sua contribuição a arte brasileira pós-construtiva, incorporando a contribuição neo-concreta e a rediscutindo através de um diálogo conceitual, apresenta, em vários momentos, estruturas geométricas lineares como materialização de sua obra. Todavia, é em Franz Weissmann, um dos signatários do manifesto neo-concreto brasileiro, que podemos encontrar sólidas referências às potencialidades do quadrado como núcleo formal originário. Desde 1951, em sua escultura “Cubo Vazado”, encontramos sua disposição de explorar uma espécie de dimensão temporal do quadrado. “Os cubos ocos continham em germe os elementos cruciais que norteariam toda produção subseqüente de Weissmann: uma experiência leve e ubíqua do espaço, sempre vislumbrado a partir dos deslocamentos do plano; procedimentos de construção fundados na repetição de módulos vazados, que mais tarde se multiplicariam em um sem-número de colunas e arranjos singulares; uso lúdico e digressivo de materiais industriais e, sobretudo, a valorização de uma dimensão física do espaço, que nos anos de maturidade viria à tona através da extraordinária desenvoltura dessa obra para dialogar com a paisagem e o ambiente urbano...”1.

As instalações Na sequência destas propostas históricas, o trabalho atual se desenvolve através da utilização dos módulos lineares, seção de um cubo, para a proposição de montagens. Porém, não se trata da construção de peças fixadas, mas de um exercício de possibilidades de montagens e desmontagens a partir dos módulos base e o desenvolvimento de condições para sua interatividade com o espaço e o espectador/participante. Nossa concepção de trabalho apoia-se no pensamento/obra de Hélio Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Foto Tibério França

Em uma rápida visita a obra de Weissmann, podemos localizar inúmeras esculturas onde aparecem cubos lineares dialogando com o espaço. Assim: “Três cubos em ordem crescente” de 1952, ferro pintado;”Escultura linear”, 1954-98, aço; “Dois cubos lineares virtuais”, 1954, ferro pintado; “Construção”, 1970-92, tubo de ferro pintado; “Sem título”, 1973, alumínio (Museu de Arte da PampulhaBH); e as obras apresentadas na XXXVI Bienal de Veneza: “Sem título”,1972, alumínio;”Módulos”, 1972, alumínio; e “Labirinto”, esculturas externas,1972.


Oiticica. Para ele, a obra de arte criada como objeto de arte torna-se uma questão superada, pois o interesse se volta para a ação no ambiente, “um exercício para o comportamento. O objeto é a descoberta do mundo a cada instante”. (OITICICA apud FAVARETTO, 1992:97). Na contemporaneidade, o próprio público passa a ser um “elemento” da obra, quando deixa de ser espectador e torna-se participante. A “não-artista” brasileira, como ela própria se autodenominava, Lygia Clark, em 1957, já antecipava a idéia do espectador participante quando dizia: “A obra (de arte) deve exigir uma participação imediata do espectador e ele, espectador, deve ser jogado dentro dela” (CLARK apud MILLIET, 1992:25). É precisamente esta a função das obras atualmente conceituadas como “instalação”: ambientes criados por artistas e que permitem a integração do espectador/fruidor como elemento da obra. Na experimentação de uma instalação, o que importa é a exploração do espaço e as inter-relações com o objeto e o próprio sujeito que experimenta. Na verdade, a obra é a “instalação” do espaço, surgido com a presença do objeto, mais a ação do sujeito. O público Segundo Roland BARTHES(1987), é o sujeito, investido de participante, que irá conferir à obra significado através de sua percepção e elaboração reflexiva. É aí, então, que realmente se dá o nascimento da obra. Sua fundação se dá quando da relação arte/homem/espaço surge um significado. Nesse trabalho, as montagens com módulos lineares foram planejadas para ocorrer a partir de uma ação do propositor, junto a um público que, a princípio, deveria ser formado por fotógrafos. A partir de uma relação dialética entre módulos/espaço/fotógrafo, eram esperadas ocorrências espontâneas de construções e desconstruções. As imagens das ações decorrentes seriam passíveis de serem registradas através das câmeras fotográficas dos próprios sujeitos, revelando o resultado da interatividade com os módulos: formas explícitas, comportamentos e significados implícitos. Desde 1989, o artista contemporâneo brasileiro Ricardo Basbaum desenvolve o projeto NBP – Novas Bases para a Personalidade, a partir de objetos, desenhos, textos, instalações, diagramas, etc. Para ele, o espectador é suporte e veículo do jogo da arte, “uma vez que sua presença aciona os maquinismos da obra, colocando-a em funcionamento” (BASBAUM, s/d). Um exemplo disto é a proposta apresentada por ele em 1994 intitulada _ “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”. Uma pessoa, previamente contatada, recebe em sua casa um modelo em metal pintado, com a forma da marca desenvolvida para o projeto NBP, relaciona com ela e anota suas ações durante o processo de metamorfose do objeto, em função das atividades desenvolvidas. Depois de um mês, a transfere para a casa de outra pessoa incluída no projeto. A estratégia de Basbaum pretende com isso implantar no espectador/participador um 157

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A participação Assim que ficou determinado que o público participante seria mesmo formado por fotógrafos, foi definido o tipo de estratégia a ser proposta. Cada fotógrafo receberia os módulos em sua casa, embalados cuidadosamente e acompanhados de instruções. A idéia era que cada um espontaneamente manipulasse os módulos em determinados espaços e fotografasse a situação vivida. Para o funcionamento da proposição, foi enviada uma dupla de módulos a seis indivíduos conhecidos por suas características diferentes de fotografar. Sendo assim, poderiam registrar suas particulares relações com os módulos e os espaços instituídos, fornecendo diversas imagens para análise do funcionamento da proposição. As características dos seis fotógrafos, que se tornaram o público e a quem o trabalho foi dirigido, apesar de diversas - sendo que dois trabalham com fotografia de documentário (João Castilho e Pedro David), uma é fotógrafa de modelo (Rosa Maria), um é repórter fotográfico (Paulo Sérgio), um é professor de fotografia (Tibério França) e um último é fotógrafo amador (Alexandre Paulino) -, têm em comum uma reconhecida experiência na área da fotografia. Depois de um contato direto com cada um, foi dirigida a eles uma “carta convite” na qual é identificado o propósito do trabalho, sua descrição prática e teórica, além de fazer um convite definindo a dupla participação deles, como público e como fotógrafos. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Foto Evandro Castro

dispositivo gerador do fluxo arte-pensamento, “sendo o trabalho de arte um veículo para uma alteração quase genética” (BASBAUM, s/d). Nossa proposta tem a intenção de levar o sujeito a integrar significados ao agir criativamente, ao tornar-se instrumento de ligação, fazendo coisas, tendo direção (brincar, armar, jogar), embora sem objetivo definido. Os comportamentos surgidos nos espaços formados por elementos primários, sem nome ou serventia reconhecida (não-objetos)2, surgem com o tempo e são de ordem experimental: ensaio e erro. Ações criativas, que certamente produzem o encontro, a descoberta, algo surgido da conexão de espaço/não-objeto/sujeito, provocando emoções, reflexões, pensamentos e significados. Para efetivar uma provocação de comportamentos, algumas maneiras de apresentação dos módulos foram avaliadas levando-se em consideração o interesse, na prática artística contemporânea, de se estabelecer um diálogo dos módulos com o espaço e com o público. Outro fator levado em consideração foi a questão do registro das ações.


Foto João Castilho

Uma maneira complementar de fazer com que os fotógrafos se tornassem realmente público/participante foi enviar a cada um eles, junto com os módulos embrulhados em papel de seda, dentro de uma caixa especialmente confeccionada com cartão Kraft, um filme virgem acompanhado por uma tira de papel, semelhante a uma bula, em que foram definidas questões práticas como revelação do filme, despesas, etc. Dentro do prazo marcado, os seis fotógrafos enviaram 150 fotos documentando os comportamentos deles com os módulos. As fotos, depois de selecionadas e digitalizadas, foram organizadas de modo a mostrar a participação de cada um e evidenciar suas características peculiares: Alexandre Paulino apresenta um trabalho poético que canta a tristeza de um dia de chuva, tece coloridas colchas de cores suaves e em tudo parece buscar a integração dos seus sentimentos com módulos mimetizados nos espaços. Tibério França marca sua presença através de fotos que unem seu imaginário, às vezes com espaços de projeção onde os módulos são sombra e às vezes com espaços do mundo onde os módulos são objetos marcantes, arquitetura ou ornamento. Rosa Maria gosta de fazer retratos, fotografa os módulos como se fossem modelos. Os espaços são o estúdio. Os módulos quase são gente que ela fotografa com sua teleobjetiva procurando as melhores poses, as melhores luzes. João Castilho neste trabalho sempre provoca um mistério e consegue fotografá-lo. Suas imagens são diáfanas, eletrizantes, capturam os módulos em movimento e em repouso, mas sempre cercados por um clima de fantasia. Para Paulo Sérgio, o espaço é o mundo. Os módulos são quase detalhes. Ele tenta, em vão, parecer isento, repórter fotográfico, mas a pureza de suas fotos, a beleza de suas imagens acabam por revelar a intimidade do homem atrás da câmera. Pedro David conta a história da chegada dos módulos em sua casa, a harmoniosa convivência com os gatinhos e chega às definitivas imagens heróicas, onde homem e módulos unem sua força num espaço de luz e cor. Observações Em cada conjunto de fotos, tem-se a impressão de que os acontecimentos se sucederam por associação, por acaso e por determinação racional, existindo sempre um significado que, embora implícito, algumas vezes foi mencionado. Alexandre comenta as relações miméticas de seus módulos com o espaço citando um verso de Chico Science: “Eu vou fazer uma embolada, um samba 159

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com maracatu, tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu, pra gente sair da lama e enfrentar os urubus”. Já, Rosa Maria, quando quis pôr títulos em suas fotos, acabou fazendo um poema: “Uma parte, outra parte. Faço um cubo. Ensaio uma porta, escoro livros, lembro origami. Abro um livro, tento o equilíbrio. Coloco um retrato, brinco no balanço, fecho o quadro. Faço uma casinha, uma forma abstrata, brinquedo diferente. Vou montando, desmontando, brincando. Faço um telhado. Volto ao cubo. Uma parte, outra parte...” Esses dois fotógrafos, literalmente, se referem às suas participações como uma brincadeira. Os outros não se manifestaram por palavras, mostram sua atuação lúdica através das imagens colhidas. O conjunto de fotos de cada um tem uma característica pessoal, peculiar, que pode ser vista nos arranjos dos módulos, nos espaços apropriados, nos ângulos escolhidos e nas cores captadas. São autores independentes que, através dos módulos, dão seu recado particular em um trabalho coletivo. Conclusão As imagens obtidas pelos fotógrafos/participantes, além de trem sido um comprovante da proposição enunciada em nosso trabalho de conclusão do Curso de Pós Graduação em Poéticas Visuais, da Escola Guignard - UEMG, foram apresentadas a um grande público. Por ocasião da exposição intitulada “Pós”, realizada na Galeria da Escola Guignard, entre os dias 24 de junho e 04 de julho de 2003, foi armada uma situação/espaço cujo objetivo foi o de provocar o espectador anônimo, estabelecendo um ambiente propício para o seu envolvimento no ato de criar. Em uma das paredes da galeria foram fixados dois painéis de chapa de alumínio, onde foram montadas 18 fotos que registravam a interatividade dos seis fotógrafos com os módulos lineares e os espaços instituídos. Além disso, ficaram à disposição do público 12 módulos de alumínio, medindo 25 cm de aresta, colocados em frente aos painéis. A partir do manuseio dos módulos puderam ser executadas, pelos espectadores/participantes, inúmeras montagens espontâneas. As peças metálicas serviram de brincadeira para as crianças, de elementos em performances individuais e de material de montagens coletivas, que mostraram o poder de interatividade da proposição. Novas fotos foram feitas por outros fotógrafos que estavam presentes e que registraram os acontecimentos. Assim, em um outro conjunto de fotos, ficaram documentadas não só as formas inusitadas de arranjos modulaRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Foto Rosa Maria

Foto Alexandre Paulino

res feitos pelo público mas, sobretudo, diversos comportamentos interativos. Visando dar continuidade à nossa pesquisa estão sendo identificados novos públicos e criadas proposições interativas adequadas, utilizando-se para tanto os módulos em várias dimensões e materiais, desde mínimos para serem manipulados em cima de mesas até grandes formatos, capazes de fazerem presença em espaços públicos.

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NOTAS 1

SALZSTEIN, Sônia. Franz Weissmann. São Paulo: Cosac&Naify, 2001. (Coleção Espaços da Arte Brasileira). p.10.

“...o não objeto não se esgota nas referências de uso e sentido porque não se insere na condição do útil e da designação verbal”. (GULLAR, 1998:294) 2

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Gisela Eugênia de Castro. Arte e Espaço na Contemporaneidade: Considerações sobre as possibilidades de exploração do espaço. BeloHorizonte: 2001. Monografia(Pós Graduação em Artes Plásticas e Contemporaneidade) - Escola Guignard - UEMG. BASBAUM, Ricardo. De fuera hacia adentro/de dentro hacia fuera. Lapiz n.134-135 . in http://www.itaucultural.org.br /index.cfm?cd_pagina=162. BATCHELOR, David. Minimalismo. São Paulo: Cosac & Naify,1999. 80 p. BARTHES, Roland. A Morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70. 1987. p. 49 – 53. BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte, 1985. 119 p. CALDAS JR., Waltércio. Manual da ciência popular.Rio de Janeiro:Funarte, 1982. CASA NOVA, Vera. O Corpo em Movimento: Lygia Clark e Hélio Oiticica (por uma teoria da leitura na arte contemporânea). In: Texturas: ensaios. Belo Horizonte:Faculdade de Letras da UFMG. Puc Minas, 2002. CASTRO, Amilcar et al. Manifesto Neo Concreto. Jornal do Brasil, Rio de

Janeiro, 1959. Suplemento Dominical.

________. Amílcar de Castro. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio

Oiticica:CCBB: 1999.

CLARK, Lygia; OITICICA, Hélio. Cartas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. 259 p. FAVARETT0, Celso Fernando. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp- Editora da Universidade de São Paulo, 1992. 234 p. FONTOURA, Ivens. De.composição da forma. Curitiba: Itaipu, 1982. 199 p. GULLAR, Ferreira. Etapas da arte contemporânea: do cubismo a arte Neoconcreta, Rio de Janeiro: editora Revan. 1998.301 p. JUNQUEIRA, Fernanda. Sobre o conceito de instalação. Revista Gávea, Rio de Janeiro: n.14, p.551-569. KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Revista Gávea, Rio de Janeiro: n.1, p.88-94, set.1997. ________. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2001.365 p. MILLIET, Maria Alice.Lygia Clark: obra-trajeto. 1.ed.São Paulo: Edusp,- Editora da Universidade de São Paulo1992. 203p. SALZSTEIN, Sônia. Franz Weissmann. São Paulo: Cosac&Naify, 2001.127p. (Coleção Espaços da Arte Brasileira) TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac& Naify Edições,2001. 159 p.

Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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“- Toda fabriquinha me atrai, seja ela de metal ou de vidro; qualquer material me atrai; o trabalho manual me atrai, e vou dizer assim, tudo aquilo que a gente faz com as mãos”. Mira Schendel 1

Juliana Mafra

Desenhos Juliana e Erika

(este trabalho foi desenvolmento em coloraboração com Erika Machado)

Fabriquinha é o nome dado a uma instituição que fundamos (eu e érika) em 1999, a fim de realizar alguns de nossos sonhos e questionar o papel da arte e de outras coisinhas. Resolvemos fazer as nossas próprias moedas para tentar trocá-las por bens, serviços e outros tipos de moedas. A estas moedinhas que fabricamos, demos o nome de Fabriquetas. São feitas de durepoxi e tinta acrílica, materiais muito valiosos para a fabriquinha. As nossas jóias (broches, brincos e colares), as nossas bonecas, os pixos e outros objetos também são feitos com durepoxi. Ah! Também usamos muito como acabamento. Fica ótimo! Ele é realmente muito útil para a Fabriquinha, pois com ele conseguimos resultados impressionantes. Todas as fabriquetas têm a nossa logomarca na frente e o número de ordem de fabricação (1, 2, 3, 4, 5...) no verso, com cores variadas. A nossa primeira moedinha tem valor sentimental, é de estimação, como a do Tio Patinhas, que trabalhando em vários ramos, adquiriu sua fortuna. Chamamos de moedinha nº 1, é a nossa primeira fabriqueta 2 (F$). Em agosto de 2002, numa exposição coletiva na Galeria da Cemig, mostramos a réplica dessa primeira moedinha da Fabriquinha. Depois da moedinha nº 1 resolvemos fabricar mais 49 moedas e sair por aí para trocá-las e para investigar o seu valor. De um modo geral, fabricar as próprias moedas é muito lucrativo. Muito mesmo. Com a troca das moedas vivemos diversas experiências em lugares também diversos. Agora possuímos alguns objetos que conseguimos com as trocas: um isqueiro, uma pintura, uma revista, catálogos de arte, uma bola, uma manivela etc. Conseguimos também alguns serviços: corte de cabelo, transporte, escaneamento de imagens, gravação, além do registro fotográfico que fizemos 163

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de cada situação... O que conseguimos nas trocas é muito importante pra gente, pois são testemunhos de um dos valores de cada fabriqueta. Contamos aqui o destino de cada moeda: Moedinhas nº 2, 3 e 4 Para a primeira compra com as nossas próprias moedas, escolhemos a elegantíssima galeria de arte Celma Albuquerque. Apresentamos nossa proposta para a proprietária de mesmo nome oferecendo a ela a nossa moeda em troca de um serviço, um dinheiro ou um produto. Ela nos atendeu em sua sala e pudemos mostrar a ela um pouquinho do que é a fabriquinha. Ela se interessou em ficar com a nossa moeda e queria nos dar alguns catálogos que são comercializados lá a R$ 5,00 cada. Achamos que iríamos gastar apenas 1 moedinha naquele estabelecimento em troca dos 4 catálogos que escolhemos, mas a senhora, cheia dos conhecimentos de uma boa comerciante, quis ficar com 3 fabriquetas, uma de cada cor. Para compensar um pouco o desfalque que a Celma nos deu, ela mesma sugeriu que pegássemos mais 6 catálogos, inclusive algum que fosse mais grosso. Ao todo, fomos embora com 10 catálogos. Enquanto conversávamos em sua sala, ela também disse que colocaria as suas moedas enfeitando em cima da sua mesa de trabalho e que seria bom pra gente, pois lá é um lugar freqüentado por muitas pessoas. O dinheiro é assim, a gente gasta sem ver, mas o importante é que ela se interessou pelas nossas fabriquetas e gostou tanto que quis ficar com três. Ficamos felizes, mas com a impressão de ter gastado muito, pois a senhora tão elegante, em seu estabelecimento tão luxuoso nos deixou com a impressão que poderia dar mais pelas nossas fabriquetas. Da próxima vez vamos tentar economizar mais. Moedinha nº 5 Até agora esta moedinha não foi trocada. Mas ela está reservada para a nossa querida Piti. Escolhemos esta para a troca achando ser o lilás a sua cor preferida. Estávamos enganadas, ela disse que gosta de todas as cores. Já está tudo combinado: pedimos que ela nos hospedasse em sua casa por uma noite e ela aceitou. Disse que já tem as caminhas pra gente dormir, só falta tirar os libros que estão lá em cima descansando. Esperamos ansiosamente esta troca tão super legal. Moedinha nº 6 Resolvemos testar então a nossa moeda em outra Galeria, que é o local feito para se guardar, vender, mostrar e principalmente lucrar com as obras de arte. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Quisemos trocar uma moeda nesta galeria. Marcamos uma hora com o Léo Bahia e fomos lá no dia e na hora marcada. Fomos muito bem recebidas e aproveitamos a oportunidade para mostrar nosso porta-fólio para ele, que viu tudo com muita atenção. Léo nos deu na troca de nossa moedinha uma linda revista, com uma matéria grande falando da exposição, que iria acontecer em São Paulo, do Hélio, COSMOCOCA. Ele nos mostrou esta revista e ficamos doidas para comprar. Não foi bem como a gente esperava, pois fomos novamente na esperança de voltar com alguns Reais na troca da moeda, e voltamos com um produto. Mas desta vez com certeza voltamos felizes, porque é muito bom quando alguém vê o nosso trabalho com atenção, e nós gostamos de comprar a revista. Léo disse que guardaria a fabriqueta em uma caixinha de veludo. Moedinha nº 7 Há na Savassi uma loja muito legal que se chama Gujoreba. Lá, já compramos muitos objetos para a fabriquinha: copos, talheres, pratos, saboneteiras, enfeites etc... É uma loja muito atraente, onde sempre encontramos produtos muito bons para gente. No dia 6 de março fomos até lá fazer uma comprinha com as nossas moedas. Enchemos uma cesta com alguns produtos e seus respectivos valores: 1 trombeta plástica de R$ 4,99; 1 joaninha de pelúcia de R$ 19,99; 1 caneca térmica de R$ 7,99; 2 bolsinhas de R$ 4,99; 1 corretivo em formato de coração de R$ 1,99; 1 saladeira vermelha de R$ 6,99. Tudo totalizou uma quantia de R$ 56,92 (cinqüenta e seis reais e noventa e dois centavos). Infelizmente, a vendedora recusou a fabriqueta n° 7 como pagamento e tivemos que devolver tudo às prateleiras, pois não tínhamos como pagar de outra forma pelos produtos que desejávamos. Moedinha nº 8 Pedro é um menino muito bonito e esperto. Ele é um primo que todo mundo gostaria de ter. Ele se interessou pelas fabriquetas e propôs uma troca por uma manivela de soltar papagaio e também por uma bola de basquete que, quando ele soube que participaria da exposição, tratou de fazer mais uns desenhos sobre ela. A fabriqueta, ele guardou dentro do seu armário. Moedinha nº 9 Chegamos na casa do nosso amigo João, que faz umas pinturas tão bonitas e tem um trabalho muito interessante e propomos uma troca, trabalho por trabalho, porque gostamos muito dos dele. João já havia separado uma 165

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pintura pra gente. Ele a avaliou em R$ 80,00. Até então a moedinha não tinha chegado a um valor tão alto. Ele também nos mostrou outros trabalhos que estavam em sua casa. E depois disto, fomos embora muito felizes e satisfeitas pensando ter feito uma boa troca. Moedinha nº 10 Estávamos precisando passar umas músicas gravadas em um MD para um cd. O Celso, um garoto muito tecnológico, possuía em sua casa, o equipamento necessário para fazer isto, além de ter também os conhecimentos requeridos para essa façanha. Encontramos com ele em uma festa e marcamos de encontrar dois dias depois, na parte da manhã, 9:00h em sua casa. Chegando lá, ele fez os procedimentos necessários e quando foi mais ou menos 11h o disco já estava pronto. Depois, ele nos passou um programa para cortar os começos e os finais das músicas, acrescentar uns segundos também ... Moedinha nº 11 Fomos a uma loja de balas no bairro Floresta, próximo à antiga sede da fabriquinha. Lá encontramos outros tipos de dinheiro: moedas de R$ 1,00 de chocolate e réplicas das notas de papel com uma inscrição: sem valor. Ao propormos uma troca, o dono da loja disse: - O que eu vou fazer com a moeda de vocês? - O que você quiser. Respondemos alegres. - Não quero. Então fizemos algumas fotos, conversamos com algumas vendedoras do local que nos disseram que de bobas nós não tínhamos nada. Respondemos que só tínhamos a cara e elas disseram que nem isso. Moedinha nº 12 Assim adquirimos a Salvação: Estávamos vindo de uma grande seca. Já o nosso amigo Fabrício vinha de Viçosa com uma plantinha bem verdinha, que não estava nada seca. Neste dia demos o nome para essa plantinha de Salvação. A Salvação era de todo mundo e todo mundo ficava feliz. Moedinha nº 13 Nesse mesmo dia tentamos pagar o ônibus da volta, com as fabriquetas. Cada passagem custava R$ 1,00. O trocador falou pra gente conversar com o motorista que logo disse: - Não, porque essa moeda não tem valor. Já o trocador do ônibus demonstrou algum interesse pelo trabalho, mas a troca não rolou. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Pelo menos fizemos umas fotos legais. Moedinha nº 14 Ainda nesse dia, fomos algumas vezes ao supermercado Rafael tentar comprar algum produto. Ao encontrarmos o Ricardo, o proprietário do estabelecimento, trocamos a moedinha por um biscoito recheado de chocolate. (Melhor do que a sua 1ª opção que foi uma laranja!). Desta vez também foi muito divertido e fácil a negociação. Fizemos algumas fotos e depois o dono do supermercado pegou a moeda para si. As meninas não queriam sair na foto, mas toparam colaborar com o incentivo do Ricardo que falou que estas fotos poderiam ir para a Rede Globo. Dias depois fomos informadas que a vendedora do caixa foi conversar com o Ricardo pedindo a moedinha para ela. Moedinha nº 15 Vamos contar aqui a história de uma troca muito triste que aconteceu em um sebo na Savassi. Entramos lá felizes e sorridentes apreciando as maravilhas que entulhavam aquele local: livros, discos, discos, livros... Conversamos com um sujeito que estava atrás do balcão e dizia ser o proprietário. Contamos a ele o que fazíamos ali em pé na sua frente e perguntamos o que ele poderia nos dar em troca. Ele nos respondeu que não queria trocar nada, e a gente continuou falando, pois ele não devia estar entendendo muito bem a nossa proposta. Pedimos para fotografar a sua loja, e ele então fechou a cara mais ainda e disse que não e que não estava gostando nada daquilo. Então fomos embora chateadas e sem foto. Moedinha nº 16 Tem gente que é muito esperta, e nós não podemos ficar para trás. Tentamos trocar nossa valiosa moeda com um homem que vendia frutas no sinal. Ele tinha pinha e também caqui. Oferecemos a fabriqueta e ele disse que aceitava, contando que voltássemos o troco, que era, na verdade, o valor integral da fruta. Ele perguntou também o quê que ele ia fazer com ela, e quando respondemos que ele poderia fazer o que quisesse ele falou que a nossa moedinha não encheria a barriga dos filhos dele. O outro vendedor, seu amigo, muito prestativo, nos sugeriu que colocássemos a foto da Xuxa na moeda, pois assim ela faria mais xuxesso. Moedinha nº 17 Estávamos a fim de trocar mais moedinhas e não tínhamos como escanear as moedas que iriam ser trocadas, e não podíamos trocar nenhuma 167

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moeda sem guardar a sua imagem de recordação. Estávamos perto da casa dos nossos amigos Asterack e Renata. Ainda não tínhamos trocado nenhuma moeda com eles. Pensamos então em ligar para eles e ver se eles faziam este serviço pra gente em troca de uma fabriqueta. Eles aceitaram e assim resolvemos o nosso problema do dia. Moedinha nº 18 Floricultura é um lugar muito bonito, florido e cheiroso. A exuberância da natureza em concentração em um só lugar e ainda, à venda. Mas nesse dia, nesse estabelecimento, o que era bonito se transformou em feio, o que era florido se transformou em murcho, o que era cheiroso se transformou em catinga e o que era vivo se transformou em podre, fétido, miserável, e nos ferraram! Não aceitavam as Fabriquetas. Moedinha nº 19 O dia estava terminando, e as últimas trocas não foram assim as mais bacanas. Tivemos desilusões, aborrecimentos. Primeiro no sebo, depois nos fruteiros, e pra terminar na floricultura. Começamos a fazer uma reflexão. O que estava errado? Será que não conseguiríamos nada que prestasse por nossas valiosas fabriquetas? Perguntamos as nós mesmas e uma à outra e aos céus. Céus? Quem sabe não seria este o problema? No meio de tanta confusão, troca moeda, sonhos de consumo, anotações, cálculos, acabamos resolvendo fazer uma pequena doação na igreja mais próxima para resolver esta pendência e ver se as coisas melhoravam. Moedinha nº 20 Fomos conversar com o Gilmar, o cabeleireiro do bairro, tentar algum embelezamento no seu estabelecimento. Ele ofereceu um corte de cabelo, talvez porque a gente só tinha ido lá antes para usar este tipo de serviço. No início ele parecia um pouco desconfiado: o que ele iria fazer com isso? Contamos sobre nossa proposta e ele pensou estar participando de uma gincana, e ainda assim ele aceitou participar, disse que tudo bem. Com o tempo ele foi vendo que não se tratava de uma gincana, então o que seria? Ele começou a perceber alguns valores naquela moeda. Entre uma foto e outra, ele organizava os objetos que estavam na penteadeira, e de vez em quando fazia umas perguntas sobre este trabalho. Foi tudo muito divertido. Diferente de outros dias, de outros cortes. Moedinha nº 21 O Carlan, um menino muito estudioso, tem um trabalho que a gente ambicionava. Ele se chama tão longe, tão perto. Mas infelizmente não conseguimos adquiri-lo, não conseguimos fechar Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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um acordo. Alguns dias depois ele se ofereceu para um serviço de transporte, pois ele tem uma pick up e um transporte é sempre um serviço muito útil. Em pouco tempo já estávamos precisando transportar um trabalho. E o Carlan muito gentilmente fez o carreto de ida e volta em troca de uma bela fabriqueta verde. Moedinha nº 22 Estávamos famintas e cheias de fabriquetas. Na esquina a gente via a lanchonete. Não tivemos dúvidas, fomos lanchar. Lá encontramos um moço muito simpático e atencioso. Ele se chama Eduardo. Ele disse que achava muito interessante essa coisa de arte e quis saber sobre outros trabalhos. Disse que a sua lanchonete era muito freqüentada por artistas do teatro universitário e que ele gostava de poder ajudar artistas em início de carreira. Na hora da escolha do cardápio houve uma timidez, o que seria trocado? Um chips, um refrigerante, um suco? Depois do lanche, fomos embora e resolvemos guardar desse momento, além das fotos, o copinho do suco e o guardanapo do salgado. Moedinha nº 23 Estávamos conversando com o Chico das coisas da arte, em frente ao trabalho que a Laís fazia no centro da cidade. Idéias, opiniões, trabalhos... ele mostrou um creme especial para unhas e cutículas que ele disse que todo mundo tinha que ter um, que era básico. Ele quis saber de fabriquetas, como era, como funcionava. Contamos a ele, e pouco depois o Chico disse que queria fazer uma troca e que tinha algo muito interessante. Então ele abriu a sua bolsa, pegou uma pedra, um pedaço de uma lima e um conezinho que parece um pedacinho de chifre com uma buchinha dentro, e fez uma demonstração do funcionamento do isqueiro. Ele também contou que viu, certa vez, um homem morto em seu caixão, com uma moeda em cada olho. Moedinhas nº 24 e nº 25 Possuímos, cada uma, uma conta corrente no Banco Real. Não gostamos muito de lidar com banco, pois achamos que sempre saímos no prejuízo por guardar o nosso dinheiro lá. Eles cobram taxas para tudo, ficam aplicando o nosso dinheiro, quando ultrapassamos o limite, o que não é muito difícil, eles cobram juros altíssimos e quando a gente deixa algum dinheiro lá por algum tempo ele não rende nada. Mas mesmo assim fomos até lá para tentar guardar as nossas moedas. Confeccionamos um saquinho e ao entrar no banco fomos fazer uma foto entrando no estabelecimento. Imediatamente apareceu uma guarda muito brava que começou a gritar que não poderíamos foto169

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grafar lá dentro. Então saímos para o lado de fora e ao sacar a máquina ela começou a chamar os seguranças pra gente e ela gritava que não podia usar a máquina também do lado de fora. Então achamos melhor ir embora rápido, pois não queríamos criar problemas com essas pessoas estranhas e nada confiáveis. Moedinha nº 26 Entramos na Mc Donalds dispostas a comprar 2 Mc colossos de chocolate. A vendedora achou graça, mas disse que não podia. Hoje damos graças a Deus de não ter trocado aquela moedinha lá, porque ela continua linda e sob o nosso poder, e aquele sorvete, com prazo de validade, já viu quê que ia virar né? Ficamos pensando... Que estória de Mc Lanche Feliz, que nada. Moedinha nº 27 Fomos até a MRV, para realizar o sonho da casa própria. Chegando lá fizemos a proposta da troca da nossa moedinha por um imóvel, podia ser qualquer um, mas a moça começou a rir e não quis fazer a troca. Moedinha nº 28 Ficamos sabendo da exposição do Helio Cosmococa, na revista trocada com o Léo Bahia. Próxima à data da exposição resolvemos ir até a rodoviária para tentar comprar nossas passagens. Lá a moça também não quis aceitar a nossa fabriqueta, e ainda fez cara da brava. E assim vamos trocando nossas moedas, às vezes mais satisfeitas, às vezes menos e sempre querendo ganhar mais... ** Queremos ter o nosso próprio museu, a nossa própria moeda, nossa própria moda, fazer nossas canções, nossas bonecas, dar os nossos autógrafos...

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Fotos Juliana e Erika

NOTAS 1 Salzstein, Sônia – No vazio do mundo – Mira Schendel, São Paulo: Sesi, 1996. p2 2 Esta moedinha nunca será exposta, devido ao seu valor. Mas mostramos a sua réplica perfeita, para que todos possam conhecer a moedinha nº 1 da fabriquinha.


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f贸lio, ano 1 n煤mero 1, dezembro 2003


Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

Fotos Juliana e Erika

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DO SUDÁRIO AO OSSUÁRIO Miguel Gontijo

Em junho de 1965 o governo fechava o acordo MEC-Usaid, que propunha transformar a universidade estatal em fundação privada. Entre os estudantes, o clima era de indignação. Na primeira quinzena de março de 66, uma passeata em Belo Horizonte foi reprimida pela polícia, que invadiu a Igreja de São José em busca dos estudantes que lá se haviam refugiado. O palco está armado. Entra-se em cena o ator. Quando criança tive uma ligação muito estreita com a música. Na verdade onde nasci, especialmente minha casa, tudo era sonoro, tudo era verbal. Muitas palavras, livros, muitas revistas e instrumentos musicais. Nada que me induzisse as artes plásticas. As imagens chegavam pelas revistas. Parcas, distorcidas. Coisa para o gasto da meninice. Completamente alienado ao que se passava no mundo, em 1965, dando prosseguimento aos meus estudos secundários, mudei-me para Belo Horizonte. Neste mesmo ano, dirigia com a caixa de flauta para Conservatório Mineiro de Música, quando fui empurrado por uma multidão para dentro da Igreja São José. Estávamos presos. O que acontecia no país era problema “dos outros”, pois no meu mundo pequeno burguês, apenas o supérfluo me atraia. Neste meu mundo não havia distinção entre o marginal social do marginal político. E, neste momento, eu não passava de um vulgar meliante. “Gregor Samsa despertou, depois de uma noite mal dormida, achou-se em sua cama transformado em um monstruoso inseto.” 1

A vida se impunha voluntariosa. Na prisão era aviltado com fotografias insistentes do meu rosto. O flash, lambendo minha carne, roubando meu semblante, envergonhando meu espírito, estampando no meu rosto de menino a mítica máscara velha do teatro grego. Privado das roupas e do sono permaneci preso por dois dias, para me inventar, para reelabora-me, para compor uma história, cujos personagens não eram meus, cujos destinos eram o agora. As digitais eram retiradas, várias vezes por dia, como se fosse um sagrado ritual. As mãos lambuzadas, para se verem livre das tintas, repetiam o milenar gesto das cavernas, imprimindo, nas paredes da cela, possíveis marcas do meu destino. Eu não era ninguém! Nem para mim, nem para a Polícia Federal. Não me foi difícil aceitar minha insignificância, mas para a polícia eu não podia ser apenas um estudante indo para uma aula de música. Ficava a procurar, na lâmpada insistente que balançava sobre minha cabeça, um significado para 173

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minha recente vida. Tinha pressa e medo. Afinal, não tinha convicção política. Era o contrário do portador de um segredo, pois o segredo é que me carregava, como se eu fosse um pacote. Fui posto na rua. Descartado. Abandonaram-me como se nada tivesse acontecido. Ninguém sentira minha falta. Meus pais e familiares, no interior, jamais imaginariam cenas dantescas para nós. Tinha vivenciado apenas um parêntese de minha vida. Dias vírgulas. Se antes era um jovem alienado e em estado de pureza, agora a alienação vestia a cara do medo e da fuga. Fechei minhas possibilidades à cata do nada. Quando se encara o vazio, o vazio também nos mira. Vivenciei-o, procurando sentido nas coisas.

Observando em retrospectiva, 35 anos de que me envolvi com as Artes Plásticas, alguns elementos afloram como símbolos recorrentes e persistentes no meu trabalho. Sejam símbolos: de conotação estética: lâmpada de Picasso em forma de flash; - de conotação social: impressão digital; - de conotação religiosa: resplendores; - ou de conotação emocional: pacotes e embrulhos; é que se pretende estabelecer ligações entre arte e o meu processo dinâmico da vida. Para C.G.Jung3 os símbolos recorrentes estão dotados de uma significação intrínseca e constante. Algo comprometido com a vivência e experiências traumáticas, ou seu oposto, as experiências prazerosas. Não será, então, a “lâmpada de Picasso” um flash-back nas salas de interrogatórios policiais? Os “pacotes e embrulhos” não serão os sentimentos dentro de uma cela, à cata de um conteúdo que os justifiquem? Os “resplendores” não serão os vestígios da fé, única capaz de me proteger e diferenciar nos momentos de total abandono? As “impressões digitais” não serão as afirmações do eu, do ser que quer se impor? Ou do primitivo homem preso numa eterna caverna? Não será que existe uma incestuosa e estreita afinidade e cumplicidade nas mãos sujas de tintas e a opção pintura? Mas, é em busca de um rosto que estes símbolos tornam-se vulneráveis e se desnudam em significados e significâncias. Este trabalho pretende, a partir de um “único mundo” - o eu, o auto-retrato - buscar do rosto gravado na tela a face mascarada do artista. Talvez o mesmo retrato, enumerado, datado, insistentemente repetido numa delegacia policial, que denuncia e autentica um momento que jamais poderá silenciar em minha vida. Numa outra época, vivenciei e disse ser ‘o contrário do portador de um segredo, pois o segredo é que me carregava, como se eu fosse um pacote.’ Ao longo da maior parte de Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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“À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? Que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.”2


minha vida tento abrir este pacote, sabendo que talvez encontre lá dentro apenas o semblante de Dorian Gray; talvez o vulgar espelho da madrasta da Bela Adormecida; ou o lenço oferecido a Verônica, estampado de barbaridades e cerzido pelas emendas do tempo; ou talvez não encontre nada. Apenas o vazio a me espiar. “e depois de tanta dor e tanta angústia, pensar ter dado a luz a algo vivo e levantar-se apenas como poema.” 4

Quando tentamos ler uma pintura ela pode nos parecer perdida em um abismo de incompreensão ou, num vasto abismo que é uma terra de mingúem, feito de interpretações múltiplas. Cada obra de arte se expande, mediante incontáveis camadas de leituras e cada leitor remove essas camadas, a fim de ter acesso à obra nos termos da própria leitura. Nessa última (e primeira) leitura nós estamos sós. E é aí também que se encontra o artista ao se retratar. Ser capaz (e ter disposição) de se ler e transformar esta leitura em obra de arte é crucial. Em 1945, o filósofo José Ortega Y Gasset, num texto clássico, sustentou que uma obra só vem a ser arte quando não é de carne e osso. “...a condição indispensável é que não vejamos o retratado em pessoa, autêntico e vivo, mas que, no seu lugar vejamos um retrato, uma imagem irreal, uma ficção.”4 Para o filosofo, o confronto com a fonte, com o ser real, invalida a contemplação ou a leitura da obra de arte. Nos auto-retratos que fiz ao longo de minha carreira, a recriação subvertida suplanta o original formal. Depois da versão, o original deixa de existir. A versão se torna original. Ao retrato convencional foi anexado o comentário conceitual. Os escribas medievais rodeavam o texto principal com rabiscos que, de modo indireto, transformavam o tema por meio de alusões, insinuações, símbolos parcialmente sugeridos. Se - como sugeriu Ortega y Gasset - devemos ignorar deliberadamente os modelos originais, o espectador que não conhece o mundo interior do escriba ou pintor, pode ler esse rabiscos, essas garatujas, essas anotações, esse símbolos? “_ Pode me dizer, por favor, qual é o caminho para sair daqui? Pergunta Alice. _ Isso depende muito do lugar para onde você quer ir, disse o gato.”5

ATRAVÉS DO ESPELHO Ao abaixar-se para saciar a sede, Narciso, seduzido pela própria beleza, apaixona-se por si mesmo. Indiferente ao mundo, inclina-se sobre sua imagem e deixa-se morrer. Se Narciso se deixa abater pelo seu próprio encanto, a Esfinge, monstro com rosto e busto de mulher, corpo de leão, cauda de dragão e asas, é fadada a viver presa em uma rocha, propondo enigmas aos passantes, sob a pena de devorá-los se não os decifrasse. Porém, quando os enigmas são 175

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decifrados a Esfinge ilumina a ponto de seu semblante tornar-se a cópia fiel do interlocutor. Transformada em retrato de quem a mirava, o suplicante conhecedor, agora, de sua própria face - engrandecia de conhecimentos e sabedoria. Se a Esfinge é símbolo da devassidão e da dominação perversa, onde todos os atributos são indícios de vulgarização quando vencedora; quando vencida, e sob sua face de monstro é estampada a face do oponente, propicia o início de um destino, mostrando a face reconhecida do vitorioso. Se para Narciso o reconhecimento estético foi à causa de sua morte, para a Esfinge o conhecimento intelectual é a fonte de vida para a beleza estética. Nasce daí a noção neoplatônica das duas faces da alma, que teria um lado inferior, voltado para o corpo e um lado superior, voltado para a inteligência. Não seria o auto-retrato uma forma de lapidação do espelho da alma, polida pela ascese? Não seria a procura de uma forma materialmente inexistente? Em Hebraico, a palavra face - panim - é sempre empregada no plural, pois a face do homem designa seu rosto, sobre o qual se inscrevem seus pensamentos e sentimentos. A face de Deus corresponde a sua essência, e por isso é impossível contemplá-la. Se o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, onde estará a face “invisível” de Deus? Qual a tenebrosa verdade da “face oculta” que ao contemplá-la perdemos o direito à vida? A fútil narcísica? A densa esfíngica? A face é o símbolo do próprio ser de Deus ou de uma pessoa humana, da qual ela é manifestação? Criar não é também reivindicar uma parte de imortalidade?

“Os retratos nos quais acreditamos são aqueles onde existe pouca presença do modelo e muito do artista” 1, comenta Oscar Wilde. “O artista se escolhe procurando um “tipo” que o habita”, reflete Paul Klee2 no seu “Diário”. “Madame Bovary, sou eu”3 dizia também Flaubert. “Escreve com teu sangue”, confessa ainda Nietzsche “e verás que o sangue é espírito”4. Desta “duplicidade”, corpo metafórico, receptáculo aberto aos fantasmas, o artista faz o seu leitmotiv onipresente, o centro da iconografia ocidental. Ele o veste ou o despe à sua vontade, multiplicandoRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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POR TRÁS DO ESPELHO - (Histórico)


lhe as aparências e a ele regressa continuamente, aplicando-lhe todas as encenações, todos os artifícios, todas as referências que pode encontrar. Chega mesmo, a ponto de lhe arrancar a pele, para melhor conhecer os seus músculos, remove-lhe os músculos, para melhor conhecer o seu esqueleto. Ninguém questiona a capacidade de um auto-retrato de Rembrandt, para transmitir a angústia de um velho artista, ante a proximidade da morte, ou a força de um daqueles de van Gogh, para expressar o tormento de um artista isolado e incompreendido. Kahlo, pinta seus próprios estados psíquicos, de uma forma ostentosa (e às vezes irreverente), e sua obra é considerada excessivamente pessoal e auto- referente. No caso dos auto-retratos de Egon Schielle a subversão revela o quanto o ato de aperceber o corpo poder ser violento. Sob a série de seus retratos nus, escreveu Eric Valentin: “... o corpo vê a si mesmo e se contempla agindo. Sai de si mesmo para entrar mais profundamente em si. O retrato de Schiele, desdobrando, entrega-se a um êxtase desconhecido dos místicos da tradição judaico-cristã.” 5

Na noite de dezembro de 1888 van Gogh corta sua orelha e a remete para uma prostituta e pinta um novo auto-retrato. Executa-o com a orelha cortada e semblante estranhamente sereno. Será que ele cortou a orelha, a fim de poder transpor simbolicamente a ferida do seu corpo para uma tela? Se seu desejo era transpor simbolicamente sua ferida para a tela, o ato teria tido um sentido predeterminado. Não foi mais propriamente a afirmação de um vazio de sentido que ele tentou, até o desvario, representar? Representar-se no “vazio de sentido” não é uma sandice, quando o desconhecido se dá para a representação ilusionista do vazio. “O vazio tudo pode.”6 É neste sentido, que o retrato, que parece confirmar ou representar o seu tema, também pode subvertê-lo. Por exemplo, pode usurpar a realidade do tema, substituindo a autoridade real de carne e osso por um fantasma de tinta e madeira, e depois conferindo preeminência ao símbolo, não como símbolo, mas como realidade. Um dos elementos essenciais da auto-representação é o espelho. O artista e o seu duplo. Dürer e Rembrandt - para citar apenas dois dos mais importantes no campo do auto-retrato - usaram-no servindo-se da representa177

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ção da sua própria imagem para autobiografias ou constatações existenciais. A experiência do eu vem sempre de um desdobramento, na medida que o sujeito é o objeto, simultaneamente. Henri Toulouse Lautrec comentou este tema de uma maneira muito diferente, numa fotomontagem de Maurice Guibert, que tem o título “Monsieur Toulouse pinta Monsieur Lautrec-Monfa” (1890), e que mostra o desdobramento da pessoa na cisão entre o pintor e o aristocrata, que lhe serve de modelo. Na história dos auto-retratos é certo que Caravaggio se pinta como Golias decapitado por David, com a sua cabeça de medusa a brotar serpentes. Buonarotti escolhe, para inscrever no teto da Capela Sistina, a pele ofegante de São Bartolomeu. Gauguin é o Cristo nos Jardins de Oliveiras e Rafael faz parte da assembléia de filósofos e pensadores da Escola de Atenas, no Vaticano. Nestes casos tratam-se de disfarces de papéis de atores, de reflexos, fantasmas. Paul Eluard tenta uma explicação: “quando fazem seus retratos, observam-se num espelho, sem refletirem que eles próprios são também um espelho”7 DENTRO DO ESPELHO - (Arte Contemporânea) Há 40 anos os filósofos já teriam pronunciado sua sentença de morte teórica ao destruir o fundamento de sua pretensão, a concepção do sujeito mestre e proprietário de seus pensamentos. Era a época em que os artistas pop, com seus retratos “stars” ou suas latas de sopa em série, destruíram o privilégio da obra única. Depois vieram: a arte das instalações, em que o artista geralmente se contenta em redispor objetos de uso e imagens já existentes; a pratica dos DJ mixando elementos sonoros tomados de composições existentes, a ponto de torná-las impossíveis de reconhecer; e por fim a revolução informática, instaurando a reprodutibilidade sem controle e ilimitada de textos, canções e imagens. Porém, para Jacques Ranciére1, “o autor contemporâneo é mais estritamente proprietário do que jamais o foi qualquer autor”, pois, o autor por excelência é atualmente aquele cuja idéia explora o que lhe pertence como algo próprio, tornando-se o comediante de sua imagem. A arte do comediante tende sempre a um limite que é a transformação do simulacro em realidade. Certamente, é por isso, que a autobiografia adquire tanta importância na arte de nosso tempo. Escritores publicam intermináveis diários de sua vida e de seus pensamentos; fotógrafos privilegiam sua própria imagem, como Cindy Sherman, ou as cenas de intimidade dos amigos, como Nan Goldin; cineastas reduzem seus trabalhos à crônica de sua própria vida, como “O Quarto do Filho” (1997) de Nanni Moretti; “baús” de artistas mortos são revirados à cata de mínimos bilhetes, que melhor os identifiquem. No espectador, há um desejo de intrusão, de violação permitida, de voyerismo. No artista, acirra o mito da originalidade artística, associadas à ilusão do autor proprietário. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Da evisceração de um cadáver para fazer uma múmia ao lifting, que permite devolver à superfície da pele um ar de juventude, não só a conservação estética aparece como uma preocupação humana comum. Nunca, como em nossos dias, o corpo foi tão interrogado, vasculhado, interpretado e, ao mesmo tempo, tratado como a derradeira fronteira a ser desvendado, o último mistério a ser decifrado - o grande enigma. Para o sociólogo Henri-Pierre Jeudy2 o corpo como objeto de arte, nos dias de hoje, não deixa de ser uma aposta dupla: na deliberação de sua morte e na sua imortalidade. A morte, segundo Barthes3 está no cerne dos retratos. O retrato em si só, que parece ser um santuário de vaidades, constrói para ele um sudário e um ossuário, pois os auto-retratos representam a própria “encarnação do caos”, acrescentando ao autor um sentido mais profundo. Essas representações “fazem de cada forma noturna um espelho ameaçador do enigma insolúvel que o ser mortal vislumbra diante de si mesmo.”4 Os auto-retratos presentificam as incansáveis interrogações da humanidade: quem sou eu, de onde vim, para onde vou. A emoção da memória pessoal na Arte Contemporânea são bandeiras de resistência, demarcações de individualidade. Impressões digitais que se contrapõem teimosamente a um panorama de cominação à distância e tecnologia virtual, que tende a gradualmente anular noções de privacidade. Na Arte Contemporânea pode-se detectar a preocupação com valores estruturais do fazer artístico, herdado historicamente das experiências modernistas, como valores de autenticidade, reprodutibilidade, referências e citações, fazendo com que esses aspectos inerentes ao sistema da arte sirvam também de “costura” a comentários sobre a vida e sobre a própria história da arte. Também podemos observar que há, hoje, um jogo entre Identidade X Anonimato implicando uma abordagem política e social, utilizando estratégias de transgressão e estranhamento, por meio de distorção da forma, acúmulos, alteração de imagens e hibridismo de linguagem. Esta tendência se liga ao contexto de perda gradual de privacidade na vida urbana contemporânea. A importância dada à moda, ao mundo das aparências e “atitudes”, aliado a uma tecnologia sofisticada de cirurgias plásticas, implantes, aparelho de ginástica, vitaminas e outras substâncias químicas, além de possibilidades de modificações genéticas que se abrem, faz do corpo um campo de experimentações futurista. As implicações de um interesse da Arte Contemporânea pelas questões do corpo são complexas. O corpo passa a materializar comentários sobre morte, religião, sexo, decadência e espiritualidade, replicando um campo ilimitado de experimentações, muitas vezes, catárticas e autobiográficas. O artista se desnuda e oferece ao espectador com a cumplicidade e a intimidade de quem abre um diário. O que designamos comumente como cirurgia estética não é senão um meio de descobrir seu “outro”? Ou a preocupação maior é tornar-se radicalmente outro? Cada auto-retrato não é mais do que o vestígio deixado pelo desapare179

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cimento de todo o resto. Dentro desta lógica perversa, o aspecto também se faz necessário para que o trato não seja apenas o toque de Narciso, mas sim a Caixa de Pandora que abre e fecha matando a singularidade do artista. Para Foucault5, o que interessa é a alteridade - selbstentfremdung - secreta do retrato, e melhor do que ir procurar a identidade por trás das aparências, é antes preciso detectar essa alteridade, ou seja, por trás da identidade, fazer surgir a máscara, a figura do que o assombra e o desvia de sua identidade - a divindade mascarada que habita cada um de nós, mesmo o mais insignificante, por um momento, um dia ou outro. Ao se retratar o artista joga com sua realidade objetiva (a aparência), propondo analisar suas aspirações mais profundas e densas. Se simulacro é um jogo com a realidade, o auto-retrato são simulacros que esboçam uma carcaça toda de fluxos e conexões de superfície, que dá a si própria como conteúdo uma cultura tradicional da profundidade. O artista ao se retratar, “seu rosto se fecha e se cobre com uma máscara, onde nada é humano para além dos rostos grafados, que são as únicas janelas abertas num caos de aparência estranha e hostil.”6 Kátia Canton7 diz que, “dentro do universo de imagens humanas, o auto-retrato se estabelece como um subgênero repleto de peculiaridades.” Nele, o artista se retrata e se expressa, numa tentativa de leitura e transmissão de suas características físicas e de sua interioridade emocional. Ali também, na maneira como utiliza cores e pincelas, no modo como desenha suas próprias formas e lhes atribui volumes, o artista constrói seus próprios comentários sobre a arte. O auto-retrato é o espelho do artista, assim como a imagem da arte e de um determinado contexto em que a obra se inscreve. Os auto-retratos que percorrem meu trabalho estruturam-se através (e como) citações e reapropriações, numa ironia fóssil de uma cultura que não acredita mais nesses valores. E é preciso, efetivamente, reconhecer que as artes trabalham com o resíduo, como o resto, com o nada. Shopenhauer e Nietzsche foram os primeiros a ensinar a profunda significação do nenhum sentido da vida, e mostrar como se podiam transformar isto em arte. O vazio terrível que descobriram é a verdadeira beleza, imperturbada e despida da alma, da matéria. Wahrol, referindo-se aos seus auto-retratos, diz: “mais superficiais que eu mesmo, você morre”8, alimentando aí no ditame de Duchamps, onde “o nada é perfeito porque não se contrapõe a nada”9. Se Wahrol usa em seus autoretratos seu semblante conhecido por toda mídia para aniquilar o homem e em contrapartida o artista, este não é o recurso que posso usar. Meu semblante tem um reconhecimento restrito e, portanto, a obra deve funcionar sem o significado da presença do artista. É apenas um rosto a serviço de um conteúdo específico. O retrato torna-se persona. A pintura deverá existir com ou sem aquele rosto, pois o rosto é superficial na concepção estética formal. Dentro dos meus quadros, minha figura retratada nasce morta, então, mais artificial que as de Wharol. O que tento reforçar são os fetiches (as imagens, os Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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objetos) que deverão ter vida própria. Eles se comunicam entre si, através da força do pensamento, com a rapidez do sonho. Enquanto os signos têm entre si uma relação diferenciada, portanto diferencial, os fetiches seguem uma reação em cadeia imediata, porque são de uma substância mental indiferente. Bacon afirma (e eu endosso) que pinta seu retrato querendo se surpreender e se não conseguir, “que outra razão teria para continuar pintando meu retrato?”10 . Para que se surpreenda torná-se necessário que o faça artificial, pois “quanto mais artificial pintá-lo, maiores serão as possibilidades de se conseguir que ele pareça real.”11 A sociedade primitiva tem suas máscaras, a sociedade burguesa tem seus espelhos, nós temos nossas imagens, vinda através da fotografia. Walter Benjamim afirma que a fotografia é o nosso exorcismo, pois não somos figurantes de nossa própria encenação. “O sujeito não é senão agente da desaparição irônica das coisas.”12 No auto-retrato o artista se anota parte a parte para se formar um todo. Traduz-se pelo avesso e direito. Através dos auto-retratos contemporâneos, o artista procura sua verdadeira integração, sua real identidade, sua particularidade que o faz único, pessoal e particular. “O homem é a soma de pequenas coisas”13, afirmou Jung. E é nesta associação de pequenas coisas que o auto-retrato imagina evitar a irônica desaparição do ser humano da massificada fotografia benjaminiana. Os artistas contemporâneos quando se auto-retratam questionam as aparências e os meios que a pintura oferece para os representar. Sabendo que nenhum modelo vivo corresponderá perfeitamente às suas imagens mentais, o artista não hesita em triturar as anatomias do seu pincel ou da sua tesoura, a torná-las às vezes lisas, vezes rasgadas, alongadas ou grosseiras, fragmentadas ou despedaçadas, indo mesmo a ponto de só manter os bocados que mais lhe convêm, como o fizeram Picasso ou Magritte. O ESPELHO NO ESCURO – (Epílogo) “...se (...) pergunto se tudo está bem, de espelho a espelho, não é por vaidade: estou à procura do rosto que tinha antes do mundo ser criado.”1

Dificilmente identificaríamos, um dia, um artista que conhecemos apenas por intermédio de sua obra. Até onde sua personalidade está “expressa” em seu trabalho? Poderá um quadro ser visto, algum dia, em sua integridade contextual? E se não puder, nossa situação será a mesma da leitura de Samuel Beckett, segundo a qual “não pode existir coisa alguma, senão coisa sem nome, nome algum, senão nomes sem coisas?”2 Falar de auto-retrato contemporâneo é um trabalho inglório. O material é raro e não se sustenta. As manifestações são fugazes. Depois de levantar o material disponível, pude concluir que, em síntese, os autores unem o autoretrato à contemporaneidade através do processo investigativo e da busca do 181

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autoconhecimento. Porém, Giotto quando se pinta diante do Cristo tem o olhar de suplica e de sua boca sai uma voluta com os dizeres: “Merecerei ficar ao seu lado, grande Mestre?” e Dürer retratando-se nu, aponta o baço dizendo ser aí a causa de seus infortúnios. Estes auto-retratos também não são investigativos? Não é um terrível exercício de autoconhecimento o que Rembrandt faz, marcando passo a passo seu envelhecimento? Não é este mesmo processo que Picasso (Erosmemoria), já impotente, ao se retratar debaixo da cama onde Rafael e sua amante Fornarina transam uma busca da vitalidade perdida? Então, a contemporaneidade nos auto-retratos não pode se sustentar apenas no processo investigativo e o autoconhecimento. Estes dados são pertinentes a quase todos os auto-retratos da História da Arte. Warhol, diz, referindo a um de seus auto-retratos: “mais fútil do que eu, não há nada”. 3 Talvez aí esteja a chave. O auto-retrato não investiga o artista nem parte atrás do autoconhecimento. Além do processo investigativo e do autoconhecimento o auto-retrato revela o artista e o mundo que o cerca. O eu e sua inserção. Suponha-se que para a feitura de uma obra o autoconhecimento deverá já estar implícito antes da sua feitura. Ocupada em remodelar fisicamente o próprio rosto, Orlan (artista Plástica francesa) seria, nesse sentido, a artista típica de nosso tempo, primeiro se mutila, depois, se retrata. O autoretrato também funciona como um diário. Um registro de bordo, que carregamos quando viajamos, aqui, pela vida. São anotações, documentos de toda a ordem e espécie. Aí eu me enquadro. Neuroticamente, não quero passar pela vida sem produzir nela algum arranhão. Sei que com a morte, fatalmente seremos esquecidos e para isto já recebemos até a designação bíblica: sal da terra. Não creio na vida após a morte e


não quero ser sal nenhum. Então imagino criar documentos. Lanço garrafas ao mar. Registro tudo imaginando assim me registrar. Pinto como se fosse um funcionário público, um serviçal de cartório. Sou escrivão toda vez que me proponho a criar. Associo coisas simples tentando balbuciar novos símbolos. À medida que associo coisas e fatos pertinentes a mim e ao outro, fica-se mais difícil para que me lancem ao fogo e eu fico a me imaginar eterno. Apelo romântico. Pensando assim, associo-me a Durer, auto-retratando nu, a apontar o baço, que se na Renascença foi o símbolo da melancolia e tempos depois a melancolia torna-se à arma dos românticos. Fantasias. Meu encontro com a contemporaneidade esta no Realismo-Mágico, movimento pós-moderno, de grande força na cultura latino-americana, diferente do Surrealismo e do Hiperealismo, pois seu disfarce é a própria realidade. Não sou um pintor na acepção da palavra. Minhas luzes são erradas, minhas cores são queimadas, meu gesto é inseguro, minha pincela é contida. Mas nada disto são minhas indagações. Estes problemas já estão gastos pelos teóricos e nunca foi objeto de meus estudos. Desenhar quero crer que sei. Nasci assim, problema genético. Meu trabalho é a soma dos dois, para um tampar a incompetência do outro. Minha pintura é um imenso muro babilônico. Minha possível estética reside nesta leitura. Faço vídeo-clips. E nada mais contemporâneo e barroco do que um flamejante vídeo-clips. Se os simplistas acharem que o que faço é simplesmente um exercício narcisista, não tem importância, pois o narcisismo é filho do modernismo e eu sou filho da opera rock Hair, cujo refrão varreu todo o mundo, no final dos anos 60: “Masturbar é bom, tente!” Eu me anoto. Investigo. As telas não se definem como pintura nem como desenhos. Escorços, rascunhos. São sudários que recusam a registrar a sagrada face e se fortalece e reestrutura estampando os ossos. Ossuário. Como a vida jorra suas possibilidades em nosso tempo particular, minhas figuras brotam com a mesma possibilidade e serventia. Não procuro serventia para o que faço nem para a vida, porém ambos se esbarram num mesmo ponto: a inglória batalha para vencer a morte. Os auto-retratos nada mais são do que a procura do meu rosto frente aos despojos de “guerra” que a vida me devolve. Autopsio-me, tal qual um cientista, a investigar víscera e reconhecer em minhas entranhas o inimigo que me devora. Mas, apenas o identifico, nomeando-o, mas torno-me impotente em aniquilá-lo. Todos os meus quadros, ao longo destes 34 anos, são apenas uma única peça. Um trabuco, um AR15, a cata de fantasmas ou de pequenos percevejos injetados de sangue, colados no meu lençol e que não sou eu e não é meu. A experiência de uma obra de arte pode ser, sem dúvida, compreendida, porque é afinal uma experiência humana. Não fico à caça do novo ou ousado nas Artes Plásticas, mas creio que novo e ousado é perseguir um caminho, construindo uma obra, intuindo que existe, sulcando o espaço de tempo que a vida 183

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me reserva, com a tenaz persistência dos fanáticos e a lucidez dos insensatos, acreditando no sonho e, vez por outra, descobrindo que existem possibilidades no caos e no vazio. Ad infinitum. **** “...quando me aproximei da cova que um coveiro de minha cidade estava abrindo, ele me mostrou o crânio luzidio de meu avô. Admirei sua estranha beleza. Lembro de tê-lo tomado em minhas mãos e de ter imaginado por um instante que eu poderia limpá-lo e colocá-lo sobre minha escrivaninha. O crânio de um cadáver não necessita do resto do esqueleto. Impõe sua própria soberania sem sugerir a existência de um corpo inteiro. Hoje, quando revejo antigos familiares, sempre escapa o comentário da minha semelhança física com a do meu avô. E eu me vejo osso e luzidio. Pronto para cumprir minha última missão estética. (fragmento do diário do autor, escrito em 12/11/1971)

NOTAS Por Detrás do Espelho 1 - Citado por: CONNOR. O Homem e seu Espelho,Petrópolis: Vozes,1970.p.49 2 - KLEE, Paul. Diário. São Paulo: Martins Fontes, 199. p. 39. 3 - Citado por: CONNOR. O Homem e seu Espelho,Petrópolis: Vozes,1970.p.46 4 - NIETZSCHE. Fragmentos Finais. Brasília:UnB,2002. p. 46. 5 - VALENTIN Eric. Egon Schielle. Tachem. 1999.p.78 6 - DUCHAMP, Marcel. Citado por: MINK, Janis. Tachem. 2000. p. 37. 7 - ELUARD Paul. Citado por: CONNOR. O Homem e seu Espelho,Petrópolis: Vozes,1970.p.46 Dentro do Espelho 01 - Folha de São Paulo, cad.Mais!, “Autor morto ou artista vivo demais?” 4/4/2003. 02 - JEUDY, Henri-Pierre. O Corpo como Objeto de Arte. Tereza Lourenço (trad.). São Paulo: Estação Liberdade. 2002. 03 - BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel,1980. 04 - Ibidem.p.109. 05 - FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas, Salma Tannus Muchail (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1981. cap.1: As Meninas, p.22 06 - Ibidem.p.26 07 - CANTON, Kátia. Novíssima Arte Brasileira, um guia de tendências. São Paulo: Iluminuras, 2000. p.69-73. 08 - Citado por:GIL José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’água.1997. p. 97. 09 - Ibidem.p.108 10 - BACON, Francis. A Brutalidade dos Fatos. David Sylvester (org.), São Paulo: Cosac & Naify. 1995. p. 143. 11 - Ibidem.p.149 12 - BENJAMIN, Walter. O Surrealismo. Erwin Rosenthal (trad.), Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1983.p.287 13 - Citado por:GIL José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’água.1997. p. 97. O Espelho no Escuro 1 - YEATS, W.B. Grandes Poemas. Paulo Mendes Campos (trad.), in: o Espelho. São Paulo: Melhoramentos. 1958. p.56. 2 - Citado por:GIL José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’água.1997. p. 79. 3 - Ibidem. p. 114. BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA KAFKA, Frans. Metamorfose. São Paulo: Martin Claret, 2002. p.7. LISPECTOR, Clarice. Melhores Contos. In: “É para lá que eu vou”. São Paulo: Global, 2001. p.15 FAUSTINO, Mário. O Homem e sua hora. In: Auto-retrato. São Paulo: Companhia das letras, p. 245 ORTEGA Y GASSET, José. A Desumanisação da Arte, Ricardo Araújo (trad.). São Paulo: Corte, 1990.p.214. CAROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. São Paulo: Cultrix.1982. p. 55. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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ALVOS Sebastião Miguel

Visões

Foto: Robert Mapplethorpe - Reprodução

Not “Revelation” — ‘tis — that waits, But our unfurnished eyes —1 Emily Dickinson

Minha primeira sensação de estranhamento diante de uma obra de arte se deu quando vi a reprodução de uma fotografia. Não me lembro se foi uma amiga que me mostrou, ou se estava olhando distraidamente uma revista, ou lendo um livro. Uma foto p&b ocupava uma área tímida na página. A matéria falava de um artista que havia utilizado dinheiro público, ou estava expondo em uma galeria financiada com verbas do estado2, o artista americano chamado Robert Mapplethorpe. A obra em questão era “Man in Polyester Suit” de 1980. Até aquele momento, com poucas exceções, acreditava na obra de arte apenas como pintura ou algum outro tipo de manifestação dentro dos padrões acadêmicos. Havia terminado a escola de arte por volta de 1985 e as informações eram imprecisas. Mesmo tendo visitado bienais, lido jornais e revistas sobre arte, ainda não havia percebido o que realmente era capaz de provocar uma obra que tivesse qualidades além do fato de ter sido manipulada pelo 185

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artista.

“Comecei por voltar uma pagina, quase no fim do volume. De súbito, apareceu, no ãngulo da página seguinte, uma imagem que dir-se-ia estar ali de propósito para mim, à minha espera. Era uma reprodução do São Sebastião de Guido Reni, que faz parte da colecção do Palazzo Rosso, em Génova. O tronco negro e ligeiramente oblíquo da árvore que servia de poste de execução destacava-se sobre um fundo de sombria floresta e de céu crepuscular, tenebroso e longínquo, ao estilo de Tiziano. Um jovem de extraordinária beleza estava atado ao tronco. Tinha as mãos cruzadas acima da cabeça e as cordas que lhe atavam os pulsos estavam presas à árvore. Não havia mais ligações à vista e a única coisa que cobria a nudez do jovem era um pano branco grosseiro enrolado à cintura. Pareceu-me que o quadro deveria representar o martírio de um cristão. Mas como se tratava de obra feita por um pintor fascinado pela beleza, integrado na escola eclética criada pelo Renascimento, mesmo esta imagem da morte de um santo cristão exalava um forte odor a paganismo. O corpo do jovem — poder-se-ia compará-lo ao de Antínoo, o amante de Adriano, cuja beleza foi tantas vezes imortalizada em escultura — não apresenta o mínimo vestígio de provações de missionário ou da decrepitude visível nas representações de outros santos; pelo contrário, tudo é aí a primavera da juventude, tudo é luz, beleza e prazer. A sua incomparável e alva nudez irradiava sobre um fundo crepuscular. Os braços musculosos, os braços de um guarda pretoriano habituado a retesar o arco e a empunhar a espada, erguiam-se num ângulo gracioso e os punhos atados cruzavam-se exactamente acima da cabeça. Tinha o rosto ligeiramente virado para o céu e os olhos abertos contemplavam com profunda serenidade a glória celeste. Não é o sofrimento o que percorre aquele peito tenso, aquele ventre rígido, aquelas ancas levemente descaídas, mas sim o vislumbre de um melancólico prazer, em tudo semelhante à música. E, não fossem as flechas cravadas na axila esquerda e do lado direito, dir-se-ia um atleta romano em repouso, encostado a uma árvore sombria, no recanto de um jardim. As flechas rasgaram a carne jovem, tensa e perfumada, e vão consumirá. as profundezas do corpo, nas chamas do sofrimento e do êxtase supremos. Mas não há nem sangue derramado, nem sequer essa floresta de flechas que habitualmente se vê em outras representações do martírio de S. Sebastião. Duas flechas apenas projectam a sua sombra tranqüila e graciosa sobre a suavidade da pele, como a sombra de um arbusto deslizando sobre uma escadaria em mármore. Porém, só muito mais tarde estas interpretações e observações me vieram à idéia. Nesse dia, no preciso instante em que os meus olhos se encontraram com a imagem, todo o meu ser se pôs a tremer de uma alegria pagã. O sangue fervilhava-me, os rins inchavam-me como sob o efeito da cólera. A parte monstruosa do meu ser, prestes a explodir, apenas esperava que eu me utilizasse dela com uma violência até então desconhecida,e censurava-me a ignorância, palpitando de indignação. Inconscientemente, as minhas mãos iniciaram um gesto que jamais lhes fora ensinado. Senti um não sei quê de secreto e radioso lançar-se ao ataque, vindo do mais fundo de mim. E de repente, aquilo jorrou, ao mesmo tempo que o corpo era agitado por uma convulsão alucinante.” 3 Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Foto reprodução

A visão desta fotografia evocou em mim a lembrança de um texto de Yukio Mishima, que em Confissões de uma Máscara descreve sua sensação ao ver pela primeira vez uma imagem de São Sebastião, a reprodução de uma pintura de um corpo masculino desnudo.


O mais interessante é que as duas epifanias, a de Mishima e minha, se originam duma reprodução vista muito longe do original e, mesmo assim, o impacto foi capaz de provocar sensações intelectuais e de rompimento com o que conhecia até então. Percebi naquele instante que meu conhecimento de arte me limitava a ser um mero reprodutor de estilos, de fatos passados, e que meu verdadeiro trabalho ainda estaria por vir. Nos anos 80 pintava-se muito. Mas eu apenas desenhava muito, embora as tintas, as cores, ainda fossem materiais para o sonho de entrar para o grande mainstream da arte. Mas qual seria a minha real preocupação? Toda a perturbação sexual daqueles tempos parecia não existir dentro dos círculos em que eu vivia, ou dentro dos grupos sociais em que eu circulava. Quase uma década depois, são publicados no Brasil os livros de Camille Paglia: Personas Sexuais e Sexo, Arte e Cultura Americana. Esta pensadora pop que ousava, na academia, falar até de Madonna, trazia também alguns textos esclarecedores sobre os trabalhos de Robert Mapplethorpe, principalmente um artigo intitulado A bela decadência de Robert Mapplethorpe.4 Nele, a autora cita vários outros casos de censura judicial, como nas obras Flores do Mal, de Baudelaire, Folhas da Relva de Walt Whitman, O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, dentre outras. Então seria isto... sentia-me como se estivesse acordando de uma sonolência. Comecei a tecer minhas próprias referências, lembrei-me dos filmes e dos escritos de Pier Paolo Pasolini, de Rimbaud, e de vários outros autores e artistas que eu vinha consumindo desde a adolescência. De um certo modo, eu também era um representante destes artistas não-oficiais que podia falar dessa negação e dessa atitude contra o establishment, mas minha realização ainda pairava sobre um limbo de timidez e recusa. Apenas repetia velhos padrões acadêmicos de comportamento, leituras toscas de pintores clássicos. Minha formação não ultrapassava os domínios do impressionismo. E embora tivesse estudado os movimentos contemporâneos, parecia-me que aquele assunto, sexo, era apenas resto de uma rebeldia contra salões acadêmicos como no caso de Olympia de Manet. Fatos isolados, fatos entrelaçados, fatos olvidados, fatos não consumados, minha vida e minha arte precisaria ser reescrita de alguma outra forma. . ..o grande pênis negro projetando-se de um torso fora isso inteiramente vestido5. Esta descrição de Paglia me fez repensar todo meu processo e percebi que dentro de meus trabalhos, até mesmo os de especialização em modelo vivo, havia uma carga erótica que precisava ser liberada. Esta retomada de posição vai servir de guia para a realização de meus futuros trabalhos.

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Arqueologias As setas/ — cruas— no corpo/ as setas/ no fresco sangue/ as setas na nudez jovem/ as setas/ —firmes — confirmando a carne. São Sebastião- Orides Fontela

A repressão sexual se funda sobre a falsa idéia que o indivíduo tem de si mesmo, de seus desejos, de sua própria libido, de suas necessidades eróticas, do amor que poderia lhe advir de direito: a sociedade explora este desconhecimento e tudo faz para confirmar, nos indivíduos, a concepção errada que têm do sexo. Esta é a tese de Pasolini, desde Comizi d’Amore (1963), um documentário onde interroga as pessoas sobre a sexualidade, verificando que todos os entrevistados professam dogmas aberrantes que não sabem justificar, idéias recebidas que vão viver por ignorância. A maioria é resolutamente conformista em matéria de sexo; e os jovens “contestadores” não andam abraçados a amigos, que depois beijam à vontade, mas são prisioneiros do mesmo bom senso, da mesma moderação e do mesmo mito do “casal eterno” de seus pais. Na sociedade industrial, a anarquia autêntica é pratiRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Frames “Teorema” - Foto reprodução

O trabalho de arqueologia empreendido por Mishima, ao comparar a imagem de São Sebastião a Antínoo, o amante de Adriano, restitui uma tradução fragmentária, através da arte, que erotiza as imagens, e extrai do apreendido corpo contemporâneo o libertário sentido da necessidade essencial da linguagem. O mesmo sentido derramou-se dentro de meus trabalhos. Aquilo que era mera observação de um corpo, ou apenas um estudo displicente do natural, começou a adquirir aspectos dessa erotização, que não era obscena, mas em cena. Em um grande diário de imagens começado em 1982, que intitulei O Corpo e as armas, já havia este apelo erótico e a necessidade de projetar-me de um torso fora isso inteiramente vestido. Este torso estaria presente nas armaduras que aparecem em muitos desenhos e ilustrações. Os subtítulos deste diário contem as palavras: retratos, auto-retratos, insectos e anotações. Ao folheá-lo vamos encontrando pistas: é um fardo, memória, desenhos de tempo, chiados dissonantes (talvez uma previsão das imagens que hoje capturo da internet), fotografia, mais à frente: realidade espúria. Uma realidade que hoje nos fala do consumo do corpo, algo prenunciado por Pasolini em sua Trilogia da Vida e marcadamente em Saló. Mesmo antes em Teorema o diretor aborda o conflito entre a santidade e desejo, a que se expõe o corpo.


camente inexistente: nela, o modelo do casal heterossexual tornou-se uma compulsão, uma obrigação à qual ninguém escapa impunemente:a prova mesma da existência normal. O tabu da homossexualidade aí permanece um dos mais sólidos ferrolhos morais. Ao pôr em contato dois pólos positivos e dois pólos negativos, a homossexualidade libera uma energia perigosa à sociedade de consumoprodução de capital. Ela se torna, então, um estigma, o selo de uma abominável tara que condena seu portador e tudo o que ele é, sua sensibilidade, sua imaginação, seu trabalho, a totalidade de suas emoções, de seus sentimentos e de seus atos, reduzidos a camuflagens deste pecado fundamental. Contudo, et pour cause, a homossexualidade permanece um modo de viver sua sexualidade que desarranja e ameaça destruir a economia libidinal repressiva sobre a qual repousa o alicerce das sociedades industriais, não apenas por agir contra a produtividade puramente humana da espécie, como também contra os modelos ideológicos secretados pela família, contra o produtivismo e o consumismo fundados sobre a repressão dos instintos. Pasolini nunca conheceu carnalmente uma mulher e pensava que aquilo que, nos outros, era a coisa mais simples do mundo, nele era, justamente, a mais difícil. Um bissexual não recusa, de fato, as vantagens sociais da heterossexualidade. Um homossexual, sim: ao rejeitar a representação, demonstra que a homossexualidade lhe oferece mais do que a heterossexualidade, desde que a ela se dedica não apenas despojado de qualquer incentivo, como ainda permanentemente difamado e perseguido. Confessando sentir as torturas do amor sexual até o fim de sua vida — atrozmente agudas entre dezesseis e trinta anos —, descritas como uma doçura terrível e ansiosa, que se agarra às entranhas e as consome, queima-as, torce-as, como uma onda quente, diante do objeto do amor, Pasolini gostava de se sentir jovem entre os jovens: cuidava de seu aspecto físico, jogava futebol, usava calças justas que lhe realçavam os genitais. Com o poeta Sandro Penna, cercava-se de rapazes e fazia-lhes ditirambos elogiosos da homossexualidade. (...) Para Pasolini, o homossexual teria mais o sentido da origem sagrada da vida do que aquele que se quer estritamente heterossexual: o respeito da santidade da mãe predisporia a uma singular identificação com ela. No fundo do homossexual haveria, então, a reivindicação de sua castidade: o desejo da angelização.6

A partir deste diário retomei em meus trabalhos as questões do corpo. Para uma exposição chamada Romãs, realizei uma série de pinturas que consistiam em imagens de figuras bíblicas e anjos. Neles a erotização dos corpos já estava praticamente exposta. Entretanto, tinha começado a usar a Internet, pois podia, com facilidade, capturar imagens. As páginas pornográficas, principalmente de nus masculinos passaram a ser alvos constantes de visitas. Já delineava esse procedimento quando entre 1991 e 1992 fotografava vídeos pornôs diretamente da TV. Nessa época realizei um trabalho que considero o primeiro desta retomada. São três fotografias realizadas para uma exposição em homenagem a Walt Withman. Lovers, era um tríptico realizado por mim baseado em um poema desse autor, na qual imagens de um vídeo pornô gay eram superpostas a fotos de paisagens de meu cotidiano. Logo em seguida, fiz um outro trabalho que considero germinal para meus futuros procedimentos: uma série de fotografias para uma exposição itinerante que começou em Curitiba, a convite do artista Edílson Viriato7 chamada Olhar-Aids. Nestas fotos comecei com recortes de modelos masculinos de revistas pornôs. Armei um cenário em que essas figuras formavam uma paisagem. Derramei um inflamável e fotografei de um só fôlego, pois coloquei fogo, as 189

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figuras consumiram rapidamente. Corpos antes perfeitos e tesados, agora cinzas... Já estávamos nos anos 90, e o fantasma da Aids ainda estava rondando, mas não tão intensamente quanto no final dos anos 80, quando havia se tornado uma paranóia coletiva. Nesses anos, morreram amigos, sumiram conhecidos, se antes haviam desaparecido pessoas pela política, agora elas sumiam porque as famílias as tinham ocultado, ou as próprias pessoas se deletavam. Fatos estranhos que faziam a arte tomar outros rumos. Um retorno ao pensamento dos anos 60 e 70 adentrava os 90 com uma carga conceitual. Encontrava-me então em um dilema, pois também não me encaixava nessas perspectivas. Trabalhando com literatura, sentimentos, vida pessoal, meu trabalho talvez pudesse ser rotulado como pós-moderno, mas minhas questões estavam além de um mero debruçar sobre a cronologia da história da arte. Uma questão de sobrevivência, uma necessidade de falar daquilo que Pasolini nos mostrou no começo da era capitalista tão pungentemente: “[...] a “realidade” dos corpos inocentes foi violada, manipulada, subjugada pelo poder consumista: mais, tal violência sobre os corpos tornou-se o dado mais macroscópico da nova época humana”.8 Estabeleceu-se no final dos anos 90 uma tolerância para as chamadas minorias, sexuais e étnicas. Muitos artistas no circuito nacional e internacional haviam assumido esse rótulo, como Leonilson e Felix Gonzáles-Torres. Ambos morreriam de AIDS. Antes da década acabar, estávamos numa encruzilhada pois a vida ultrapassava os sentidos e a arte não poderia ser meramente planfetária. De uma certa forma minhas leituras de André Gide, Rimbaud, Genet, os filmes de Fassbinder já haviam trazido para o mundo erudito este reduto obsceno. Mas falar da vida pessoal, dos próprios desejos ainda soava algo pervertido, como no caso de Robert Mapplethorpe. O mundo da arte pop, da música já havia revelado essas irreverências, Andy Wahrol e Madonna nos anos 80 com suas provocações de moça vulgar. Realmente o assunto não era novo, podemos nos lembrar do julgamento de Oscar Wide, do Marques de Sade. Sexo, sexo, sexo. Sempre o sexo acompanhamento os artistas. Mas, nos 90, algo de novo surge, dentro do mundo capitalista, se você tem poder de consumo, você pode. Começamos então a era das falsas tolerâncias. A TV, o cinema, e as próprias artes plásticas começam a tecer caminhos internos e paralelos nessas vias. O consumo tudo tolera, desde que a máquina dessa produção mantenha-se contínua. Mas as reivindicações do tempo permanecem, como nos fala Marguerite Yourcenar em Memórias de Adriano no seu Caderno de Notas. “A substância, a estrutura humana não mudam absolutamente. Nada mais estável do que a curva de um tornozelo, o lugar de um tendão, ou a forma de um dedo do pé. Há porém, épocas em que o Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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calçado se deforma menos. No século de que falo, estamos ainda muito próximo da livre verdade do pé nu.” 9

Não podemos dizer o mesmo do nosso momento, pois temos calçados diversos e estamos longe de uma tolerância pacífica. “A Aids produziu, na aldeia global, o mesmo efeito que os campos de concentração nazistas. Os que estão “dentro” experimentam a morte social antes da morte física, e, por uma macabra coincidência, a aparência do aidético terminal assemelha-se à do prisioneiro de Auschwitz em seu estado mais critico de sobrevivência, a tal ponto que alguns soropositivos começam, espontaneamente, ou seguindo as instruções de uma chocante campanha publicitária da Benetton, a tatuar seu corpo, tal como os judeus eram tatuados pelos carrascos nazistas. Os que estão “fora” realinham-se automaticamente, pois, desde que os mecanismos de ação do vírus HIV tornaram-se conhecidos, a Aids passou a exercer um terror permanente, interiorizado até o ponto de nem ser mais percebido, sobre as elites revolucionárias, reprimindo o Eros que se havia liberado nos anos 60-70, e com isso suprimindo, da forma radical, pelo extermínio biológico, as tendências libertárias da cultura, que, segundo Herbert Marcuse, poderiam fazer explodir as estruturas repressivas da sociedade industrial.”10

Vanitas Alvo: ponto de mira que se procura atingir com algo (tiro, flecha, bomba etc.), centro de interesse; objetivo, finalidade, aquilo que se procura alcançar; intuito, desígnio, objetivo físico visado para destruição parcial ou total, ainda que figurativamente, representação desse objetivo. [Os alvos classificam-se como: conhecido, inopinado, suspeito, falso ou de

Foto Sebastião Miguel

oportunidade.] 11

Não foi por acaso que, quando meu pai faleceu, e ao arrumar seus guardados, encontrei uma Caderneta de Instruções de Tiro da época de que ele serviu o exército. Consistia de um diário de treinamento que estava registrado em círculos concêntricos a marca dos tiros dados, os números de tiros acertados e os pontos obtidos. Alguns desses círculos continham algumas silhuetas de pessoas, o alvo. Nas imagens que eu vinha capturando na internet a maioria era de militares das várias etnias: pretos, germânicos, latinos etc. Até ali, reinava a desordem da pornografia, tudo também precisava ter sua ordem e classificação. Os militares, Adriano tinha sido um deles, São Sebastião também. Mishima criara seu próprio exército. Decidi então marcar território nos “homens fardados” uma vez que meu diário O Corpo e as armas era o lugar dos homens de armadura e de instintos bélicos. Decidi iniciar uma série que chamei Alvos. Um esboço desses trabalhos que consistiam em desenhos, pinturas a óleo, experimentações digitais, foi mostrado numa exposição que intitulei The Captive. Nessa mostra, as pintu191

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ras a óleo, algumas à maneira de Lucien Freud (numa imitação naturalista), ficavam em prateleiras como que à disposição. Poemas e imagens impressas formavam um mosaico adjacente ao diário inicial. A exposição próxima ao catártico, só não era devido à nudez explicita dos nus masculinos ali mostrados. “A inocência moral de nosso corpo só é útil aos que nos percebem como relés no circuito das mercadorias. Já nos ensinaram que somos objetos consumidores de outros objetos; agora começam a ensinar como nossos sentimentos são fabricados e quais são os armazéns de peças de reposição. É preciso mais do que cadeias genéticas e antidepressivos para fazer homens responsáveis por seus atos morais.” 12

Depois do meu pai, faleceu, vitimado pela AIDS, meu irmão José. Na exposição The Captive, havia um folheto antecipando as imagens da exposição. Nesse folheto fiz ao meu irmão uma dedicatória.. Percebi que fora um pacto para trazer aos meus trabalhos, além da carne, do amor e do desejo, a doença e a morte. Esta vanitas inesperada havia adentrado minhas criações e percebi que, nesse terreno, havia tocado algo de muito verdadeiro e perturbador. A fragilidade da vida e da arte. Finalmente chegara ao ponto central do meu trabalho a partir de uma espiral: o desejo, a impossibilidade e o fim. O folheto continha um trecho do livro Uma Aprendizagem ou o livro dos Prazeres de Clarice Lispector, que evocava a necessidade de uma individualidade iluminada, uma provocação ao nosso cotidiano sem sentido: “Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos.” 13 O prazer na arte estava nas pinturas dos anos 80, mas era hedonista e distante. Não era uma provocação direta a imagem do amor e da responsabilidade social. Os anos 90 prometiam o concerto da Razão, seja racional, seja frio, seja distante. Essa esterilização pós-AIDS era uma inquietação longe de meu trabalho. Às vezes, mal acabados, às vezes, só esboços, conseqüentemente, sem um fio que unisse as idéias. Percebi isso em The Captive, quando muitos dos visitantes queriam uma explicação lógica para tanto texto, tanta imagem, tantos homens nus. Afinal, qual era a relação entre o poema de amor, e Clarice Lispector, e o irmão morto e os amigos? Percebi que todos essas questões eram as setas que convergiam para a mesma imagem que provocara em Mishima uma enorme excitação. São Sebastião seria o padroeiro da época AIDS, como no belo conto de Susan Sontag, Assim vivemos agora,14 em que vários amigos se revezam para cuidar de um doente terminal. Tempos melancólicos, mas tempos esperançosos. Em Alvos começa minha divergência da educação católica do estudante de arte, convergindo, por outro lado, em duplas perspectivas em que busquei encontrar a unidade entre a arte e a vida. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Na ocasião da exposição The Captive, o jornalista Walter Sebastião entrevistou-me para o Caderno de Cultura do Estado de Minas. Nessa entrevista minha fala é filtrada de forma aleatória, que entretanto, considerei importante pois nesse mesmo caderno, no levantamento anual de exposições, aquela mostra foi considerada uma das melhores do ano, e a primeira exposição declaradamente homoerótica em Belo Horizonte. Sebastião Miguel mostra cerca de 30 obras, realizadas entre 1995 e 2000, que têm como elemento comum “a amizade e o amor entre homens”. Os trabalhos sintetizam desde o desejo de construir uma mostra a partir de “Memórias de Adriano” (e do mundo greco-romano) até a perda do irmão, vítima da Aids. Por tudo isso atravessam as imagens os temas do encontro, da perda, do corpo, do prazer etc. “E da solidão. Até porque as pessoas hoje têm um belo corpo que de nada lhes adianta porque elas não cultivam a troca de afeto”, explica o autor. E o artista vai logo avisando tratar-se de questões que sempre estiveram no seu trabalho. Anteriormente até “mais estetizado”, hoje, com “menos filtros” e uma linguagem mais direta. A presença do universo greco-romano, regendo uma representação contemporânea sobre o homoerotismo é vista pelo artista como natural: “É a nossa herança. Ela nunca esteve ausente na nossa cultura”, explica lembrando-se de nus masculinos atléticos, que vazaram inclusive “as barreiras surgidas com religiões fechadas que perderam referência com o mundo pagão”, como mostra a obra de Miguelangelo para a Capela Sistina. É bom que se diga que Sebastião Miguel considera erotismo e espiritualidade “uma coisa só”: “O gozo da alma é diferente do gozo do corpo?, pergunta lembrando- se dos temas do êxtase em Santa Tereza D’Ávila e São João da Cruz. E vem daí uma crítica à produção homoerótica em arte: “É muito ligado à purpurina, muito superficial”, diz. Mais: “Hoje se fala mais sobre estes temas mas não quer dizer que eles sejam mais compreendidos. Colocar algo em evidência não demonstra que haja menos preconceito”, completa, defendendo “mais compreensão e menos propaganda” Artistas que trabalharam bem os termos do homoerotismo segundo Sebastião Miguel: Miguelangelo, Carravagio, Robert Mapplerthorpe, Jean Cocteau, Pasolini. O motivo: são artistas apurados, abrem suas obras para os temas estéticos, emocionais, espirituais e são universais”.15

Setas “E Xavier trouxe uma estátua guatemalteca de madeira do século XVII!, um são Sebastião de olhos voltados para o alto e boca aberta, e quando Tanya perguntou o que é isso?, um tributo ao Eros passado, Xavier disse, no lugar de onde eu venho são Sebastião é venerado como protetor das pestes. A peste simbolizada por setas? Simbolizada por setas. As pessoas só se lembram do corpo de um belo jovem amarrado numa árvore, perfurado por setas (que ele sempre parece ignorar, Tanya interpôs), as pessoas esquecem que a história continua, Xavier continuou, que quando as mulheres cristãs vieram sepultar o mártir encontraram-no ainda vivo e cuidaram dele até que recuperasse a saúde. E ele dissera, segundo Stephen, eu não sabia que são Sebastião não tinha morrido. É inegável, não é?, Tanya disse ao telefone para Stephen, o fascínio pelos moribundos. Fico constrangida. Estamos aprendendo a morrer, disse Hilda, não estou pronta para aprender, disse Aileen; e Lewis, que estava vindo direto do outro hospital, do hospital onde Max continuava na UTI, encontrou Tanya saindo do elevador no décimo andar, e enquanto os dois avançavam juntos pelo corredor iluminado passando pelas portas abertas; desviando os olhos dos outros pacientes afundados em seus leitos, com tubos no nariz, iluminados pela luz azulada dos televisores, aquilo sobre o que não consigo pensar, Tanya disse para Lewis, é alguém morrendo com a TV ligada. Agora ele está com aquele distanciamento estranho, irritante, disse Ellen, é isso o que me preocupa, mesmo agora sendo mais fácil estar com ele. De vez em quando ele ficava lamuriento. Não suporto essa gente entrando e tirando meu sangue toda manhã, ele dizia, o que vão fazer com tanto sangue? (...)” 16 193

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Percebo hoje que a tecnologia amplia as possibilidades de trabalho. Lembro-me que, para fazer a série Olhar-Aids, recorri a um amigo para comprar as revistas gays que precisava, pois não conseguia encarar o jornaleiro. Hoje possuo uma coleção de milhares de fotos parecidas, capturadas na internet. Através desse impulso e medo desfeitos permiti-me um distanciamento maior para realizar e autocriticar o meu trabalho. Necessitava de uma bandeira, e de uma motivação que não se aproximavam da linguagem que eu necessitava adquirir para comunicar-me com as minhas obras. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Foto Sebastião Miguel

Comecei a finalizar os meus trabalhos resolvendo reeditar as imagens que produzi para o Olhar-Aids. Encontrei os negativos e reordenei as imagens. Naquela época, eu não dispunha de tecnologia para que pudesse manipulá-las. Escaneei os negativos que não ficaram bons. Solicitei novas cópias, e a partir delas pude montar no computador o formato final. Vai ser impresso em um papel de foto metálico. Espero que o resultado não soe kitsch, pois não é esta minha intenção. Começo também a reelaborar as imagens de Alvos da caderneta de tiros de meu pai. Ponderei em recortar os círculos, mas minha orientadora aconselhou-me a refazer as almofadas. Realizei uma série de imagens transferidas para o pano que lembrava almofadas. Essa série foi mostrada na exposição The Captive, e na mostra Retroactive Detail,17 na Casa Mário Quintana, em Porto Alegre. Numa superfície recoberta com papel de parede envelhecido, as almofadas formavam um mosaico de imagens que começava perto do teto até o rodapé. O galerista Leo Bahia as batizou de escapulários, nomeação que faz alusão a maneira que são feitos alguns objetos de devoção com santos na igreja católica. Não penso em almofadas, mas em objetos macios. De certa forma “alvos macios” funciona melhor, pois nelas estão os corpos dos soldados. Fica tátil, sinto uma erotização que começa no olhar, pois, de certa forma um alvo verdadeiro seria muito explícito. Eles terão de ser perfurados por outros sentidos. O tríptico realizado em homenagem a Walt Whitman está sendo refeito. Lembro-me de meu desagrado na ocasião, pois a montagem não tinha ficado a contento. Desfiz a moldura, escaneei as 12 fotos que formavam o conjunto e remontei no computador. Tive maior controle sobre as figuras e pude colocar os textos sem ficar parecendo apenas uma colagem grosseira.


Planejei realizar pinturas, mas as tintas não me chamaram, então manipulei as fotos até conseguir cores saturadas. O raciocínio é pictórico, embora use um programa de tratamento de imagens. Continuam sendo pinturas no resultado. Serão ampliadas e montadas da maneira que, penso, Mapplethorpe mostrou algumas de suas fotos. Uma combinação de imagens com tecidos e moldura. Renomeando as fotos para a impressão fotográfica, os títulos ficaram assim: homem-amarelo, homem-azul, homem-verde, homem-vermelho e homem-ocre. Construo minha palheta de homens cores. Serei questionado sobre estas fotografias? Mas não são fotografias, são apenas pinturas feitas com outro meio. Sempre me interroguei a respeito da inserção de fotos em meu trabalho. No álbum O Corpo e as armas as fotos apareciam com interferências, e frotadas. O procedimento continua o mesmo embora nesse álbum de imagens raciocinasse como desenho. O aprendizado da pintura foi lento. À medida que dominava a técnica, fui reabsorvendo os métodos da época que comecei. Até mesmo para pinturas realizadas com tinta começo fazendo os estudos no computador. Acredito que nunca tive uma imagem original. Apenas pego imagens que já existem, e nelas reconstruo as minhas indagações. Parece que às vezes nem foram interferidas. É uma abordagem seca que considero primordial, pois não gostaria de fazer maneirismos com possibilidades digitais. Possivelmente serei indagado se faço arte digital ou arte eletrônica. Participei de uma mostra no MAM Higienópolis em São Paulo com curadoria de Ricardo Resende que se chamava Arte Eletrônica 18 . Fiquei surpreso, pois Ricardo escolheu no meu portifólio uma série chamada Freqüência de Cores. Essas imagens tinham sido mostradas num evento chamado Gabinete de Arte na Prefeitura de Belo Horizonte. Um rodízio de artistas decorava com suas obras o gabinete do prefeito de tempos em tempos. Por causa das cores parecia uma obra “inocente”. Só me dei conta do forte conteúdo erótico quando fui receber umas crianças que foram visitar o gabinete. Os outros artistas mostravam pinturas, desenhos, uma arte bem dentro dos “padrões”, naturezas mortas, abstratos e texturas. Tive de tangenciar minha obra para explicar aos pré-adolescentes que se tratava de cores superpostas com figuras humanas. Percebi que não poderia dizer corpos masculinos e eróticos. Restringi-me ao raciocínio pictórico para realizar o trabalho. Naquele momento percebi que a fotografia era apenas um suporte, e o computador um outro raciocínio para realização da pintura. Mas essas fotografias eram agentes de transfiguração do real, embora, sejam apenas vestígios do que foram originalmente, poses pornográficas, venda de sexo e outros meios obtusos. Toda essa virilidade é agora usada por mim para falar 195

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da morte, das proximidades e separações afetivas. Não há como negar a perturbação de um falo intumescido, da contração de um músculo, dos semblantes de quase gozo: “são Sebastião de olhos voltados para o alto e boca aberta”19. Os limites e o continuum dos fragmentos vividos são apenas registros edulcorados. Nessas composições clássicas permito-me desviar da excitação que se tornou presente no sexo no século XXI: somos fugitivos e condenados à prisão perpétua. Aprisionados pela perfeição do corpo já não podemos nos entregar aos deleites de “Eros”. De fato, as pessoas têm tentado levar uma vida rotineira, mas há um hiato que as separa dos signos e dos desejos. A partir das setas tento alcançar uma outra faceta do icônico, aproximando o erótico às relações cromáticas e táteis. “A inocência moral de nosso corpo só é útil aos que nos percebem como relés no circuito das mercadorias. Já nos ensinaram que somos objetos consumidores de outros objetos; agora começam a ensinar como nossos sentimentos são fabricados e quais são os armazéns de peças de reposição. É preciso mais do que cadeias genéticas e antidepressivos para fazer homens responsáveis por seus atos morais.” 20

Novamente uma citação e compreendo que construí esse texto como realizo meu trabalho: uma compilação de memórias, imagens prontas, citações. Chego à seta final com a certeza dos desdobramentos de minha procura: a edificação de uma identidade, e de uma obra que possa me conduzir à compreensão do mundo e de mim mesmo.

NOTAS

2 MORRISROE, Patrícia. Mapplethorpe. Rio de Janeiro: Record; 1995-pág 15 (O fotógrafo não procurava se escusar de suas obsessões sexuais. Na verdade, seu maior pesar era o fato de que não iria colher os benefícios da celebridade. Ironicamente, ele se tornaria ainda mais famoso após a morte, quando a Corcoran Gallery of Art, em Washington, D.C., cancelou abruptamente uma retrospectiva de seu trabalho. A exposição O momento perfeito de Mapplethorpe fora em parte patrocinada pelo National Endowment for the Arts, e a decisão da Corcoran de cancelar a mostra em junho de 1989 acendeu um debate feroz quanto ao financiamento federal para arte sexualmente explícita. O senador Jesse Helms, da Carolina do Norte, acusou-o de promover o homossexualismo e descreveu a reação de sua esposa ao ver o catálogo de O momento perfeito como “Deus tenha piedade, Jesse, eu não estou acreditando que isto...” Um ano depois, quando a exposição chegou ao Contemporary Arts Center, em Cincinnati, o diretor Dennis Barrie foi formalmente acusado por abrigar obscenidade e abusar de um menor para pornografia. O julgamento de Cincinnati tornou-se um caso-teste para os padrões atuais de obscenidade, e Mapplethorpe entraria para a história como um símbolo de liberdade artística ou, dependendo do ponto de vista, de “arte desviante”). Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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1 DICKINSON, Emily- The Complete Poems/661 - 740- Online-http://www.incipitario.com/ed0661-0740.htmlúltima consulta em 13/05/2003.


3 MISHIMA, Yukio. Confissões de uma máscara. Lisboa: Assírio e Alvim; 1986, pág 43 a 45. 4 PAGLIA, Camille. Sexo, Arte e Cultura Americana. São Paulo: Cia das Letras. 5 ibidem nota 4, pág 50. 6 NAZÁRIO, Luiz. Pasolini. São Paulo: Brasiliense; s/d. 7 O artista participou 21 Bienal de São Paulo, em São Paulo, 1991, com um trabalho homoerótico. Uma grande instalação de aproximadamente 100 m2, que se dividia em 3 partes em forma de cruz: 1- “Pai não deixai cair em tentação”, 2- “Seduzindo o Sedutor” e 3- “Enquanto os cães ladram um homem é cruxificado, um anjo sonha em ser Batman e a santa diz amém.”. 8 PASOLINI, Pier Paolo. Caos. Crônicas Políticas. São Paulo: Brasiliense; 1982 9 YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano. Rio de Janeiro: Record; 1995 19NAZARIO, Luiz. Todos os Corpos de Pasolini-Online-http://www.culturavozes.com.br/revistas/0489.html- última consulta em 13/05/2003. 11 AURELIO, Dicionário SEC XXI, dicionário eletrônico. 12 COSTA Jurandir Freire, A UTILIDADE DO CORPO INOCENTE, Jornal Folha de São Paulo, Caderno MAIS!, 13 de março de 1994, pp. 6-13. 13 LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco. 14 SONTAG, Susan. Assim vivemos agora. São Paulo: Cia das Letras; 1995. 15 SEBASTIÃO, Walter.Estado de Minas-CADERNO ESPETÁCULO , 29 de junho de 2000 Quinta-feira, pág 6. 16 ibidem nota 14, pág 52/53. 17 “Projeto Linha Imaginária”- Galeria Xico Stockinger, Casa de Cultura Mario Quintana, Porto Alegre/RS- 10 fevereiro a 05 de março de 2000, participaram: Alex Cabral, Helder Profeta, Regina Sposatti, Richard Calhabéu e Sebastião Miguel. 18 “Imagem Eletrônica”- MAM-Higienópolis- São Paulo/SP, 30 janeiro a 25 de março de 2001, participaram: Renata Andrade, Renata Padovan, Giancarlo Lorenci, Monica Schoemacker, Regina Silveira, Rubens Mano, Regina Johas e Sebastião Miguel. 19ibidem nota 14. 20ibidem nota 12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, 130p. BAUDRILLARD, Jean. A ilusão vital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, 100p. BESSA, Marcelo Secron. Os perigosos autobiografias & AIDS. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, 432p. BOURGEOIS, Louise. Destruição do pai reconstrução do pai, escritos e entrevistas 1923-1997. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, 384p. COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício. Estudos sobre o Homoerotismo. São Paulo: Relume-Dumara, 1992, 196p. COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte da fotografia à realidade virtual. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003, 320p. CRITICAL ART ESEMBLE. Distúrbio eletrônico. São Paulo: Conrad Livros, 2001, 144p.

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FONTELA, Orides. Trevo (1969-1988). São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1988, 268p. GENET, Jean. Querelle amar e matar. Portugal: Publicações Europa-América, s/d; 184p. ________.Diário de um ladrão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, 260p. ________.Nossa senhora das flores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, 332p. ÍTEM, revista de arte - número 4 Sexualidade. Rio de Janeiro, novembro 1996 ÍTEM, revista de arte - número 5 Afro-Américas; Rio de Janeiro, fevereiro 2002 JEUDY, Henry-Pierre. O Corpo como objeto de arte. São Paulo: Cia das Lletras, 2002, 184p. LAHUD, Michel. A vida clara linguagens e realidade seundo Pasolini. São Paulo: Cia das Letras/Unicamp, 1993, 152p. LAMBERT, Royston. Pederastia na idade imperial sobre o amor de Adriano e Antínoo. Lisboa: Assírio & Alvim,1990, 66p. LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. LOPES, Denilson. O Homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1995, 264p. MAPPLETHORPE, Robert. Photographien 1984-1986, ausgewält und eingeleitet von Germano Celeant. Italy: Schirmer/Mosel, 1986, 32p. ________. Altars. New York: Randon House, 1995, 139p. MISHIMA, Yukio. Confissões de uma máscara. Lisboa: Assírio e Alvim, 1986, 204p. MORRISROE, Patrícia. Mapplethorpe. Rio de Janeiro: Record, 1995, 434p. NAZÁRIO, Luiz. Pasolini. São Paulo: Brasiliense, s/d, 96p. PAGLIA, Camille. Personas Sexuais. São Paulo: Cia das Letras, 1992, 656p. ________. Sexo, Arte e Cultura Americana. São Paulo: Cia das Letras, 1993, 342p. PASOLINI, Pier Paolo. Amado Meu. São Paulo: Brasiliense, 1982, 192p. ________. Caos. Crônicas Políticas. São Paulo: Brasiliense, 1982, 232p. ________. Meninos da vida. São Paulo: Brasiliense, s/d, 192p. ________. Teorema. São Paulo: Brasiliense, 1984, 176p. PAZ, Octavio. Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Mandarim, 1999, 126p. ________. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 2002, 104p. SANTANELLA, Lucia e NöTH, Winfried. Imagem cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 2001 , 224p. SONTAG, Susan. Assim vivemos agora. São Paulo: Cia das Letras, 1995,-56p.. ________ , A doença como metáfora. São Paulo:Graal, 1984, 112p.. YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano. Rio de Janeiro: Record, 1995, 334p. WINICK, Charles E. Unissexo. São Paulo: Perspectiva, 1972, 320p.

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Redito O refazimento da obra de arte. Marcos Venuto Artista Plástico/ Professor da Escola Guignard(UEMG)

Apropriação, citação: o devir da obra de arte. “ Um clássico é um livro que nunca acaba de dizer o que tem para dizer.” Ítalo Calvino

Apropriação A estrutura fornecida pelo objeto artístico como modelo de percepção ao espectador, não reflete o intrincado constructo que a originou. Desde dos tempos das primeiras análises infantis, nas quais contemplamos os objetos não como produtos diferenciados, carregados de valores culturais e venais, percebemos estruturas que de alguma forma nos dão sentido, ora para devaneios e pensamentos lúdicos, que potencializam a percepção, ora para a e questões funcionais. Estes mini-sistemas nos aguçam o olhar, aprendemos a lê-los e na medida que o aprimoramos, os mesmos fruem. Passamos a vida como leitores, fruímos o mundo através deste método, hábito que se exaure com a existência. Mas o homem é dotado de cultura, chave pela qual esta leitura se perpetua. Existe um mecanismo no qual o momento do olhar supera as estruturas lidas e chega ao seu constructo, é o olhar do ator (agente do ato). Este faz do hábito da leitura não só um processo de significação mas rearranjos estruturais que fluem a um outro objeto, também construído. Os rearranjos se tornam um modus operandi em que o fazer e o contemplar se redirecionam constantemente, Como observou Compagnon ler e escrever são simultâneos(Compagnon, 1998:31-32). Opera-se então a dinamização do processo que ilude o ator ; dos seus rearranjos se faz a pretensa idéia da criação, como um momento único em que um demiurgo apresenta os seus objetos. O que se desvirtua do ator é a base da sua construção: o rearranjo.Ele como leitor contumaz, aprendeu a desconstruir e reconstruir estruturas, estas vivas nas suas leituras. Ele é fruto de todas as informações que o precederam, da mesma chave da perpetuação de todas as linguagens, a cultura. Como leitor de escritas anteriores, o ator (autor) confere à sua organização razões intrínsecas que habitavam outras organizações e com isto o resultado do seu trabalho admite-se outras estruturas advindas de mil redes de sistemas elaboradas de outros atores. O conceito que situa o momento em que o ator toma conhecimento da origem do seu processo, por influência, transforma a ação do mesmo. A questão se ramifica por várias épocas da história, mesmo com o passar do tempo, em que as leituras se modificavam sobre o mesmo objeto mas a influ199

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Citação Apropriar é apenas o primeiro ato do processo autoral contemporâneo, mas tal ato gera outra dimensão quando se leva em conta a escolha, pois, determina qual objeto-signo tem a possível potencialidade de se transformar em outro. Dentro do conceito de influência, o objeto precursor, pesquisado nesta monografia, emite poder que abre caminhos a outros objetos. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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ência persistia, pensamento este que vem desde a renascença, onde a questão da autoria toma corpo. A influência decorre do processo que não se escapa quando se torna leitor, o ator tenta se desvencilhar deste procedimento algumas vezes, distorcendo-a, enaltecendo-a, em outros métodos que no fim, mesmo não se redimindo, o resultado é o objeto percebido como síntese deste processo. Como afirmou Harold Bloom no seu texto “A angústia da Influência”: (...) os poetas fortes fazem (...) história distorcendo a leitura uns dos outros, a fim de abrir para si mesmos um espaço imaginativo.”(Bloom, 2002:55). Segue dizendo:”Os talentos mais fracos idealizam; as figuras de imaginação capaz apropriam-se.”(ib.) Trazendo tais argumentos para o cenário cultural contemporâneo, a produção cultural afirma a necessidade do autor em deslocar o objeto da sua pessoalidade para a impessoalidade, inserindo assim a importância do leitor como a outra ponta da travessia deste objeto. Jonathan Fineberg, referindo-se a Barthes no texto “Apropriação” nos fala da determinação do papel ao leitor (e à cultura) como definidor de um texto, sendo que esse é continuamente mutável na sua ação, não há possibilidade de uma interpretação estável “de qualquer texto ou imagem”. Completando: “a linguagem é inerentemente instável,(...), não governada pela intenção do artista.” (Fineberg, 1995:454) Como se nota, este deslocamento do objeto para quem o lê acarretou uma mudança no papel do autor e no leitor, a própria leitura da obra de arte foi afetada, a base da leitura se remete à própria linguagem e não na natureza do objeto. Como disse Fineberg sobre a Pop art, movimento contemporâneo que primeiro utilizou este deslocamento, este movimento substituiu “a base mimética do realismo (...) por uma base puramente semiótica”. A natureza foi substituída como referência para o signo - “ a paisagem se tornou uma paisagem de signos.” (ib.:455) Neste contexto, há um re-exame da autoria e as possíveis ações na autenticidade e originalidade. O elemento fundamental de qualquer linguagem é o signo cuja propriedade principal é a sua repetição, o objeto de arte remete sempre a um outro objeto, também um signo. Apropriar, no caso do ator, é apenas reviver este processo, dar ao objeto de outrem diversas possibilidades que o original permite, extrapolar a dimensão única do primeiro autor, dinamizar a semântica da obra.


O ato de citar, no entanto, pertence à origem - “Ela pertence à origem, é uma rememoração da origem, age e reage em qualquer tipo de atividade (...)”(Compagnon, 1998:31), rememora o caminho iniciado, não pelo autor contemporâneo, este o fruto. É como colocar um sobrenome na identidade do objeto, uma repetição de um gesto no qual me pertence como já pertenceu aos ascendentes do objeto. O trabalho da citação, segundo Compagnon, “é como uma matéria que existe em mim; e, ocupando-me, ela me trabalha; não que eu esteja cheio de citações ou seja, atormentado por elas, mas elas me perturbam e me provocam, deslocam uma força, pelo menos a do meu punho, colocam em jogo uma energia (...)”(ib.:33). Pintar é fácil A questão contemporânea da arte se concentra nas posições dos artistas em face ao passado recente das vanguardas modernistas e a inocuidade das mesmas perante aos seus projetos. A arte contemporânea estabelece o seu passado como elemento básico de exame, este retorno não se coloca como paradigma, porém traz posicionamentos que vem dos primeiros modernistas, talvez reconciliando com fontes que foram rompidas pelos vanguardistas. O projeto Pintar é fácil recoloca questões apresentadas por modernistas da primeira fase e retomadas hoje, tais como a reprodução na arte, o espaço da pintura na produção contemporânea, a tecnologia como suporte para arte e o fenômeno da massificação do objeto. Ao mesmo tempo coloca situações inerentes à abordagem que a sociedade contemporânea exprime, o papel do artista nesta sociedade. A massificação do objeto cultural advém desde a revolução industrial, em que a cultura como produto cambiável de uma indústria coloca no mesmo plano bens domésticos e objeto de arte, a resposta desta mudança em relação à história da arte veio com a aquisição das tecnologias conquistadas pelo processo desta revolução e a sua adaptabilidade ao processo artístico. Porém houve uma transposição de valores que a sociedade veio adquirindo com o tempo, o fazer artístico, Pintar é fácil é fruto desta mudança. O projeto se apresentou através de uma coleção vendida nas bancas de revista que anunciava, sob este mesmo título, a facilidade da execução de obras de arte de grandes mestres do século XIX. Observa-se então o deslocamento do fazer artístico sobre dois focos: num ponto em que o autor hoje dominando as tecnologias absorvidas pela a indústria, apropria imagens dos signos, e noutro ponto, o outrora paradigma da arte, a pintura, representada pelos exemplos de consenso na história da arte. Ao executar tais pinturas, o diletante poderá ter então uma cópia, feita por pessoas sem apuro tecnológico. É a mudança do paradigma: os artistas, assim denominados pela sociedade, buscam na banalidade do cotidiano signos que se apropriam e os elegem como objeto de arte e as pessoas comuns, não 201

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ungidas pela sociedade, transcrevem obras já consagradas, retiradas da história da arte e denominadas por elas como suas. O processo de investigação sobre a coleção se aliou a uma pesquisa com um suporte tecnológico avançado, cujos equipamentos permitiram a pintura digital e um suporte final tradicional, a tela. O ‘software’ Painter propiciou a execução das obras sugeridas numa realidade de atelier, onde eram simulados pincéis, texturas de telas, acabamentos como se fossem verdadeiras pinturas. As obras selecionadas tiveram o critério de terem proeminências dentro da história da arte, cujos artistas influenciaram de maneira marcante outros artistas da arte moderna. A pesquisa colocou como objeto reprodução Gauguin, Van Gohg e Cézanne, por considerar como essenciais na produção artística da arte moderna. A relação das escolhas, da coleção e da tecnologia aplicada originou a tríade que sustentou todo aspecto teórico de tal pesquisa. A história da arte como fonte Ao selecionar os artistas e as obras para incluírem no projeto foram observados critérios além dos nomes acima já citados. As obras Gardanne (fig.1) de Cézanne, Sesta (fig.2) de Gauguin e Lírios (fig.3) de Van Gohg representam dentro da produção destes artistas as conquistas que pontuaram seus trabalhos. Sob o aspecto da cor em Gauguin e Van Gohg, e o início da geometrização em Cézanne, a arte moderna os explorou tais aspectos de tal forma que não seriam possíveis movimentos artísticos sem as observações dos mesmos alcançaram nestas obras, ou pelo menos na fase em que elas foram elaboradas. O aspecto mais importante que veio destas escolhas é o conceito de obra de arte como fonte para outras obras. O objeto de arte além de influenciar, herdar gestos, também possibilita o surgimento de outros objetos de arte, como salientou Marilena Chauí em um ensaio sobre Merleau-Ponty, em toda obra de arte percebe-se “as obras dos outros” (Chauí, 1994:490), e mesmo anteriores a do próprio artista, mas coloca-se ao mesmo tempo uma tradição: “abre o tempo e a história, funda novamente seu campo de trabalho e, incidindo sobre as questões que o presente lhe coloca, resgata o passado ao criar o porvir.”(ib.) O sentido de eternidade se encontra na obra de arte não como elemento de leitura duradouro, a cultura transmuta, pois é feita de linguagem. O olhar modifica no mesmo sentiRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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do, ele é condicionado pela mesma base, com esta mudança, a obra de arte se modifica. A Vênus para a Grécia era um objeto de culto, na idade média um objeto pagão e para nós uma obra de arte. Merleau-Ponty, citado por, apud, Chauí, observa bem este aspecto dizendo: O que faz de uma obra de arte algo insubstituível e mais do um instrumento de prazer é que ela é um órgão do espírito, cujo análogo se encontra em toda obra filosófica e política, se forem produtivas, se contiverem não idéias, mas matrizes de idéias, emblemas cujo sentido jamais acabaremos de desenvolver, justamente porque elas se instalam em nós e nos instalam num mundo cuja chave não possuímos (...) O que julga um homem - artista, filósofo, político - não é a intenção nem o fato, mas que tenha conseguido ou não fazer passar os valores nos fatos. Quando isto acontece, o sentido da ação não se esgota na situação que foi sua ocasião, nem em algum vago juízo de valor, mas ela permanecerá exemplar e sobreviverá em outras situações, sob ima outra aparência. Abre um campo, às vezes, institui um mundo, e, em todo caso, desenha um porvir.”(Chauí, 1994:492).

O anônimo e a simulação

Marcos Venuto - Reprodução

A morte do autor O conceito de autoria do objeto artístico sempre oscilou de acordo com as épocas da nossa história. Na idade média não existia o autor e sim escolas que marcavam os estilos das peças, mas mesmo assim havia um processo de identificação, pelas suas peculiaridades sabia-se a região e às vezes alguns mestres que transmitiam seus valores estéticos em suas oficinas. Na renascença, mesmo que as oficinas produzissem, havia o artista que nomeava esta produção. Mas é com o estudo da lingüística que o processo de exclusão do autor sobre objeto se define. A leitura do objeto de arte era um processo de interlocução, em que se colocava o produtor do objeto como emissor de um único ponto de visão e cabia ao receptor (leitor) identificar tal ponto. Mas a obra de arte é aberta a várias leituras, considerado, como foi afirmado no capítulo anterior, fruto de re-escritas, de influências e de outras obras. Assim o processo de interlocução começa a falhar, o emissor torna-se apenas um instrumento de aglutinação de conceitos estéticos e sintetizador dos mesmos e produz o objeto como um caleidoscópio, cambiante de acordo com o leitor, que está na outra ponta da interlocução. Como sintetizou muito bem Barthes no texto A morte do autor: “(...) a lingüística acaba de fornecer à destruição do Autor um instrumento analítico precioso, ao mostrar que a enunciação é inteiramente um processo vazio que funciona na perfeição sem precisar de ser preenchido pela pessoa dos interlocutores; lingüisticamente, o autor nunca é nada mais para além daquele que escreve, tal como eu não é senão aquele que diz eu; a linguagem conhece um ‘sujeito’, não uma ‘pessoa’, e esse sujeito, vazio fora da própria enunciação que o define, basta para fazer ‘suportar’ a linguagem, quer dizer, para a esgotar.”(Barthes, 1984:51) 203

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Dentro desta linha de observação, o artista é mero tradutor de uma rede de conceitos estéticos, não se apóia em um termo, pois este é derivado de vários outros, o seu único poder é o da ação, esta que manifesta sua propriedade de mistura, às vezes contraditórias entre si. O que há de concreto é o objeto manifestando estas ações anônimas que de tanto serem nomeadas tornam-se apócrifas. A simulação Como vimos no item anterior, cabe ao artista a ação, de posse desta consciência anônima do seu trabalho, ele simula, dá ao seu ato um verniz de fidelidade à autoria, dentro do sistema de veiculação do seu objeto a necessidade do nome é imperativa, assim o jogo permitido não identifica o disfarce. Como a arte sempre foi uma ação mimética, instalasse assim o kitsch, pois segundo Abraham Moles “o kitsch dilui a originalidade em medida suficiente para que seja aceita por todos.”(Moles, 1994:34) A coleção Pintar é fácil exerce este aspecto para o artista, transforma não só a originalidade como a própria ação em simulação dos mestres, assim o artista perdeu a única coisa que detinha, ser tradutor, sintetizador e ator neste processo. Diante de tal fato, o artista se insere no processo, o evidencia,o remonta, o cita, o redita. Andy Warhol foi o artista que prenunciou estes aspectos da obra de arte, deslocou a mimese da natureza para o signo, estereotipou o objeto, exaltou este processo a tal ponto que podíamos observar todos os detalhes, ele trazia para o lugar comum a obra, antes enaltecida e singular. Klaus Honnef explica:] “(...) o seu comportamento [de Warhol] ambíguo face aos fenômenos da realidade empírica corresponde a uma técnica de distanciamento pessoal, de pretensa objetividade e de recusa de envolvimento pessoal.”(Honnef, 1992:54)

Na obra Modelo para pintores amadores, Andy Warhol foi mais enfático quanto à perda da ação do artista. O quadro consiste(fig. 4) em desenhos esquemáticos cujas cores a serem colocadas indicam as cores estandardizadas pela indústria.Ainda explica Honnef: “O modelo dá impressão de um trabalho que requer uma grande capacidade manual e, contudo, ele é apenas um exemplar entre milhares de exemplares idênticos. Se todos aprendizes de pintor seguissem escrupulosamente as instruções do modelo, os resultados do seu trabalho não deveriam apresentar diferenças visíveis.” (ib.)

É natural que Andy Warhol expressasse desta forma apologética o consumo da obra de arte, pois a sociedade na qual expressou, de modo crítico, sua cultura assim acreditava.Em um contexto mais apropriado à cultura latinoRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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americana, o exemplo mais próximo a esta pesquisa está em Nelson Leiner. De certa forma o movimento Pop art afetou a arte latino-americana no sentido oposto à norte-americana, do seu foco matricial, permaneceu todas as entidades de significação como modelo da mimese, toda a semântica permaneceu, mas o enfoque deslocou para a realidade brasileira. A princípio Leirner declara: “ Na arte, a citação é absolutamente necessária. As artes plásticas são uma linguagem específica e somente por meio de sua leitura elas podem ser decifradas.”(Piza, 2001:41). Fica claro que a semântica da arte pop estabelece critérios exclusivos para abordá-la, mas há possibilidade de abrangermos tais critérios a um termo comum, incluir abordagens sistêmicas da lingüística, pois se são signos a forma na qual se elabora toda a sintaxe da semiótica, nos confere um exame mais arguto sobre as obras expressas. Daniel Piza coloca bem a abordagem pop nacional em face da sua matriz americana: “(...) Leirner está interessado em criar produtos ‘industriais’ que contestam a lógica do mercado. (...) está mais interessado em criticar o sistema “de dentro”, justificando assim seu “flerte com o pop e o kitsch’. Leirner também defende o hermetismo na arte e acha que o ‘jogo das citações’ impede que ela ceda aos interesses comerciais.”(ib.)

Fica claro que a pesquisa aqui apresentada converge para tal estruturação. Ao apropriar de todo o sistema de simulação da ação sobre o objeto artístico, insere-se aí o veículo de penetração sistêmico do jogo. O que impede a absorção na leitura da obra como objeto aceito, é o seu refazimento como procura da mesura entre o objeto aurático e o souvenir. Refazer com outros meios A Aura A obra de arte, desde os tempos primevos, se caracteriza pelo sistema de autenticidade, em que existe toda a configuração necessária para que este objeto se torne em si um termo que transubstancia o banal em matéria de veneração de culto. Todo objeto de arte contém este aspecto, porém do início do século passado aos dias de hoje, tal característica se transformou.Com os meios de reprodução, o habitável de culto se desloca para a mimese do próprio objeto de arte, restringindo o aspecto aurático do mesmo. Não mais existe dentro de tal objeto a configuração do “aqui e agora”(Benjamin,1993:165) que toda a obra de arte se apresentava antes do modo de reprodução da mesma. Com a apropriação tecnológica, o sistema de aura da obra de arte se transformou. Com meios eficazes de reprodução, a aura do objeto artístico atrofiou e em contra-partida a sua disseminação tornou-se um poderoso argumento para que o ator confirmasse tal processo. Para Walter Benjamin, no seu texto A obra de arte na era sua reprotudibilidade técnica, determina este processo: 205

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“O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é a sua aura. (...) Podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. (...) Na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido.”(Benjamin, 1993:168).

De fato a aura do objeto artístico, como colocado por Benjamin, se extingue, mas de outra maneira, dentro da manipulação sígnica, ela é enaltecida sob este aspecto. Segundo Honnef, a manipulação de Warhol é exemplo bem claro desta afirmação: “(...) Warhol inverteu pura e simplesmente o princípio ridículo dos modelos de quadros destinados aos diletantes: recorreu às técnicas da fabricação em massa, que aplica à sua maneira, cria séries de quadros que se distinguem uns dos outros e como tal, não só não põem em causa a unicidade da obra de arte, mas, beneficiam da sua aura. (...) é um original em que não existe um segundo exemplar idêntico. Não há dúvida de que é uma depreciação, que vai quase até ao irreconhecimento, do conceito de original, ao qual a arte contemporânea atribui importância desmedida, mas não a sua negação.” (Honnef, 1992:55)

Dentro do conceito de aura para Benjamin: “ É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.”(Benjamin,1992:167). A afirmação sobre as obras de Warhol de Honnef, permite concluir que no processo pop de Warhol ainda persiste a aura e a supervaloriza, tendo incluído este conceito nesta pesquisa. O reproduzir hoje A reprodução já está inserida na arte contemporânea como mais um meio de atuação do objeto artístico, não se tornou um paradigma e nem estandardizou a arte. O seu conceito vem desde da gravura japonesa, mas com o advento da imprensa e mais recentemente a lógica digital, o processo de reprodução expandiu as fronteiras do objeto artístico, podemos observar também a mudança ao contemplarmos hoje um objeto. O espectador de hoje obtém outras dimensões para que possa abordar a arte e foi com a reprodução que esta aconteceu. Com o aparecimento da rede de dados, o aparato artístico sofreu uma expansão de atuação, hoje não precisamos ir ao museu ou galeria para podermos conhecer a obra de arte, apesar estes são os meios ainda mais eficazes para fazer uma leitura de uma obra. Mas como meio técnico, a reprodução alcançou status de estrutura da obra, não só pela fotografia, mas com o vídeo e a imagem digital. O espectador já absorveu tais técnicas como novas formas de suporte. O artista, como toda a história da arte, adquiriu os meios técnicos que a sociedade cria para usá-los em suas ações. O computador é a ferramenta mais recente neste processo. A arte contemporânea acolheu este instrumento Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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cuja base é o poder da reprodutibilidade, com isto o objeto artístico recebeu um suporte novo, mas continua com propriedades que configuram a obra, tais como a ação citada no item anterior. A ação no espaço digital Ao analisar os meios de reprodução, colocando o computador como ferramenta que potencializa a mesma, podemos também analisar o processo de atuação do artista com estes meios. É sabido que a linguagem é o eixo estrutural da arte contemporânea e como tal se sustenta por signos. O ator enquanto leitor sempre absorveu o objeto de arte através destas mediações, considerando “atores” que vivem e atuam na América Latina e que teve como contato com objetos de arte através dos meios de reprodução, e naturalmente adotou tal meio como campo de sua ação. Todo o universo da significação que compõe sua ação é determinado por este princípio e com a acolhida do processo digital, este princípio se multiplicou. O ateliê do artista hoje não prescinde do computador e dentro desta pesquisa o ateliê tornou-se o próprio computador. Os programas digitais como o Painter, utilizado nesta pesquisa, simulam o ambiente da pintura, contém vários suportes, como pano e papel, podemos até escolher qual a melhor urdidura da tela para poder pintar, permanece o traço do artista, sua pincelada, as camadas de tinta, tudo que uma pintura real tem. A ação permanece única, mas agora no ambiente virtual, em que se pode armazenar indefinidamente os trabalhos, recuperar com mais facilidade os mesmos e divulgá-los mais rápido. O resultado final poderá ser a impressão em uma tela, pois há tecnologia que permite toda esta simulação. Com efeito, a simulação permeia toda a pesquisa, sempre embasada na conjuntura da sociedade neste início do século, o artista como ator não perdeu a percepção de tais mudanças. Conclusão Esta pesquisa se iniciou com a proposta de analisar a base da produção de um objeto artístico nos conceitos contemporâneos. A transposição da obra de arte em texto se definiu a partir dos conceitos lingüísticos europeus do início do século XX, mas, a estrutura operante da mesma se deveu aos encaixes conceituais necessários para obter uma linha de desenvolvimento que pudesse afirmar a atuação do artista como um homem do seu tempo.Foi observado que ao apropriar e citar uma obra de arte, a atuação na pesquisa não diferenciou do processo que vem na história da arte desde dos seus primórdios, e, ao analisar a própria história da arte como fonte inesgotável para esta pesquisa, manteve-se o caráter tradicional que outros artistas já se dispuseram da mesma. A pintura, como base desta pesquisa, se desenvolveu pelo mesmo pro207

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Marcos Venuto - Reprodução

cesso tradicional, são necessários todos os conceitos tradicionais da arte tais como desenho, manejo das cores, composição. O estudo das paletas dos artistas foi elaborado em função da saída final da impressão, usando padrões que a própria indústria gráfica utiliza, sem os quais não há controle sobre a pintura impressa. Tais procedimentos não são exclusivos do artista contemporâneo, do mesmo modo o gravador elabora suas tiragens, o que difere neste processo é a intenção única do objeto, a perspectiva da reprodução existe, porém, o artista se definiu pela unicidade do objeto. É necessário salientar dentro do ambiente virtual, no qual estas pinturas foram executadas, existem múltiplas ferramentas. As escolhas foram inevitáveis, pois dentro da metodologia aqui aplicada, houve a predileção pela pintura, como suporte mais tradicional da arte e para evidenciar melhor a simulação, foi neste termo que o processo tomou como base. Foi observado que todo caráter de autenticidade que o objeto artístico requer é fruto da necessidade da sociedade de nomeá-lo para facilitar o deslocamento do objeto para produto, agregando-se aí um valor, mas, é notado que todo o processo de execução utilizados meios que esta mesma sociedade utiliza para desenvolver seus produtos, porém a identificação do mesmo torna-se um problema, pois fora utilizado o manejo de diagramas pré-existentes e não elaborados pelo artista. A proposta da coleção Pintar é fácil (fig.5, fig. 6, fig.7, fig.8) e como


próprio nome diz se torna inócua, pois por mais que o diletante em artes se disponha a executá-la, terá que utilizar preceitos de desenho e pinturas, como veladuras, massa, transparência. A afirmação da necessidade do desenho, mesmo utilizando tais diagramas, foi o ponto mais crucial desta pesquisa. Pois ao se trabalhar a composição, foram utilizados processos que só no aprendizado do desenho se faz solucionar. A utilização dos meios digitais fora de valor inestimável, porém, poderia ser executado à maneira tradicional, podendo concluir que o computador e outros meios contemporâneos de execução são apenas instrumentos que podem ser agregados na ação do artista. A arte contemporânea coloca questões fundamentais ao processo do devir do objeto artístico, no entanto, ela guarda em si questões que começaram nos primeiros tempos, como a análise do belo, a necessidade do homem expressar através de reflexões proposta ao longo da história. O tempo atual responde pela sociedade que vive nela, o artista responde pela ação que este tempo proclama, a sociedade absorve tais ações, cabendo ao artista, através das mesmas, recolocar todas as questões, contemporâneas ou não, à mesma sociedade, que se caracteriza pelo seu espetáculo, pela necessidade de autentificar tudo que se coloca em frente a si. Ao refazer a obra de arte, o artista recoloca criticamente tudo que tais questões sugerem.

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IMAGENS CALEIDOSCÓPICAS Paula Fortuna “Por natureza, todos os homens desejam conhecer. Prova disso é o prazer causado pelas sensações, pois mesmo fora de toda utilidade, nos agradam por si mesmas e, acima de todas, as sensações visuais. Com efeito, não só para agir, mas ainda quando não nos propomos a nenhuma ação, preferimos a vista a todo resto. A causa disto é que a vista é, de todos os nossos sentidos, aquele que nos faz adquirir mais conhecimentos e o que nos faz descobrir mais diferenças.” Aristóteles (em Metafísica, ano 980)

Em um dos livros mais instigantes do século XX, “O Museu Imaginário”, André Malraux analisou o trânsito ilimitado de imagens na contemporaneidade. O prazer causado pela sensação de se ter tudo à mão encobre o fato de as imagens serem produzidas e recortarem apenas um aspecto de objetos ou cenas - um “punctum”1 como definiu Barthes . O ensaio fotográfico Imagens Caleidoscópicas é inspirado nas possibilidades criativas de construção de visualidades a partir do recorte fotográfico e da reflexão sobre a percepção visual e percepção da forma, não diretamente no campo teórico, mas através da plasticidade fotográfica e do efeito visual resultante das “imagens construídas”.. Trata-se de um trabalho lento, pensado, que nasce da imersão do fotógrafo no processo de busca do melhor ângulo, do melhor cenário, da melhor luz para o registro de uma idéia ou forma. É resultado de um esforço concentrado (e, porque não?, ‘fragmentado’), organizar elementos dentro do espaço fotossensível, criar pontos de concentração mental e perceptiva, ligamentos gráficos. A idéia do ensaio surgiu quando, ‘brincando’ no laboratório, produzi imagens invertidas de um fotograma e, ao colocar lado a lado aquelas fotografias espelhadas, veio a idéia de multiplicá-las diversas vezes com a intenção de gerar novas visualidades. A partir daí, meu olhar passou a buscar recortes em meus enquadramentos que poderiam gerar efeitos interessantes quando multiplicados. Por isso a associação ao caleidoscópio, instrumento ótico que, através de um conjunto de espelhos, produz desenhos variados e simétricos. Surge, então, com esse trabalho, a busca por um jogo misterioso de visualidades onde todas imagens são iguais, todas diferentes, duas distintas mas iguais e duas iguais mas diferentes. Imagens Caleidoscópicas é um convite à reflexão sobre a percepção visual e a percepção da forma. Sobre este tema escreveu-se extensamente, mas um dos estudos mais destacados foi realizado na Escola de Psicologia da Gestalt, fundada na Alemanha a começos do século XX, por Max Weitheimer. Um dos parâmetros básicos de sua investigação chegou à conclusão de que a questão é indagar e investigar como as pessoas são capazes de agrupar e organizar os 211

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estímulos visuais para que sejam compreendidos e signifiquem alguma coisa. Para buscar entender se, de fato nossa percepção, notadamente a visual, seria de alguma forma alterada ou modificada pelo dispositivo fotográfico, me debrucei sobre alguns textos de Rudolf Arnheim, onde é discutido o modo como percebemos o mundo visível, e me concentrei, principalmente, nas reflexões e nos pensamentos de Walter Benjamin e Roland Barthes acerca da fotografia enquanto técnica e linguagem. Nosso repertório contemporâneo de imagens parece ultrapassar toda e qualquer capacidade de atenção. Basta ligar a TV para se ter a simultaneidade dos acontecimentos mundiais durante 24 horas. A onipotência do acesso virtual a todas imagens presentes e passadas é também o atrativo comercial de CD-Roms e Internet. Cercados de imagens por todos os lados, descuidamos de qualquer participação no ato da visão: apenas nos distraímos, navegando aleatoriamente pelas telas. No ensaio “A saturação do olhar e a vertigem dos sentidos”(1996), Sérgio Carvalho observa que “o princípio perceptivo moderno, frente a esse caótico congestionamento de imagens em justaposição imediata, segue o princípio da montagem, baseado em uma percepção da espacialidade de modo superficial, fragmentário e descontínuo”. Ao propor um ensaio de composições fotográficas a partir de fragmentos de imagens, coloco a seguinte questão (inclusive defendida pela Gestalt): o conjunto é diferente à soma das partes numa imagem; que olhá-la como um todo não aporta a mesma experiência que quando olhamos cada uma das partes por separado.

No caso particular dos discursos sobre a fotografia, podemos identificar pelo menos três tendências que fundamentam, ainda hoje, as análises sobre a relação da imagem com o mundo por ela supostamente representado. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Fotos - Paula Fortuna

Imagens - do dispositivo à percepção (passando pelo “real”?)


Como sabemos, as tecnologias de produção fotográfica foram reconhecidas num primeiro momento como espelho do mundo visível, levando a tematizar sua capacidade de reproduzir o “real”. Simultaneamente a esta primeira tendência, passou-se a desconstruir essa suposta capacidade reprodutiva, reivindicando-se para a fotografia uma qualidade transformadora da “realidade”. Por último, e mais recentemente, presenciamos o aparecimento de uma postura híbrida, que se coloca entre as duas tendências anteriores, reafirmando o caráter transformador do dispositivo mas, ao mesmo tempo, reconhecendo a permanência de um certo traço do “real” por ele transformado. Notamos nesse percurso uma acentuada preocupação com os aspectos produtivos do dispositivo e sua ação sobre os objetos e fenômenos que vemos. Entretanto, pouca atenção foi dada à imagem fotográfica tomando-se ela mesma enquanto objeto ou fenômeno visível. Deste modo, deixa-se de considerar o que a fotografia tem de mais palpável e real que é a sua própria materialidade e presença diante daquele que a observa. Se é possível renovar o campo da pesquisa fotográfica, o foco de atenção deve agora privilegiar a relação que o observador de uma foto tem com aquilo por ela apresentado, discutindo o sentido dessa experiência no âmbito da nossa percepção visual. A modernidade estruturou as experiências sensoriais pelos marcos de uma nova tecnologia. No ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Walter BENJAMIN (1985) aponta a incorporação da técnica como extensão da mão e do olho na produção e compreensão de mensagens via imagens, implicando em um aparelhamento técnico da capacidade sensorial humana, com impactos no modo de existência dos indivíduos. Com a invenção das imagens mecânicas - como a fotografia e o cinema - o sentido da visão, o olhar, teve que se adaptar à velocidade e à multiplicação dos objetos e cenas a serem vistos. Em conseqüência, o corpo e a mente passam a sentir essa saturação do quê os olhos vêem2 . Como sentido privilegiado da modernidade, o olhar tem papel fundamental tanto na percepção e apreen213

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são da realidade do mundo exterior, quanto na mediação entre o indivíduo e a realidade objetiva e dinâmica. Através do sentido visual os homens acompanham as transformações nos campos material, espacial e psíquico da vida, pois é capaz de capturar o ambíguo, o efêmero e o fragmentado. Ao longo da obra de Benjamin existe uma atenção voltada para essas transformações e mudanças na percepção provocadas não apenas pela nova arquitetura urbana ou pelos novos elementos da vida moderna, mas pela inovadora produção imagética que surge no século XIX. Certamente, a partir dos atributos intrínsecos a uma dada tecnologia, como a fotográfica, podemos diferenciar as suas imagens daquelas produzidas por outros meios, como a pintura e a infografia, por exemplo. Contudo, somente pela observação daquilo que estas imagens apresentam seremos capazes de compreender qual a sua contribuição para a ampliação e o enriquecimento do nosso horizonte visual. Embora se situe numa época em que ainda se discutia a possibilidade de a fotografia ser ou não uma mimese do real (e as conseqüências desse problema para o seu caráter artístico), Walter Benjamin já antecipava as discussões posteriores, nas quais a questão central passa a ser o caráter do traço deixado pelo visível na superfície fotográfica. Roland Barthes3 , por sua vez, quando desenvolve a idéia de punctum, estabelece uma relação sutil com o inconsciente óptico de Benjamin. Para ambos, a fotografia teria a peculiaridade de dar visibilidade a aspectos do visível que o operador do dispositivo, nesse caso o fotógrafo, não seria capaz de ver e controlar no ato do registro. Ainda que seja possível uma aproximação entre as idéias destes autores, reconhecemos que, enquanto Benjamin pensava esse fenômeno como sendo da ordem do inconsciente, Barthes o divisava como algo de caráter involuntário. Poética e Metalingüística ... signagem fotográfica “Fotografia é ícone contra ícone, fixado pela ação da luz, que deixa no suporte sensível pegadas do objeto-referente, por essa forma reprocessado em signagem, em signoimagem”. Décio Pignatari

A fotografia é um sistema de signos, um medium, uma signagem. Sendo assim, ela afirma e nega o real ao mesmo tempo, codificando-o e permitindo questões básicas, como: o que é o real ? O estudante, o professor e o crítico podem não entender de semiótica, mas estariam completamente alienados se não compreendessem que a fotografia de um cachorro não é o cachorro-referente, assim como a palavra Totó não é o Totó-referente, nada impedindo que tanto a foto quanto a palavra sejam entendidas como signos-objetos em si mesmos. Não passaria pela cabeça de ninguém, mesmo leigo, confundir, por exemplo, uma foto 3x4, em preto e branco, bidimensional, com a cabeça real, em cores Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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e tridimensional (e viva, ainda por cima...). A tradução-codificação-decodificação do real efetuada pela câmera e quem a manipula obedece a circunstâncias tecnoculturais. A câmera é um simulacro do olho... ocidental. Se os chineses tivessem inventado a fotografia, provavelmente teriam desenvolvido câmeras decodificadoras do real em perspectiva paralela, sem ponto ou pontos de fuga, geradores de perspectiva segundo o ponto de vista, tal como é criação-tradição do Ocidente, desde o Renascimento. Não é preciso ir à câmera. Pode-se falar o mesmo do olho humano. O olho não é um passivo captador biológico-perceptivo do real: há nele um fator fundante do real. Assim como uma criança não lê o mundo da mesma forma como o faz o adulto, assim um tailandês tradicional não lê o mundo como o faz um homem ocidental. Várias são as funções da signagem fotográfica, e uma delas é a função poética (para empregarmos a famosa classificação de Jakobson 4), onde temos a fotografia enquanto arte, a fotografia enquanto escritura e enquanto diagrama criativo da e para a sensibilidade, uma síntese modelar de procedimentos formais possíveis. E se, juntamente com a função poética, a fotografia é submetida a uma operação de auto-revelação, de modo a exibir a sua própria natureza, a sua forma estrutural e o seu processo estruturante, a função metalingüística se entranha na primeira, tornando-se ambas hegemônicas. É o que se passa com as fotos que tendem à abstração: eludido e/ou elidido o objeto, a foto passa a ser seu próprio objeto, objeto do objeto: salta à frente o processo fotográfico, o ‘objeto fotográfico’ propriamente dito. Já não dizemos, de saída: “É uma janela”, ou: “É um vaso de flores”. Somos levados a dizer: “É uma fotografia.” Pois é nesta categoria semiótico-estética que o ensaio Imagens Caleidoscópicas inclui os foto-grafismos e as foto-texturagens. Tornam-se realmente visíveis a gramática e a ideogramática do universo icônico enquanto imagem resultante da escritura luminosa fixada quimicamente em termos de preto/branco, forma/não-forma, linha/plano, em geral bidimensionalizados; torna-se visível, enfim, a sua sintaxe, onde predominam a justaposição e os trocadilhos visuais - composições fotográficas que podem ser manipuladas e permitem a interação do espectador com as imagens. Quando se combinam, de modo dominante, essas duas funções, a poética e a metalingüística, temos o grafismo fotográfico que, em suas manifestações extremas, tende para o grau zero da escritura, ali onde tudo acaba e onde tudo começa, o ponto crítico de clivagem entre arte e não-arte, signo e objeto, produção e reprodução, autoria e anonimato, ordem e desordem, construção e desconstrução, idéia e nada ou coisa nenhuma.

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Imagem-Geometria 217

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Foto-Grafismos... reflexões acerca do ensaio Imagens Caleidoscópicas

Tornar-se escravo da luz é escravizá-la. Onipresente. Torná-la difusa para que envolva a imagem num clima único, plástico, misterioso. Luz-spot, dirigi-la para que escolha uma só fatia da realidade. Luminosa. Dividir o mundo em presenças e ausências, luzes e sombras: criar limites, induzir interpretações. Para construir um foto-grafismo não é preciso compasso, esquadro, régua. É só cativar a luz e a realidade, as duas. A luz-gráfica a desenhar linhas, formas, a sugerir volumes e a tornar o mundo o ‘mundo-de-um-instânte-só’, mais perfeito, mais geométrico do que ele é. Mundo-geometria, alguém já falou? Claro. “Aqui / no mundo da fotografia / entra só quem for geômetra”, afirma Cartier-Bresson, que levantou a poeira e desencadeou uma onda de ‘prós’ e ‘contras’. O mundo geométrico de Bresson seria gráfico? Não, mas rigoroso, a gerar imagens de composição apurada que erguem as estruturas feitas com elementos indispensáveis apenas. No caso dele, não são estruturas abstratas, mas humanas: traçados de linhas invisíveis amarram olhares, gestos, passos, posturas. Grafismo humano? Perfeição. Alcançar a perfeição através de uma economia dos elementos é o desejo de todo foto-gráfico. Será que existe um ‘grafismo por acaso’ ? Cheguei, percebi, registrei. Parece difícil. Descobertas ‘por acaso’, elas existem, sim. Momentos raros, raríssimos, quando mente, observação, experiência e percepção entram em atrito (ou em simbiose) e explodem...naquele momento. Faíscas do gênio. Como o foi a descoberta dos “rayogramas”5, desenhos e formas feitas pelas sombras fotossensíveis. ‘Acaso feliz’, fruto da distração percebida e canalizada a serviço da arte. Acaso produzido e explorado, matéria-prima dos grafismos de Man Ray, fotógrafo e pintor. O foto-grafismo, produzido ou recortado dentro da realidade, é fruto de uma observação consciente. Equilíbrio entre o tempo instantâneo, o tempoclic, o do registro, e o outro, o tempo vagaroso feito do pensar, observar e reobservar mais uma vez: o tempo lento da gestação. Imaginem o ‘ato fotográfico’ de um foto-gráfico. O ‘seu fragmento’ ele já o tinha percebido, aquele dia. Já esboçou o croqui em sua mente. Mas ainda não era aquilo. A luz incidente vertical demais; o vento a querer interferir a todo custo na perfeição da superfície, texturada e lisa, e o ar esfumaçante a tornar as formas embaçadas, indecisas. E eu, a fotógrafa, queria linhas puras, incisivas, decididas. Quantas vezes um fotógrafo volta ao lugar do encontro mágico? Não sei, mas sempre com aqueRevista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Página anterior - Foto Paula Fortuna

“Obras de artes visuais (...) são feitas exclusivamente para serem percebidas, e por isso o artista esforça-se para criar a representação mais forte, pura e precisa do significado que ele, consciente ou inconscientemente, pretende comunicar”. Rudolph Arnheim, em Visual Thinking


le medo latente: será que a ‘arquitetura do acaso’ não teria desmoronado? Se tiver sorte, não, e... clic, consegue sua imagem, o grafismo pensado e... captado. Realidade abstrata. Quando o fotógrafo toma a realidade como ponto de partida seu ‘ato fotográfico’ desmente toda a filosofia da fotografia: o da faculdade de parar o tempo. Os papéis se invertem. O momento (ou o espaço) já congelado está a espera do fotógrafo. Este não pára nada: é só cativar a luz-gráfica, recortar as superfícies e criar um clima feito dos espaços novos, misteriosos, banhados ou carentes de luz. Quadros, fragmentos sintéticos. Autópsia da realidade: penetrar não a matéria, mas a forma. Torná-la um quebra-cabeça límpido, de estrutura prevista, um caleidoscópio de imagens. As imagens feitas de linhas, faixas, texturas, gamas de preto e branco: matéria pulverizada e reorganizada. E, se por acaso, um dos espectadores tomar a liberdade (ou a fantasia) de ler a foto às avessas, ela não se tornará absurda. A imagem pode mudar de significado, mas o grafismo permanece coerente. Feito dos elementos amarrados manterá uma estrutura própria, intrínseca. Concentrar a visão, fragmentar a realidade. Fazer com que o olhar do espectador descarte junto com o fotógrafo o desnecessário e se deixe encantar, também, pelas formas puras que agora encontraram uma nova moradia: o espaço privilegiado, mas delimitado, da superfície do papel fotográfico. Imagens Caleidoscópicas... grafismos que penetram a matéria e cativam-na, feitos de realidade mudam o significado real. Desintegrando, criam mundos novos, visualidades novas e transformam a realidade fragmentada em síntese pictórica. Captam os elementos e os organizam dentro do espaço fotossensível, criam os pontos de concentração mental e perceptiva, ligamentos gráficos. E o leitor-gráfico? Este, por sua vez, vai apoderar-se dos elementos já selecionados e amarrá-los numa imagem. Com certeza, gráfica... mas será a mesma? Roland Barthes opõe duas maneiras de apreender uma mesma fotografia, o que chama de foto do fotógrafo e foto do espectador. A primeira emprega a informação contida na imagem, sinais objetivos, um campo codificado intencionalmente (studium). E a segunda emprega o acaso, as associações subjetivas de decodificação, e descobre na foto um objeto parcial de desejo, nãocodificado, não intencional, o punctum. Cada espectador apropria-se de certos elementos da foto que serão, para ele, como pequenos pedaços destacados do real. ( A esse respeito ver BARTHES, 1984) 2 A esse respeito ver, CARVALHO (1996) 3 Roland Barthes juntamente com W.Benjamin são autores que, no âmbito das teorias da fotografia, dedicaram-se ao estudo da especificidade da imagem fotográfica – tendo por motivação os efeitos que esta promove no espectador. 4 A esse respeito, ver JAKOBSON (1982). 5 Técnica mais comumente conhecida como fotograma, uma técnica que sintetiza o modo como as primeiras fotografias foram feitas: sem máquina ou qualquer recurso mecânico. Colocando objetos variados (folhas, moedas, chaves, embalagens plásticas, papel, qualquer coisa) sobre o papel fotográfico, expondo o conjunto à luz e processando , é possível gravar a silhueta 1

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desses objetos. Os fotogramas, em princípio, receberam nomes diversos, ao gosto de cada um de seus autores, como por exemplo, “perfis agenciados pela luz”(Wedwood) ou “desenhos fotogênicos”(Fox Talbot). Seu apelido mais recente, “rayograma”, deriva do nome de um de seus mais notáveis praticantes, Man Ray.

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Maria Angélica Melendi Artista plástica,doutora em Literatura Comparada (UFMG) e professora da Escola de Belas- UFMG. Janaina Mércia Alves Melo graduada em História (UFMG), formada pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG e mestranda em Artes Visuais na Escola de Belas Artes - UFMG Gisela Eugênia de Castro Alves Graduada em Decoração pela Escola de Design/UEMG e formada pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. Yuri Simon da Silveira Graduado em Desenho Industrial com Habilitação em Projeto de Produto pela Escola de Desing/UEMG. Formado pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. Mestrando em Artes Cênicas na Escola de Belas Artes - UFMG. Encenador teatral e ator. Cristovão Coutinho Bacharel em direito. Formado pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. Artista plástico e curador. Afonso C. M. Klein Licenciado em Educação Artística pela Escola Guignard/ UEMG. Formado pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. Artista plástico e web-design. Gracienne Tavares Camargos Graduada em Artes Plásticas pela Escola Guignard/UEMG. Formada pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. Artista plástica. Ronan Couto Graduado em História (UFOP), Artes Plásticas (FAOP). Mestre em Educação (UFMG). Artista plástico, professor da graduação e pós-graduação da Escola Guignard/UEMG. Coordenador do Centro de Pesquisa da mesma escola. Maria Márcia Franco Gomes Licenciada em Educação Artística pela Escola Guignard/ UEMG. Formada pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. É artista plástica e ilustradora. Sonia Assis Graduada em Artes Plásticas pela Escola Guignard/UEMG.Formada pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade. Professora da graduação da mesma Escola. Revista Pós-Graduação Escola Guignard-UEMG

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Fabíola Tasca Graduada em Artes Plásticas pela Escola Guignard-UEMG. Formada pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. Mestranda em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes - UFMG. Benedikt Wiertz Artista plástico e ceramista. Formado pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. Professor da graduação da Escola Guignard-UEMG Claudia Renault Graduada em Artes Plásticas pela Escola Guignard/UEMG. Formada pelo Curso de Especialização Artes Plá sticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. É artista plástica, curadora e gestora cultural. Professora do curso de graduação da Escola Guignard- UEMG. Evandro Castro Graduado em Psicologia (UFMG). Formado pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. Artista plástico. Juliana Mafra Licenciada em Educação Artística e Bacharel em Artes Plásticas pela Escola Guignard/ UEMG. Formada pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. Junto com a artista Érika Machado fundou a "Fabriquinha". Miguel Gontijo Graduado em História. Formado pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. É artista plástico. Sebastião Miguel Graduado em Artes Plásticas pela Escola Guignard/UEMG. Formado pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. Gestor cultural e professor na graduação da Escola Guignard- UEMG. Mestrando em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes- UFMG. Marcos Venuto Graduado pela Escola de Belas Artes- UFMG. Formado pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. Professor na graduação da Escola Guignard/UEMG. Paula Fortuna Bacharel em Comunicação Social. Formada pelo Curso de Especialização Artes Plásticas e Contemporaneidade da Escola Guignard/UEMG. Professora de fotografia da graduação na Escola Guignard- UEMG.

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Sebastião Miguel

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Esta edição terminou em dezembro de 2003. Fonte Garamond. Capa papel duplex 250g. Miolo papel apergaminhado 75g. Capa e projeto gráfico Sebastião Miguel. Impresso pela Gráfica e Editora Lima Ltda Rua Espinosa, 322 - Carlos Prates 30710 320 Belo Horizonte MG 31- 34113553 - graficalima@graficalima.com.br




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