Revista Devires

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o que seria um filme propriamente animista? Talvez valesse a pena investigar essa possibilidade... Cocorico! Monsieur Poulet (1974), etnoficção talvez a mais “compartilhada” entre Rouch e seus fiéis companheiros Damouré, Lam e Tallou, tem como motor um pano de fundo animista, já que os personagens atribuem os percalços de sua viagem, a bordo de um carro 2CV, à ação dos demônios que habitam as estradas. Nesse sentido, a viagem será povoada não apenas pelo encontro com uma estranha Diaba, caçadora de hipopótamos e elefantes, mas também com uma série de sacrifícios, realizados com a ajuda de um oráculo. Madame L’Eau (1992), que traz mais uma vez esses personagens, mostra como a implantação de moinhos à beira do Níger tampouco pôde ser realizada sem a consulta e o sacrifício aos espíritos. Vemos, assim, com Rouch, elementos animistas serem integrados às narrativas tanto as mais etnográficas, no sentido clássico do termo, como as mais ficcionais, o que envia para o fato de que, em Rouch, a etnografia como descrição da “realidade” e a ficção como criatividade que advém do processo da autoria múltipla estão em constante trânsito, para não dizer confusão produtiva e provocativa. Note-se que Rouch jamais deixa de ser autor de seus filmes, do mesmo modo que Wagner não recusa a autoria dos textos antropológicos. Trata-se, sim, de pensar uma outra experiência de autoria que se entrega a agenciamentos múltiplos. O sonho reverso Rouch enfatiza mais propriamente o desejo de uma antropologia reversa quando, em um debate travado com o cineasta senegalês Sembène Ousmane, ocorrido em 1965, afirma que seu sonho é que os africanos filmem no mundo ocidental, filmem em Paris. Ousmane teria lançado farpas aos africanistas europeus e ao filme etnográfico em geral, por retratarem os africanos “como insetos”. Rouch procura escapar dessa acusação, ao menos no que se refere ao seu próprio trabalho, alegando que o próprio da antropologia é oferecer um olhar estrangeiro, e que uma verdadeira postura de simetrização de saberes e práticas não seria dada apenas com a oportunidade de os nativos – no caso, os africanos – filmarem eles mesmos os seus problemas, mas também com a oportunidade de eles filmarem os seus outros – por exemplo, nós mesmos. Rouch afirma: “A antropologia que se presta a estudar a cultura francesa deveria ser praticada por gente de fora

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