Crianças e jovens no século XXI - Mesa 1

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os pais, se são eles que as falam ao bebê, as transmitem como eles as receberam. Nós a oferecemos tal como ela nos foi oferecida. Uma palavra que a memória armazenou e que retransmitimos ao bebê, que pertence à sua cultura, que pertence aos séculos que o precederam e na qual ele é ninado, às vezes, desde as primeiras horas de sua vida. Essas palavras das cantigas de ninar, dos contos, das historinhas, são de uma enorme riqueza semântica. Elas são, no plano da sintaxe, muito mais ricas que as pequenas palavras que falamos para a criança e frequentemente, possuem uma linguagem muito estruturada. Elas atraem a criança para uma linguagem e um pensamento extremamente construído e rico. Talvez a criança aprenda mais a falar, ou a falar bem, por meio de todos esses pequenos rituais como cantar, contar, ritmar, narrar, do que através das pequenas palavras que lhe são ditas. Em todo caso, são duas linguagens com funções diferentes. A linguagem de todo dia, que uma mãe murmura ou sussurra para seu filho, ou a linguagem pela qual ela também expressa sua raiva ou nervosismo, é antes de tudo, uma linguagem afetiva. Mas toda essa língua que passa pela narrativa curta ou longa, possui uma função sintáxica da linguagem. A criança aprende muito a pensar e a falar através desses pequenos rituais, que mesmo bastante

curtos, são extremamente ricos no plano da frase, do vocabulário, da sintaxe. Evidentemente a língua da narração, das coisas contadas, adere à uma linha melódica muito mais suave, no caso em francês – porque o português é uma língua bastante cantada. As cantigas, os contos e canções de ninar são ditos com uma voz mais doce e emotiva, mas sobretudo em uma linha melódica que se revela no final de cada frase. Mesmo se falamos, será um “falar” mais melódico e que difere da língua apenas falada. É muito importante lembrar que geralmente essas cantigas e contos que falamos ao bebê são ditos olhando para ele. Muitas vezes acontece um “cara à cara”, um “olho no olho”. O bebê pode até mesmo estar no nosso colo, e brincamos com ele, de barquinho, de cavalinho, falamos coisas à proposito de seus dedinhos, de seus pés, e muitas vezes o olhar do adulto repousa sobre o rosto da criança. Paira nesse momento um grande teor afetivo, alguma coisa que é carregada de emoção e que faz com que a criança goste muito. As crianças continuarão a falar, por conta própria, durante muito tempo da infância delas, todas essas cantigas e contos, e joguinhos de palavras. É sobretudo no recreio, na rua, no pátio que as crianças se apropriam de todo esse patrimônio oral, para se dizer, se contar, transmitir, brincar e se divertir com ele.

As crianças transmitem todo esse repertório muitas vezes sem passar pelo adulto, pelo menos no que diz respeito à esse repertório de cantigas e os que acompanham as brincadeiras de rua. Acredito que seja, para eles, um momento de grande criatividade. Eles estão fora do mundo adulto, eles brincam, estão entre eles, numa mesma faixa etária. Eles se transmitem palavras que pertencem somente à eles, jogos que caracterizam a geração deles. Pode-se até dizer que a criança, na medida em que cresce, joga esses jogos contra o mundo adulto; veremos aparecer os “palavrões”, as palavras obscenas etc. As crianças vão aproveitar dessa “linguagem-ritual”, bem deles, que lhe é autorizada e que nunca ou raramente é escutada pelo adulto, para se sentirem livres em relação à linguagem, em relação ao seu conteúdo. Elas podem dizer todas as bobagens e obscenidades que quiserem, faz parte da idade e elas se transmitirão tudo isso, dessa maneira. Por exemplo, falar as cantigas dá um grande prazer, brincar com a boca, “encher a boca”. De fato, existe algo de bastante sensual em todos esses pequenos contos que conhecemos de cor e que nos dizemos uns aos outros. Podemos dizer que as crianças brincam com a matéria da linguagem, com a matéria viva e carnal da linguagem. Isso é imensamente importante e acredito que elas tomam liberdade

1. Infâncias e histórias

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