Revista Desvio - 5º edição

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Revista Desvio / Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vol. 3, n. 2 (2018)-. Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018. Semestral ISSN: 2526-0405 1. Revista publicada por alunos da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2. Arte, memória e patrimônio. I. Revista Desvio. II. Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. II. UFRJ. CDD: 700

Revista da Graduação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro Ano 3 | n. 2 | dezembro 2018 ed. 5  |  dezembro 2018 3


EXPEDIENTE UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ Reitor Roberto Leher Vice-reitora Denise Fernandes Lopez Nascimento Pró-Reitoria de Graduação – PR1 Eduardo Gonçalves Serra Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PR2 Leila Rodrigues da Silva Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento – PR3 Roberto Antônio Gambine Moreira Pró-Reitoria de Pessoal – PR4 Agnaldo Fernandes Pró-Reitoria de Extensão – PR5 Maria Mello de Malta Pró-Reitora de Gestão e Governança – PR6 André Esteves da Silva Pró-Reitora de Políticas Estudantis – PR7 Luiz Felipe Cavalcanti (Superintendente Geral de Políticas Estudantis) ESCOLA DE BELAS ARTES Diretora Madalena Ribeiro Grimaldi Vice-diretor Hugo Borges Backx

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REVISTA Publicação Semestral de estudantes de artes do estado do Rio de Janeiro Ano 3 Nº 2 – Dezembro de 2018

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foto @germedemundo

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TEXTO EDITORIAL A Revista Desvio surgiu em 2015 movida por uma demanda: desengavetar os textos que graduandos em artes produziam em seus cursos. Nesta 5ª edição, após 3 anos de existência - tempo que compreende desde o período de gestação da revista - as demandas foram sendo substituídas por novas. Publicar não apenas graduandos, mas também pós-graduandos e os pesquisadores não acadêmicos. À essa, a necessidade do encontro, do compartilhamento não apenas com o público em geral, mas entre os próprios estudantes. À essa, os hiatos de produção de reflexão e conteúdo sobre pessoas, períodos e eventos tão caros e, proporcionalmente, tão desleixados pela tropa de elite da arte. À essa, por fim, a demanda de circular economicamente essa produção. Artista também paga conta. A diversidade do conteúdo que pode ser acessada nesta edição também é sobre tais demandas. De abordar duas margens nas artes: a sala de aula escolar e as africanidades. Além dos cadernos especiais, temos discussões desde acervos, museus e circuitos, corpo, memória e vida. 2018 foi um ano bem difícil. Perdemos Marielle. No segundo semestre, o incêndio no Museu Nacional e a eleição de um presidente declaradamente contra os direitos humanos, do trabalhador, da mulher, do indígena, do negro. A 5º edição surge como os hiatos na memória, que nos movem a criar algo que nos satisfaça enquanto versão, sem saber exatamente se esse algo nos satisfará. Mas, o gesto de decidir decidir é o que vira a chave. Optamos por. A crise ética que se vive no mundo em muitos aspectos e no Brasil com seus recortes, também deve lembrar que ela sempre esteve aí. Enquanto uma mulher não tiver o direito de decidir sobre o seu próprio corpo, a crise ética segue. Mas, essa, se manifesta de forma clara quanto atinge a todos. É o que vivemos. Em parte por não saber reagir às mudanças que vieram com a internet. Na maior parte por ter esquecido da fome. Pagamos em outubro o preço caro por ter esquecido que a fome existe e existe porque é uma engrenagem fundamental no funcionamento da máquina capitalista. Assim como a arte, dos grandes circuitos, também é. Não sabemos o que virá pelos próximos anos. Algo certo é, a Desvio segue em construção e iremos colaborar, dentro dos nossos humildes alcances, para denunciar, refletir e criticar o golpe em marcha no Brasil, mas também as falhas que a esquerda vem cometendo, inclusive no aspecto que diz respeito à arte. Desejamos a todos um bom fim de ano, coragem para o próximo e agradecemos os leitores e colaboradores que tornam a Desvio possível. Do Rio de ed. 5  |  dezembro 2018 11


Janeiro, nossa cidade base, de todo o país e do mundo. Essa é a lista de países em ordem quantitativa por acesso. Deixamos aqui um convite, nos escrevam! Queremos conhecer vocês! EUA, Portugal, Argentina, Irlanda, Canadá, Alemanha, Reino Unido, Espanha, Índia, Itália, França, México, Chile, Finlândia, Vietnã, Equador, Dinamarca, China, Suíça, Holanda, Colômbia, Austrália, Suécia, Japão, Noruega, Bélgica, África do Sul, Áutria, Paraguai, Angola, Polônia, Moçambique, Estônia, Honduras, Uruguai, Porto Rico, Namíbia, Peru, Rússia, Venezuela, Líbano, Coréia do Sul, Hungria, Tailândia, Filipinas, Guiana Francesa, Turquia, Ucrânia, Israel, Sérvia, Bolívia, Romênia e Laos.

Equipe Desvio Rio de Janeiro, 16 de Dezembro de 2018

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Sumário 16 | Texto Livre

■ Profissão: Artista de Camilla Braga

20 | Entrevista

■ Livro de artista na arte contemporânea: Junção de uma expressão política e poética de Bia Gonçalves

36 |Ensaio

■ Exercício de Queda de Antonio Gonzaga Amador

54 | Resenha

■ Semiótica visual: uma leitura de texto verbovisuais de Valéria Vicente Gerônimo

60 | Artigo

■ Argumentação contra a morte dos museus de Gabriela Martins André Brandão ■ Entre a memória e o esquecimento: os Xukuri-Kariri no acervo museológico de Palmeira dos Índios/AL de Aline de Freitas Lemos Paranhos ■ Estágio em espaços culturais: a ação educativa e sua relevância no contexto escolar de Andresa Carvalho Lopes Pires

92| Página dupla

■ Prêmio Genocídio de J. Medeiros ■ Medo do cacete de Matheus de Simone

96 | Caderno Especial - Africanidades

■ Crítica: A explosão de um canto interior de Pedro Carceceri

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■ Entrevista: Entrevista com Fernando Mourão de Claudio Fortuna ■ Relato de Experiência: Coletivo Descolônia: arte, afetividade e ativismo preto de Matheus Monteiro ■ Ensaio: Fongbé, Voduns, Nagotização e o Candomblé de Rennan Carmo ■ Artigo: Corpo negro colonizado e algumas implicações do imperialismo europeu sobre partes da África de Eumara Maciel dos Santos

179 | Caderno Especial - Arte-Educação

■ Crítica: A importância da arte no processo cognitivo de Danielle Mansur ■ Entrevista: Profissão: Professor de Artes - uma entrevista com Eduardo Souza e Mariana Paixão de Marcela Tavares ■ Relato de Experiência: Licenciando em Artes Visuais no Colégio de Aplicação da UFRJ: os quadrinho e fanzines em sala de aula de Lucas Almeida de Melo ■ Artigo: “Perder tempo”: uma prática necessária na arte-educação de Anna Carolina Rodrigues e Taylane da Silva ■ Artigo: Musicalização no ensino fundamental II: um estudo de caso na Escola Estadual Prof. Joaquim Luiz de Brito de Victor Muniz

244 | Artista da Capa ■ Laiza Ferreira

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TEXTO LIVRE

PROFISSÃO: ARTISTA POR CAM I LLA BRAGA Resumo: O que é ser jovem artista, diante do desmonte da cultura no país? Sabemos que a academia não é necessária para que sejamos artistas, mas quais são as expectativas daqueles que esperam que nós, jovens artistas, tenhamos um emprego após a graduação? A Arte não segue o fluxo tradicional de trabalho, então não estamos lidando com possibilidades tradicionais de sucesso. A conversa abaixo é fictícia, porém real. Não aconteceu de fato seguindo palavras exatas, mas acontece quase que diariamente na vida dos jovens artistas. Acontece com nossas tias na ceia de natal, com as amigas das nossas mães e com os vizinhos da nossa rua. Construo este diálogo a partir de experiências reais. Palavras-chave: Arte-vida, expediente, resistência, insistência. - Artes visuais. - Hã? - AR-TES-VI-SU-AIS. - Ahhh! Audiovisual! Legal! - Nããão, Artes visuais! Tipo Artes plásticas... - Ahhh, sim! E você faz o quê nesse AR-TES-VI-SU-AIS? - Eu sou artista. - Trabalha com arte? - Sim! - Legal, você pinta quadros? Minha prima se aposentou e tá pintando também... - Eu não pinto, não... - Que que você faz, então? - Eu desloco símbolos da sociedade e os reencaixo de um modo diferente do que são vistos. - Tipo o quê? 16  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


- Ah, tipo estruturas do mercado de trabalho, esse sistema doido monetário que a gente vive só pra trabalhar... - Entendi. E todo artista faz isso? - De certo modo, sim! - E isso dá dinheiro, menina? - Ainda não, mas ainda sou uma jovem artista. - Depois vai dar, né? - Espero que sim! - Entendi. E você trabalha com o quê, então? - Com isso! - E não pagam? Como que você vive? - Agora tá muito difícil, realmente... Depois do golpe a cultura sofreu muito, muitos cortes, editais que davam grana não dão mais, outros sumiram... - E por que você não vai fazer outra coisa? - Outra coisa? - É! Você podia trabalhar. Arruma um emprego minha filha, fica fazendo isso aí de hobby, sabe? Só no seu tempo livre mesmo... - Eu já tenho um emprego. - Ah, é? Você trabalha de quê? - Eu sou artista. - Não... Não tá dando, não... Isso não é profissão, você precisa de alguma coisa mais garantida. - Concordo... - Então... - Essa garantia deveria existir para todos os artistas, a gente recebendo pelo trabalho igual a todos os outros, precisamos reivindicar nossos... - Não, menina! Você tá muito sonhadora. Isso aí não bota comida dentro de casa. Vocês ficam filosofando o dia inteiro, tem que trabalhar para ajudar sua mãe. Fazer alguma coisa mesmo, sabe? Vocês só falam, pensam muito... - Mas esse não é o problema, o problema é que o mercad... - É, sim! O dia que você trabalhar com algo de verdade, vai ver. E aí você pode ficar nessa sua vibe aí só de hobby mesmo... Vai ter dinheiro e tempo pra fazer isso aí que você gosta. Por enquanto, isso não vai te levar pra lugar nenhum. Onde já se viu, hahahaha, Camilla é muito ed. 5  |  dezembro 2018 17


TEXTO LIVRE  sonhadora, gente! Quer ser artista! - Mas eu já sou! Camilla Braga. é Artista, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Sua pesquisa lida com o reposicionamento de símbolos do cotidiano, criando diálogo entre o trabalho funcional e o circuito de arte. Se interessa pela fetichização do sucesso a partir de um esforço puramente pessoal, que desconsidera demandas socioeconômicas externas. camillabragam@hotmail.com

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foto @carine.caz ed. 5  |  dezembro 2018 19


ENTREVISTA

LIVRO DE ARTISTA NA ARTE CONTEMPORÂNEA: JUNÇÃO DE UMA EXPRESSÃO POLÍTICA E POÉTICA

POR B I A GONÇALVES Resumo: Muitos de nós estamos acostumados com a ideia de um livro na sua forma convencional, que nos possibilita uma leitura linear. Seu suporte costuma ter uma dimensão e um percurso de leitura (início, meio e fim) pré-definidos. No Livro de Artista a desconstrução começa pelo suporte, considerando que o mesmo pode ser criado de diversas maneiras. São trabalhos que desdobram as possibilidades do objeto enquanto escultura, além de ressaltar a importância do Livro de Artista enquanto um espaço experimental, questionador e político, como um marco da atitude conceitual no Brasil. As entrevistas propõe uma investigação autoral sobre alguns artistas que, realizam na Arte Contemporânea trabalhos que dialogam, diretamente ou indiretamente, com Livro de Artista. Palavras-chave: Livro de Artista, Livro-Objeto, Arte Contemporânea.

Artistas Letícia Pumar possui formação acadêmica na área de história. Atualmente, realiza pesquisa de Pós-Doutorado sobre a produção e uso de imagens no campo da arte e da ciência na UFRRJ e segue sua formação artística nos cursos de Pintura de João Magalhães na Escola de Artes 20  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Visuais do Parque Lage – RJ. Robnei Bonifácio é formado em Gravura pela Escola de Belas Artes da UFRJ em 2013. Mestre em Linguagens Visuais pelo Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da UFRJ (2018). Em seu trabalho investiga maneiras de dialogar com espaço que habita através de desenhos, pinturas e propostas intersociais. Tem como um dos principais suportes seus cadernos de viagem, onde produz e coleta narrativas ao atravessar o espaço urbano. Marcella Araujo é artista visual carioca, graduada em Desenho Industrial – Comunicação Visual, pela PUC-Rio onde teve contato com artistas como Amador Perez, Germano Blum, Newton Montenegro de Lima, Tereza Miranda, Urian Agria. É aluna de pintura do artista João Magalhães, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Está no grupo Livro Inventado sob orientação do artista Marcos Bonisson, com participação nas feiras Tijuana no Parque Lage – RJ e na Casa do Povo – SP. Mateus A. Krustx é artista visual com trabalhos recorrentes em performance, arte digital, intervenção urbana, videoarte e na confecção de objetos aos quais denomina como automitológicos. Graduado em Artes Visuais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Integrante do coletivo de ações estético-políticas denominado “Seus Putos”. Participou de exposições e mostras de Artes em diversas instituições como: Paço Imperial; Parque Lage; e Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica.

Letícia Pumar 20/07

Bia Gonçalves: O que é Livro de Artista para você? Letícia Pumar: Primeiro preciso dizer que inicialmente não tinha ined. 5  |  dezembro 2018 21


ENTREVISTA  teresse em fazer livro de artista, não conhecia essa categoria. Comecei a fazer as aulas no Parque Lage e comecei a produzir meu trabalho, não via como uma área, um campo, não sabia direito. Imaginava que livro de artista era algo restrito a foto-livro, não era uma questão pra mim. Eu comecei a trabalhar com o livro por conta da minha trajetória, da palavra, da escrita. Bia Gonçalves: Agora depois de ter passado por esse processo, você consegue definir esse campo? Letícia Pumar: Essa possibilidade de você poder fazer esses cortes e costuras entre diferentes linguagens, entre palavra e imagem, entre campos de saberes diferente. O livro de Artista, ele possibilita essas costuras que eu tento fazer na sala de aula, na minha pesquisa de Pós Doutorado e na minha pesquisa artística. É uma questão que me move. Ele é um suporte interessante para ligar o processo de conhecimento com certo fazer artístico. Essa ideia pode vir em vários suportes, mas fazer referências ao livro tem a ver em como eu me posiciono no mundo. Bia Gonçalves: Quando você teve contato com essa temática? Letícia Pumar: Foi há pouco tempo, em um workshop do Marcos Bonisson, que ele chama de Livro Inventado, ele fala do livro sendo um mundo, tendo todas as possibilidades, como um mundo que nos abre. O suporte não é necessariamente um caderno ou um livro, pode ser, por exemplo, telas, mas que remetem a um livro, como acontece num dos trabalhos que estou expondo, na Galeria de Arte Ibeu. Tem ligação com o saber, com a vida. Sou uma pessoa que tem vários livros e que lida com eles como se fossem uma coisa apaixonante, algo pra ser usado. Normalmente sempre rabisco e amasso, não tenho essa preocupação de manter o livro direitinho. Tem uma importância, antes mesmo do trabalho artístico, na minha trajetória de pesquisa e docência. Penso no processo de conhecer. Interessa-me ver esses restos do processo de conhecimento. 22  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Bia Gonçalves: Você nunca tinha esbarrado com essa temática ao longo das suas pesquisas na graduação, mestrado e doutorado? Letícia Pumar: Não. Porque eu fiz tudo isso na área de história, e nesse processo todo não estava envolvido com essas questões, não era artista. Eu tinha relação com artes como apreciadora, não como estudante da área. Quando eu acabei o doutorado é que eu comecei a minha pesquisa na arte, a palavra e os livros com certeza foram suportes para as minhas questões, e fui para “artes” por conta desses “fazer”, um fazer que cria um mundo novo. Bia Gonçalves: Você define seu trabalho como Livro de Artista e qual a importância da nomenclatura? Letícia Pumar: Na verdade não. Porque passa por isso, é a minha questão primordial, mas não consigo limitar só nisso, tem questões da pintura, não fico fechada nessa questão. Entendo que tem esse campo e que eu dialogo com ele, que trago referências que trabalham com isso, mas não é só isso. Bia Gonçalves: Fale um pouco de como você começou a produzir. Letícia Pumar: Eu comecei a trabalhar com livro por questões pessoais, pensando o conhecimento a partir da emoção, articulando elementos pictóricos e gráficos, discutindo a relação entre imagem e palavra. E não por causa de algum campo. Quando eu vi o curso do Bonisson, foi onde percebi que estava dentro de um campo já organizado. Bia Gonçalves: Qual a relação da sua produção atual na construção da sua vida? Letícia Pumar: Muito interessante essa pergunta. Bom, quando eu leio sinto muita emoção, mas a forma que a gente lida com o conhecimento, com a leitura e a escrita são exatamente tirar essa emoção e o que faço agora é o contrário. Eu tento colocar emoção nas produções que faço. Hoje em dia, todo livro que eu compro da vontade de comprar dois, porque o segundo eu tenho vontade de escrever, amassar, rasgar, ed. 5  |  dezembro 2018 23


ENTREVISTA  cortar, pintar, escrever coisas... Bom, pra mim, o que faço agora é leitura, é uma forma de saber e de conhecer. Que vem de quando eu era nova, já existia essa relação com o livro e caderno. Agora, faz todo um sentido. Bia Gonçalves: Quais outras linguagens que se encaixam nos seus livros? Letícia Pumar: Cada um vai ter um jeito, no “Livro-Obra” tem pintura, corte colagem. Também costuro o livro usando pedaços de tela, fitas vermelhas, fotografias, ou faço anotação com canetas e muitos recortes no próprio livro, tirando um texto de uma página e colocando em outra. Bia Gonçalves: Você enxerga seu trabalho como um objeto político? Letícia Pumar: É totalmente isso, no sentido de que o conhecimento é algo político, num sentido amplo. O processo de conhecimento é um campo de batalha, temos que estar presente, a forma como lidamos com essas questões, e o que fazemos com ele é político. É o que eu tento discutir com os meus alunos e na minha pesquisa. Como diz Didi-Huberman, “para saber é preciso tomar posição” (HUBERMAN, 2009). Este título “Operando Cortes” que é uma série de trabalhos que estou fazendo, vem de uma frase do Foucault, “O saber não foi feito para compreender, mas para operar cortes” (FOUCAULT, 1979. p. 28), acho que é isso, como posicionamento. Na história das ciências se pensa essa relação do sujeito e objeto no processo de conhecimento, e de como o sujeito é visto como neutro, mas parte-se de uma ideia de sujeito como algo já pronto. A primeira coisa a fazer é fragmentar esse sujeito, desfazer essa ideia de sujeito, acompanhar como ele surge em cada ato, cada costura. Então é uma política muito fundamental, do dia a dia, como lidamos com o outro, com o trabalho, a academia, como compartilhamos conhecimento. Porque não sabemos sozinho, sabemos com o outro. Bia Gonçalves: Como você acha que público enxerga seu trabalho? E 24  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


como você gostaria que ele fosse visto? Letícia Pumar: Estou ainda acessando esse olhar do outro sobre o meu trabalho. Na última exposição que participei, tive contato com alguns visitantes e cada pessoa falava uma coisa diferente, foi muito bom. E vejo o quanto meu trabalho está em aberto. Acho que primeiro as pessoas são tomadas pelo trabalho, por algo que nos atravessa sabe, algo que você não entende, mas que te toma e você não sabe exatamente o porquê. Depois, acho que precisamos fazer circular e compartilhar com o outro, vejo que algo acontece e passa a existir: o toque, a materialidade no meu trabalho é muito importante, a obra que fica no “altar” e no “sagrado” não me interessa. Bia Gonçalves: Por último, você tem algum artista como referência? Letícia Pumar: Poderia falar dos artistas que eu estou pesquisando, que são o Francis Bacon e Robert Rauschenberg. Tem meu professor do Parque Lage, o João Magalhães, que é um artista que lida com essa questão da linguagem, ele fala do desejo de ultrapassar a linguagem, como em alguns dos seus últimos trabalhos que lidam com essa margem de indeterminação entre o gráfico e o pictórico.

Robnei Bonifácio 19/07

Bia Gonçalves: O que é Livro de Artista para você? Robnei Bonifácio: Um livro do Machado de Assis poderia ser livro de artista, só que nós, estudantes de arte, nos acostumamos a enquadrar a arte em categorias. É quase inevitável. Talvez muitas narrativas possam ser vistas enquanto livros, independente da forma que assumem. Bia Gonçalves: Você considera seu trabalho como Livro de Artista? Robnei Bonifácio: Sim. Pelo menos esse “O diário de viagens”, o corpo dele é um livro. Possui mais de um volume e ele vem em dois formatos ed. 5  |  dezembro 2018 25


ENTREVISTA  em que eu ficava patinando pra decidir, não sabia que cara dar, então tem as versões em livros de fato e um volume de páginas presas na parede, como um livro aberto. Bia Gonçalves: Gostaria que você falasse um pouco mais sobre esse trabalho “O Diário de Viagens”. Robnei Bonifácio: Trabalho... Então pra entender esse trabalho, tem que entender meu processo como artista e desenhista. Vem do meu cotidiano urbano, começava extraindo ideias e colocava no caderno. Tenho tomado os cadernos como livros de viajante. Usava-os como distração, de me desviar do mundo, depois eu repensei o que estava acontecendo ali. Pensei em usar os cadernos para me ligar ao mundo, porque eu coloco no caderno as pessoas que eu vejo na rua, situações no trânsito, como uma forma de me distrair do engarrafamento. Transformar o tempo em algo produtivo, treinando minha técnica de desenho ao invés de ficar parado, vendo uma forma de me alienar dessa situação que é o trânsito. Depois fiz o sentido inverso, que gerou o efeito contrário e deu origem ao projeto. Tornei-me mais lúcido ao entrar em contato com aqueles que eu retratei. Passei a entrevistar os passageiros, tornando a experiência de desenhar mais diretamente afetiva. Como Elilson, um artista e amigo meu disse certa vez, foram “amizades passageiras”. Assumi o aeroporto e rodoviária como ateliês pelo período de 2 anos. Entre 2012 e 2013. No início, foi difícil falar com os passageiros, mas com o tempo fui tomando coragem. O fato de estar gastando dinheiro de passagem para chegar aos terminais me motivou um pouquinho. O mais bacana foi ver que a grande maioria das pessoas aceitava participar do projeto. Pedia permissão a elas e em seguida posavam para mim por uns 15, ou 20 minutos. Na verdade, eu pedia uma série de coisas: que me deixassem seus nomes escritos nas páginas do mesmo caderno onde foram retratadas e que me dessem qualquer objeto como lembrança. 26  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Bia Gonçalves: Vamos chamar seu Livro de Artista de “Cadernos”? Acho que você se sente mais confortável, do que encaixar seu trabalho em um campo específico. Robnei Bonifácio: Sim. Eu tenho dificuldade em dar nome às coisas. Bia Gonçalves: Você já pesquisou sobre Livro de Artista e Livro Objeto? E quando você se deparou com esse termo? Robnei Bonifácio: Não pesquisei. Mas, foi durante a faculdade, ao mesmo tempo em que eu cursava a UFRJ, tinha o Parque Lage, nesses dois ou três anos de formação eu ouvi falar em Livro de Artista pela primeira vez. Bia Gonçalves: Conta-me sobre essa dificuldade em dar nomes para os trabalhos. Robnei Bonifácio: Acaba ficando algo muito óbvio, e acabo me rendendo. A própria série de cadernos, que são vários, mas considero sendo um só. Comecei a pensar muito mais em questões relacionais, afetivas para trabalhar artisticamente, eu gosto de coletar e compartilhar narrativas. A afetividade em relação a alguém ou algum lugar podem resultar em um livro ou não. Nunca defino logo de início. Os cadernos funcionam como base de exercícios, tradicionalmente é assim que funciona, né?. Bia Gonçalves: Você também faz a encadernação nos cadernos, quando começou essa produção? Robnei Bonifácio: Aprendi a fazer cadernos na faculdade. Duas amigas me ensinaram: Lara Miranda e Jade Mascarenhas. Bia Gonçalves: Você lembra-se de ter contato antes da faculdade? Robnei Bonifácio: Legal você ter falado disso, porque grande parte da minha produção antes da faculdade se dava em cadernos, desde moleque eu pegava folhas soltas para desenhar e não muito depois me acostumei em ter cadernos. Na faculdade eu aprendi a fazê-los. O Interesed. 5  |  dezembro 2018 27


ENTREVISTA  sante de fazer cadernos é que se tem liberdade para editar, o conteúdo, tipos de folhas. Bia Gonçalves: Aproveitando sua última fala, quais outras linguagens que entram na sua produção? Robnei Bonifácio: Pintura, colagem, caminhadas, aulas, e aquarelas ultimamente. Bia Gonçalves: Você consegue falar mais um pouco do seu processo criativo com um todo? Robnei Bonifácio: Em relação às pinturas, eu faço a partir dos cartazes de rua, a partir do que este ali: nome da rua, nome que me chama atenção que eu posso colocar na tela, toda uma coletânea. Outra técnica também seria a colagem, que entra com a pintura. Recolho-os nas ruas e insiro-os nas telas e nos cadernos pra fazer capas. As pinturas servem como uma cartografia, cada informação é um pouco do lugar em que eu passei, as pinturas acabam sendo um registro das caminhadas e deslocamentos que faço pela cidade. É uma maneira de o subúrbio existir nas pinturas também. Bia Gonçalves: Você enxerga seu livro como um objeto político? Robnei Bonifácio: Não sei se estou sendo ingênuo, acredito que qualquer fazer artístico é um ato político. Se você se propõe a fazer arte, isto já é um ato político. Bia Gonçalves: Como você acha que o outro recebe/enxerga seus livros? E como você gostaria que fossem recebidos? Robnei Bonifácio: Nunca tinha pensado nisso. Obviamente é importante que gostem né? Os meus trabalhos tem um caráter social e daí político também. Se eu puder fazer a diferença na vida de uma pessoa através deles, já está bom. Se quem vê o trabalho voltar mais pensativo para casa já estou no lucro. Bia Gonçalves: Tem algum artista como referência? 28  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Robnei Bonifácio: Mark Bradford. Pintor afro-americano, de Los Angeles. Trabalha a partir de cartazes de rua. A pintura dele simula uma abstração, mas se trata de uma cartografia da cidade em que vive. Além disso, trabalha com ações sociais no bairro em que vive. É uma inspiração muito direta para mim.

Marcella Araujo 23/07

Bia Gonçalves: O que é Livro de Artista para você? Marcella Araujo: Acho que todo artista é um colecionador, chega uma hora que você não consegue fazer, mas ao mesmo tempo tem uma necessidade de pôr pra fora suas ideias ou pensamentos. E Livro de Artista é uma forma de executar isso, de uma forma imediata. Mesmo que venha fazer o trabalho um tempo depois ou pelo menos transpor aquele pensamento. Comecei a fazer o livro de artista por falta de espaço, não tinha espaço pra produzir, fiquei pensando sobre essa falta de espaço. Por formação, eu sou Designer, já fiz um curso de diário gráfico, que são interferências em livros, mas em um determinado momento, vi que poderia ter um trabalho direcionado pro livro, que continua próximo do que é um Sketchbook, porém tem uma vida própria, não é só uma experimentação. Bia Gonçalves: Fale um pouco da sua formação. Marcella Araujo: Sou Designer, formada pela PUC. Sou aquela pessoa que sempre desenhou e em um determinado momento precisei me reencontrar com a arte pra ter alguma felicidade. Bia Gonçalves: Você teve contato com essa temática durante a graduação ou depois? Marcella Araujo: Depois, tem pouco tempo. Foi quando comecei a evoluir como artista e percebi que precisava expandir a minha pintura e pensamentos. E eu não tinha muito espaço, tive que lidar com o esed. 5  |  dezembro 2018 29


ENTREVISTA  paço poético não tendo espaço físico, e comecei fazendo performance. Teve uma tarefa que o professor propôs a anotar nossos pensamentos todos os dias ao acordar, a partir dessa proposta de exercício que comprei meu primeiro caderno e comecei a escrever, e isso foi crescendo. Bia Gonçalves: Até que ponto a nomenclatura é importante nos seus trabalhos? Marcella Araujo: Afirmo porque alguns trabalhos são totalmente ligados ao Livro. O livro é o registro. Bia Gonçalves: Quais outras linguagens você acrescenta na sua produção? Marcella Araujo: Trabalho com pintura figurativa e uma questão ligada à empatia. O Livro é legal por isso, a possibilidade de alguém pegar o livro, folhear, se relacionar é algo que me interessa. Tenho muitas questões ligadas com feminismo, mas como algo da humanidade, apesar das críticas que recebo em relação a isso, hoje em dia eu não falo mais essa palavra. Muitos sentimentos que passamos por sermos mulheres, muita gente passa também, é aí que entra a empatia, acho que é mais fácil pra gente perceber o outro. Falo das perdas e dores causadas por injustiças, que não podem ser curadas, que a gente tem que guardar e encarar, independente de sermos mulheres ou não. E isso está muito presente no meu trabalho. Bia Gonçalves: Você considera seu trabalho político? Marcella Araujo: Não tem como não ser. Gostaria de dizer que meu trabalho é mais atemporal, porque talvez seja, mas não tem como não ser político. Bia Gonçalves: Como é seu processo criativo? Marcella Araujo: O primeiro caderno que eu fiz, ele foi totalmente relacionado ao espaço. O primeiro, feito em 2017, pode se confundir um pouco com o Sketchbook, porém tinha um pensamento, eu escrevia nele toda manhã e fazia páginas com várias técnicas e muitos dos 30  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


pensamentos que anotava estavam relacionados ao espaço, em como expandir sem ter espaço, comecei uma pintura em páginas encadeadas uma com a outra, dei o título do livro de “Pequeno Caderno de Grandes Pinturas”. Ler a pintura folheando é como se você enxergasse um quadro como uma história. Esse livro se desdobrou no pensamento a respeito do espaço que cada um ocupa, surgiu necessidade de fazer o segundo Livro, preparando fundos para inserir a figura humana em tamanho natural, que se chama “Caderno de poses para morrer” começo me desenhando fatiada no caderno, uma parte do corpo ocupa cada 2 páginas, lidando com o espaço que cada um tem. E o terceiro Livro é o que envolve a performance, preparei um livro com fundos abstratos, na performance, eu ia construindo uma trilha até encontrar alguém, então parava, abria o livro e desenhava a pessoa sobre os fundos. Bia Gonçalves: A encadernação é um fator no seu trabalho? Marcella Araujo: Essa preocupação está começando agora. No início de 2018 participei de uma exposição e fiz um trabalho falando de aborto, que são umas caixas de lenços pintadas por fora e recheadas com lenços tingidos de vermelho que teve uma consequência para um novo Livro de Artista, chamado “Aprendendo a lidar com o que sobra” utilizo só os lenços que despencam do montinho como páginas encadernadas. Bia Gonçalves: Como você acha que o público enxerga seu trabalho? E como você gostaria que fossem recebidos? Marcella Araujo: Tenho uma recepção de alguns amigos (não artistas), que querem colocar os trabalhos na parede, mas gosto muito que mexam nos livros. O “Aprendendo a lidar com o que sobra” tem uma recepção muito boa, as pessoas adoram. Algumas pessoas tem nojo, porque relacionam com sangue, outros acham romântico. Bia Gonçalves: Você tem alguma referência artística? Marcella Araujo: Eu adoro o Anselm Kiefer, ele tem uns livros enormes

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ENTREVISTA  que envolvem com pintura e matéria. O Artur Barrio e as Lygias.

Mateus A. Krustx

11/07

Bia Gonçalves: O que é Livro de Artista para você? Mateus A. Krustx: Eu posso dizer muitas definições do que seria um livro de artista, mas os meus cadernos e assim como os meus livros, lugares onde eu assino minhas questões e começo meus trabalhos, e começo a juntar toda essa relação com o mundo a minha volta. Ao mesmo tempo esse objeto de fetiche e de afeto, é uma paleta de pensamentos e ideias, de tudo que me cerca. É como se o livro fosse o registro de todo um momento processual, sentimental, poético, espaço de reclamação, de escuta, de acúmulo e de informação. E os meus livros tem uma importância tanto para a minha produção como a minha vida pessoal, então eu junto às duas coisas no livro. Bia Gonçalves: Percebe a diferença entre Livro de Artista e Livro-Objeto? Porque você cita seu livro como objeto. Mateus A. Krustx: Eu entendo a diferença, mas o livro de artista está nesses dois lugares. Na minha pesquisa recente entendo como mitologia do indivíduo, e essa mitologia traz todos os simbolismos e tudo que cerca esse indivíduo como um objeto, assim como minha caneca (o artista está se referindo a uma obra que o pertence), que era um objeto, mas que também carrega um valor sentimental, um valor na minha produção e o livro não foge dessa ordem. Eu costuro e faço dele um objeto, mas o vejo como Livro de Artista em toda essa trama e construção. Um livro como produção. Bia Gonçalves: Até que ponto a nomenclatura é importante? Você a torna presente no seu trabalho? Mateus A. Krustx: Olha, pode ser chamado de Livro de Artista e tam32  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


bém como Objeto Autoficção ou Automitologia. Como trabalho expositivo, eu não sei como funciona, tanto que estou tendo problemas com a exposição no trabalho final da graduação, porque todas essas definições ficam abertas. Bia Gonçalves: Tentar colocar seu livro em uma “caixa” é difícil pra você? Mateus A. Krustx: É difícil. Porque o livro tem os meus processos e o fetiche do objeto. É... Não sei. Bia Gonçalves: Quando você começou a produzir os livros, antes da faculdade ou depois? Mateus A. Krustx: Desde que eu me entendo por gente, sempre tive livros e sempre escrevi e rabisquei. Lembro-me que com onze pra doze anos comecei a fazer pequenos livros, comprava cadernos de arame e fazia capas de papel machê, começando a ter pequenos cadernos, costurando, escrevendo histórias, e nessa época eu já tinha um personagem. Fiz um caderno para o personagem e dentro dele tinha minha vida, minha vivências. Quando eu entrei na faculdade comecei a pensar esse livro de outra forma, em uma aula, professxr Sara Panamby sugeriu que tivéssemos livros de artista, para começar a escrever nossos processos no livro. Bia Gonçalves: Você teve contato pela primeira vez com essa temática aqui na faculdade? Mateus A. Krustx: Sim. Nessa disciplina, Sara mostrou livros maravilhosos, com páginas excessivamente escritas, uma escrita forte e a partir disso eu transformei a imagem do que eu tinha construído de escrita e comecei a escrever mais coisas importantes do que só rabiscos e reclamações. Comecei a construir meus livros de maneira realmente propositiva. Bia Gonçalves: Quais outras linguagens artísticas seus livros se encaixam e como é seu o processo criativo? ed. 5  |  dezembro 2018 33


ENTREVISTA  Mateus A. Krustx: Considero-o como uma paleta, então cada página vai ter um processo, como: uma colagem, uma pintura, um rabisco, algumas páginas o trabalho permanece no livro, sem desdobramentos. Mas a maioria acaba tendo outra chave que se desperta, acredito que o livro tem uma potência como trabalho e também como experimental, para depois sair das folhas, mas algumas folhas se concluem por si só. Mas envolvem muitas linguagens, algumas situações eu projeto o trabalho no livro e depois pego o resquício do trabalho, como uma foto ou desenho e devolvo para o livro. Ele se completa. Bia Gonçalves: Você enxerga seu livro como um objeto político? Mateus A. Krustx: Olha, essa palavra é um pouco complicada, porque as páginas são muito diversas e o meu processo também. Claro que envolve questões de identidade e de gênero, corpo, mas depende muito do que está na folha. Então, tem trabalhos que eu penso de forma política e acabam reverberando no livro, coisas que vou coletando em manifestações e colo no livro. Têm questões relacionadas à universidade, momentos de greve. Tem muitas “janelas”, e trabalhos como crítica à política atual. Bia Gonçalves: Como você acha que “o outro” enxerga seus livros? E como você gostaria que seus livros fossem recebidos? Mateus A. Krustx: Isso pra mim não é uma questão. Não sei. Ao mesmo tempo em que o livro é um objeto de fetiche, também é um espelho do que eu sou e o que eu penso. Alguns trabalhos saem da minha cabeça com uma página inteira escrita e depois eu leio e se transforma em outro trabalho. Ou com contato direto, mostrando o livro pra outra pessoa, também é possível. Então, o livro é essa possibilidade de juntar a minha camada, o que me envolve, e o outro. Bia Gonçalves: Pensando nesse campo dos livros, tem algum artista como referência? Mateus A. Krustx: Os meus Cadernos Automitológicos estão ligados 34  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


ao contato com Sara Panamby. Foi um start para começar a pensar nos livros como uma ferramenta, como um instrumento de produção artística. Bia Gonçalves tem sua formação em Artes Visuais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 2018, atualmente é assistente de Arte na Galeria Ibeu. Sua pesquisa tem tratado do Livro de Artista como base para uma investigação sobre o tripé: suporte, conceito e registro. Recentemente opto por tratar do espaço experimental e questionador no livro de artista como um marco da atitude conceitual. Com a produção de cadernos e da apropriação de livros propondo uma criação inter e transdisciplinar. Email: bgoncalves.art@gmail.com

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ENSAIO

EXERCÍCIO DE QUEDA POR ANTO NIO G O NZAGA AM ADOR Resumo: Exercício de queda apresenta uma reflexão prática e teórica sobre o meu processo artístico em desenvolvimento. É abordado como o ato de cair pode estar intrinsicamente ligado à prática artística e seus processos contemporâneos. Com Freud irei pensar uma memória corporal que surgirá a partir da disciplina de exercícios. Com Ribeiro criarei um corpo de imagens que podem constituir o meu corpo em queda. Jorge e Kafka irão me auxiliar a imaginar o processo de cair e o que existe para além do chão. Ao mesmo tempo, será proposta uma metodologia de exercícios que condicionará nosso corpo para uma queda física e textual. Palavras-chave: Queda; Cair; Exercício; Corpo. A primeira vez é difícil. Você não responde muito bem a instrução, sente-se desengonçado. Existe um incômodo entre a intenção de realizar e a resposta do corpo. Vamos começar devagar. Deitado com a barriga para cima. Agora, erga seus braços até a altura do peito. Desça seus braços na lateral do seu corpo e bata com a palma da mão no chão. Ao mesmo tempo em que seus braços descem, a sua cabeça faz o movimento de encostar o queixo no próprio peito. Repita o movimento até que o incômodo passe. Esse é nosso primeiro exercício. Colocar-me em exercício é um dos métodos fundantes da minha prática artística. O exercício e sua constante execução proporciona uma experiência de aprendizado e conhecimento da matéria que é exercitada. Qualquer matéria pode ser exercitada na medida em que elaboramos que o exercício é a relação de si com um método, uma rotina e um objetivo. 36  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


No meu caso, a matéria que busco exercitar é o meu corpo. O método, de uma maneira geral, será pensado em perspectiva norteada por uma condição ética, estética e espiritual comigo mesmo, o cuidado de si. Cada trabalho irá demandar um método restritivo a ele, para além desse método geral. Neste que realizamos agora, gostaria de exercitar a experiência da queda. A rotina é construída em conjunto com o método (tanto o geral quanto o restritivo) e a matéria a ser exercitada. A rotina, muitas vezes, terá um caráter de repetição. A repetição possibilita um aprendizado com a matéria. A repetição possibilita um aprendizado da matéria. A repetição possibilita um aprendizado pela matéria. Até um ponto que você consegue dar um passo adiante. Será pequeno, mas será um passo. Aquele incômodo passa. A principal dificuldade que temos com a rotina somos nós. O objetivo é o lugar onde queremos chegar, o que queremos fazer. Mas, não necessariamente, o mais importante. Na minha prática artística, tenho a intencionalidade de mover esse lugar fixo do objetivo para o processo de trabalho. Mudá-lo de um ponto fixo e pulverizá-lo por todo o processo do labor artístico. O objetivo é rotina e é método. Uma geleca maleável. Ao mesmo tempo em que movo esse lugar, também me movo por ele. Se meu objetivo está pulverizado no processo, também preciso pulverizar-me junto dele. Essas pequenas digressões podem ser lidas como as maneiras que realizo e pesquiso arte. Experimento e exercito meu corpo e as coisas que o perpassam através desse labor rotineiro e metodológico. Continuando nossa experiência com a queda, em práticas de exercícios corporais realizados cotidianamente e por um longo período de tempo podemos observar uma “memória do corpo” constituída pelo treinamento. Gostaria de pensar essa memória específica com a ajuda de Freud em Nota sobre o ‘bloco mágico’. É inviável para minha escrita, e seu exercício, não pensar que corpo é esse que cai. Quais são suas experiências com a queda e que imagens fulguram no instante que esse corpo está no ar. Busco auxílio para essa ed. 5  |  dezembro 2018 37


ENSAIO  questão com Djamila Ribeiro em O que é lugar de fala. Quais são as outras possibilidades da queda para além do chão? O que acontece depois de cair? Qual é o nome da sensação que nos leva a querer a queda? Vamos escavar em Kafka indícios para essas dúvidas no conto Um sonho. Realizaremos esse trajeto truncado conjuntamente com nossos exercícios. Na medida em que praticamos com o corpo, elaboramos nossas reflexões sobre o fato. Vamos nos preparar para a primeira queda. O CORPO LEMBRA. Vamos nos sentar com as pernas esticadas. Tente sentir os ísquios nesse momento. São os dois ossinhos no quadril que estão contra o chão. Eles são seu apoio. Estique seus braços para frente, com as palmas viradas para baixo. Tome uma respiração. Desça suas costas em direção ao chão devagar. Ao mesmo tempo em que você desce as costas, suas pernas sobem esticadas. É um movimento pendular entre a coluna e as pernas, cujo eixo será seu próprio quadril. Junto desse movimento, iremos colocar o movimento praticado anteriormente. Os braços irão descer na lateral do seu corpo e as palmas das suas mãos irão bater no chão. A cabeça repetirá o gesto de levar o queixo ao encontro do peito. Costas e braços descem. Pernas e cabeça levantam. Repita até conseguir sincronizar braços, pernas, cabeça e costas. Esse é nosso segundo exercício. A instrução desse exercício pode parecer, em um primeiro momento, de uma complexidade grande. Entretanto, existe um vão entre o texto e o corpo. O texto de onze linhas anteriores pode ser realizado em alguns segundos. O contrário também pode acontecer: corra por uma hora. O vão é algo que os une, na verdade. É pelo vão que ambos, textual e corpóreo, demonstram suas possibilidades plásticas, manipuláveis. Alongamentos e contrações. Explosão e resistência. Trabalho e disciplina. 38  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Ainda sobre o nosso exercício, é interessante pensá-lo a partir de uma perspectiva de inscrição sobre inscrição. A primeira inscrição se dá na prática dos braços e da cabeça. Sulcamo-la no nosso corpo, com nosso corpo. Repetindo-a até o momento em que há a gravação e o corpo adquire uma memória, nós possuímos uma memória do movimento corporal: Quando desconfio de minha memória (...), posso completar e garantir sua função tomando notas. A superfície que conserva a anotação, a caderneta ou folha de papel, torna-se como que uma porção materializada do aparelho mnemônico que carrego em mim, ordinariamente invisível. Se tenho presente o lugar em que foi acomodada a “recordação” assim fixada, posso “reproduzi-la” à vontade, a qualquer momento, e estou seguro de que ela permaneceu inalterada, ou seja, de que escapou às deformações que talvez sofresse em minha memória. (FREUD, 2011, p. 242)

A memória do qual falamos é diferente da memória que Freud desconfia, porém é interessante refletirmos que ambas se dão através de um mesmo mediador, o corpo. O corpo é um aparelho pelo qual percebemos o mundo e, ao mesmo tempo, somos nós. Ao pensarmos o corpo como um aparelho que atua em conjunto com o aparelho mnemônico, certas memórias que carrego em mim se apresentam materializadas.

A memória corporal nada mais é que o resultado de um treinamento metódico e disciplinar pelo corpo para o desenvolvimento de alguma habilidade específica. Assim, existe a possibilidade de pensar esse aparelho, ordinariamente, visível e invisível, simultaneamente. A segunda inscrição acontece com as pernas e coluna. Colocam-se sobre a primeira inscrição os movimentos da segunda inscrição. É simed. 5  |  dezembro 2018 39


ENSAIO  ples, é uma interligação, é sequência, é uma dança. Um passo de cada vez, uma inscrição por vez. Até atingirmos completamente o chão. Baque seco da exaustão. Ao ouvirmos, aprendemos. Essas inscrições se fazendo no corpo podem ser uma possibilidade do lugar em que foi acomodada a recordação mencionada por Freud. O corpo move-se e é movido por essas inscrições. Algumas realizadas por mim, outras impostas a mim, mas todas inscritas através dele. Corpo perceptível. Tudo passa por ele. Nada passa sem o seu saber: (...), o Bloco [mágico] fornece não apenas uma superfície receptora que sempre pode ser usada novamente, como uma lousa, mas também traços duradouros da escrita, como um bloco de papel normal. Ele resolve o problema de juntar as duas operações ao distribuí-las por dois componentes – sistemas – separados, mas inter-relacionados. É exatamente dessa maneira que, segundo a hipótese há pouco lembrada, nosso aparelho psíquico realiza sua função perceptiva. (FREUD, 2011, p. 246)

Gosto de imaginar a descrição anterior de Freud em uma perspectiva do movimento corporal. Substituindo a palavra Bloco por Corpo. A conjunção se faz na ideia de perceber que o aparelho corporal é extremamente visível e perceptível. É aparelho e é você. Logo, a memória, o aparelho psíquico, a função perceptiva irão perpassar, em certa medida, uma reflexão sobre si.

Para aprender a cair é preciso repetir diversas vezes os movimentos de queda. Praticar a queda constantemente. Se eu consigo refletir sobre mim hoje é porque refleti sobre minhas quSe eu consigo refletir sobre mim hoje é porque refleti sobre minhas quedas ontem. Se eu refleti sobre minhas quedas ontem é porque eu pratiquei o cair anteontem, ontem, hoje e amanhã. A prática é constante. A prática é elaborada e reelaborada cotidianamente. O método é o mesmo. A percepção é sempre outra. Nossos ouvidos precisam sempre 40  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


estar atentos. Na queda, o baque nunca é surdo. O aprendizado da queda, no método proposto até agora, usará a memória do corpo como um artifício. É uma execução construída na/ com a prática dos exercícios. É construída por fragmentos. Pequenas instruções irão preparar e condicionar o nosso corpo para a queda. O corpo adquirindo memória e tônus em cada experiência. É interessante constatar que esse processo deflagra uma constante construção perceptível sobre o próprio corpo. Podemos analisar quais são minhas atuais condições corporais para executar algum exercício, se consigo avançar um pouco mais e exigir mais de mim. Perceber até onde consigo atingir. Esse método fragmentado possibilita uma reflexão mais apurada de como constituir meu corpo. Mas como constituir meu corpo? PARTILHAMOS A QUEDA. Vamos nos elevar um pouco mais. Iremos ficar de cócoras. É importante buscar um equilíbrio nessa posição. Tem que ficar agachado e as únicas partes do corpo que tocam o solo são seus pés. Nesse momento é você que controla a sua queda. Quando conseguir equilíbrio, estique seus braços para frente com as palmas das mãos voltadas para baixo. Tome uma respiração. Suavemente jogue seu corpo para trás. A primeira parte a atingir o solo é o quadril, seguindo do restante da coluna, até repousar por completo no chão. Colocaremos aqui os exercícios anteriormente praticados. As pernas irão esticar em direção ao teto. Os braços irão descer na lateral do corpo e as mãos irão bater no chão. O queixo irá de encontro ao peito, evitando que a cabeça bata no chão. Todos esses movimentos acontecerão ao mesmo tempo. Repita até conseguir. Esse é nosso terceiro exercício. Antes de mais nada, é preciso esclarecer que quando utilizarmos a palavra discurso no decorrer do livro e a importância de se interromper com o regime de autorização discursiva, estamos nos referindo à noção foucaultiana de discurso. Ou seja, de não pensar discurso como um amontoado de ed. 5  |  dezembro 2018 41


ENSAIO palavras ou concatenação de frases que pretendem um significado em si, mas como um sistema que estrutura determinado imaginário social, pois estaremos falando de poder e controle. (RIBEIRO, 2017, p. 55/56)

Fig. 1: Yves Klein. Salto no vazio. Fotografia. Fonte: http://www.yvesklein.com/en/oeuvres/view/643/leap-into-the-void/

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As reflexões e trabalhos gerados nessas perspectivas, consequetemente, foram moldados no seio dos movimentos sociais, muito marcadamente no debate virtual, como forma de ferramenta política e com o intuito de se colocar contra uma autorização discursiva. (RIBEIRO, 2017, p. 58)

Fig. 2: Performance de Katya executando o movimento “espacate” no programa televisivo “Ru Paul Drag Race”. Fonte: https://vignette.wikia.nocookie.net/logosrupaulsdragrace/images/2/26/ASTSEKatya.png/revision/latest?cb=20160828205941 Como explica Collins, quando falamos de pontos de partida, não estamos falando de experiências indivíduos necessariamente, mas das condições sociais que permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania. Seria, principalmente, um debate estrutural. Não se trataria de afirmar as experiências individuais, mas de entender como o lugar social que certos grupos ocupam restringem as oportunidades. (RIBEIRO, 2017, p. 61) ed. 5  |  dezembro 2018 43


ENSAIO

Fig. 3: Bas Jan Ader. Broken Fall (geometric). Frame de video. Fonte: http://revistacarbono.com/artigos/05-bas-jan-ader-glaucis-de-morais/

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Fig.4: Juliana Crispe. Salto no vazio (para Yves Klein). Fotografia. Fonte: http://museuvictormeirelles.museus.gov.br/agenda-cultural/2016-2/clubedo-multiplo/

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Fig. 5: Milton Guran. Série Filhos da Terra. Fotografia Fonte: Catálogo da exposição “Pororoca: A Amazônia no MAR”. Org. Paulo Herkenhoff. Editora Circuito: Museu de Arte do Rio, 2014. p. 267. O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir. [...] Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência. (RIBEIRO, 2017, p. 64)

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Fig. 6: Rosângela Rennó. Salto – série Frutos Estranhos. Frame de vídeo. Fonte: https://vimeo.com/47682961

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ENSAIO

Fig.7: Elian Almeida. Série Bonde da PV. Fotografia. Fonte: Portifólio cedido pelo artista. O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas. [...] Ao promover uma multiplicidade de vozes o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se pretende universal. (RIBEIRO, 2017, p. 69/70)

Cair nunca será universal, mas partilhamos a queda. Algumas quedas que constituem o meu corpo. 48  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


A PRIMEIRA COISA É APRENDER A CAIR. O poema ensina a cair/ sobre os vários solos/ desde perder o chão repentino sob os pés/ como se perde os sentidos numa/ queda de amor, ao encontro/ do cabo onde a terra abate e/ a fecunda ausência excede/ até à queda vinda/ da lenta volúpia de cair,/ quando a face atinge o solo/ numa curva delgada subtil/ uma vénia a ninguém de especial/ ou especialmente a nós uma homenagem/ póstuma. (JORGE, 2018. p. 1)

O que pode nos ensinar a cair? Para a Luiza, o poema. Leia em voz alta. De novo. Mais uma vez. A queda surge no meio da leitura. Quando você percebe, já está no ar. Flutuando e movimentando até encontrar o chão. Aprender a cair torna-se uma prática consubstancial ao si próprio. Uma certeza da queda é que vamos encontrar algo rígido e fundante no final. Talvez esse seja o conceito de cair. Encontrar o chão no final, não importando a velocidade. Mas se não acharmos, o que acontece? Infinito. Desconhecido. Abismo. Essas palavras aparecem de imediato. A queda continua contínua. Podemos refletir que a frase anterior é uma síntese do processo artístico. O processo artístico que é meu atual campo de investigação no momento e no qual sou jogado e me jogo em queda livre. Um exercício: jogo com queda. Insistimos na verticalidade e no sonho de nos mantermos sempre de pé: Josef K. sonhou: Era um belo dia e K. pretendia ir passear. Mal tinha dado dois passos, porém, já estava no cemitério. Havia ali caminhos muito artificiais, de sinuosidade pouco prática, mas ele deslizava sobre um desses caminhos como se fosse por cima de uma correnteza, numa postura inabalavelmente flutuante. (KAFKA, 1999, p. 56)

Mas algo nos toca, nos chama, nos impede de focar no ato. Quando percebemos, já estamos no ar: Enquanto ainda dirigia o olhar para a distância, viu de repente no caminho o mesmo túmulo ao seu lado, na verdade já quase atrás. Saltou rápido ed. 5  |  dezembro 2018 49


ENSAIO sobre a relva. Uma vez que, sob o pé que saltava, o caminho seguia o seu curso desabalado, ele vacilou e caiu de joelhos justamente diante do túmulo. (KAFKA, 1999, p. 56)

As coisas são mais intensas no ar. Perspectivas imaginadas podem tornar-se críveis. O espaço deixa de ser fixo e você pode remodelá-lo: Imediatamente surgiu de um arbusto um terceiro homem, que K. reconheceu logo como um artista. Ele vestia apenas calças e uma camisa mal abotoada; tinha um gorro de veludo na cabeça e na mão um lápis comum com o qual, já ao se aproximar, descrevia figuras no ar. [...] Por meio de uma manipulação particularmente habilidosa ele conseguiu, com olápis comum, obter letras de ouro; escreveu: “Aqui jaz ____”. Cada uma das letras apareceu limpa e bonita, talhada fundo e toda em ouro. Quando tinha escrito as duas palavras, olho para K., que estava atrás; muito ansioso pelo prosseguimento da inscrição, fitando somente a pedra.” (KAFKA, 1999, p. 57)

De modo semelhante, não estar fixo pode ser desesperador. A iminência de qualquer coisa acontecer. Todas as possibilidades surgindo em sua mente. O ar imensurável: Fora de hora, um pequeno sino da capela mortuária começou a soar, mas o artista agitou a mão erguida e ele parou. Um pouco depois recomeçou, dessa vez bem baixinho, interrompendo-se logo em seguida sem nenhuma exortação especial: era como se apenas quisesse testar seu som. K. estava inconsolável com a situação do artista, começou a chorar e por longo tempo soluçou na concha das mãos. O artista esperou até K. se acalmar e depois – já que não tinha outra saída – resolveu continuar escrevendo. (KAFKA, 1999, p. 57/58)

Ao cair, aprendemos. Novamente, aprendemos com a queda e podemos aprender a cair. Essa condição educadora da queda estará perpetuada na prática artística. Uma vez, em uma aula do meu presente mestrado, ouvi o comentário: ao alcançarmos o auge de qualquer coisa, só nos resta a queda. Se levarmos essa frase de absoluto em nossas vidas, o que nos será importante mesmo é o processo e não os lugares. 50  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Esse é meu processo artístico: Era um J, já estava quase terminado quando o artista bateu furioso com o pé no túmulo, de tal modo que a terra em torno voou para o alto. Finalmente K. o compreendeu; não havia mais tempo para lhe pedir desculpas; cavou com todos os dedos a terra que quase não oferecia resistência; tudo parecia preparado; só para salvar as aparências tinha sido disposta uma fina crosta de terra; logo embaixo dela se abria um grande buraco de paredes íngremes, no qual K. mergulhou virado de costas por uma suave corrente. Mas enquanto lá embaixo ele era acolhido pela profundeza impenetrável, a cabeça ainda erguida sobre a nuca, lá em cima o seu nome disparava sobre a pedra com possantes ornatos. Encantado com a visão, ele despertou. (KAFKA, 1999, p. 58)

Por fim, vamos ao nosso último exercício. Ficaremos de pé. Tome uma respiração lenta, por favor. Estique seus braços para frente com as palmas das mãos voltadas para o chão. Vá dobrando seus joelhos e agachando até seu quadril tocar ao chão. Todos os outros exercícios anteriores irão se encontrar aqui. Levemente suas costas irão para o chão, seu queixo irá de encontro ao peito. Suas pernas irão esticar em direção ao teto. Seus braços cairão ao lado do seu corpo e suas palmas irão bater no chão. Repita até todos os seus movimentos sincronizarem. Ao chegar aqui, se você quis praticar esse texto, você aprendeu o ushiro ukemi. Esse é um dos movimentos de queda utilizado no judô. Irei continuar os processos de queda conjugado com a prática artística durante um longo tempo. Ainda não vislumbro o que isso irá resultar, mas uma certeza que posso conjecturar é que a primeira coisa é aprender a cair. Por hoje, deixo apenas um indício da minha própria queda.

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ENSAIO

Fig. 8: Antonio Gonzaga Amador. Ushiro Ukemi IV, série A primeira coisa é aprender a cair. Carvão sobre papel. Fonte: Fotografia do autor.

Nota 1 Cuidado de si é um conceito estudado por Michel Foucault (Hermenêutica do

sujeito. FOUCAULT, Michel. 2010 e História da sexualidade 3: o cuidado de si. FOUCAULT, Michel. 2017) e uma das articulações que desenvolvo atualmente na pesquisa do mestrado.

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Referências bibliográficas

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Antonio Gonzaga Amador é Mestrando em Estudos Contemporâneos das Artes (PPGCA/UFF). Graduado em Pintura (EBA/UFRJ). Artista visual com interesse em práticas processuais e performática que pensem o estudo do corpo e a criação de metodologias de comportamento e rotinas. Email: amador.pintura@gmail.com ed. 5  |  dezembro 2018 53


RESENHA

SEMIÓTICA VISUAL:

UMA LEITURA DE TEXTOS VERBOVISUAIS POR VALÉRIA VICENTE GERÔNIMO

O texto a ser resumido possui como título “O semi-simbolismo na fotografia” que compõe o livro Semiótica visual: os percursos do olhar, escrito por Antonio Vicente Pietroforte, publicado em 2004 pela editora Contexto. Ao decorrer da leitura, verifica-se como tema a leitura de textos visuais utilizando os postulados teórico-metodológicos da semiótica visual. Os textos que Antonio Pietroforte analisa são pinturas, fotografias e o cartaz, ou seja, em todos predominam a linguagem visual. O autor inicia o texto apresentando uma fotografia de Paulo Mancini cuja modelo está nua e com base em outros autores como Jean-Marie Floch (1985; 1995) e Heinrich Wölfflin (2000), Pietroforte realiza a sua análise. Mas, antes, ele questiona como esse discurso transforma um corpo despido em um nu artístico (PIETROFORTE, 2004, p. 25). A partir disso, o autor indaga se “há um corpo denotado, sobre o qual conotações sociais podem ser projetadas? Ou melhor, há um tipo de conotação social capaz de construir em seu discurso um corpo denotado?” (PIETROFORTE, 2004, p. 26). Na tentativa de responder algumas dessas perguntas, ele cita Gershom Scholem (1990), que averigua o estatuto do corpo no discurso religioso do judaísmo, que o corpo é uma “imagem de uma estrutura celeste, não necessariamente corporal” (PIETROFORTE, 2004, p. 26) mas que complexifica o humano com o divino, atribuindo ao corpo a 54  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


mistificação. Como estratégia de análise, o autor analisa A primavera, de Botticelli, e As três graças, de Rubens. Ao compará-las, afirma que apesar de tratarem de corpos femininos há contrariedade na valorização estética entre eles, assim “coloca-os em discurso de acordo com as conotações plásticas próprias de cada uma delas” (PIETROFORTE, 2004, p. 27). O autor mostra que há um corpo sem as conotações tratado do modo denotado visto em livros de anatomia, objetivizado pelo discurso científico. Dessa forma, para compreender como esse corpo denotado transforma-se em um nu artístico, Antonio Pietroforte indica a terminologia das funções da linguagem, de R. Jakobson, que converte a função referencial para a função poética que se projeta nos eixos paradigmáticos e sintagmáticos concomitantemente, gerando a categoria natureza vs. cultura, por exemplo. Exemplificando esse tipo de projeção que classifica em nu artístico, o autor seleciona nove fotos e discute as quais que se rotulam e o porquê dessas serem e as outras não serem. Vale salientar que as fotografias em que o autor titula como nu artístico, ele apresenta as categorias animal vs. vegetal (Figura 01), humano vs. mecânico (Figura 02), natureza vs. cultura ou permitido vs. proibido (Figura 03). Nas demais fotos, existem outras relações, incluindo os corpos da nudez artística, que se definem uns aos outros.

Conforme o percurso da ação do esquema narrativo, têm-se os programas de base cujo valor investido no objeto em junção com o sujeito é descritivo; já nos programas de uso o objeto-valor é modal. Dessa forma, Pietroforte menciona que esses programas designam dois tipos contrários de valorização – valorização prática para os programas de uso e valorização utópica para os programas de base. Esses dois desencadeiam ed. 5  |  dezembro 2018 55


RESENHA outros dois subcontrários: uma valorização lúdica ou não-prática e uma valorização crítica ou não-utópica. Assim, atribuindo ao corpo, se no discurso científico o corpo é denotado e no discurso erótico o corpo é conotado é um modo de valorizá-lo. Segundo o autor, o corpo mecanizado possui uma valorização prática, se o corpo vestido com sensualidade tem uma valorização utópica, pois está em conjunção com os valores de um modo de vida. Já o nu artístico, que nega o discurso científico, caracteriza o corpo com uma valorização lúdica. Com efeito, uma valorização crítica enfatiza o nu fetichista que seleciona partes do corpo despido parcialmente. Nesse sentido, o autor afirma que “a erotização do corpo dá-se por meio de conotações sociais projetadas sobre ele” (PIETROFORTE, 2004, p. 34). No discurso científico, a sexualidade corporal restringe-se à funções reprodutoras, deserotizando. Ao contrário, o discurso erótico projeta sobre o corpo humano, os valores sociais que imbricam as conotações eróticas, também chamadas de paixões eróticas que são os “estados da alma do sujeito observador que orientam o seu olhar sobre o corpo erotizado.” (PIETROFORTE, 2004, p. 34). O autor retoma Floch ao dizer que o plano de expressão, se tratando de um texto visual, é tudo que vemos o corpo, os adereços, etc., determinam a figurativização. Isto posto, o autor utiliza os termos de H. Wölfflin para analisar a fotografia de Mancini, em que existe a presença do estilo pictórico, na espádua nua da modelo, e a do estilo linear, nos óculos da mesma. Apesar da presença dos dois estilos, o autor confirma que a fotografia pertence ao estilo pictórico. Segundo o autor, o que define o estilo pictórico é a plasticidade das manchas que forma profundidades e imagens com formas abertas, uma unidade entre os elementos e obscuridade de sombras. Em contrapartida, o estilo linear traz uma disposição das imagens representadas em planos com formas fechadas pelas linhas, atribuindo uma pluralidade de elementos descontínuos (PIETROFORTE, 2004, p. 37). 56  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Comparando as características dos estilos linear e pictórico, o autor aponta cinco categorias de expressão: linhas vs. mancha (tipo de traço), fechado vs. aberto (tipo de contorno), planos vs. profundidade (disposição das figuras), multiplicidade vs. unidade (apreensão da totalidade da imagem) e absoluta vs. relativa (clareza). Essas oposições estão agrupadas, respectivamente, em estilo linear vs. estilo pictórico. Ainda na fotografia de Mancini, o autor demonstra que os estilos pictórico vs. linear estão no plano de expressão e a categoria semântica fundamental natureza vs. cultura estão no plano de conteúdo. Formando a categoria pictórico vs. linear no plano de expressão, ela se relaciona com a categoria natureza vs. cultura no plano do conteúdo. Visto isso, “para haver um semi-simbolismo, deve-se confirmar que há uma relação, também com categorias do plano da expressão” (PIETROFORTE, 2004, p. 40). Dessa forma, o pictórico na análise do autor remete à espádua da modelo que representa a natureza, já o linear aponta à cultura pelo(s) (formato dos) óculos. Desse modo, as categorias plásticas correlacionam-se com as categorias do plano de conteúdo na conjunção da fotografia. Os efeitos de sentido são promovidos pelo uso dos estilos pictórico e linear. Assim, na instância da enunciação, há a relação de cada estilo com o observador da imagem, proporcionando-o como enunciatário da enunciação, logo, a foto é tida como enunciado. Acrescentando características aos estilos, no linear há um efeito táctil; já no pictórico, um efeito visual. Tendo em vista o observador, no estilo linear há um grau de objetividade levando-o a se afastar, já no pictórico há um grau de subjetividade, aproximando o observador. Voltando para os planos de expressão e de conteúdo, para construir relações semissimbólicas, o autor propõe relacionar as categorias em dois planos de linguagem, estimulando efeitos de sentido de motivação. Com efeito, Pietroforte cita Wölfflin que estabelece a relação do estilo pictórico ao dinâmico e do estilo linear ao estático que remete também a outra categoria vida vs. morte, que pode ser chamada de metafórica. Dito isso, “há uma construção de uma relação semi-simbóed. 5  |  dezembro 2018 57


RESENHA lica feita por meio do discurso, que as estabelece buscando organizar o não-motivado, não mais entre o som e o sentido, mas entre a plasticidade e este último” (PIETROFORTE, 2004, p. 45). Concluindo a análise da foto de Mancini, os óculos projeta a morte por meio do estilo linear com a conotação social sobre a cultura, em contraste a vida projeta-se no corpo da modelo com a conotação sobre a natureza no estilo pictórico. Para o autor, um texto sincrético é um sistema semiótico plástico que se relaciona com um sistema semiótico verbal e em relação à imagem, há duas funções que podem ser contribuídas à palavra – a ancoragem e a etapa. Na ancoragem, a linguagem verbal explícita a linguagem visual, aquela conhecida como legenda. Na etapa, a relação da palavra com a imagem é complementar que só é compreendida na sua totalidade, exemplificada nos diálogos das tirinhas ou das histórias em quadrinhos. Nessas duas funções, a ancoragem e a etapa do texto verbal se relaciona, inicialmente, com dois modos, segundo Pietroforte (2004, p. 50), “com ou sem o estabelecimento de relações semi-simbólicas entre categorias semânticas, do plano de conteúdo, e categorias fonológicas e plásticas, do plano da expressão”. Assim, esses dois modos podem ser denominados respectivamente de modo referencial e modo poético. O autor certifica que mesmo a etapa está no modo referencial não indica que não há semi-simbolismo.

Diante disso, o autor analisa a capa da revista Veja em que aparece uma foto de Marighela e na parte inferior uma frase “Procura-se Marighela”. Em destaque, o autor afirma que há dois discursos presentes: um que o elege como herói e outro que o vê como um criminoso. Assim, a imagem certifica a liberdade e a palavra apresenta a opressão, orientando ao discurso a categoria semântica liberdade vs. opressão. 58  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Dessa forma, o texto verbal é enunciado. E averiguando o plano de expressão, tem-se a categoria superior vs. inferior e os elementos de opressão são manifestados no sistema semiótico verbal e na parte inferior, ao contrário, os de liberdade são atribuídos ao sistema semiótico plástico. O autor enfatiza que as relações semissimbolistas num texto são próprias daquele texto, desse modo, a mesma capa, ao ser analisada atualmente, há outra proposta, não perdendo a anterior, como recuperar a imagem do seu papel político na atuação como representante daqueles que não se conformavam com a ditadura militar. Ainda na análise da foto da modelo, de Paulo Mancini, Pietroforte deixa alguns elementos importantes de lado, como a mão e a boca da modelo. Nessas duas partes, o autor não as menciona como não produzissem sentido algum na foto, porém elas duas inquietam quem as observa pela forte expressividade que causam. Mesmo assim essa abordagem semissimbólica que Pietroforte apresenta neste capítulo auxilia na análise de textos que mesclam o plano de expressão e o plano de conteúdo na linguagem não verbal e também na linguagem verbal, como no caso da capa da revista Veja, pois o estudo dessa junção nesses dois planos manifestados na linguagem ainda é um desafio para os pesquisadores, principalmente ao relacioná-los, atribuindo efeito(s) de sentido mútuo. Referência bibliográfica PIETROFORTE, A. V. O semi-simbolismo na fotografia. O espaço da liberdade. In: Semiótica visual: os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2004, p. 24-56. Valéria Vicente Gerônimo nasceu em São Paulo, mas desde 2004 reside em João Pessoa. Atua como professora de português. Escreve poemas, contos e crônicas, alguns estão disponível em: http://aartedorisonho.blogspot.com

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ARTIGO

ARGUMENTAÇÃO CONTRA A MORTE DOS MUSEUS*

POR GABRIELA MARTINS ANDRÉ BRANDÃO

Resumo: A crítica da instituição museal aparece na esteira de reflexões relacionadas com o campo artístico. Na segunda metade do século XX, prognósticos de crise se popularizaram entre debates emanando do campo museológico como um todo, ora alarmando para a revisão de parâmetros, ora condenando de maneira incisiva o sentido e o futuro dessas instituições. Tempos de instabilidade podem ser encarados como ponte para o aprimoramento e a reinvenção de práticas que perderam o fôlego. Quais relações as instituições de hoje mantêm com as do passado? Por que criamos novos museus e (não) revitalizamos antigos? Afinal, o que inspira a sociedade atual a mantê-los vivos? E sobreviverão? Palavras-chave: Museus; metamorfose da instituição museal; reinvenção.

DA ARTE AOS MUSEUS: FIM OU REINVENÇÃO Em 1993, o crítico Ferreira Gullar publica, pela primeira vez, Argumentação Contra a Morte da Arte. Neste livro, o autor procura dissuadir a hipótese da “morte” da Arte, percorrendo um caminho nem sempre baseado em argumentos favoráveis à sobrevivência da criação artística. 60  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Para o crítico, o aparecimento das vanguardas, a partir da segunda metade do século XIX, e o progressivo reconhecimento da arte moderna despertaram para uma libertação da arte em relação a cânones cultuados por séculos. Essa liberação nutriria o espocar de um ecletismo tão imenso de possibilidades, em meados do século XX, que os critérios que legitimam o que é arte seriam progressivamente abalados. Embora proponha um diagnóstico apontando tendências muitas vezes pessimistas sobre a dificuldade de renovação da arte à beira do século XXI, a publicação nos fornece uma série de noções-chave acerca dos caminhos percorridos pela arte contemporânea. Nos anos 1980, Arthur Danto e Hans Belting iluminariam um outro debate capital para esta discussão. Danto regressa à tese de Belting sobre as imagens religiosas cristãs no Ocidente antes da “era da arte” - quando não era primordial delimitar o que era obra de arte –, a fim de demarcar que foi a partir do Renascimento que o sentido de arte e as considerações estéticas passaram a vigorar (DANTO, 2000, p. 26). O fim da arte tinha a ver, num primeiro momento, com o desligamento em relação aos referenciais dessa era, na segunda metade do século XX. O que estava em jogo não era o fim absoluto da arte. A crise da antiga história da arte – a tradicional história dos estilos – teria sido despertada pela iminência das vanguardas, a partir do século XIX (AMARO, 2009, p. 18). Contudo, a arte moderna ainda era regida por um outro modelo narrativo, balizado por uma confiança no presente e no progresso. Uma consciência de não pertencimento a uma narrativa maior contribuiria para separar a arte moderna, ainda não definitivamente liberada de sua história, da arte contemporânea, completamente dela desvinculada.

A arte pós-histórica ou pós-moderna se isentava da obrigação de se relacionar com referenciais tradicionais para afirmar sua legitimidade - teoria, estilos, mimetismo, temas, técnicas,

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ARTIGO materiais, ou qualquer outro caminho de autodefinição. Não havendo mais fronteiras entre a arte e o cotidiano, entre um objeto artístico e o utilitário, a arte teria atingido o limite de suas possibilidades na cultura ocidental, ao passo que o “pretenso universalismo da história da arte” tornara-se definitivamente obsoleto (AMARO, 2009, p. 19). A descredibilização do museu desponta, amplamente, de questões colocadas no campo da arte. Figurou na pauta de alguns movimentos de vanguarda de maneira emblemática. O manifesto futurista, encabeçado pelo italiano Filippo Tommaso Marinetti, em 1909, comparava os museus a cemitérios e os via como entraves para o avanço da arte rumo ao futuro. Animado a partir dos anos 1910, o movimento Dadá - cuja reputação esteve, em grande parte, atrelada à investida ultra-radical de Duchamp – contestava de maneira incisiva a arte artesanal e a arbitrariedade institucional. No que tange ao caso brasileiro, os modernistas que idealizaram o espírito da Semana de Arte Moderna de 1922, embora alinhados com muitas das rupturas colocadas pelas vanguardas europeias em termos de linguagem, convocavam para a valorização e a ressignificação da arte nacional. O sentido de “antropofagia” emprestado como mote do evento, apregoava, não a refuta da influência estrangeira, mas uma simbiose do interno com o externo, em prol de uma linguagem artística nacional modernizada. Mário de Andrade se debruçou, muito precocemente, em desconstruir a acepção de nacionalismo e de museu herdados do padrão civilizatório europeu, para incorporar à ótica museológica o local, o tradicional, o patrimônio vivo, os museus pedagógicos – e mesmo das artes menores, das técnicas industriais, dos meios de reprodução mobilizados em favor da educação. Interessava-lhe o desenvolvimento 62  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


de museus populares, efetivamente acessíveis: museus “claros”, museus “francos”, museus “leais” (CHAGAS, 2006, p. 96). Uma das mais emblemáticas ofensivas contra a arte produzida para ocupar as instituições, no Brasil, ficou a cargo de Hélio Oiticica nos anos 1960 – em estreito diálogo com Ferreira Gullar. Em sua famosa declaração de que “o museu é o mundo”, reforçava a ideia da arte emancipada da materialidade estanque do objeto, da contemplação visual passiva, do espaço institucionalizado, da ideia de longevidade, que reivindicava, enfim, a participação do público para “operacionalizá-la”. A nova condição da arte irrompia como um golpe fatal nos museus e galerias, uma vez que não dependia mais deles para acontecer e existir. A apropriação da ideia de “morte”, em diálogo com a publicação de Gullar, embora pessimista, inspira para se pensar como mudanças radicais nos parâmetros que orientam um determinado campo – artístico, ou museológico como um todo – ao invés de apontar para seu esgotamento, sinalizam para novos começos, novos estágios de consciência, novos referenciais técnicos, ideológicos, epistemológicos.

MUSEUS QUE RESISTEM E ATRAVESSAM OS TEMPOS Apesar das dissonâncias, a origem do museu remonta à Antiguidade. O templo de Crotona ou o Mouseion de Alexandria – ambos fundados em meados do século IV a.C – são exemplos do museu refletindo o imaginário antigo, lugar onde se praticavam o culto às musas e os célebres banquetes filosóficos reunindo os mestres e seus discípulos (MAIRESSE, 2007, p. 169-170). A partir do século XIV, aparecem lugares de coleção e exposição, derivados dos famosos gabinetes de arte e curiosidades desenvolvidos na França, na Itália e na Europa do Norte (DESVALLÉES, 2007, p. 50). Já o escopo da instituição portando interesse público é com frequência associado aos anos seguintes à Revolução Francesa (1789). A conversão dos bens da Igreja e da Monarquia em patrimônio nacional e a abertura do Louvre à visitação pública (1893) inspiraram a dispersão do museu encarregado da salvaguarda do patrimônio e incumbido ed. 5  |  dezembro 2018 63


ARTIGO da missão de acolher e instruir as massas. Ao longo do século XIX, o campo vai testemunhar uma progressiva sistematização dos procedimentos em torno dos acervos, submetidos a critérios de preservação, organização e inventário mais rigorosos. Os primeiros focos da experiência museológica brasileira remontam ao século XVII, quando se instalou, em Pernambuco, um complexo incluindo jardim botânico, zoológico e observatório de astronomia batizado de Palácio de Vrijburg. No século XVIII, apareceria a Casa de Xavier dos Pássaros, no Rio de Janeiro, abrigando coleção identificada à História Natural. Já as primeiras instituições de real envergadura são fundadas no contexto de transferência da família real portuguesa para o Brasil. O Museu Real (Nacional) surge em 1818, seguido da Escola Real de Artes e Ofícios (atual Escola de Belas Artes da UFRJ), criados na esteira de um grande movimento de modernização do país, que adquire as primeiras feições de nação que logo se tornaria independente, contando com a construção de banco, hospital, arquivo, biblioteca, imprensa, palácios e residências reais. A Academia Imperial de Belas Artes – antecedente do Museu Nacional de Belas Artes - é fundada em 1826. Novos museus surgem a partir da segunda metade do século XIX, em diferentes regiões do país. A aparição do Museu Histórico Nacional, em 1922, concentraria dois esforços revolucionários na instrumentalização do campo museológico brasileiro: a criação do Curso de Museus (1932) – embrião da futura Escola de Museologia da Unirio - e da Inspeção dos Monumentos Históricos (1934). O último influenciou o aparecimento do SPHAN (Serviço do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional), cujo projeto, encomendado por Gustavo Capanema, fora disputado entre Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade, e arrematado pelo último. Findado o panorama geral do início da experiência museológica no Brasil, o antológico mito das musas volta a ser oportuno para desvelar as contradições camufladas por detrás da prestigiada imagem que o museu encarna no seio da sociedade. Quando evocado pelo então 64  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


ministro da Cultura Gilberto Gil, empossado em 2003, no contexto de avaliação dos primeiros anos de implementação da Política Nacional de Museus, o mito inspirava otimismo triunfante: O museu é a casa das musas (...) Falar das musas não é falar do passado. Ao contrário. Por isso vejo que os museus no mundo contemporâneo são lugares de criação, diálogo e preservação do aqui e do agora. Essa noção está na base dos esforços do Ministério da Cultura num campo que traz simultaneamente o arcaico e o novo, o político e o cultural, o singular e o universal (BRASIL, 2006, p. 7)

O amadurecimento de uma política setorial e a criação de um organismo exclusivo para pilotá-la, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) – efetivada em 2009 -, apontavam para concretização de um “sonho coletivo”, esperado durante anos por agentes e instituições do setor (BRASIL, 2006, p. 19-20).

Mas por que em períodos de crise ou de grandes avanços tecnológicos a sociedade continua acreditando no potencial dos museus? Ora, museus são focos de esperança, lugares propícios para o gestar de utopias, para reconciliação dos tempos, das culturas, das geografias, das muralhas sociais, da criatividade humana ou, como bem declara Gil: “não são apenas casas que conservam e preservam vestígios e sobejos do passado; também são fontes de sonho e de criatividade e pontes que nos conectam com o futuro” (BRASIL, 2006, p. 19). Contudo, Chagas não nos deixa esquecer que, derivado da união de Mnemósine (deusa da memória) e Zeus, o museu teria herdado do ed. 5  |  dezembro 2018 65


ARTIGO pai o estigma de entidade que espelha e semeia relações de dominação e poder. Além disso, as estreitas relações entre o Estado, os museus e as classes privilegiadas no Brasil enraizaram “o desenvolvimento de museus que se distanciam da sociedade, que se incomodam pouco com o não cumprimento de funções sociais” (CHAGAS, 2006, p. 32). Quais teriam sido, então, os aspectos que transformaram antigas premissas do campo, possibilitando a projeção de uma instituição mais engajada acerca de seu papel social?

VALORIZAÇÃO DO NOSSO A coleção ou o acervo funcionaram, tradicionalmente, como a espinha dorsal da atividade museal. O termo “coleção” designa um conjunto coerente de objetos materiais ou imateriais, submetidos a procedimentos especializados de reunião, seleção, classificação, conservação. Esses “objetos de museu” - objetos museológicos ou musealia –, quando submetidos ao processo de “musealização”, abandonam seu contexto e função originais para assumir a condição de documentos a serem preservados, estudados, comunicados, mostrados (DESVALLÉES, MAIRESSE, 2011, p.53, p.251, p. 385). Apesar das diferentes interpretações, o termo “objeto” é frequentemente associado à ideia de materialidade. A cobrança sobre a necessidade de se incorporar definitivamente o patrimônio imaterial na pauta das reflexões museológicas coincide com uma pressão especialmente exercida pelos países latino-americanos em favor da descentralização das discussões, de uma maior visibilidade e apoio às suas práticas. Muito se contestou sobre o processo de formação das coleções na América Latina, para muitos incompatível com o projeto de museu imbricado com as necessidades e reflexões locais. Segundo Mário Chagas (2006), coleções de objetos que funcionam como “coágulos de poder” perpetuam o protótipo de uma instituição deslocada de seu contexto, ancorada em padrões importados (p. 32). Assim, interessa compreender quando a ideia da coleção funcionando como coração do museu 66  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


tende a ser desmistificada. O nascimento do Icom (Conselho Internacional de Museus), em 1946, representa o grande divisor de águas no despertar de novas vias de se pensar a prática museológica “tradicional”, centrada nas coleções. Mário Barata, antigo membro do Curso de Museus, encabeça a implantação do exemplar brasileiro em 1948 (BRASIL, 2006, p. 10). A Mesa Redonda de Santiago do Chile (1972) contribuiu de maneira decisiva para difundir o espírito de uma museologia pensada como “integral”, plenamente engajada com uma prática museológica adaptada às características e demandas de seu território e, em grande medida, porta-voz da dessacralização das coleções tradicionais. O “museu integral”, o “ecomuseu”, os museus “comunitários”, “de território”, guardam em comum a consciência de seu papel junto às comunidades, como instrumentos para favorecer o desenvolvimento local. A ênfase na responsabilidade social e na atuação integral do museu se tornaria onipresente entre as preocupações do Icom. A Declaração de Quebec (1984) selaria a internacionalização da Nova Museologia, em plena consonância com os vetores da museologia integral. A Declaração de Caracas (1992) celebrava os 20 anos da Mesa de Santiago, reforçando e ampliando seus princípios. Durante os anos 1990, o Icofom-Lam (subcomitê pela América Latina e Caribe) enriquecia os debates, através de reflexões que atentavam para as experiências latino-americanas. O encontro de Buenos Aires (1992) reafirmava o fortalecimento do patrimônio e das identidades regionais. O encontro de Quito (1993) reforçava o papel do museu no combate à alienação e à amnésia da sociedade, favorecendo o desenvolvimento do “homem integral”, consciente de seu espaço, seu tempo e sua cultura. A Conferência de Calgary (2005) alarmava para a necessidade de se atualizar parâmetros defasados desde a definição de 1974 que, apesar de contemporânea ao debate aberto em Santiago, negligenciava a perspectiva imaterial. O Icom convocava, ainda, para se acordar novas diretrizes religando tanto a diversidade de experiências museológicas ed. 5  |  dezembro 2018 67


ARTIGO espalhadas pelo mundo, quanto as imensas transformações observadas em relação às práticas “tradicionais” - entre elas a importância do acolhimento e participação ativa do público na atividade do museu, os desdobramentos da apropriação das novas tecnologias e da experiência virtual, entre outras. Desde 2014, o Icom e, em especial, o Icofom têm convocado para a revisão da última definição de museu proposta no âmbito da Conferência de Viena (2007) – formalizada na esteira das deliberações de Calgary -, em vista de alinhá-la com as novas tendências do museu do século XXI. Acerca dos parâmetros normativos brasileiros atualmente vigentes, o Estatuto de Museus - instituído pela Lei n° 11.904/ 2009 – é o principal instrumento a regular uma política setorial específica para o campo no âmbito nacional e considera como museus: as instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de ser desenvolvimento (BRASIL, 2009, Art. 1º, Capítulo I)

A lei acrescenta à definição acima, mediante parágrafo único, os “processos museológicos”, conceito que, de acordo com o decreto n° 8.124/ 2013 - que regulamenta os dispositivos da lei anterior e da Lei n° 11.906/ 2009 que instituiu o Ibram -, abarca as práticas relativas “ao território, o patrimônio cultural e a memória social de comunidades específicas” – perspectiva engajada com a realidade do país, fundamental para integrar iniciativas alinhadas com a cultura popular e das minorias à pauta da política museológica nacional. (BRASIL, 2013, Inciso X, Art. 2°, Capítulo I)

DO FIM PULSAM INESGOTÁVEIS RECOMEÇOS: SOBREVIVERÃO! 68  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


O sentido da instituição museal é contestado na esteira de reflexões que perpassaram o campo artístico. Na medida em que a Museologia se consolida como campo científico, a crítica de antigas práticas e valores se popularizam entre os debates do próprio campo. Uma parcela importante dos parâmetros defasados é levantada no âmbito das reflexões colocadas pela museologia integral e a Nova Museologia - a saber condenando práticas hegemônicas, elitistas ou pouco implicadas com o compromisso social museu. Nos anos 1990, algumas tendências já teriam se naturalizado no mundo: o investimento em projetos arquitetônicos monumentais; a popularização dos estudos de públicos; os efeitos da cultura do espetáculo na oferta museal; a exploração de atividades comerciais; a absorção de estratégias do marketing empresarial; as negociações de patrocínio; a implantação de modelos de gestão mais flexíveis. As instituições refletem, cada vez mais, os impactos da globalização, do turismo de massa, da revolução digital, da transformação das práticas culturais e são afetadas pelas mudanças no quadro econômico e político vigente. O museu do porvir deve ser uma instituição versátil, permeável em relações aos temas que atravessam a sociedade, crítico, capaz de se reinventar em meio às crises. Em sua reflexão prospectiva, Catherine Grenier imagina uma instituição “polivalente”, “polimorfa,” capaz de assumir, ao mesmo tempo, o papel de um “museu Mundo”, um “museu Cidade”, um “museu Campus”, um “Museu Fórum”, um “museu Portal” (GRENIER, 2013, p. 83, tradução da autora). A otimista previsão faz lembrar que os museus sempre guardaram uma relação intrínseca com o(s) tempo(s). Conclusões fatalistas os compararam a cemitérios e mausoléus. Estudos revisitaram noções como “memória” e “tradição”, contestando seu imbricamento obrigatório com o passado, uma vez que se reportam também a expressões vivas. A perspectiva temporal foi apropriada com peso revolucionário por alguns museus. O MoMA (Museum of Modern Art), fundado em 1929, se configurou como projeto de instituição ancorada no presente, imed. 5  |  dezembro 2018 69


ARTIGO plicada, aliás, em assumir um papel decisivo na promoção de uma narrativa em torno da produção de arte recente (POULOT, 2009, p. 55). A partir dos anos 1940, novos museus de arte são idealizados no Brasil sob a influência das inovações que ele propunha – lembramos sobre a criação do Masp (Museu de Arte de São Paulo), em 1947, e o projeto de implementação do gênero dos MAM’s no país, cujos primeiros exemplares foram os Museus de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de São Paulo, concebidos desde 1948. O MoMA catalisou uma série de tendências que inspiraram a nova geração dos museus de arte no mundo, na esteira do que a própria arte moderna já propunha - a saber uma convivência das artes antes tidas como tradicionais com as expressões e técnicas emergentes, como a fotografia, o cinema, o design, as técnicas industriais. Além disso, recolocava o público no centro de seu interesse, propondo uma programação variada, atrativa e, idealmente, mais democrática. Em 1977, o Centro Georges Pompidou emerge como porta-voz da cultura contemporânea, da dessacralização da arte “oficial” e do público de habitués. Em termos arquitetônicos e ideógicos, inspirava funcionalismo, transparência, movimento e flexibilidade: “no primeiro Beaubourg, é o funcionamento que faz o monumento: não mais um monumento que seja somente suporte de memória, mas um monumento que participa na produção da cultura, que atualiza no lugar de sacralizar” (DUFRÊNE, 1986, p. 190, tradução da autora). Embora pressionado para conciliar propostas revolucionárias originais com, por exemplo, soluções expográficas mais “tradicionais”, o espírito de uma instituição conectada com a lógica da incessante atualização da cultura da informação, remodelável, multidisciplinar, porosa, que aspira atuar para além de seus muros , se comunicar com os diferentes públicos e favorecer sua participação ativa, inspirou o posicionamento dos novos museus de arte contemporânea e a dispersão dos centros culturais no mundo. A cena brasileira se renovou consideravelmente nas últimas décadas. O aparecimento do Inhotim, localizado em Brumadinho (MG), foi 70  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


emblemático para ilustrar a descentralização das grandes instituições de arte do eixo Rio-São Paulo. Os vizinhos MAR (Museu de Arte do Rio - 2013) e Museu do Amanhã (2015), situados na revitalizada Praça Mauá (Rio de Janeiro), vêm revolucionando nos índices de frequentação, graças a uma política de acolhimento dos públicos bem capilarizada. Os três são administrados segundo modelos de gestão mista, que vêm sendo apresentados como alternativa para superar o problema da sustentabilidade das instituições culturais brasileiras. A Organização Social (OS) é o mais requisitado – mas há também a Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), adotado pelo Inhotim -, permitindo associar investimentos privados aos recursos públicos e oferecendo maior flexibilidade e receita às instituições. Entretanto, não se pode negligenciar que o cenário brasileiro é tradicionalmente marcado por um quadro de desigualdade no que tange à captação e gestão de recursos. A locação de espaços para eventos, o apelo ao patrocínio, a aposta em exposições rentáveis – em detrimento da revitalização da infraestrutura ou o investimento em redinamizar a divulgação e a pesquisa em torno dos acervos – são práticas cada vez mais recorrentes. O modelo das leis de incentivo é ainda a principal via de viabilização para projetos e a sustentabilidade das instituições, mas nem todas conseguem fazer usufruto desse mecanismo de maneira perene. Os fundos de apoio à Cultura não são suficientes para saciar as necessidades das diversas instituições espalhadas pelo território e os repasses diretos, de uma maneira geral, são cada vez mais escassos. Enfim, o desencontro entre o que se projeta e o que é passível de ser viabilizado é uma constante no campo. O exemplo da Casa Daros no Rio de Janeiro, inaugurada em 2013 e fechada em 2015, atesta que a dificuldade de manutenção não é uma realidade exclusiva às instituições culturais que dependem de verba pública. O incêndio que atingiu, recentemente, o Museu Nacional, no ano em que, ironicamente, completa seus 200 anos de existência, parece ser o estopim de uma conjuntura em que a supervalorização da novidade encobre o abandono do antigo e é o grande paliativo para não se ater ed. 5  |  dezembro 2018 71


ARTIGO a déficits arrastados por anos. O triste episódio é, ao menos, oportuno para despertar sobre as consequências que o enfraquecimento de uma política cultural ativa e abrangente pode acarretar, sobretudo num país em que a Cultura sempre se equilibrou na corda bamba da insuficiência e dificuldade de distribuição dos recursos. Em suma, o campo museológico do século XXI apresenta possibilidades jamais imaginadas e desafios que se renovam a cada instante. À luz de Gil, apostamos no poder de reinvenção permanente dos nossos museus-fênix: “O importante é que estejam vivos, que pulsem, consagrando o jogo de tradição e invenção que dialeticamente marca a construção da cultura brasileira” (BRASIL, 2006, p. 6). Referências bibliográficas AMARO, Danielle Rodrigues. O fim da história da arte segundo Hans Belting. Anais do V Encontro de História da Arte. Campinas: IFCH/ Unicamp, 2009, pp. 16-24. BELTING, Hans Belting. L’histoire de l’art est-elle finie? Saint-Amand: Folio, 2007. BRASIL Política Nacional de Museus : relatório de gestão 2003/ 2006. Brasília: MinC/ Iphan/ Demu, 2006. BRASIL, Lei n° 11.904, 14 de janeiro de 2009. Institui o Estatuto de Museus. Brasília: MinC/ Ibram. BRASIL, Decreto n° 8.124 de 17 de outubro de 2013, Brasília: MinC/ Ibram. CHAGAS, Mário de Souza. Há uma gota de sangue em cada museu: A ótica museológica de Mário de Andrade, Chapecó: Argos, 2006. DANTO, Arthur. L’art contemporain et la clôture de l’histoire. Paris: Editions du Seuil, 2000. DECAROLIS, Nelly (org.). El pensamiento museológico latino-americano. Los documentos del Icofom-Lam: Cartas y Recomendaciones 1992 – 2005. Córdoba: Icofom para América Latina y el Caribe, 2006. DESVALLÉES, André. A propos de la définition du musée. In: DES72  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


VALLEES, André, MAIRESSE, François (Orgs.). Vers une redéfinition du musée. Paris: L’Harmattan, 2007, p.49-67. DESVALLÉES André, MAIRESSE François (org.). Dictionnaire encyclopédique de muséologie. Paris: Armand Colin, 2011. DUFRENE, Bernadette. Monument ou moviment ? In: Le Centre Georges Pompidou : du bâtiment-jouet au monument, Paris, Éditions du CGP, 1986, p. 188-190. GRENIER, Catherine. La fin des musées. Paris: Editions du Regard, 2013. GULLAR, Ferreira. Argumentação Contra a Morte da Arte. 8 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. MAIRESSE, François (org.). Nouvelles tendances de la muséologie, Paris: La documentation française, 2016. MAIRESSE, François. Musée/ Thésaurus. In: DESVALLEES, André, MAIRESSE François (org.). Vers une redéfinition du musée? Paris: L’Harmattan, 2007, p.167-223. POULOT, Dominique. Musée et muséologie, Paris: Éditions La Découverte, 2009. SCHEINER, Teresa Cristina. Repensando o museu integral : do conceito às práticas, Belém: Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., v. 7, n. 1, jan.-abr. 2012, pp. 15-30 UNESCO. Declaração de Santiago. In: BRASIL. Legislação sobre Museus, 2ª ed. Brasília: Câmara dos deputados, 2013, p. 101-108. UNESCO. Declaração de Quebec: princípios de base para uma Nova Museologia. In: BRASIL. Legislação sobre Museus, 2ª ed. Brasília: Câmara dos deputados, 2013, p. 109-111. UNESCO. Declaração de Caracas. In: BRASIL. Legislação sobre Museus, 2ª ed. Brasília: Câmara dos deputados, 2013, p.112-128. Gabriela Brandão é produtora cultural (UFF), sendo seu trabalho de conclusão de curso O espaço pictórico moderno: morte ou ruptura. ed. 5  |  dezembro 2018 73


ARTIGO

ENTRE A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO: OS XUKURU-KARIRI NO ACERVO MUSEOLÓGICO DE PALMEIRA DOS ÍNDIOS/AL

POR ALINE DE FREITAS LEMOS PARANHOS Resumo: Pretende-se com este trabalho discorrer sobre a presença indígena dos índios Xukuru-Kariri que vivem na região serrana do município de Palmeira dos Índios e sua representação impressa no Museu Xucurus de História, Artes e Costumes, que fica situado no centro da cidade. Para isso, a pesquisa se materializa a partir do estudo bibliográfico baseado nos pressupostos dos teóricos CHAVES (2014), HALL (2015), PEIXOTO (2013), POLLAK (1989/1992), POULOT (2009), e alguns outros; além da pesquisa de campo onde foram feitas visitas periódicas ao Museu Xucurus e à aldeia Mata da Cafurna para coleta de fotografias, conversas informais e entrevistas; pretendendo assim, analisar as narrativas dos índios da Mata da Cafurna sobre a imagem indígena que é mostrada no acervo museológico, a partir de uma visão selecionada e elitista. Palavras-chave: Identidade, Museu, Imagem, Representação. Considerações Iniciais Os índios do Nordeste brasileiro passam por diversos processos 74  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


de silenciamento ao longo de sua trajetória, tendo que migrar para o Sertão como uma forma de resistência e sobrevivência desses grupos étnicos. Dentre os motivos que contribuíram para o fortalecimento dos fluxos culturais, destacam-se as questões territoriais que, em sua maioria, estão vinculadas à marginalização da imagem indígena, às perseguições e a criação de fronteiras sociais alicerçadas nas relações de poder, tendo assim que reelaborar ou até mesmo ressignificar sua identidade étnica. De tal modo, o povo e cultura Xukuru-Kariri passaram a ser descritos como supostamente foram no passado e não sob a ótica do que elas representam na contemporaneidade. Inclusive, foram encontradas igaçabas por Luiz Torres e Clóvis Antunes, motivo este que colaborou para a (re)afirmação dessa ideia, mesmo que as intenções dessas personagens da história local fosse a de “[...] agregar conhecimento sobre os xucurus-kariri utilizando-se de todos os meios possíveis, inclusive escavações com interesse arqueológico.” (TEIXEIRA, 2012, p. 61). Assim, seus interesses eram os de coletar informações sobre os índios que viviam naquela localidade e contribuir com o estabelecimento da memória local. Nesse cenário, destaca-se Luiz Torres e a criação do Museu Xucurus, que tinha como objetivo atribuir aos seus achados valores e referências históricas para o município. Do artefato ao monumento: uma breve história do Museu Xucurus Os artefatos encontrados durante as escavações, tanto na cidade, quanto na zona rural de Palmeira, são fundamentais e talvez, segundo Chaves (2014), o motivo que impulsionou a criação de um museu que evidenciasse a “[...] preocupação da sociedade palmeirense com a preservação da memória local.” (CHAVES, 2014, p. 17). Nesse contexto destaca-se Luiz Torres, memorialista responsável por uma contribuição significativa sobre a história de município, que: Durante o tempo em que viveu em Palmeira dos Índios, de 1943 a 1992, Luiz Torres se dedicou a colecionar fotografias, documentos e recortes de ed. 5  |  dezembro 2018 75


ARTIGO jornal sobre a história da cidade. Deixando um acervo considerável em posse do seu filho Luiz Byron Passos Torres, além de ter fundado o Museu Xucurus de História Arte e Costumes onde expôs muitos dos artefatos que conseguiu arrecadar nos mais variados pontos do município. (PEIXOTO, 2013, p. 65)

Partindo desta premissa, vale ressaltar que o Museu Xucurus foi criado a partir da parceria entre Luiz Torres, Dom Otávio Aguiar e Alberto Oliveira, que o instaurou no prédio que outrora formava a Igreja do Rosário dos Pretos, erguida pelos escravos que viviam nessa localidade durante o século XVIII. Face a isso, se por um lado Luiz Torres fundamenta a ideia de construir uma instituição memorialística para salvaguardar os artefatos indígenas; por outro, o bispo cedeu o local para que essas aspirações fossem concretizadas. Além do mais, sua presença foi fundamental para a coleta de objetos que seriam expostos no museu. Desse modo, em 1971, foi fundado o Museu Xucurus de História, Artes e Costumes; contendo um acervo bem diversificado, constituído a partir de doações feitas pela elite da região que pertencia à diocese de Palmeira dos Índios. Atualmente, ao entrar no museu a primeira imagem que temos é a de um altar com algumas imagens de santos em caixas de vidro com as vestes de um padre da igreja católica que viveu e atuou na cidade. Na nave direita, estão expostas fotografias de alguns prefeitos do município, e à esquerda, uma coleção de santuários e fotos da primeira paixão de Cristo que aconteceu na Serra do Goití. Subindo a escadaria nos deparamos, no topo da escada, com três manequins: à direita, uma figura com calça branca acorrentada com a frase “Ladrão e Fujão” estampada no peito. No centro, a representação de uma mucama e à esquerda, um manequim acorrentado com uma focinheira tapando-lhe a boca. Ainda nessa sala, um pouco mais afastado, artefatos indígenas confeccionados pelas mãos dos próprios índios expostos numa base de madeira pregada na parede, com uma porta de vidro, como podemos observar na fotografia (Figura 01) abaixo. 76  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Fig. 01: Imagem dos artefatos indígenas que ficam no segundo espaço do Museu Xucurus, Palmeira dos Índios. Acervo pessoal da autora, 2017.

O ângulo da foto escolhido possibilita observar a presença de um cocar de penas, peças de barro, um arco e outros artefatos que outrora estavam presentes na trajetória dos índios nesta região. Já na última sala do museu encontram-se as igaçabas, uma delas com restos mortais dos antepassados dos Xukuru-Kariri, tal exposição é tida como referência histórica e cultural desse povo. Arcos, flechas, papéis nas paredes com o nome de algumas aldeias e roupas de palhas usadas no ritual do Ouricuri, marcam assim a força, a fé e a tradição dos povos indígenas que lá viveram. Desse modo, o lugar ocupado pelos índios que dão nome ao Museu Xucurus pode ser observado a partir da [...] indiferença histórica das instituições responsáveis pela preservação das referências culturais relacionadas aos povos indígenas contemporâneos se explica não apenas pela orientação elitista e eurocêntrica, mas também no contexto de uma postura mais ampla do Estado brasileiro para com estes grupos. (TEIXEIRA, 2014, p. 116)

Seguindo essa perspectiva podemos argumentar em consonância ed. 5  |  dezembro 2018 77


ARTIGO com Funari e Polegrini (2006) ao afirmarem que “[...] os bens cultuais não pertencentes às elites acabaram relegadas ao esquecimento.” (FUNARI; POLEGRINI, 2006, p. 46). Acentua-se, então, uma compreensão acerca da divergência entre aquilo que é projetado através das representações indígenas contidas no museu e o que de fato simbolizam para os povos esquecidos pelo conjunto de relações econômicas, políticas e sociais (Figura 02).

Fig. 02: Peças, vestimenta e urnas funerárias indígenas do acervo do Museu Xucurus, Palmeira dos Índios. Acervo pessoal da autora, 2017.

Na figura acima, encontramos além dos elementos indígenas, outros tipos de artefatos que compõem esse acervo museológico. Diante disso, podemos associá-lo à teoria de Stuart Hall (2015), ao ver

Museu Xucurus como um espaço construído a partir de várias identidades, devido à variedade 78  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


de objetos nele encontrado. Todavia, é evidente que o conflito identitário que ocorre nesse ambiente está ligado a forma como os índios Xukuru-Kariri são vistos pela sociedade palmeirense, ou seja, essas tensões estão impregnadas nas ideologias não só da sociedade, mas principalmente na elite de Palmeira. Diante disso, como forma de dar voz aos indígenas e perceber como eles se veem neste espaço, foi realizada uma visita à aldeia Mata da Cafurna, ocasião em que procuramos identificar quais os fatos que enraízam os discursos que repercutem na cidade. Chegando à casa do ex-pajé Lenoir Tibiriçá fomos para debaixo de uma árvore e conversamos sobre sua história de vida. Em sua fala não tinha como não perceber o pertencimento àquela terra, símbolo de sua identidade e de sua etnicidade. Considerações Finais Nesse contexto podemos perceber que a história do município de Palmeira dos Índios é permeada de cicatrizes que “[...] não estão totalmente fechadas e a ferida permanece viva.” (PROST, 2000, p. 11). Projetando no acervo uma imagem que nega o protagonismo dos índios Xucuru-Kariri na contemporaneidade. Ao ver e ouvir sobre a relação entre o Museu e os índios da Mata da Cafurna, fica evidente que “[...] o próprio patrimônio determina as condições concretas de sua abordagem, comunicação e controle; por seu intermédio, o pesquisador é conduzido ao âmago de um quadro de valores que se afirma incontestável.” (POULOT, 2009, p. 10). Desse modo, fica perceptível a forma como são construídos os discursos articulados com os monumentos. Assim, várias faces do cotidiano palmeirense são descritas nessa pesquisa a partir do Museu Xucurus de História, Artes e Costumes e, ed. 5  |  dezembro 2018 79


ARTIGO com isso, um pouco de como sua identidade é construída, transparecendo sua singularidade à medida em que deixa florescer as múltiplas expressões étnicas que dão, tanto o índio quanto o não-índio, o valor simbólico de sua cultura e marca as fronteiras sociais existentes entre eles. Referências Bibliográficas

CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes; revisão técnica Arno Vogel. 3ed. Rio de Janeiro, Forense, 2011. CHAVES, Julio Cézar. “Eu não queria que índio se tornasse peça de museu”: polifonias dos Xukuru-Kariri sobre museus. Especialização – Programa de Pós-Graduação em Antropologia, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, 2014. FUNARI, Pedro Paulo; POLEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. Patrimônio Histórico Cultural. 2 ed. Coleção passo-a-passo. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade; tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparia, 2015 OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios Misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. In: MANA 4(1): 47 – 77. Rio de Janeiro, 1998. PEIXOTO, José Adelson Lopes. Memórias e imagens em confronto: os Xucuru-Kariri nos acervos de Luiz Torres e Lenoir Tibiriçá. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa: UFPB, 2013. POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. ______ Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. POULOT, Dominique. Uma história do Patrimônio no Ocidente, século XVIII – XXI: do monumento aos valores; tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. PROST, Antoine. Como a história faz o historiador? In: Anos 90. Porto Alegre, n.14, dezembro de 2000. TEIXEIRA, Luana. Para além da “pedra e caco”: o patrimônio arqueológico e as igaçabas de Palmeira dos Índios, Alagoas. Monografia (Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural) – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan/ Superintendência Estadual de Alagoas, Rio de Janeiro, 2012. ______ Patrimônio cultural e povos indígenas no Nordeste: reflexões sobre escavações de igaçabas em Palmeira dos Índios, Alagoas (1930 - 1990). São Paulo, Unesp, v. 10, n. 2, p. 107 – 124, julho – dezembro, 2014.

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Aline de Freitas Lemos Paranhos é licencianda em História pela Universidade Estadual de Alagoas. Ex-bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, Bolsista do Programa Residência Pedagógica e Voluntária no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica. Integrante do Grupo de Estudos sobre o Patrimônio Histórico, Imagem e Memória. Atualmente desenvolve pesquisas com temas voltados a: Identidade, Memória, Museus e Patrimônio. Email: alineflp19@gmail.com.

ed. 5  |  dezembro 2018 81


ARTIGO

ESTÁGIO EM ESPAÇOS CULTURAIS: A AÇÃO EDUCATIVA E SUA RELEVÂNCIA NO CONTEXTO ESCOLAR

POR ANDRESA CARVALHO LOPES PIRES

Resumo: Esse trabalho se trata de um relato reflexivo de experiência a partir de minha vivência na disciplina de Estágio em Artes Visuais em Espaços Culturais e surge como necessidade de problematizar a formação de professores, a partir da ausência de experiência prática nesses espaços não-formais de ensino. Cuja finalidade é levantar questões sobre como as escolas em sua estrutura rígida pode não permitir ao discente a experimentação artística. Assim, trabalharei conceitualmente as definições e questões que envolvem a ação educativa. É nesse âmbito que reflito acerca da necessidade de se pensar em educadores como mediadores, não mais com visões tradicionalistas de detentores de verdades absolutas. Palavras-chave: Ação educativa; Estágio supervisionado; Espaços culturais. Introdução Este artigo é baseado em meu relatório apresentado para a conclusão da disciplina de Estágio em Ensino das Artes Visuais: Espaços Culturais, para o Curso de Licenciatura em Artes Visuais, da Universidade Federal do Pará. A disciplina foi realizada em uma escola de ensino privado, no bairro do Guamá em Belém, entre o período de 13 de abril 82  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


de 2018 até 25 de junho de 2018. O estágio foi realizado com a turma do 9º ano do Ensino Fundamental e com o 1º, 2º e 3º ano do Ensino Médio. Nessa experiência tive a oportunidade de presenciar como as instituições de ensino lidam com vivências fora de seu domínio físico, através das observações na escola onde estagiei. Nesse contexto, levanto algumas reflexões e inquietações a respeito da possibilidade de vivenciar práticas educativas em espaços culturais, assim como, sobre quem é o mediador cultural e o que é uma ação educativa e qual sua relevância para os espaços expositivos e escolar. Por fim, ressalto a importância de se pensar o educador como mediador inserido principalmente em espaços formais de ensino. A prática da mediação e da ação educativa em espaços culturais A mediação em espaços culturais se difere da prática em sala de aula. Por meio dela pode ser obtida a fruição entre o objeto artístico e o fruidor. O efeito de mediar não deixa de ser uma intervenção, em que se deve provocar reflexões e conter o predomínio, sobretudo, do diálogo. É através do diálogo que se instiga o público às experimentações no campo da arte, sendo pertinentes às leituras críticas das produções artísticas. Para Garcia (2016), quando se tem a arte-educação como um campo de mediação, compreende-se esta como uma prática complexa embasada no fazer-fruir-estético-artístico. Em que: [...] os significados nas/das obras de arte visuais são emergentes. Campo aberto para leituras e interpretações, a compreensão-explicação das obras emerge das relações entre todas as partes que a constituem, do seu contexto não estando nas formas utilizadas pelo artista e sim nas relações que são estabelecidas entre as imagens mentais cocriadas no interior de cada um dos indivíduos-sujeitos observadores-fruidores e a obra experienciada em todo o seu contexto (como materiais utilizados em suas construção, local de exibição, estratégias utilizadas de mediação cultural). (GARCIA, 2016, p.163). ed. 5  |  dezembro 2018 83


ARTIGO É nesse contexto que, o professor deve atuar como mediador. Para Coutinho (2013), tanto na perspectiva da pesquisa sob o viés da mediação, o educador necessita exercer sua capacidade reflexiva e crítica, como de educador pesquisador e mediador. Segundo esta linha de pensamento, apreende-se que: Ao estudar os fundamentos da arte/educação contemporânea como mediação cultural, vejo a possibilidade de ampliação do espaço de atuação do arte/educador como mediador para além do ensino formal, como um espaço de enfrentamento das concepções de arte, cultura e educação que permeiam o campo de ação. Hoje, as experiências de educação através e para as artes desenvolvidas em museus, instituições culturais e sociais abrem possibilidades de experimentações e arejam o recalcitrante terreno do ensino de arte das escolas de educação básica. São nestes espaços que atualmente, no Brasil, muitos educadores do ensino formal estão buscando atualizações e aproximações com o debate contemporâneo. (COUTINHO, 2013, p. 51).

Assim, é necessário definir que uma ação educativa e os mediadores culturais não são a mesma coisa que uma aula-passeio, monitores e nem guias turísticos. Haja vista que, tais conceitos são obsoletos e não cabem mais serem utilizados atualmente. Todavia, para muitos educadores, termos como ação educativa e mediação ainda são desconhecidos, para o professor responsável pelas turmas do meu local de estágio, essas definições eram novas. O mediador, segundo Gonçalves (2005, p. 9), possui o papel de interceptor, ele é o canal entre a obra e o fruidor e sua ação deve ocorrer em um âmbito de diálogo, de troca. O mediador deve ter sempre a intencionalidade de provocar inquietações e não deve impor seus conhecimentos e leitura ao público visitante, pois essa atitude é esvaziadora e anula qualquer intenção educacional. É necessário instigar o visitante a ter seus próprios levantamentos e questionamentos. Segundo Fronza-Martinz (2006, p. 73), o termo ação educativa refere-se às atividades de ensino centralizadas na interação entre o fruidor e os objetos que se articulam em uma exposição, mediadas por ações 84  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


educacionais. As ações educativas estão inseridas em ações de âmbito maior, como de ensino e aprendizagem, cuja finalidade é a fruição entre os visitantes flutuantes ou de grupos agendados com os objetos expostos. Este tipo de ação costuma se centralizar na interação com o espaço por meio de mediações. As atividades educativas realizadas em museus possuem um papel social: formação de público. De acordo com Fronza-Martinz (2006, p. 72), essa é uma questão de valorização de educação em museus, sendo assim, signo de modernidade. Nesse âmbito, os museus possuem instrumentos de pesquisa e informação e por isso são para ela organismos científicos e didáticos. É necessário ressaltar que as atividades realizadas nesses espaços não são meramente recreativas. Elas devem ser consideradas essencialmente educativas. Sobre a questão da educação em museus, Fronza-Martinz (2004) destaca que a: [...] educação em museus possui um importante foco de interesse na atualidade, tanto no que diz respeito ao seu papel social, quanto no que se refere às práticas realizadas nesse espaço e suas possíveis reflexões. Percebe-se o interesse não apenas na organização e preservação de acervos, mas também na ênfase da compreensão, desenvolvimento e promoção da divulgação, bem como na formação de público como forma de disseminar conhecimentos por meio de uma ação educativa. (FRONZA- MARTINZ, 2004, p. 50).

Propor a ação educativa para a escola foi difícil. No final, eles não aceitaram e nem se interessaram por minhas propostas. Para a coordenação pedagógica as aulas teóricas supriam todas as necessidades de todos os conteúdos e habilidades exigidos pelo currículo. Assim como, havia uma série de questões burocráticas e políticas que o professor responsável pelas turmas me apresentou como empecilhos. Durante as aulas que acompanhei, observei que elas consistiam apenas em dar respostas prontas para que os alunos gravassem as mesmas e as colocassem corretamente nas provas. Com a finalidade de que os ed. 5  |  dezembro 2018 85


ARTIGO estudantes tirem boas notas e passem de ano baseados em conhecimentos nivelados. Em consequência, esse processo proporciona não uma educação, mas sim apenas um sistema de repasse de informações, seguindo os moldes tradicionais de ensino. Esse contexto propicia o desinteresse dos discentes pela área das artes, atrofia o pensamento crítico e a leitura de imagem. A dificuldade da existência de estudantes ativos na escola é ressaltada por Rosvita Kolb-Bernardes (2010, p. 74). Uma vez que, o processo de massificação os priva da arte de narrar suas histórias e os empobrece de suas experiências. Em outras palavras, pessoas moldadas em série perdem sua história, deixando de serem sujeitos. Assim, a escola se torna um espaço dominante, opressor e padronizante. A autora Consuelo Schlichta (2009, p.41) faz uma crítica a esse modelo de conhecimento do conteúdo escolar, haja vista que este é estático e acabado e seria então tarefa do educador possibilitar o contato com as obras, com a intencionalidade do artista e com reflexões acerca de movimentos e correntes artísticas. Ao final, é preciso compreender como esses estilos, expressões e obras fazem parte da herança cultural humana. Quando escrevi minha proposta para a ação educativa, pensei em um circuito sensibilizante que propunha não apenas um diálogo acerca das obras expostas, mas também uma reflexão estética a respeito da Arte Contemporânea e sobretudo dar aos discentes uma possibilidade de “tocar na realidade”. Experiência ao mesmo tempo para refletir a solitude, assim como para se pensar e repensar as suas relações sociais. Haja vista que, há um campo muito mais abrangente de experimentações sensíveis e de autoconstruções tanto pessoais quanto de leitura crítica e consciente de objetos artísticos. Cujas as finalidades não devem se limitar somente a formação de um público. A ideia desta proposta surge devido a necessidade de ministrar aos discentes do 3º ano do Ensino Médio, com faixa etária em torno dos 17 anos, o conteúdo de Fotografia com foco na relevância do registro histórico/documental para o campo da História das Artes Visuais. 86  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Haja vista que, segundo conversas que tive com os discentes e com o professor responsável pela disciplina toda a formação dos estudantes foi baseada em uma história da pintura. Aliado a essa problemática, outro fator que me impulsionou a escolher estas temáticas, era que precisaria trabalhar em cima da competência 4 e habilidades 12, 13 e 14 do Enem. Somado a isso, está a importância da reflexão estética a respeito da Arte Contemporânea, assim como, trabalhar a história da fotografia. Eu pretendia identificar a importância da fotografia tanto no seu sentido histórico quanto como obra de arte e abranger as questões acerca de pontos de vista e representações através do olhar fotográfico. Com a finalidade que os discentes pudessem identificar trabalhos de artistas regionais e nacionais ao longo da história, cujas obras possuem a mesma linguagem artística, sendo ela a fotografia, e que possuam eixos temáticos diferentes. Assim como, reconhecer o valor da diversidade artística da região paraense e que compreendessem a questão da representação para o conteúdo da Arte Contemporânea. A ação aconteceria no Museu do Estado do Pará, MEP, na exposição temporária “Realidades da Imagem, Histórias da Representação” realizada pelo IX Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia. A ação era composta por duas atividades e pela mediação na exposição temporária. Iniciar-se-ia por meio da mediação feita pelos mediadores culturais da exposição. Após a visitação, os alunos seriam encaminhados para uma atividade que consistiria em um circuito sensitivo, no qual percorreriam de olhos vendados. Com finalidade sensibilizadora dos sentidos táteis e olfativos. Haveria disposto sobre o chão, materiais, como caroço de açaí e água nos quais os discentes teriam que percorrer descalços, usando vendas e auxiliados por outra pessoa. Quando todos terminassem o circuito, aconteceria um momento de troca de diálogos. De forma que todos pudessem partilhar suas percepções da experiência. A próxima atividade consistiria nos estudantes, novamente de olhos vendados, se ed. 5  |  dezembro 2018 87


ARTIGO dividirem em grupos e juntos fazerem desenhos em cartolina que expressassem e comunicassem a experiência sensitiva que seria vivenciada por eles. Por final, a intenção era que eles conectassem as diferenças vivenciadas pelos alunos através do circuito sensitivo com as diferentes percepções acerca das obras da exposição, atrelado com o tema do IX Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia, “Realidades da Imagem, Histórias da Representação”. O contato com o artigo de Kolb-Bernardes (2010), foi uma de minhas referências para o desenvolvimento de minha proposta. Uma vez que, a autora traz a experiência da construção, na escola, de um espaço para o afeto e acolhimento das memórias. Ela explora o conceito de espaço-lugar e permite a construção de um olhar sensível para as histórias de cada um e para a memória coletiva. A dinâmica proposta nesse artigo expressa uma dimensão do ensino da arte que possibilita um espaço de atuação entre a objetividade e a subjetividade no trabalho com os discentes. Considerações Finais O presente trabalho ampliou minha compreensão sobre os conceitos e problemáticas já desenvolvidos anteriormente. Nessa minha última experiência de estágio, que era para ser em espaços culturais e por processos burocráticos e institucionais, não pude atuar nessas instituições, sendo lotada em escola. Por essa razão, detecto uma falha na formação nesse currículo. Visto que, a disciplina deveria nos preparar para atuar em espaços não-formais de ensino. Todavia, muitos concluíram a disciplina sem compreender a diferença de uma mediação cultural para uma ação educativa. Ou seja, sem prática alguma em espaços culturais. As instituições de ensino, em sua maioria, não lidam com vivências fora de seu domínio físico. Não pensam o campo de possibilidades de mediações, vivências e experimentações que podem proporcionar 88  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


para seus discentes. Mesmo com todos os conceitos aqui trabalhados e desenvolvidos, reforço ainda acerca da necessidade de construção, dentro da escola, de um espaço sensível de acolhimento. Assim como, na perspectiva da pesquisa sob o viés da mediação, ao pensar o educador como pesquisador mediador, é preciso que ele exerça sua capacidade reflexiva e crítica, como mediador. É a partir desse contexto que, reflito a existência de um mundo a ser explorado e vivenciado para além de dos métodos tradicionais avaliativos, para além do Enem. Existem diversos conhecimentos que devem ser valorizados, vivenciados, partilhados em canais de diálogos que não cabe em uma prova de 180 questões objetivas. Referências Bibliográficas

COUTINHO, Rejane Galvão. O educador pesquisador e mediador: questões e vieses. Pós: Belo Horizonte, v. 3, n. 5, p. 46 - 55, maio, 2013. FRONZA-MARTINS, Aglay Sanches. Ação Educativa em Museus: da fruição à educação não-formal. Campinas: UNICAMP, 2004. FRONZA-MARTINS, Aglay Sanches. Da Magia a Sedução: a importância das atividades educativas não-formais realizadas em Museus de Arte. Revista de Educação (Itatiba) , Vol IX, p. 71-76, 2006. GARCIA, Roseli Amado da Silva, Arte e Educação como Mediação Cultural: Espaços- tempos para a criação poética. In: TRINCHÃO. Gláucia Maria Costa (Org.). Desenho, ensino & pesquisa. Salvador: EDUFBA; UEFS, 2016. (Coleção Desenho, cultura e interatividade, v. 3). GONÇALVES, A. C. Intervenção Educativa no Museu do Marajó. In: CONFAEB, 25. 2015, Fortaleza. Anais. Fortaleza. Disponível em: <https://www.faeb.com.br/anais/ xxv-confaeb-2015-fortaleza-ce%E2%80%8B/>. Acesso em: 6 jul. 2018. KOLB-BERNARDES, Rosvita. Segredos do coração: A escola como espaço para o olhar sensível. Cad. Cedes, Campinas, vol. 30, n. 80, p. 72-83, jan.-abr. 2010. Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 7 jul. 2018. SCHLICHTA, Consuelo. Mundo das ideias: Arte e Educação, há um lugar para a arte no ensino médio? Curitiba: Aymará, 2009.

Notas ed. 5  |  dezembro 2018 89


ARTIGO 1 Graduanda do 8º semestre do curso de Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Pará. E-mail: andresa.carvalho10@gmail.com. 2 O circuito idealizado para a ação tem como referência a obra Terrane da artista Ana Lira, cujo suporte se trata de um livro de artista que segue uma sistemática de um álbum de fotos. A maior influência não estava na temática da obra, mas sim no suporte e nas possíveis relações e leituras do fruidor. Haja vista que, o livro possibilitava a experiência, por conter várias texturas e compartimentos que guardavam cartas e fotografias, assim como, supria a necessidade tátil dos visitantes. 3 A competência 4, do campo de conhecimento Linguagens e Códigos, compreende a arte como saber cultural e estético gerador de significação e integrador da organização do mundo e da própria identidade. Cujas habilidades são: Habilidade 12 – Reconhecer diferentes funções da arte, do trabalho da produção dos artistas em seus meios culturais; Habilidade 13 – Analisar as diversas produções artísticas como meio de explicar diferentes culturas, padrões de beleza e preconceitos; Habilidade 14 – Reconhecer o valor da diversidade artística e das interrelações de elementos que se apresentam nas manifestações de vários grupos sociais e étnicos.

Andresa Carvalho é graduanda do 8º semestre do curso de Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Pará, UFPA e bolsista no projeto Conexões Afroamazônidas- arte e culturas híbridas, diálogos interculturais. andresa.carvalho10@gmail.com.

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foto @mina.preciosa

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dupla de POR JEFFERSON MEDEIROS O discurso em silêncio calado na boca, grita no peito o que só o espírito entende. A obra busca imprimir visualidade ao ponto de convergência entre as variadas formas de experimentar o cotidiano de violência urbano e periférico. O discurso crítico-poético contido no trabalho se desenvolve a partir do diálogo e agenciamento constante entre as múltiplas vozes que habitam o mesmo lugar social. Propõe um enfrentamento direto com a estrutura social, que mantém abertas feridas como a exclusão socioeconômica e racismo (entre outras). É nesse contexto que a obra, resultado de interlocuções sobre medos, desejos, esperança, saudade, revolta, descaso, abandono se amplia em discurso com potência de diálogo num campo que transcende seu lugar de origem, tocando a outros grupos e camadas da sociedade. O Trabalho não consiste em ser lugar de chegada ou partida, mas se apresenta essencialmente como ponte. A obra não intenciona traduzir as vozes de quem em maior proporção experimenta e resiste ao cotidiano periférico, mas tem a intenção de trazer essas vozes ao espaço expositivo, de forma intrínseca, na visualidade do trabalho. 92  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


artistas POR MATHEUS DE SIMONE Quatro armas suspensas apontam para um centro em que corpo algum se encontra. De onde o medo vem e onde ele está? Na incapacidade de situar suas bases, uma certeza: incide no corpo, é nele que, por fim, materializa-se e dá forma à nossa inércia. Medo do cacete quer falar desse afeto - de como o medo é utilizado como uma ferramenta de controle e desmobilização das massas, incitando à violência e à vigilância social entre nós. E deseja também um outro afeto, por um outro lado - a esperança, e como essas mesmas armas, suspensas, brinquedos prestes a cair no chão, nos sugerem inventar, juntos, mundos possíveis e melhores a partir do desmonte do medo e de exercícios novos de confiança.

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JEFFERSON MEDEIROS Nascido em São Gonçalo, RJ, atualmente trabalha e reside na mesma cidade. Formado em História pela UERJ-FFP, especializado em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo IFRJ, mestrando do curso de Estudos Contemporâneos da Arte pela UFF é músico percussionista e professor de Sociologia e filosofia. Com o discurso organizado em um lugar social, partindo das experiências compartilhadas pelas pessoas que habitam esse mesmo espaço, o artista propõediscussões sobre a violência no cotidiano urbano periférico, suas raízes e consequências. Utiliza materiais como cápsulas de munição encontradas no circuito do artista ou de amigos e conhecidos que desejam colaborar. Entende que cada obra demanda uma técnica, que por vezes precisa ser desenvolvida e organiza o pensamento a partir do fazer. O artista fortalece e alinha o discurso sobretudo em rodas de conversa que desenvolve em escolas públicas de São Gonçalo, onde a intenção é problematizar arte, cidade e violência.

MATHEUS DE SIMONE Artista visual e praticante de Kundalini Yoga, Matheus de Simone se interessa em olhar para o medo e, a partir de então, pensar em estratégias de reestabelecer a confiança em si, no outro e no acaso.

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foto @eualiceferraro

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caderno ....................

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.... AFRICANIDADES

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CRÍTICA

A EXPLOSÃO DE UM CANTO INTERIOR

POR PEDRO CARCERERI

Resumo: João Vitor Medeiros apresentou-me sua série fotográfica eu sou porque nós somos e me conectei de alguma forma com o seu olhar peculiar. A explosão de um canto interior é o texto que me fez traçar paralelos entre questões de identidade, pertencimento e o uso da fotografia como artefato de existir mais do que produzir. João Victor Medeiros é jovem, é negro, é do interior e é periférico. Antes disso é fotógrafo. E não é um fotógrafo que se marca pela maestria da técnica, da exposição correta, do melhor quadro. Não.

A fotografia dele é o que chamo de “endogenia explosiva”, algo que brota dentro de si, mas a todo momento pressiona para sair e tomar o mundo. Uma conexão que o coloca como um dos articuladores das falas e das imagens de sua época e de seu povo.

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Fig. 01: Série eu sou porque nós somos, 2018. Fonte: João Victor Medeiros.

Deparei-me com a série eu sou porque nós somos, que é um registro do bloco Ilê Aiyê no carnaval de 2018 em Salvador, que homenageava o centenário de Mandela e explodia nas tradicionais cores e ritmos a negritude que lhes é forte desde sua fundação, como primeiro bloco afro do Brasil. Em conversas com João entendi que foi seu primeiro contato com eles, sua primeira experiência carnavalesca fora do Sudeste. Fig. 02: Série eu sou porque nós somos, 2018. Fonte: João Victor Medeiros ed. 5  |  dezembro 2018 99


CRÍTICA João mora em Juiz de Fora desde que nasceu. Cidade do interior de Minas tem como característica problemática, para dizer o mínimo, de ser a terceira cidade do Brasil com maior disparidade de IDH entre negros e brancos. Um lugar que transpira conservadorismo e falta de arrojo político para inclusão e discussões problematizadoras sobre questões de afirmação negra, apesar de diversos trabalhos sociais realizados por entidades e pessoas físicas. A cidade de onde saíram as primeiras tropas do Golpe Civil-Militar de 1964 e foi disferida a facada contra Bolsonaro em 2018.

Às vésperas dos últimos respiros de democracia da Nova República parece se confirmar um cenário extremamente preocupante.

Fig. 03: Série eu sou porque nós somos, 2018. Fonte: João Victor Medeiros

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Ele tinha dentro de si uma pujança que ao conversarmos me fez entender que não existia válvula de escape dentro de sua realidade. Sua câmera, como artífice, complemento de seu corpo e alongador de seu olhar, encontrou força dentro de um dos movimentos que mais discutem o que é ser negro no Brasil.

Fig. 04: Série eu sou porque nós somos, 2018. Fonte: João Victor Medeiros

Seu olhar vibra, de dentro para fora, numa explosão de cores, ritmos e força. “O rosto do brasileiro verdadeiro é esse aí!”, ele afirma, com leveza de menino e grandeza de quem sabe que é necessário criar para além do documental, para além de uma crítica social. É preciso explodir tudo que existe dentro do criador e se posicionar perante os problemas que a sociedade nos propõe em nível micro e macro.

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CRÍTICA

Fig. 05: Série eu sou porque nós somos, 2018. Fonte: João Victor Medeiros.

O nome da série, uma tradução livre do Ubuntu e um dos lemas do bloco Ilê Aiyê, sintetiza ainda mais esse fervor de conexão que João busca. As fotos serão uma parte do trabalho que ele levará para a The Other Art Fair, feira de artes voltada à novos expoentes da arte mundial, que acontece em Chicago no final de Setembro.

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Fig. 06: Série eu sou porque nós somos, 2018. Fonte: João Victor Medeiros.

Os rostos marcados pela vida, que por vezes aprovam e por outras desaprovam a câmera do fotógrafo; a instabilidade da imagem em contraponto a uma necessária nitidez que emulamos; e por fim, uma força contida nas fotografias de estar conectado torna eu sou porque nós somos uma das séries mais potentes que tive acesso nos últimos tempos.

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CRÍTICA

Fig. 07: Série eu sou porque nós somos, 2018. Fonte: João Victor Medeiros.

João Victor Medeiros é fotógrafo, mas antes disso é negro, é do interior e é periférico. Tudo isso está ali, em suas imagens e dentro dele, pulsando. Espero que continuemos a assistir essas explosões.

Fig. 08: Série eu sou porque nós somos, 2018. Fonte: João Victor Medeiros.

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Biografia do autor: Pedro Carcereri é bacharel em Artes e Design e mestre em Artes, Cultura e Linguagens pela UFJF e desde 2009 trabalha na área de cinema e artes. Dirigiu e produziu os curtas “Modorra” e “Maria Cachoeira” e o longa documental “Último Toque”. É também curador e crítico de arte, desenvolvendo exposições e pesquisas dentro de diversos apoios na arte contemporânea. Faz parte da seleção 2018 do Sesc Confluências - MG. Contato: pedrocarcereri@gmail.com Biografia do artista citado: João Victor Medeiros é mineiro de Juiz de Fora, tem 21 anos e é fotógrafo há três. Têm como tema de suas fotografias o negro, o trabalho e a juventude, buscando sempre dar uma visão humana sobre essas pessoas. Em seu trabalho fotográfico se utiliza bastante de técnicas como longa exposição e busca cores vivas, tendo como referências fotógrafos como Miguel Rio Branco e o diretor Wong Kar-Wai. João Victor também desenvolve trabalhos artísticos na área de colagem. Contato: jvcostajf@gmail.com

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CRÍTICA Entrevista com

Fernando Mourão POR CLAUDIO DOS ANJOS RAMOS FORTUNA

Áreas temáticas são: pobreza urbana e rural, água e saneamento, antropologia urbana, planeamento urbano, Ordenamento do Território CLAUDIO FORTUNA - Gostaríamos que nos descrevesse a sua infância, desde o menino, o adolescente ao homem feito de hoje, professor? FERNANDO MOURÃO - Felizmente tive uma experiência de viver no campo, que foi o meu início, e quem vive no campo tem muito mais experiências do que quem vive na cidade. Possivelmente mais preparados. Por uma simples razão, porque você vive o tempo em torno da natureza, participa da própria natureza , desde os animais, aos vegetais, grandes cultivos, as colheitas. Então, você tem uma noção muito mais exacta entre a idéia das estações, a evolução dos vegetais e por aí fora. Por outro lado, o tempo marca não só as estações, como marca, por exemplo, o comportamento dos animais, a ideia de manhã, da tarde e da noite, o cheiro da terra, enfim, são coisas extremamente importantes, ver a água bruta e encontrar o local onde nasce um riacho, são experiências inesquecíveis que nos dão ensinamentos que nunca mais perdemos. CF - Em que estado do Brasil nasceu o professor, relação com os 106  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


seus pais, quantos irmãos, enfim, convivência familiar? FM - Nasci no Rio de Janeiro, no centro da cidade, a família do meu pai encontra-se espalhada pelo Brasil, vieram de Portugal – provavelmente cinco ou seis gerações, na Rua das Laranjeiras - mas estão mais concentrados em Minas Gerais, minha mãe tinha nacionalidade portuguesa, depois pelo casamento ganhou a nacionalidade brasileira, era originária da Ilha de São Tomé. Irmãos, infelizmente, não tenho, tenho alguns bons amigos, alguns se tornaram irmãos. CF - Onde é que fez os seus estudos, professor? FM- Ah! Isso foi muito dividido, desde uma pequena escola rural, depois tive que acompanhar o meu pai, que era ligado à construção naval, acabei por viajar para Portugal, estabelecido em Lisboa. Depois Coimbra. CF - Professor, quem lhe ouve falar, nota que apesar do sotaque brasileiro, denota-se um laivo de português de Portugal, a que se deve isto? FM - Claro, passei muito anos em Portugal e dividia-me entre Portugal e França, meu pai trabalhava, como disse, em Lisboa, e a minha mãe artista plástica e ceramista, vivia em Paris onde morreu, daí, passava uma parte do ano em Portugal, entre Lisboa e Coimbra, na cidade de Paris. Você falou no laivo português, devo ter muitos laivos, mas nunca me preocupei nem em desenvolvê-los, nem escondê-los, você tem os laivos que a vida vai marcando, apreciei a comida portuguesa durante muitos anos, convivendo com os portugueses, lendo a literatura portuguesa e africana, tentando entender a mentalidade portuguesa. É natural que Portugal esteja presente na minha formação, não tanto em relação aos franceses. CF - Onde é que fez exatamente os estudos universitários, quais foram as opções em termos de formação? FM - Em Portugal, estudei Direito em Coimbra, foi um percurso entre ed. 5  |  dezembro 2018 107


ENTREVISTA Coimbra, Lisboa e Paris, por questões de natureza familiar, médicas e outras, tive que permanecer alguns períodos em Lisboa, e aí me deslocava para Universidade de Lisboa, pedi transferência, o percurso era feito desta forma, entre Coimbra, Lisboa e um pouco na França, assim as coisas foram passando, deste período lembro-me perfeitamente de três professores que tive, Orlando de Carvalho, Manuel de Andrade, Teixeira Ribeiro, os outros graças a Deus já esqueci seus nomes, porque realmente a memória os varreu, não contribuíram em nada de especial para minha formação. CF - O professor para além de ter formação em direito, dá impressão que tem uma formação diversificada, parece -nos alguém que navegou pelas engenharias, sociologia, como é que se explica isto? FM - Hoje o ser humano, tem que se preocupar com a profissão, hoje um menino quando cresce tem que ter uma profissão para ganhar dinheiro. Minha mãe era artista, então, a estética, a arte sempre esteve muito presente em mim, como ainda hoje efetivamente está, o meu pai tinha uma predileção especial pela matemática, pela física e a mecânica celeste.

Houve uma altura que queria ser astrônomo, estive mesmo a preparar alguns estudos, já não me lembro porque abandonei aquele sonho. É muito difícil encontrar dentro de uma determinada área do conhecimento, formação em humanidades. Não se consegue encontrar as explicações que efetivamente deseja ter em termos de aprofundamento. Isso acontece muito com os médicos. Grandes nomes da medicina se tornaram conhecidos como escritores em situações semelhantes, foram bons médicos e ao mesmo tempo grandes pensadores. 108  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


As pessoas se especializam e cada vez mais em certos pontos do saber, o homem fica muito limitado, autômato. Naquela altura não haviam muitos problemas em ter que encontrar uma profissão a curto espaço para sobreviver, pude me dar ao luxo de seguir várias pistas consoante minhas intuições, meus desejos, minhas dúvidas, daí uma certa formação polivalente que cada vez mais se acentuou mesmo como professor, - sou professor de várias disciplinas, algumas aparentemente independentes, mas tudo isso se deu porque quando faço alguma coisa, faço por paixão, aqui há dois fatores, que são paixão e racionalidade ou racionalidade e paixão. Ao voltar ao Brasil, em São Paulo, tornei-me jornalista, redator de O Estado de S.Paulo – o principal jornal brasileiro – e fiz o curso de Ciências Sociais com ênfase na sociologia, uma área que me atraia e não existia em Portugal nessa altura. A economia também me atraía, cheguei a ganhar o prémio de melhor aluno em economia política, contudo me desestimulei. CF - Qual é a diferença entre uma e outra, professor? FM - A paixão está mais ligada com a arte, a paixão está mais ligada com amor, a paixão está mais ligada com uma plenitude, a tentativa de encontrar uma explicação mais profunda, por isso é que quando me perguntou sobre a minha infância, lhe respondi dizendo que vivi no campo, vi a água a borbulhar do chão, vi as plantas a se desenvolverem, vi a relação entre a temperatura, a chuva, o sol, às plantas e os animais, isto não se vê na cidade, onde, cão é cão e galinha é galinha. Deste meu convívio com a natureza, é um transpor da busca dela o saber, esse saber tem que ser guiado por alguns paradigmas, e o paradigma que utilizei e até por educação familiar, foi o da razão, porque senão você cai em linhas de natureza religiosa, ideológica, acabando por atribuir a sorte, ou ao azar, a uma força invisível, que leva para aqui, ou que leva para acolá, não é que forças invisíveis não apareçam. Porque o homem está sempre perturbado por mistério, não é! Mas, em tudo que faço gosto de tentar entender através da razão, chega-se lá parcialmente, um entendimento profundo nem sempre se consegue. ed. 5  |  dezembro 2018 109


ENTREVISTA CF - Que formação fez em Paris, professor? FM - Que formação fiz? Sei lá, olha fiz muitas formações, andei por exemplo no Museu do Homem, fazendo coisas que não lembra o diabo, com cadernos sem linhas, a fazer o que? Olhando para máscaras, peças de arte africana e tentar ver nelas qual era a linha que as unia, como é que se encara dentro de categorias, como dizia Aristóteles, quais eram as categorias que estavam atrás daqueles objectos - seres? - poderiam ter vida. Então, apercebi-me que havia ali, naquelas bordaduras das peças, todas em zig-zag, e só anos mais tarde percebi que estavam ligadas à filosofia africana, ou seja, a maneira de ver o mundo por parte dos africanos, o helicoidal que aparece em numerosas peças não é? E porque sou mau em desenho, acabei por encher dezenas e dezenas de cadernos com esquissos. Mas repare, nunca me entusiasmou a antropologia, via aquelas peças do ponto de vista da arte e da estética, porque de contrário teria caído naquele logro que ainda hoje numerosas pessoas se colocam, nós e eles, o outro, vais ao mercado de Benfica, compras uma peça qualquer, levas para Europa ou para o Brasil e diz que é cultura africana, as pessoas parecem que gostam de se enganar. Porque não conseguem efetivamente entrar na “substantividade” de uma peça de arte. Hoje visito o atelier do Etona, sua escultura é universal e angolana, não produz máscaras! A descrição da peça também nunca me interessou. Lembro-me que o Goyo, que casou com minha mãe, havia sido convidado para esculpir cavalos em pedra no tamanho natural para um clube em Verssailles. Fez de cavalos moribundos, o que foi um escândalo. Toda gente estava a espera de cavalos fogosos, cheios de saúde, de vitalidade. Tanto minha mãe como meu padrasto, viam as coisas do lado artístico. As pessoas perguntavam, o que isto significa? Ficava atônita quando alguém lhe perguntava o que é que uma obra significava. Significa aquilo que você sentir não é? Para expor digamos que uma ideia, a pintava, mas para chegar a uma sensação, não tendo presente que esta fica de um lado e a racionalidade do outro, ou a sensação de um lado e o reconhecimento do outro, não! A sensação é o resultado da racionalidade do conhecimento, ou seja, 110  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


a sensação é o resultado de uma vivência, da responsabilidade social, foi assim que me fui tornando homem, e daquilo que me diziam, não isto é assim ou assado, sempre tive muita dúvida, porque não tinha certezas, fico muito admirado quando vejo pessoas que fazem discursos, sabem tudo, gostaria de encontrar as coisas e entender tudo, não entendo nada de nada, tenho intuições, tenho, digamos que maior segurança.

As pessoas que sabem tudo, que estão seguras, se um dia quebram o elo da corrente, a situação se transforma num desastre e chegam à conclusão que afinal não sabem absolutamente nada. O drama da vida é algo que você tem que saber antecipar. CF - Depois há uma fase da sua vida de jovem Universitário, que milita na Casa dos Estudantes do Império, em que se circunstâncias se relaciona com africanistas? FM - Bem, isto deve-se ao seguinte facto, a mãe já estava em Paris, o meu pai morreu novo, sempre me disseram que o curso de direito em Coimbra era mais teóricos do que em Lisboa, entendi a universidade como teoria, a ideia da universidade prática, é falso , se você não aprende a lidar com a teoria para depois ir à prática, você acaba por não saber, você pratica, mas no fundo não sabe, aí fui para Coimbra, até porque tinha um parente distante, o professor Luís Albuquerque, que era matemático, hoje conhecido como um grande historiador, foi de facto um historiador mas nunca fiz história e ainda bem, porque se tivesse feito talvez, não teria chegado a ser o historiador que foi, repare, o Ilídio Amaral para mim é um humanista mais especializado nas áreas da geografia, é um homem da literatura, é um homem da história, tem textos históricos extraordinários. O Luís Albuquerque com quem depois publiquei algumas coisas estranhas, sobre cidades, intuições ed. 5  |  dezembro 2018 111


ENTREVISTA sobre cidades brasileiras, - que no fundo podiam ter sido publicadas na Revista Planeta – incentivou-me à cartografia das cidades históricas, Ouro Preto, ao tempo Vila Rica, dois eixos cortados ao meio por um terceiro eixo que fazia lembrar o desenho que se utilizou em Brasília, - repare que a ideia de Brasília, saiu de pessoas que viveram em Minas Gerais ligadas ao movimento da Independência do Brasil, da Inconfidência Mineira, inconfidência do ponto de vista da metrópole, para os brasileiros não é inconfidência. Vi diferenças com a cidade portuguesa, num dos eixos uma Cidade brasileira - filhos de portugueses, que já tinham vivido em São Paulo - atravessando o Sertão, foram para lá. Um segundo eixo correspondia aos colonos portugueses recentes. Havia um outro eixo, de africanos, alguns como escravos e outros menos, é claro, já tinham carta de alforria, eram os proprietários do ouro que extraiam. Em Vila Rica surgiu uma sociedade muito curiosa, Igreja dos Pretos toda forrada de ouro, este era extraído por aqueles que já não eram escravos e que tinham a sua carta de alforria, folharam parte da Igreja com ouro. As pessoas que visitam Vila Rica, não conseguem fazer a distinção entre três arreais, entre três eixos, entre três fenômenos culturais sobrepostos e que efectivamente conviviam na grande praça do poder, de um lado, o poder reinal e do outro lado, a câmara municipal, a burguesia, que começa a defrontar o poder real. São duas sociedades, dois poderes, por um lado o poder real com o palácio do vice Governador e do outro a Câmara, a burguesia. CF - Como é que conhece os africanistas da Casa dos Estudantes dos Impérios , no período da euforia para as independências dos países africanos? FM - Isto acontece na fase em que chego a Coimbra, pude conhecer colegas universitários, um grande número de colegas portugueses e africanos. Uma certa ambiência africana aproxima-se mais das raízes brasileiras. Frequentei o Café Montanha, às noites depois do jantar, um café muito frequentado pelos africanos, pude lá conhecer, por exemplo, o Urbano Frestas, era natural de Benguela e foi médico 112  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


aqui em Luanda, o João Vieira Lopes, o Mac Mahon, enfim, uma porção de angolanos, moçambicanos, cabo verdianos, pessoal da Guiné. Aos poucos pude perceber que o tipo de comida, o gosto, a maneira de viver me atraia mais, em Coimbra os estudantes portugueses que vinham das aldeias, do Portugal profundo, a problemática deles movia-se, como não podia deixar de ser, em torno dos seus interesses. O que não me dizia respeito. Aos poucos os colegas africanos me levaram a almoçar, a jantar na Casa dos Estudantes do Império. Duas ou três vezes por semana apareciam comidas africanas que tinham muita similitude com aquilo que eu estava habituado a comer, este foi um atractivo, o outro atractivo também foi que na Casa dos Estudantes tínhamos um banheiro onde se tomava banho a toda hora, isto na Europa. As comidas, os cheiros, a água, interesses comuns, foram motivos de aproximação, passei a viver numa residência, eram quarenta africanos, eu era o único não africano. Minha mãe morava em Paris, onde era pintora. A pessoa que teve de facto muito importância na minha formação foi a tia Alice, era descendente de África, a sua mãe era africana, foi uma senhora que muito me ajudou na educação, tive uma outra tia que voltou para São Tomé. Foi a segunda mãe do Armindo Vaz – ex-primeiro ministro em São Tomé, sogra da São, meus primos a tratavam carinhosamente e ao marido, o pai do Armindo, de Dimanche, seu nome era Domingos. Gostava de almoçar com eles em sua casa em São Tomé, evitavam me convidar para jantar: naquela altura não havia eletricidade na casa. Já tinha tido em termos familiares algumas aproximações com África, eram tias muito queridas pelas histórias que contavam, pela maneira de ser. Então, já há alguma coisa de familiar atrás de tudo isso, aí comecei a encontrar pessoas pela afinidade, o Dr º João Vieira Lopes, que conheci miúdo, que na altura era também e até hoje somos irmãos confidentes, a solidariedades que vêm daquela altura que não se quebram, o Urbano Frestas, pai do ex-reitor da UAN, o Lúcio Lara, uma pessoa extraordinária, já naquela altura extremamente honesto e sério, correcto e sempre disposto a colaborar, por vezes eu colocava algumas somas na sua mão, isto ed. 5  |  dezembro 2018 113


ENTREVISTA foi um pouco mais tarde, quando se estava a pensar o partido, com determinadas missões, a doença do Mário Pinto de Andrade. Sempre que precisava de fazer contas com a minha mãe, o Lúcio Lara, dentro do prazo, aparecia e eu podia saldar a conta da mãe. Depois aparece o Neto, uma personalidade multifacetada, um bom aluno de medicina, uma pessoa que se tornava já conhecido pela sua poesia, pela ânsia de amor, pela ânsia da superação da situação colonial, o Fernando Costa Campos, um matemático conhecido, que vive modestamente em Lisboa, talvez tenha sido a pessoa que ensinou sobre o marxismo, o Neto, já é idoso, esteve cá em Angola depois da independência, mais acabou por voltar para Portugal, era muito amigo do Luís Albuquerque, que foi professor de Matemática na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, foram dezenas de estudantes que por lá passaram, com quem tive o privilégio de partilhar. O gosto da estética, os sabores, lembro-me quando as tias do João mandavam umas latas com amendoim torrado com açúcar, era motivo de festa para nós, depois vinham as discussões de temas de natureza cultural, temas de natureza política, não é que tenha havido propriamente um envolvimento, foi um desenrolar natural de certas situações lembro-me do meu primeiro cargo de director de Biblioteca da CEI, e o que nós fazíamos naquela altura? Era tentar arranjar livros que indicavam aos próprios africanos um pouco da sua raiz, digamos que uma síntese da sua própria cultura, recordo-me que em determinada altura andei à procura de uma livraria, La Caravelle em Port-au Prince, acho que com o terremoto está livraria deve ter sido destruída, cheguei mesmo a escrever para o Haiti, para ver se encontrava obras do Prince Marce, por exemplo, mas nunca chegaram, foi uma busca que resultou no interesse da procura, estes livros e os autores participaram da ideia da redenção do mundo negro. A livraria nunca me respondeu, anos mais tarde, já Paris em conversa com Aimé Césaire, dizia-me que a livraria existe, que só publicam reduzidas tiragens que se esgotam com muita facilidade e nem eles mesmo têm cópias das anteriores edições. Na Biblioteca compramos livros de autores brasileiros, Arthur Ramos, Jorge Amado, Lins do 114  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Rego, Graciliano Ramos. Livros sobre temas africanos editados pela Presença Africaine – Mario Pinto de Andrade trabalhava lá - e que eu trazia para Coimbra quando regressava de Paris.

Não era uma biblioteca morta, era uma biblioteca que foi criada para um caldeamento, para uma discussão que, num primeiro momento, teve um referencial de natureza cultural, obras voltadas para o processo colonial, havia a necessidade de conhecer, classificar, colocar em categorias certas passagens fundamentais, certas sínteses do pensamento africano, só muito depois é que veio a problemática da política, da organização, isto não veio por acaso, claro que alguns já falavam em marxismo, por exemplo o Neto, que tinha mais consciência política, o Lúcio Lara, um ou outro. Durante muito tempo a ação se centrou na parte cultural, nos temas, o fulcro da questão, depois surge a secção de estudos ultramarinos, na altura se utilizava essa expressão, era obrigatória. Nesta secção de estudos ultramarinos havia um outro tipo de dimensão, exposições de arte africana abrangendo os habitantes de Coimbra, para que eles pudessem ter uma ideia da produção das artes africanas, depois fomos para literatura porque havia a necessidade de se mostrar que os africanos também sabiam ler e escrever e mais do que isto produziam bons textos, por exemplo «Vozes de Angola Clamando no Deserto», obra escrita algumas dezenas de anos-antes, por um grupo de intelectuais de Luanda, que sentiram necessidade de mostrar ao colono que eles dominavam o português de Camilo Castelo Branco, fizeram um texto literariamente perfeito. O Diário de Lisboa, um jornal da tarde tinha um homem extraordinário, o crítico literário Álvaro Salema, que fez várias críticas dos nossos materiais e teve sensibilidade para perceber o que nós queríamos, outro foi Pierre Hourcade, um francês chegado do México, diretor do Instituto Francês em Lisboa. A chamada literatura ed. 5  |  dezembro 2018 115


ENTREVISTA africana colonial reduzia-se a histórias de caçadores, capítulos a falar do elefante, da gazela, do leão. As autoridades policiais repressoras levaram tempo para perceber o que era esta literatura que não falava de elefantes. A biblioteca era a base material, havia que tentar preparar os jovens em uma perspectiva ampla. Faziam-se reuniões em torno de temas, de livros. O livro mais comentado foi Os Princípios Elementares de Filosofia de Georges Politzer, na sua edição original ou, depois na edição refeita pelos seus discípulos Guy Besse e Maurice Caveing. Pessoalmente prefiro a primeira edição, relativa aos textos que deu na Universidade Operária de Paris em 1935 e 1936. O texto de Politzer coloca os conceitos com clareza, com originalidade, é um texto atraente. As edições posteriores, que se devem aos seus assistentes, já refletem toda uma orientação ortodoxa. Politzer vem a ser fuzilado em maio de 1942, na clareira de Mont-Valérien, pelos nazistas. Recordo-me que nessa mesma época, Zamora, era muito lido, “O Processo Histórico”, em edição mexicana. Interrogações sempre as tive, li Kant, - ainda hoje o releio – me aprofundei com os racionalistas, me interessei pelo autores que tratam do pacto social, do iluminismo. Daí, para uma melhor compreensão desenvolvi leituras que aprimoraram o pensamento abstrato – o pensamento matemático foi inspirador – possibilitando testar ideias, processos de natureza sistémica, construções de propostas, como mais tarde John Rawls. O conceito de liberdade em Sartre levou à leitura, anos mais tarde, de Heidegger. Anteriormente já lera Frantz Fanon, que conheci brevemente em Paris, graças a amigos argelinos. CF - Que tipo de independência se pretendia para Angola? FM - Angola é parte do continente africano ou não é? Isto explica uma nota no livro Angola, de Edmundo Rocha, onde o autor me cita entre os elementos mais dinâmicos e radicais da delegação de Coimbra, da CEI, no período de 1949 a 1953, ao lado de Lúcio Lara, Agostinho Neto, Fernando Costa Campos, Urbano Fretas, Jorge Nunes, João Vieira Lopes e de mais alguns nomes. Minha homenagem a Jorge Nunes, morreu desconhecido e no anonimato, no sul de Angola, após ter es116  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


tado preso num campo de concentração na África do Sul. É mais, um filho de Angola, que por merecimento terá que ser reconhecido. Lembro ainda o Lima de Azevedo. Foi enterrado em Benguela, sua cidade natal, um pouco esquecido, foi acompanhado pelo bispo local – não me recordo o seu nome – e pelo João Vieira Lopes. Viriato da Cruz, Jorge Nunes e Lima de Azevedo tiveram pais colonos, as mães – que foram importantes na formação dos três, já eram angolanos. CF - Falemos um pouco do Viriato da Cruz, pela sua dimensão cultural e até mesmo política, alguns autores dizem que ele terá em determinada altura da sua vida foi ostracizado, na medida em que pouco se sabe do Viriato da Cruz. Qual é a sua opinião a este respeito, professor? FM - Bom, o Viriato da Cruz, só o conheci em Paris, fiquei a saber da sua existência por via de amigos, entre eles o Fernando da Costa Andrade (Ndunduma), e um outro colega extraordinário que morreu como professor de geologia, o Carlos Ervedosa, que trabalhou no sul de Angola à procura de dados pré históricos. Ele era essencialmente um homem de cultura, e muita gente nem sabe que foi geólogo, era uma das suas facetas, lá está a visão multiforme da formação. Levou para Lisboa uma série de textos do Viriato que nós íamos publicando. O conheci pela sua literatura, pela sua poesia, muito bela, e mais tarde vou encontrá-lo em Paris com o Mário Pinto de Andrade, o Aquino Bragança, um grande nome que até hoje vocês africanos não lhe fizeram justiça, era um indiano, talvez o intelectual mais avançado de todos nós, um homem com uma formação intelectual, foi um pensador e esteve atrás do Mário de Andrade, do Amílcar Cabral, de todos aqueles nomes do Nacionalismo africano da altura. O Aquino Bragança, que morreu naquele acidente ou talvez sabotagem em que faleceu o Samora Machel. Lá estavam o moçambicano, Marcelino dos Santos, uma pessoa muito querida, naquele tempo era um pouco radical, com anos passou a ser moderador, os jovens o procuravam e ele analisava fatos, lidos como processo. Viriato fundamentalmente um pensador, ed. 5  |  dezembro 2018 117


ENTREVISTA leia-se o Manifesto, levou-me a melhor conhecê-lo em termos de trajetória. CF - Está a falar do manifesto de 1956 professor? FM - Sim, por volta de 1956. CF - Mais curiosamente, ele cria em 1955, o Partido Comunista Angolano… FM - Sim, a criação do Partido Comunista Angolano, aconteceu de forma natural, ou seja cada grupo nacionalista criava um partido. E o que era o Partido Comunista Angolano? Viriato da Cruz, António Jacinto, o Ilídio Machado, o Mário António. A mulher do Mário António, começou a chateá-lo, fez com que ele saísse do partido, creio mesmo que terá sido por influência da mulher, que terá feito a mudança ideológica. Esta versão, sua circulação, deve-se a Alfredo Margarido, aliás, meu parente distante. Havia marxistas e um punhado de comunistas. Havia uns comunistas que eram brancos, vinham do Partido Comunista Português, haviam sido desterrados para Angola, as coisas se limitavam um pouco a este foco, não é? Lembro-me de umas cartas que foram publicadas na Revista Sul, de Santa Catarina, coligidas por Salim Miguel, Cartas D’África e Alguma Poesia, cartas do Mário António e escritores de Moçambique, de São Tomé. Há uma carta do António Jacinto em que pede a Salim Miguel para lhe enviar livros de marxistas chineses. É um registro curioso a preocupação dele de procurar esses textos. Não há propriamente uma linha a ferro e fogo , é algo que se constrói aos poucos, uma solidariedade entre amigos, uma paixão, naquela altura pensar na independência de Moçambique, de Angola. Mais tarde ocorreu uma refundação do PCA. Sem mais registro, envolvendo outros quadros. Passados alguns anos surgem análises sobre esse período levando em conta documentação da PIDE, sem que alguns pesquisadores tenham percebido o principal foco da polícia. Fatos fundamentais relativos ao processo nacionalista não foram assinados nos primeiros anos da repressão em território português. Um fato 118  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


importante, que a PIDE não detetou e que até hoje nunca vi assinalado em nenhum texto, refere-se à preparação de pilotos de avião, tendo em vista um cenário futuro da luta de libertação. Trata-se de um projeto idealizado por Fernando da Costa Campos junto à Associação Académica de Coimbra. Dado o fato de, na ocasião dirigir na AAC a seção de Intercâmbio Estudantil, colaborei com o velho Campos. Resumindo, um grupo razoável de estudantes africanos, mormente angolanos, obteve brevet de piloto na Escola do Aeroclube de Cernache do Bonjardim, perto de Coimbra. Entre os angolanos lembro-me de Urbano Frestas, do Iko Carreira, etc. Uma ideia ingénua, talvez, um segredo bem guardado, em Coimbra dizia-se: coisas de africanos. Certas passagens em textos que vieram a ser publicados, decorrem desses equívocos de análise. A PIDE, mais tarde, passou a dar mais importância às informações sobre os anseios de libertação em África. Anteriormente uma série de amigos nossos estiveram presos não porque eram nacionalistas africanos mais pelas ligações ao Partido Comunista Português, ao MUDE Juvenil. E só tardiamente é que a PIDE, começa a interrogar sobre os anseios de liberdade e por aí fora, poucos percebem isto, não se preocupavam porque não acreditavam, este é o ponto central, que os anseios nacionalistas pudessem vir a ter importância. O que dá uma força imensa a este punhado de jovens que convivendo com uma sociedade hostil, que não só acreditaram no nacionalismo, conseguiram forjar uma proposta de independência, um ponto interessante, até hoje não estudado. Fatos, camadas geológicas de um processo, tornam-se opacos no tempo. Conotava-se a CEI, preferencialmente com o comunismo, a tal ponto que as relações com os estudantes angolanos protestantes eram difíceis. Possivelmente os pastores os teriam alertado a se afastar da CEI. Recordo-me que em Coimbra, numa casa em que vivemos na Rua Guerra Junqueiro, no andar térreo, morava em grupo de estudantes protestantes, com quem nós viemos a relacionar graças ao João Vieira Lopes, aberto ao relacionamento com os colegas protestantes, assim como pela presença do Pedro Filipe, protestante nacionalista. Em Angola o processo foi diferente. Agostinho Neto, filho ed. 5  |  dezembro 2018 119


ENTREVISTA de um pastor protestante, teve uma importância fundamental por sua origem religiosa, aglutinando grupos protestantes para a causa comum e construindo pontes de entendimento. CF - Voltando ainda para questão ligada ao Partido Comunista Angolano, há correntes que afirmam que depois do partido comunista, terá surgido o MIA, o PLUA que depois veio a dar no MPLA. Assim sendo, com o surgimento destes movimentos políticos, a grande questão é a de saber como é que é possível o MPLA, ter surgido em 1956, atendendo ao facto de o Partido Comunista Angolano ter surgido em 1955? FM - Veja bem, eu já não me lembro de muitas coisas, hoje o que me interessa é o futuro, mas você continua preocupado com datas, estas são relativas. Em relação à minha experiência nas idas e vindas entre Coimbra e Paris, convivi com várias ideias, projetos. Nesse tempo a circulação de informação era muito difícil. Veja-se a importância dos marítimos, organizados no Clube dos Marítimos, em Lisboa, uma instituição estudada pelo Felipe Zau – marítimos africanos é um clube com histórias. Fatos ocorriam em paralelo, na Europa e em África, leia-se Angola, foram corrigidos, politicamente, em boa parte, em decorrência de hiatos de comunicação. O processo não podia parar. E portanto, difícil, a partir de uma lógica fundamentada em datas, explicar certos acontecimentos; é pena o Nduduma já ter falecido. Ndunduma recordou-me que o informei sobre a criação do MPLA, numa das minhas idas a Paris. Alguns autores só porque não está nos arquivos da PIDE, não consideram a informação oral. Eu próprio queimei centenas de documentos, todos nós queimamos, porque as perseguições políticas eram grandes, tínhamos o problema de desconfiança de gente infiltrada entre nós, pessoalmente ai ainda preservei alguns documentos daquela época, relativamente poucos. Numerosos documentos foram queimados por segurança. Destruiu documentos em Lisboa e, anos mais tarde, em São Paulo. Na passagem por Coimbra em uma ocasião em que a CEI, poderia ser ocupada a qualquer momento – havia sido 120  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


nomeada uma Comissão Administrativa- muitos documentos foram retirados ou mesmo destruídos. Recordo-me que a pedido do Fernando Costa Campos, colaborei na transferência de grande número de livros – fundamentais ao projeto- para o Atheneu de Coimbra, perto da Praça da Sé Velha, dirigido por elementos progressistas, aos poucos passamos a frequentar o Atheneu. Esta associação, já antiga, decorre do espírito associacionista que se forjou em Portugal por volta da fundação da República. Raramente se utilizavam os correios.

Nem sempre foi assim, num determinado dia em 1952, o jovem Desidério Costa, estudante em Luanda, foi aos correios centrais enviar uma carta para as Nações Unidas, contendo a mensagem do povo de Angola, com 500 assinaturas. Para além do fato de que estudantes africanos, mormente angolanos, integraram o PCP, o MUD Juvenil, havia um clima de simpatia pelo marxismo –lembre-se papel da URSS, de suas vitórias sobre o nazismo. Naquela altura a única força organizada contra o Salazarismo era o PCP, estava estruturado, tinha redes, permitia apoios fundamentais necessários neste tempo. Voltando ao processo de alianças o MPLA, conduzidos preferencialmente por Agostinho Neto, chama-se a atenção para o fato de que Neto, a exemplo do Holden, precisava se apresentar junto à Organização de Unidade Africana, não só como representante do MPLA, mas igualmente de outros partidos angolanos, invalidando a tese de Holden de que o MPLA era um partido isolado. Holden havia feito esforços na criação de pequenos partidos e estabelecendo pontes com partidos menores já existentes, em sua área cultural, o que lhe permitiu apresentar-se à OUA, como representante de Angola. Neto percebeu a estratégia e passou a incentivar a criação de pequenos pared. 5  |  dezembro 2018 121


ENTREVISTA tidos ou recuperar algumas organizações políticas. CF - Depois teve mais tarde uma relação com o Viriato da Cruz, gostávamos de saber se o Viriato enviava-lhe correspondências, foi lançado em 2004, um livro de correspondência com uma senhora francesa a Monique, uma das pessoas que nós sabemos que tem o maior espólio digamos que de correspondência é o Carlos Horta, que informações é que tem a este respeito professor? FM - Bem, o Horta era amigo dele, moçambicano, não sei se ele se disporá a publicar estas cartas, eram cartas pessoais e de índole política. Realmente o grosso das cartas do Viriato foram para o Horta, eu não, nunca fui escrevinhador, quando recebia uma carta, depois de ler rasgava. Com o Viriato nunca tive maior aproximação, mas sempre tive admiração por ele por ser um pensador, um organizador, lembro-me que por vezes, lá nos cafés, no Quartier Latin, um amigo comum, o indiano Aquino Bragança, chamava atenção sobre determinados aspetos que estavam contidos nos documentos produzidos pelo Viriato. O Mário Pinto de Andrade, discutia criticava, por vezes não eram críticas, eram sugestões, não é? Em Rabat, quando do Congresso da UGEAN, em um dos meus encontros com o Mário Pinto de Andrade, este sugeriu-me que fosse visitar o Viriato, pois ele estaria muito sozinho e o Mário, dada a sua posição no partido não o podia visitar. Encontrei–o num apartamento, ele a esposa e a filha, onde jantei e conversamos bastante. A saída, dado o horário e sabendo que estava morando em instalação do governo de Marrocos, próximas da capital, fez questão de me acompanhar a uma empresa de ônibus, colocando o preço da passagem em meu bolso. Foi uma conversa muito agradável, não se queixou de nada, não fez confidências, e centrou-se na sua paixão por Angola. Você insiste muito na figura dele, é só ler aquele prefácio longo que escrevi no último livro sobre ele que foi lançado em Luanda, onde mostrei o homem, como criador, o lado humano que ponho em destaque. As falhas dele talvez, veja bem, seriam no lado político, quer dizer ele como político, realmente não deu provas da 122  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


grandeza que ele tinha como pensador, se deixou iludir por soluções mais fáceis, quem sabe devia estar muito preocupado para que a revolução avançasse rapidamente, não tenho a certeza se foi isto, talvez tenha sido um dos motivos e, ao lado um outro gigante, que é a figura do Agostinho Neto, que paciente e teimoso e com certeza política e pessoal e mais a certeza bíblica, - não se esqueça deste espectro -, que é um homem da práxis que, na minha opinião, são duas grandes figuras, um no pensamento da organização e da construção de um primeiro movimento e o Agostinho Neto como homem da práxis efectivamente conseguiu segurar o partido e levar o país à independência. Neto, sendo um homem de partido, criou o estado angolano. Então acho que são dois grandes nomes, claro que naquelas lutas renhidas uns gostam mais de um do que do outro. Agora você pode perguntar mas que verdade? Esta é a minha verdade, a sua pode ser diferente, há muita gente que concorda e outros tantos discordam, mas é assim que fazemos avançar o mundo, não é? Eu não escondo a minha verdade, mas sei que a minha verdade talvez não seja a verdade, não sei. CF - Uma da grandes falhas do Viriato da Cruz, terá ocorrido que depois da cisão no MPLA, ele ter ido para FNLA… FM - Pessoalmente acho que sim, foi muito negativo, não se consegue explicar a passagem para um partido fechado, ligado a gente que estava pronta a destruir a unidade, ligado a potências coloniais e imperiais. Um partido com uma linha extremamente racial, teve como vice-presidente o reverendo Gourgel, responsável pela morte de muitos nacionalistas, inclusive da Deolinda Rodrigues, acho que foi trabalho sujo. CF - Quem foi o Gourgel de que fala, professor? FM - Acho que era pastor, homem da UPA. Evidencio, na figura do Holden, o seu sentido de africanidade, havia umas conversas entre ele e o pai político, que era o Burguiga presidente da Tunísia, recomendando nunca se aproximar da África do Sul. Recorde-se que tropas da UNITA e da África do Sul, estavam juntas enquanto as tropas de ed. 5  |  dezembro 2018 123


ENTREVISTA Holden - que foram transportadas para o Centro-sul – ficaram concentradas e praticamente imobilizadas, no decorrer dos confrontos. CF - Mas o Viriato terá se retratado depois quando abandona a FNLA, porque até teve uma passagem muito efémera, que culminou com a sua ida infeliz ou mal sucedida na China, com aquele incidente com Mao Tsé-Tung? FM - Olha, isso eu não lhe sei dizer, não tenho informações suficientes, claro que ouvi muitas versões, mas acho que ele se desorientou, quando você está desorientado, comete muitos erros, é difícil refletir. Ele é casado e a esposa teria tido o tal incidente, - o busto - que é uma outra história que anda por aí, parece que as coisas não foram também assim, alguns autores alegam que a mulher dele, a Eugénia, no hotel onde eles viviam, um hotel para estrangeiros, teria empurrado o busto do Mau Tsé-Tung, que se quebrou. Um jornalista brasileiro, Jayme Martins, correspondente do jornal o Estado de S. Paulo na China, meu vizinho, a quem relatei essa versão, garantiu-me que isso é falso, que ela nunca destruiu nenhum busto. As duas famílias eram muito amigas, certamente se tal tivesse ocorrido o Jayme e sua família saberiam. CF - Vamos para uma área mais leve da nossa conversa, quando se fala da história da Cidade de Luanda, o seu nome é uma referência incontornável, sobre as questões do desenvolvimento urbano e dos planos directores, com a sua obra, que fala do desenho urbano da Cidade de Luanda, gostávamos de saber com é quando é que começou a se interessar por Luanda, quais foram as fontes que utilizou para esta pesquisa? FM - Bom, a pesquisa tem várias origens. Nas minhas leituras, em conversa com amigos, observando fotografias da cidade, revendo a cartografia e os mapas urbanos, intui que haviam várias Luandas, o processo histórico aponta tipologias urbanas diferenciadas no tempo. Tive que fazer várias teses, no meu mestrado, que versou sobre a obra do Castro Soromenho, precedida de algumas ideias sobre literatura africana da124  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


quela época. O Doutorado correu muito bem, tinha que fazer um doutorado sobre um tema brasileiro, - diziam-me: uma vez que você ensina em uma universidade brasileira tem que escrever alguma coisa sobre o Brasil. Alguns colegas, na época, escreviam sobre questões raciais, outros sobre operários. Bom, não sou operário! E nunca tive gosto de ficar debaixo do sol na porta da fábrica, a fingir que era operário. Descobri que havia uma zona do estado que estava abandonada há mais de cem anos, ficava no litoral sul de São Paulo, havia bom camarão, bom peixe, não havia pontes, por conseguinte isolada, não havia ninguém para chatear, disse, é aqui que vou fazer pesquisa. Dava para fazer umas boas férias e ao mesmo tempo podia trabalhar, aí pude aliar a preguiça à pesquisa. Brincadeiras à parte, o objetivo da pesquisa foi o de analisar a formação do preço de uma mercadoria – o pescado - em uma região isolada no tempo e espaço. A pesca surgiu a época como um fator de sobrevivência e posteriormente passou a ter sentido comercial. A formação do preço foi um tema que me atraiu quando estudei economia. Então repare, há motivações diferentes nesses trabalhos. Habituei-me a receber gentes de Luanda, algumas pessoas vinham de camadas geológicas diferentes, uns católicos, outros protestantes, uns vinham do Bairro Operário, outros de funções do Estado, pessoas diferentes, com leituras diferenciadas sobre a cidade, deve ter alguma coisa por de traz. Com o Salazarismo, como sabe, vieram para aqui dezenas e dezenas de milhares de imigrantes, - que trazem as touradas, as marchas populares, brancos começaram arrendar e comprar casas a parte da população africana, estes foram viver do outro lado do senado da câmara, surge a cidade branca,a cidade africana, ou melhor, predominantemente branca e africana, era assim que passou a se caracterizar a cidade. Acabei por ler várias Luandas ao longo do tempo: A emergência de um núcleo de poder, ora de natureza religiosa, ora de natureza reinol, seguida sucessivamente da cidade feitoria, a cidade ‘mestiça’, o período de transição para a cidade colonial, e sua consolidação a partir do anos 50 do século passado. A metodologia utilizada foi a do cruzamento de dados demográficos e cartográficos, a par da ed. 5  |  dezembro 2018 125


ENTREVISTA pesquisa de campo e literatura sobre a cidade. A partir do século anterior passamos a analisar o sentido dos planos de urbanização, definidores do processo colonial. Os dados históricos eram viciados pelos ideais colonialistas, decidi então ir ao encontro da cartografia, - uma ciência objetiva - e como tinha trabalhado com o Luís Albuquerque, que chegou a ser director do Instituto de Cartografia em Portugal, - tinha um outro nome, hoje existe mais como centro histórico de pesquisa -, ele era um homem que lia a cartografia, e que trabalhava em cima dos mapas, e como eu sempre gostei de mapas, apercebi-me que era uma boa via, fui juntando a cartografia, antigos mapas de planos, desde o De Gröer, até chegar aquela figura extraordinária que é o Vasco Vieira da Costa, outra pessoa que, um dia, teremos de homenagear, foi seguramente um revolucionário antes do tempo, para além de ser ,sem dúvida, o pai da arquitectura moderna angolana, ele via uma independência para Angola, ele não falava de forma muito expressiva, era nacionalista. Depois fui para a demografia, que é uma disciplina que já tinha dado aulas durante cinco anos na Universidade. Trabalhei em planos de cidades, o coordenador geral do Plano Integrado da Grande São Paulo, PMDI, teve um ataque cardíaco, tornei-me coordenador substituto do plano, não pelos meus méritos, mas estava ali à mão, tive que aprender na marra, fiz mais uns quatro ou cinco planos de cidades, passei a trabalhar no plano de Abuja, Nigéria. Tudo isto resultou das circunstâncias, dos momentos da vida, não resultou de nenhum curso ou formação. Fui a Paris, a Londres,estive também no Vaticano. A impressão que tenho é que Luanda resulta de um plano da Igreja Católica e não tanto da autoridade reinol, mais isto são outros quinhentos, vocês que são historiadores que tratem de saber disso. Fiz entrevistas, andei a pé pelo Musseques, com um amigo, que tinha uma avioneta de asas duplas, demos voltas e voltas a sobrevoar Luanda, para estudar a volumetria, os tipos de telhados, a disposição das ruas, uma coisa é ver o desenho e a fotografia, outra coisa é voar lá na avioneta, ver a cidade. A cidade surge com muito mais vigor. A rua Direita que nunca foi direita, - seguindo-se o traçado relativo a parte da encosta que 126  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


liga o centro ao porto quer, no percurso já da Cidade Baixa em direção ao Cidade Alta, aliás um percurso interrompido pelas falésias que a separam da Cidade Alta (caminho cruzado com duas calçadas) - no Brasil a rua direita é tortuosa, é uma ligação para quem vem de fora em relação a sede do poder. Luanda convive com vários tipos de poder. Mas que poder? A cidade nasce com quatro conventos, perguntei, de onde é que vieram os materiais de construção? A questão do solo, mais tarde, havia uma parte de Luanda onde os edifícios não subiam, por causa das argilas, só depois com as novas tecnologias dos anos 50, é que nestes bairros começaram construções vertical, as curvas de nível foram fundamentais para perceber os avanços da Cidade Baixa para o plateau, até à avenida Brito Godins, à Senado da Câmara – denominações do tempo colonial. O prédio da Polícia Judiciária caiu, porque tinha que cair mesmo, por baixo havia retenção de água. Fiz entrevistas, principalmente com os velhos, perguntava-lhe como é que os pais deles viviam e se eles se lembravam sobre o que os pais comentavam, tive a sorte de encontrar gente fantástica, principalmente protestantes, um deles foi o senhor Sebastião, que foi o primeiro embaixador de Angola em Portugal, morreu há pouco tempo, indicou-me outros pastores, estão citados no trabalho, esta gente foi toda muito querida, deram-me muitas informações, visitei o velho Mangueira, lembro-me que quando entrei na casa dele ali na Praia do Bispo, me saudou em latim, era daqueles homens eloquentes daquela época, era daqueles que encaminharam as almas no cemitério fazendo discursos, o pai do Belo também fazia discursos nos enterro, documentos que ainda existem por aí sobre as famílias, como eram divididas as heranças entre os filhos brancos e os filhos não brancos, que ficavam no comércio e, os que ficavam com as terras, dá para perceber muitas histórias com o comércio que era preferencialmente reservado para o filho branco, o que interessava era manter o branco naquilo que comandava efetivamente a colónia, com erros e desacertos tentei fazer alguma coisa que explicasse o processo. Sim, a minha paixão não posso anular totalmente quando escrevo alguma coisa, Luanda, a produção do texto é ed. 5  |  dezembro 2018 127


ENTREVISTA racionalidade a paixão, na paixão vai a nossa maneira de ser, porque senão faria um trabalho técnico. Em vidas passadas na segunda parte do século XIX, segundo Arnaldo Santos (A Casa Velha das Margens), atendi senhores que procuravam coletes e outros tipos de roupa, lingerie, as mais belas mulheres de Luanda e as não tão belas, importados de Paris, dos Armazéns Printemps, na Casa Mourão podia-se adquirir moda parisiense da época – como vê minha ligação com Luanda é antiga. Não sou eu que afirmo, pergunte ao meu amigo Arnaldo Santos. Quanto a pontos negativos, sei que o trabalho os tem. Repassei minha primeira análise, pelo crivo da demografia a relação com a cartografia e os mapas urbanos. Das pesquisas e estudos que procedi surgiram várias cidades e não uma Luanda continuada no tempo. Repare-se que alguns autores quando se dá a interrupção do tráfico da escravatura afirmam que a cidade entrou em decadência. Pelos dados das pesquisas, cheguei à conclusão, contrariando essa posição, que foi nessa altura que mais se construiu em Luanda, brancos vão embora, as profissões ligadas ao comércio voltado para a burguesia diminuíram, mas a construção civil, os pedreiros e outros aumentaram, porque a população africana começou a construir, houve uma migração para a cidade, aí há um aumento da população africana, há uma decadência de cidade do ponto de vista do colonizador, do ponto de vista do branco, mas do ponto de vista do africano não creio que tenha sido uma queda para Luanda, muito pelo contrário, é um dos momentos em que Luanda cresce. Várias Luandas e não uma evolução linear da cidade, integrada por moradores europeus e africanos, uma relação que tem sentido através do processo de análise. Luanda cumpriu o seu papel histórico, da perspectiva do comércio atlântico, o mesmo ocorreu com o Rio de Janeiro, uma cidade colonial num Brasil já independente, a criação de uma nova capital em pleno interior de Angola, tal como o arquitecto Troufa Real preconizou, situada no coração do continente, virada para África Central e para a África Austral, marcará para Angola um novo tempo. Assim foi com Brasília, sob todos os pontos de vista, apesar de resistências e críticas. Temos um Brasil antes e após Brasília, um Brasil 128  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


moderno e sulamericano. AÍ vai uma sugestão para o Presidente José Eduardo dos Santos. CF - Na obra dá para perceber que já haviam problemas para se implementar os planos diretores para Luanda, em função da sua experiência dos largos anos que trabalhou nestas questões, não só no Brasil com em África, qual seria a solução para um plano diretor bem sucedido para Luanda, professor? FM - Olha, um dos planos que gosto, - o Ilídio Amaral na entrevista conduzida por você fez referência - é o plano De Gröer, ele era um humanista, criada em um bolsão articulado com a bolacha, um conjunto de habitações fora dos eixos de circulação. Quem mora numa casa construída em cima dessa estrutura urbana é o nosso Mendes de Carvalho, se fores a casa dele percebes. Depois vem o Vasco, o grande nome é o do Vasco Vieira da Costa, que transpôs para Luanda a Cidade do Norte de África, influenciado por Le Corbusier. O Vasco tinha preocupação com a circulação dos ventos, o Kinaxixe - foi uma pena o terem destruído - era um mercado esteticamente bonito, não se sentia cheiro do peixe, das carnes, nem de outros alimentos, porque o vento circulava lá dentro, era uma obra extraordinária, ele tinha a mania da circulação dos ventos, de criar espaços com sombra -, aquelas arcadas entre os prédios e a rua. Um sonho dele, que o governo nunca autorizou, foi aqui na Cidade Alta, onde tem aquela torre, onde era antigamente o observatório, que vai até à Fortaleza, de fazer um corte no terreno, para garantir a circulação dos ventos sobre a concha, se olhares bem a baixa de Luanda é uma concha abafada, a ideia era a de abrir ali um buraco para circulação do vento na baixa de Luanda. Hoje em dia já não adianta mais porque vocês edificaram lá edifícios altos que vão complicar cada vez mais o trânsito. Lutou na câmara para demolição do prédio do Munhoz. Vasco Vieira da Costa preocupou-se com o homem em sentido amplo. Se analisarmos a sua obra sob o aspecto do urbanismo podemos verificar que uma das suas preocupações, foi de evitar a criação de áreas isoladas, tão ao gosto dos governantes de ed. 5  |  dezembro 2018 129


ENTREVISTA Lisboa do tempo colonial. O homem deixou de ser o destinatário do planeamento, o veículo automotor se impôs, por exemplo, nas áreas tradicionais da cidade, os passeios encolheram ou se transformaram em local de estacionamento dos carros. Nas novas expansões urbanas, por exemplo no caso de Luanda Sul, onde fica o espaço destinado à circulação do pedestre? Muitas das ruas que vão desembocar nos novíssimos eixos de circulação, são caracterizadas por um espaço mínimo o que chama de passeio, em alguns casos, o passeio desapareceu e ainda, em casos mais raros, os muros das vedações, por milagre, andam de noite. Para lhe responder, ao que seria desejável em relação aos Musseques, lembro-me que no Brasil, surgiram duas soluções: destruir as favelas, - a população foi transladada para áreas fora do território urbano – ou proceder a uma remodelação urbana, mormente através da implantação de rede de água esgoto e outros benefícios.

Nesta perspectiva gostaria de salientar, o excelente trabalho do arquiteto Ruy Otacke, que com gosto, procedeu à remodelação em favelas na cidade de São Paulo, tirando partido do uso de elementos vazados, quer nas fachadas das habitações, quer na construção de escolas e outros serviços públicos, fazendo avançar a construção em relação a áreas vizinhas, evitando a falsa estrutura linear dos bairros sociais, diferenciando a habitação, utilizando cores diversas. Nota

1Um dos mais conceituados escultores angolano, que se destaca pela corrente filosófica “etonismo”

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Cláudio dos Anjos Ramos Fortuna detém uma pós-graduação em Agregação pedagógica e Licenciatura em Antropologia pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto (FCS-UAN); Investigador Assistente no Centro de Estudos Africanos da Universidade Católica de Angola (CEA-UCAN) e Membro da Associação Kalu e da Liga Nacional Africana. Investigador do projecto “Dinâmicas da pobreza urbana e rural em Angola” (CEIC-UCAN/CMI, 2015-2018). Autor dos livros: Reencontros com as literaturas Africanas de Língua Portuguesa, editada pela Kiron, 2013; Os Lugares no Espaço Angolano, TM Editora, 2015. Co-autor do livro, Os meandros da Manifestações em Angola, Kiron,2016.

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RELATO DE EXPERIÊNCIA

COLETIVO DESCOLÔNIA: ARTE, AFETIVIDADE E ATIVISMO PRETO

POR MATHEUS ASSUNÇÃO Resumo: Este relato de experiência tem o objetivo de compartilhar minhas vivências nos primeiros meses de criação do Coletivo Descolônia. Coletivo de produção, estudo e difusão de arte afrocentrada, valorizando as produções artísticas e ações práticas do coletivo em seus primeiros meses de atuação. O coletivo surge em 2017 a partir de um grupo de estudos sobre arte afrocentrada,como iniciativa de discentes do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora. A abertura dos caminhos e a necessidade de descolonizar-se No segundo semestre de 2016 cerca de dez alunos negros, em suas maiorias cotistas, se reuniram em círculo no chão da Galeria Guaçui do Instituto de Artes e Design da UFJF para discutir sobre arte afrocentrada. É necessário pontuarmos a questão das cotas nas universidades públicas brasileiras para afrodescendentes, medida compensatória por uma dívida histórica de mais de 500 anos de escravidão negra no Brasil que permitiu, por exemplo, que hoje possamos nos reunir e que esses questionamentos levantados pelo coletivo pudessem reverberar. A reunião teve como mediadora Renata Dórea, uma das percussoras da iniciativa de criação do grupo de estudos que viria se tornar o coletivo posteriormente. A reunião é tomada por diversas falas com compartilhamento de experiências sobre ser negro e estar em uma universidade pública de maioria branca e como se dão estas relações especialmente 132  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


no Instituto de Artes e Design UFJF. A reunião se torna densa, alguns participantes se emocionam ao relatar casos de racismo dentro e fora da universidade. Percebemos um ponto de convergência nos discursos, a presença do racismo na universidade e a não presença de artistas negros nos currículos das disciplinas ministradas no Instituto de Artes e Design. A reunião termina e fica uma certeza da necessidade de agirmos para que não se perpetue o epistemicídio, ou seja, a recusa à produção cultural, visual e intelectual de origem negra e indígena. Naquele momento criamos um grupo de compartilhamento online onde poderíamos vir a divulgar o trabalho de artistas negros, sugestões de leitura e desabafos.

É interessante perceber como é ainda um processo doloroso e cansativo tratar sobre a temática afrobrasileira e como isso implica em mexer em um passado escravocrata que ainda não foi superado em nosso contexto brasileiro. Falar sobre descolonização implica em repensar uma nova universidade que em seu estado atual se estrutura em um pensamento hegemônico de origem branco e europeu. A série Orí gem (Figura 01) que criei em 2016 reflete sobre a necessidade de descolonizar se em um ato de “ferir” o mapa, retirando à força a representação do Brasil devolvendo-o à África.

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RELATO DE EXPERIÊNCIA

Fig 01: Registro de série Orí gem por Matheus Assunção, 2016. Fonte: Elaborado pelo autor

Cor da pele e as primeiras atividades do grupo Após um tempo de desligamento e trocas somente online, embora ainda estivéssemos conectados e permeados pelo desejo de nos unir corporeamente finalmente em maio de 2017 contamos com o apoio da profª Drª Eliane Bettochi que cedeu um espaço para que nos reuníssemos no Laboratório Interdisciplinar de Linguagens semanalmente. Eliane Bettochi é atualmente coordenadora da Licenciatura em Artes visuais e vice-diretora do Instituto de Artes e Design UFJF, sendo uma das únicas professoras negras do Instituto de Artes e Design. Em uma reunião realizada em abril de 2017, com cerca de dez pessoas, escolhemos em conjunto o nome Descolônia. A ideia de descolonizar-se naquele momento se fazia necessária para começarmos a ter mais contato com a arte negra, afrobrasileira e indígena a nós não apresentadas nas aulas. Tarefa que tomaria bastante de nosso tempo já permeado pelos 134  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


estudos acadêmicos. Era também de nosso interesse buscar referências indígenas de produção artísticas, visto que alguns alunos do coletivo são de origem afroindígena. Logo, em nossas primeiras reuniões, decidimos fazer uma performance no pátio do Instituto de Artes e Design para marcar o início das atividades do coletivo. Nossas primeiras reuniões no novo local contaram com alunos negros de outros cursos que decidiram se integrar a nós em nossa produção e pesquisa artística. Discutimos inicialmente muito sobre a poética negra, o quê era? O quê a caracterizava? E também como poderíamos produzir em coletivo sendo cada um mais próximo de um suporte artístico, tínhamos naquele momento pessoas que trabalhavam no campo da dança, muralismo, pintura, audiovisual, artes do corpo, artes gráficas, arte-educação e outros suportes. Havia uma grande diversidade de saberes, queríamos juntá-los. Embora haja muitas terminologias para classificar a poética negra sabíamos que o ponto que unia nossa produção era o desejo de falar sobre o corpo negro, seja ele em um passado ou presente em África, passando por um processo doloroso de diáspora até a chegada a contemporaneidade e o lugar do negro nessa nova configuração de sociedade. A performance Cor da pele surgiu como uma iniciativa para repensarmos o nome do lápis chamado popularmente de cor de pele. A performance realizada por Andressa Silva e Guilherme Borges (Figura 02) aconteceu no pátio do Instituto de Artes e Design por volta de meio dia. Guilherme se despiu e se cobriu com um lenço branco em uma pose clássica do estatuário grego antigo sendo pintado lentamente por Andressa de branco. Os olhares em sua maioria foram de não compreensão de que se tratava de uma performance com temática sobre racismo. Embora nos fosse esperado, sabemos que para algumas pessoas brancas, por uma simples questão de não empatia ou não convivência, é difícil compreender a temática racial intrínseca em algumas obras, ainda mais em um país como o Brasil, em que se divulga como uma democracia racial. A performance ainda foi repetida no Festival de Artes do Corpo da UFJF e em uma pré-exibição de filmes sobre temática negra no Museu de Arte Murilo Mendes em Juiz de Fora. ed. 5  |  dezembro 2018 135


RELATO DE EXPERIÊNCIA

Fig 02: Registro da performance Cor da Pele por Andressa Silva e Gulherme Borges. Autora: Paula Duarte

Entre as primeiras iniciativas do coletivo propomos uma roda de conversa sobre apropriação cultural. Decidimos naquele momento puxarmos uma roda de conversa sobre o assunto devido aos constantes questionamentos levantados sobre o tema pela mídia naqueles tempos com o clipe de uma cantora brasileira sendo acusado de tal prática. Recebemos representantes do Candaces, uma organização de mulheres negras.

Foi interessante para percebermos que a presença de pessoas brancas tem sido pequena nos espaços que criamos para discussões, mesmo quando esses espaços tem o propósito de serem espaços de formação sobre racismo, pauta de 136  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


interesse mútuo de pessoas brancas e negras. É necessário mais que nunca encarar o racismo como um problema nosso. Participamos também como convidados em alguns eventos na cidade de Juiz se Fora, como o Encrespa Geral 2017, evento importante para militância negra da cidade de Juiz de Fora e região da Zona da mata mineira que possui diversas atrações entre elas: conversas, exibições de filmes, feira de afro empreendedores e outras atividades. Neste evento tivemos a oportunidade de vender nossas produções artísticas na feira, além de termos o documentário de Renata Dórea, Afrodites, curta metragem documental sobre transição capilar feminina, exibido e discutido posteriormente em uma mesa composta de mulheres negras. Fomos também convidados para fazermos uma performance no show de Uiara Leigo,cantora de Juiz de Fora, onde eu junto a Maré e Noah Mancini fizemos uma performance chamada Trança simbiótica no jardim do Museu Mariano Procópio. O trançar dos cabelos como símbolo de resistência negra, sendo o corpo dos artistas unidos por um pano preto que os torna um só ser. Tudo isso em um museu de passado escravocrata. A presença de denúncias a casos de racismo ocorridos no Instituto de Artes e Design e na Universidade Federal de Juiz de Fora também marcou nossas primeiras atividades. Dia preto Entre as primeiras atividades do coletivo está também o dia preto, um sarau feito mensalmente no período da tarde com duração de duas horas. A ideia surge de uma conversa no coletivo sobre a necessidade de trazermos a produção artística e cultural negra de Juiz de Fora e região para o Instituto de Artes e Design. Decidimos por homenagear dois artistas negros a cada sarau. Primeiramente, trabalhamos com Basquiat e Maria Carolina de Jesus. A ideia foi que individualmente produzíssemos colagens, desenhos ou ilustrações para homenagear ed. 5  |  dezembro 2018 137


RELATO DE EXPERIÊNCIA os artistas escolhidos. Produzimos um varal com obras de ambos os artistas impressas junto com nossos trabalhos para que as pessoas ao passarem pelo sarau conhecessem um pouco mais da história do artista e da escritora. Contamos também no sarau com discotecagem de Claudio Jr. Ponciano, integrante do Descolônia. Uma banca para venda de trabalhos artísticos dos integrantes do coletivo foi montada, além de cavaletes com uma exposição de quadros de alguns dos integrantes do coletivo. Em certo momento no sarau abrimos o microfone para performances. Uma roda se abriu entre o pátio e recebemos pessoas que trouxeram poesias, sua dança, sua performance e corporeidade negra para que pudéssemos juntos enegrecermos o espaço. Fizemos também no dia preto colagem de lambes produzidos por integrantes do coletivo em uma oficina. Homenageamos nos lambes artistas e personalidades negras com histórico de luta antirracista, entre eles: Rosana Paulino, Musa Michelle Mattiuzi, Frantz Fanon e Madame Satã (Figura 03). Durante a colagem desses lambes tivemos uma resistência por parte da

Fig 03: Registro de lambe Madame Satã. Autora: Maré Rosa

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direção do Instituto de Artes e Design que não só proibiu a colagem de lambes nos instituto, como também se mostrou contra a livre manifestação artística nas paredes do Instituto de Artes e Design, sendo uma discussão longínqua no instituto que não se inicia neste episódio. Por fim, conseguimos que a colagem dos lambes fosse mantida após discussão junto à direção. É importante que saibam que o Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora possui as paredes brancas, assim como a cor da pele da maioria de seus alunos. Participações e performances Após alguns meses de atuação do Coletivo Descolônia (Figura 04), começamos a receber propostas de participação em eventos com a temática de negritude e convites para participarmos de algumas aulas no Instituto de Artes e Design. Fomos convidados pelo profº Drº Fabrício Carvalho para falarmos sobre o coletivo em uma parte da disciplina Arte e Institucionalização, que se dedica a tratar sobre coletivos de arte. Iniciamos a conversa com uma performance, onde cinco integrantes do coletivo amordaçados com panos pretos e vestindo roupas da mesma cor sentados em frente ao quadro branco se mantinham parados enquanto uma projeção de si próprios ia contando histórias, lendo poesias, falando estáticas sobre a população negra e a presença negra nos principais livros usados nas graduações de artes visuais no país. Logo após a performance, falamos sobre o coletivo e discutimos em sala sobre a necessidade de se tratar das histórias invisíveis. A bibliografia vigente escolhida por boa parte dos docentes em pouco ou nada nos representa como artistas, negros e latinos americanos que somos. É necessário dar espaços às vozes subalternas e compreender a importância das palavras e do axé que há nelas quando são passadas de geração em geração no poder da voz. Queremos nos ver no lugar em que estamos e convivemos diariamente.

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RELATO DE EXPERIÊNCIA

Fig 04: Montagem Fotográfica Digital Reunião Descolônia. Fonte: Elaborado pelo autor

A coletividade ancestral e os caminhos que se abrirão Embora tenhamos iniciado em 2017 sinto que conseguimos produzir muitos frutos em nossos primeiros meses de ação. Temos uma participação contínua e semanal de cerca de dez pessoas no coletivo e mais que isso a afetividade e os laços estreitados entre nós são de suma importância para concretizarmos o coletivo. A coletividade como arma, aprendizado de nossos ancestrais. Produzir em coletivo artisticamente nem sempre é uma tarefa fácil, visto que um ego narcisista circunda o mundo das artes visuais. Produzir em coletivo é se dispor a deixar um pouco de si para dar espaço ao outro. Esses encontros permitiram nos conhecêssemos e formássemos um espaço de luta, resistência e companheirismo preto. Seguiremos juntos porque quem caminha junto vai mais longe! Referências Bibliográficas ASSUNÇÃO, M. Registro de série Orí gem. 2016. Técnica Mista ,aprox. 25x20. Juiz de Fora. ASSUNÇÃO, M. Montagem Fotográfica Digital Reunião Descolônia. 2017.

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Montagem Digital. Juiz de Fora. DUARTE, P. Registro da performance Cor da pele por Andressa Silva e Gulherme Borges. 2017. Fotografia Digital. Juiz de Fora. ROSA, M. Registro de lambe Madame Satã. 2017. Fotografia Digital. Juiz de Fora.

Matheus Assunção é artista na vida e bacharelando do curso interdisciplinar em artes e design pela UFJF. Integra o Coletivo Descolônia, coletivo de produção, difusão e estudo sobre arte afrocentrada. O grupo de pesquisa e estudo em visualidades, interculturalidade e formação docente MIRADA FACED/UFJF. Tem como poética as questões de descolonização e afro brasilidades. Email: matheus_assuncao14@yahoo.com.br

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ENSAIO

FONGBÈ, VODUNS, NAGOTIZAÇÃO E O CANDOMBLÉ POR RENNAN CARMO Resumo: O ensaio em questão flerta com as reverberações que o candomblé brasileiro cria ao sofrer processos de transculturações. Consiste numa tentativa de aproximar a língua portuguesa do Fongbè – língua falada pelos povos nativos do Benim –, constituindo um proto-glossário de termos utilizados dentro de uma casa de candomblé. Repensa os processos do tráfico negreiro, frisando a participação de diversos grupos étnicos advindos do continente africano e problematiza pasteurizações ao, através de hegemonias eurocêntricas, criadas afim de construir imagem una de um negro-genérico-nagô. Através de relatos pessoais da vivência em um terreiro fundamentado na raíz Jeje Mahi, propõe inflexões a respeito do fenômeno da Nagotização. Palavras-chave: Candomblé; Jeje Mahi; Nagotização; Benim; Fongbè. Começo esse texto avisando a todos que minhas possíveis tentativas do dizer não serão fundamentadas em uma escrita tão dura. Funcionará, de certa forma, como um texto memorial em que irei contar pequenos fragmentos sobre minhas vivências e especulações, não só artísticas como também aquelas ocorridas dentro do meu terreiro - o Hunkpame Azawane Savaluno. O Candomblé em que brotei cultua energias naturais chamadas de 142  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Voduns. De modo muito resumido, o culto aos Voduns tem surgimento milenar, perpassado pela tradição oral dentro dos antigos reinos do Dahomé, Savaluno, Savé, Ouidah, Mahi etc., atualmente correspondendo a região do país Benin. A língua falada dentro desse culto é o fongbè. O panteão dos Voduns é composto por uma extensa gama de divindades relacionadas aos aspectos naturais da vida humana. Existem Voduns ligados aos movimentos dos astros, a morte, a vida, a colheita, ao ar, aos ventos quentes e frios, ao fogo e assim por diante.

Infelizmente, a deturpação do olhar preconceituoso tende a não só diminuir como também pasteurizar pluralidades. Em virtude disso, o distanciamento do senso comum para com determinadas matrizes culturais dificulta o meu discurso, evocando maior didatismo de minha fala ao tentar enegrecer aquilo que escrevo. Tornar preto aproxima o tambor! Nem todo Candomblé surge do culto voltado aos Orisás. De tradição yorubana, o povo nagô trouxe até essas terras brasileiras seus deuses, forças da Natureza que coexistem em todo espaço e em todo momento. Entretanto outros povos também trouxeram suas respectivas divindades. Em África, estes povos possuem especificidades que necessitam ser exaltadas. Baianos e maranhenses não são iguais, assim como yorubanos e fons. A pasteurização dessa África torna-se um grande problema ao pensar a Iconografia existente dentro de um terreiro e as identificações afetivas que esses filhos de santo conseguem tecer com o sagrado. Um processo denominado de Nagotização explica o fenômeno de difusão do culto ao Orisá e o abafamento que a prática divinizada a outros deuses/povos necessitou sofrer. De grosso modo, pode-se dizer que o Orisá é Yorubá, o Vodum é Fon e o Nkisi é Banto. Cada grupo de divindades, pertence a um povo com língua, rituais, credos e atos distintos. ed. 5  |  dezembro 2018 143


ENSAIO Em meu Hunkpame mantemos uma tradição típica do povo Jeje. Nosso candomblé é Jeje Mahino, ou seja, veio da região de Mahi. Os jejes, que chegaram ao Brasil através do tráfico negreiro em certa quantidade, por volta de meados do século XVIII, e em grande número após 1790, tinha como pátria o antigo Reino do Daomé (Danxomè), fundado pelos Fons, uma tribo de ewe. No Daomé existiram, desde os séculos XV e XVI, vários reinos com sua própria cultura, cujos principais eram Savi, Allada, Adjatché (Porto Novo) e Abomé (Agbomè). No século XVIII, os reis do Daomé conquistaram os reinos vizinhos, estendendo assim seu poderio até a costa e além das fronteiras atuais. Obteve sua independência em 01/08/1960 e, nos anos seguintes, houve numerosas mudanças de regime. Em 30/11/1974, a república popular socialista é proclamada e a nação passa a ter o nome de Benim. O país situa-se a oeste da África, próximo à linha do Equador, com uma superfície de 114,763km², equivalente à de Portugal. Compreende uma população de quase 7 milhões de habitantes. Cotonou (Kútonú), centro econômico de Benim, é também a cidade mais populosa do país. A capital administrativa é Porto Novo, segunda maior cidade do país, que faz fronteira a oeste com Togo, a noroeste com Burkina Fasso, a nordeste com Niger, a leste com a Nigéria e ao sul com o Oceano Atlântico. Partindo de um litoral com 125km de extensão, o país avança 700km em direção ao interior do continente oeste africano, contendo uma grande variedade de paisagens, zonas climáticas e grupo étnicos. No sul do Benim, a temperatura varia durante o ano entre 25 e 35°C; já ao norte, a temperatura fica em torno dos 40°C. No Benim existem mais ou menos 50 etnias, com variações linguísticas marcantes. Sua composição étnica, em 1996, era de: fons (39%), yorubás (12%), gouns (12%), baribas (12%), adjás (10%), sombas (4%), aizos (3%), minas (2%), dendis (2%) e outros (4%). Os beninenses de diferentes regiões utilizam a língua francesa entre si. As principais línguas faladas no Benim, além do francês, são: fon, bariba, dendi, adja, mina e yorubá. Como em toda parte do Benim, os ritos reliogosos ancestrais ao Vodun são conservados e transmitidos pelos descendentes da família real, pelos feiticeiros (sacerdotes do Vodum) e pelas confrarias secretas. Em 1991, 62% do beninenses praticavam as crenças tradicionais; 23,3% o cristianismo (católicos, 21% e protestantes, 2,3%); 12% o islamismo e 2,7% outras. Abomé (Agbomè), fundada em 1658 pelo rei Houegbaja e localizada a 139km ao norte de Cotonou, é a antiga cidade real do Daomé. A cidade de Oudiah, localizada a 41km a oeste de Cotonou, é o berço do culto ao Vodun, onde se encontra o mais afamado tempo dedicado à serpente sagrada (Vodun Dan), que assegura força e proteção. (CARVALHO, 2006, p.18) 144  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Os Voduns são divididos em três famílias: A família de Sakpatá, trazendo os Voduns da terra; a família dos Heviosso, Voduns do céu e do mar; e a família de Dan, as cobras. Cada Vodum é um vetor fundamental na construção dos ritos, na explicação das lendas e na manutenção dos valores sagrados. Se a folha cai, agradecemos a Agué; se o bebê respira assim que nasce, rezamos pra Djó; se o corpo se decompõe na terra, pensamos em Avimádje. Todas as três famílias são de suma importância para o ciclo natural. Pensando-as como formas circulares e espiraladas, no ponto mais interno está o Tó Vodum, ou seja, divindade principal localizada em cada um desses três redemoinhos – Dan, Heviosso e Sakpatá. A partir disso cada família aumenta o raio de interação, ao ponto que alguns Voduns mais ligados as interrelações da natureza se posicionam a margem de seu Tó Vodum, constituindo assim uma rede de diálogo. A terra ligando-se aos mares e aos céus, e estes ligando-se as divindades planetárias. Estas últimas são responsáveis pelos ciclos da água dentro de nosso ecossistema. É dito que quando chove as Dans trazem das estrelas a água que irá ajudar a família de Sakpatá na semeadura dos alimentos. Após o período de chuva essas Dans retornam aos céus mas deixam seus rastros, o arco-íris. Venho de uma família cujos membros estiveram, e ainda estão, inseridos em cultos de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda. A percepção dessas raízes, juntamente com a percepção da identidade étnica, fez com que a incorporação desse sagrado fosse dada com deleite. Minha vida no terreiro começou desde muito jovem, anterior ao nascimento. No ventre de minha mãe fui aquecido pelo calor de Vodum Dan, a cobra. Lembro do abraço apertado de Vodum Gbadé do tio Fábio, do brilho prata de Iyemonjá da tia Margareth, da impetuosidade de Oyá da vó Norma... Aqui falo especificamente da família sanguínea, aquela que nasci e que teci os primeiros laços afetivos. Naquele tempo não me auto-inseria no terreiro de minha mãe, mas convivia nele em virtude dos meus pais. Eles eram membros, eu era filho de membros. Com isso não passei diretamente por nenhum tipo de ritual, mas indiretamente o Vodum estava fazendo sua semeadura. ed. 5  |  dezembro 2018 145


ENSAIO Brotei anos depois, já mais rapaz, indo ao encontro dessas forças numa festa chamada T. Ela é uma grande homenagem aos Voduns da terra, agradecendo pela colheita dos alimentos e pelas doenças curadas. Dessa oportunidade surgiram diversas inquietações e desejos. A minha colheita pessoal foi dada a partir desse ponto, onde pude revisitar um Rennan criança, rememorando todas as lembranças do terreiro de meus pais. Com isso me emocionei, e o sentimento foi tão forte que surge, neste momento, a necessidade de externar em prática artística. A pesquisa se sustenta no intuito de resgatar valores perdidos da cultura Jeje Mahina, seus modos de acesso ao sagrado, sua língua, história, construções visuais e afins. Sendo atravessado afetivamente pelos acontecimentos vividos dentro do Hunkpame, proponho a construção de estudos artísticos voltados aos desdobramentos que os aspectos religiosos podem conjecturar na maneira em que percebo e dialogo com o mundo, e também dos impactos que isso traz ao meu corpo, ora acadêmico ora ritualístico.

Como ponto vital para a construção deste projeto artístico, o primeiro passo a ser dado é, a criação de um glossário, ainda em elaboração. A língua falada dentro de um terreiro de candomblé Jeje Mahino é o fongbè, muito diferente do yorubá. Com isso, o atravessamento e as imbricações linguísticas que o distanciamento entre o português e o fongbè se calcam, tento propor traduções que se instauram como manifestação artística de resgate a essa cultura em esmaecimento. Trata-se, portanto, de uma produção prático-teórica na criação do glossário. A Nagotização tende a ser tão densa que, dentro das próprias casas 146  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


de Candomblé Jeje, o culto tradicional dos reinos do Benim está sendo perdido. A dificuldade de perpetuação através da oralidade e a massiva deturpação ao se olhar o Candomblé brasileiro, fazem com que os atuais iniciados não consigam identificar suas raízes. Um fator angustiante é de não conseguir visualizar, seja no próprio terreiro como em também livros infantis de itans, o Vodum representado. Vejo Osún, Iyemonjá, Oyá, Obá; mas não vejo Aziri Togbosi, Naetè, Avejidá, Parará, Gbadé, Avelekete, Djó, Adjakatá… Meu terreiro é Jeje Mahi, vindo da linhagem do primeiro terreiro Jeje do Rio de Janeiro, o Kpó Dagbá. Meu Hunkpame é a terceira geração destas casas tradicionais, que por ordem cronológica são: Kpó Dagbá, Xwè Sinfá e Hunkpame Azawane Savaluno. O terreiro me trouxe disciplina e acredito que esta investigação artística passa a ser, não tão inconsciente assim, o resgate de uma tradição esmaecida por diversos processos culturais. Tentar (re)construir possíveis gatilhos de afetos para algo que meus irmãos de santo não conseguiam acessar é muito valioso e delicado. Dentro do repertório textual que me debruço para este projeto, raras são as literaturas que tentam discorrer sobre o Candomblé Jeje Mahi e seus Voduns. Inclusive, quando ocorrem estas tentativas, é possível constatar o espaço de não pertencimento dos autores. A percepção disto é delatada por equívocos, tais como: a incorporação de termos yorubanos em detrimento de termos em fongbè, a confusão dentro do conjunto de lendas (tratando Vodum Djó como feminino, por exemplo) e, em casos mais extremos, a própria invenção de rituais. Apenas no Brasil, justificado através dos diversos processos de trocas entre os grupos de escravos, é possível ver a coexistência dentro de um terreiro de ambos grupos de divindades, Orisás e Voduns. Aponto novamente para o fenômeno da Nagotização, que conseguiu reunir os panteões e fazer com que Voduns e Orisás manifestassem em seus filhos dentro de uma mesma família-de-santo. Outro fator que corrobora com o esmaecimento do culto ao Vodum é a perda do t como língua mãe do país, onde hoje é falado prioritariamente o francês. ed. 5  |  dezembro 2018 147


ENSAIO Assim, a tentativa de constituir este proto-glossário de termos do fongbè utilizados dentro de um terreiro de candomblé brasileiro é dada na intenção de gerar pontos de afetos. Romper com os processos hegemônicos da academia, enviesando a pesquisa para um lugar ainda pouquíssimo explorado (em relação a todas as riquezas possíveis), que é o continente africano. Não pasteurizar as riquezas culturais é também uma tentativa deste pequeno texto. Mesmo que minimamente, espero que estas palavras sirvam para enegrecer ainda mais a instrumentação acadêmica. Por fim, ainda há muito Ahoboboy a ser bradado Glossário: ADJAKATÁ − Vodum masculino do panteão do trovão, responsável pelas chuvas torrenciais. Está sempre com pressa, pois é o porteiro do céu. Em combate, arranca os olhos dos inimigos. Sua celebração no Candomblé Jeje é feita na festa dos voduns do céu e do mar, comumente chamada de Fogueira de Sogbò. AGAMAVI − Iniciados ao Vodum Lissá. Também pode ser interpretado como camaleão, haja vista que é um dos animais de fundamentação do respectivo Vodum. AGUDÁS – Grupo de negros escravizados do Benim, vindos pelo tráfico do Atlântico e que conseguiram retornar ao seu lugar de origem. AGUÉ – Vodum caçador, conhecedor das plantas e seus domínios. Festejado junto de outros voduns relacionados também à caça, como Otolú e Gu. Por conta do processo de Nagotização, foi paralelizado ao orisá yorubano Òsányìn. AHOBOBOY – Saudação dada aos voduns, expressando alegria pela presença deles dentro de um Xwè. ANDEYI – Festa em celebração aos Voduns da Terra, paralelizada ao festejo yorubano denominado Olubajé. Entretanto, diferencia-se do mesmo em virtude dos rituais internos de preparação do festejo e tam148  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


bém das lendas encenadas durante o mesmo. AVEJIDÁ – Deusa pertencente ao panteão do céu, responsável pelos ventos e tempestades. Paralelizada do orisá yorubano Oyá. Entretanto junto de Avejidá surgem diversas outras deidades responsáveis por etapas do vento, sua agitação e seu frenesi. Acredita-se que o culto a Avejidá foi perdido desde a chegada do dahomeanos no Brasil. AVELEKETE − Vodum masculino do panteão do trovão, muito agitado, habita a arrebentação marinha. Ele é o mensageiro que leva os recados de seu pai, Vodum Hou, às divindades marítimas e aos homens. Costuma roubar as chaves de sua mãe, Vodum Naeté, para dá-las aos homens. No Rio de Janeiro foi equivocadamente paralelizado ao orixá Logunedé, mas não apresentam nenhuma similitude. AVIMÁDJE – Vodum da família da terra, respectivo ao momento de morte e a decomposição dos corpos, acreditando-se que este Vodum seja responsável por mexer no corpo dos defuntos. No Brasil foi paralelizado ao orixá yorubano Omolú. AXÓ – Roupa ritualística que o Vodum é vestido, sempre dentro do conjunto de lendas que o fundamentam. Cada Vodum possui regras específicas para a construção de seu axó, principalmente relacionado as cores e ao tipo de tecido utilizado. AZAWANE – Também pode ser escrito como Azawano, e tem tradução literal como “ser feito de luz”. Vodum da família da terra, um guerreiro de profunda ligação com as cobras. Assim como Avimádje, também foi compreendido como o orisá Omolú. Com isso, percebe-se a contração de dois ou mais Voduns sendo reinterpretados como orisás nagô. AZIRI TOGBOSI – Vodum feminino das águas, de fios de contas amarelo ovo. Acabou sendo paralelizada como interseção de Iyemonjá e Osún. Habita em qualquer porção de água, não havendo especificidades para águas doces ou salgadas. BAFONO DEKÁ – Vodum pertencente ao panteão das cobras, logo também é visto como uma. Entretanto este Vodum apresenta uma especificidade em suas lendas, onde é dito que o mesmo possui corpo de ed. 5  |  dezembro 2018 149


ENSAIO cobra e cabeça de crocodilo. As incorporações destes elementos, dentro do Axó do Vodum, evocam o aspecto zoomórfico que os mesmos adquirem. BANTO – Grupo etnolinguístico africano do cruzamento de diversas tribos, pertencentes as regiões do atual país Angola. DAHOMÉ – Também conhecido como Daomé, é um reino africano pré-colonial, pertencente ao território do Benim. DAN – Vodum Jeje, traduzido literalmente como cobra. Importante frisar que todos os Voduns cobras podem ser chamados de Dan, sendo considerado um termo genérico. A existência de diversas cobras dentro deste panteão torna esta família, intitulada de Danbira, muito plural. A nagotização pasteurizou a maior parte dos Voduns cobras como Dangbalá, Dangbé, Bosolabè, Bosukó, Aidowedo, Bafono Deká, Sogboadan etc – e os converteu a figura do orixá Osúmarè. DJÓ − É a sexto filho nascido de Mawu-Lissá. Ele representa o ar, a atmosfera. É a renovação do ar que respiramos. Por ter forte ligação com o ar, foi confundido com o orixá Oyá. Entretanto é encarado como uma potência masculina, atrelada ao panteão da terra e sendo celebrado junto no festejo do Andeyi. FONGBÈ – Também conhecida como Fon, é a língua falada pelos povos Jeje. Atualmente no Benim, por conta dos processos coloniais, o próprio Fongbè caiu em desuso ao priorizar o francês como língua nativa. No Candomblé Jeje a retomada desta língua é de total importância por romper com a nagotização. FUNFUN − Branco GBADÉ − Vodum masculino do panteão do trovão. Jovem, guerreiro, brigão, implicante, muito barulhento. Adora beber e quando o faz arruma bastante confusão deixando todos atordoados. Adora esconder as coisas (pertences) e se diverte em ver as pessoas procurando. No trovão ouve-se sua voz gritando para que os homens consertem o que está errado. Sua morada são os vulcões. Assim como Adjakatá, foi associado ao orixá nagô Sángò. HUNKPAME – Convento dos Voduns, trazendo a ideia de um 150  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


grande lar. HUNKPAME AZAWANE SAVALUNO – Convento do ser de luz vindo do lugar mítico de paz. ITANS – Conjunto de lendas IYEMONJÁ – Conhecida pela grafia de Iemanjá, orixá nagô amplamente difundido em território brasileiro como senhora detentora dos domínios das águas salgadas. De tradução literal vindo do yorubá, compreende-se como “mãe que os filhos são peixes”. JEJE – Também pode ser encontrado como Djedje, constitui um grupo etnolinguístico dos povos vindos do Benim. Em tradução literal do Fongbè, Jeje é interpretado como “estrangeiro”. Assim, diversas grupos de escravos em território brasileiro foram denominados de Jejes, justamente pela noção de não pertencimento ao espaço. JEJE MAHINO – Grupo Jeje vindo especificamente da região de Mahi. KAVIUNOS – Grupo de Voduns relacionados aos panteões do céu e dos oceanos, especificamente a família do fogo. KPÓ DAGBÁ – A pantera divina descida do céu. Nome do primeiro terreiro de Jeje Mahi da cidade do Rio de Janeiro. LEGBARA – Vodum das deambulações, fluxos, trânsitos, ruas. Por conta dos itans específicos, é cultuado como o orixá yorubano Esú. Ressaltando aqui que os próprios grupos culturais, já em solo africano, sofrem o fenômeno de Transculturação. Assim, uma possível hipótese é encarar Vodum Legbara (popularmente conhecido como Bara) como o orixá Esú. Suas cantigas tendem a ser cantadas em quaisquer terreiros de candomblé brasileiro, independentemente da sua “nação” de origem. Por ser o Vodum dos fluxos, não pertence diretamente a nenhuma das três famílias do panteão Jeje Mahino, podendo ser celebrado em todos os festejos. LISSÁ – Vodum funfun, trazendo em si os aspectos patriarcais. Força condensadora, organizativa e antiga. Este Vodum é paralelizado ao orixá nagô Oxalá. Entretanto, apesar de poderem ser encarados como forças parecidas, apresentam suas especificidades. Cultuado principaled. 5  |  dezembro 2018 151


ENSAIO mente às sextas, traz junto dos Voduns Dan a ideia de centralizador das três famílias. Junto das cobras, Lissá é responsável pelos ciclos de Voduns. Com isso, assim como Legbara, não faz parte de nenhuma família, mas é celebrado em todos os festejos, por ser encarado como o pai de todos os Voduns. MAHI − É um reino africano pré-colonial, pertencente ao território do Benim. MAWÚ – Primeira potência feminina, criadora, podendo ser encarada como mãe de todos os Voduns. Partilha sua energia e ela mesma cria Lissá, a força condensadora e masculina. Juntos criam os Voduns e consequentemente a vida. Por terem uma itan correspondente ao momento desta união, e por Mawú ser tão disruptiva, passam a ser considerados como uma deidade híbrida Lissá-Mawú. NAETÈ – A senhora do fundo do oceano. Pertence à família dos Kaviunos. Seus fios de conta são cristais transparentes com fundo salmão. É a esposa de Vodum Hou, o senhor do oceano. O termo “nagbò” é usado para se referenciar a este Vodum, tendo tradução como “grande mãe do oceano”. Nas profundezas guarda um cofre com os mistérios da vida, cuja a chave é roubada pelo seu filho Avelekete para que os outros Voduns tomem conhecimento sobre a criação. É erroneamente paralelizada ao orixá Iyemonjá dos nagôs, entretanto traz junto de si os aspectos de uma senhora idosa. Portanto, também acaba sendo erroneamente paralelizada ao orixá Nanà Búrúkè. NAGOTIZAÇÃO – Fenômeno hegemônico de pausterização cujos atravessamentos ocasionaram a maneira genérica e simplória ao olhar as pluralidades africanas. Constitui no abafamento de outras matrizes, tornando-as como reverberações apenas do povo Yorubano, também chamado de nagô. NKISI – Grupo de divindades cultuadas pelos povos Banto, consistem em maneiras da cultura-raíz conceber suas interpretações cosmogônicas relacionadas às forças da natureza. OBÁ – Orixá feminino da cultura yorubana. Traz junto de si a personificação de uma mulher guerreira pertencente ao domínio do fogo, 152  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


sendo uma das esposas de Sangò. ORISÁS – Escrito no português como orixás. Constitui o grupo de divindades cultuadas pelos povos Yorubanos. Consistem em maneiras da cultura-raíz conceber suas interpretações cosmogônicas relacionadas às forças da natureza. OSÚN – Orixá feminino yorubano que no Brasil é encarada como senhora das águas doces. Existente nas nascentes, córregos, cachoeiras, Osún traz junto de si a figura da divindade responsável pela fecundação e pelos mistérios da menstruação. A grafia mais encontrada para a mesma é Oxum. OYÁ – Também conhecia como Iansã, é o orixá feminino yorubano responsável pelas energias e movimentações dos ventos. Recebe vários nomes de acordo com as fases desse vento. PARARÁ – Vodum da família da terra, sendo o único vodum feminino desta família a entrar em transe e manifestar num terreiro. Nos itans é vista como irmã de Azawane. SAKPATÁ – É o Vodum centralizador da família da terra, também chamada de família Sakpatá. Não entra em transe, logo é cultuado mas não existe nenhum iniciado da nação Jeje para Sakpatá, e sim para outros Voduns da família assim como: Azansú, Avimaje, Azawane, Djó etc. SAVALÚ – Também conhecido como Savaluno. É um reino africano pré-colonial, pertencente ao território do Benim. Também pode ser traduzido como lugar mítico de paz. SAVÉ − É um reino africano pré-colonial, pertencente ao território do Benim. TÓ VODUM – Vodum principal de sua respectiva família. Dan é o Tó Vodum da família Danbira, Sakpatá é da família Sakpatá e Heviosso é da família Kaviuno. VODUM − Grupo de divindades cultuadas pelos povos Jeje, consistem em maneiras da cultura-raíz conceber suas interpretações cosmogônicas relacionadas às forças da natureza. XWÈ – Casa. ed. 5  |  dezembro 2018 153


ENSAIO XWÈ SINFÁ – Casa das águas do destino. Sinfá seria a contração de duas palavras: Sin, que traz a ideia de água e Ifá, senhor do destino. YORUBÁ – Grupo etnolinguístico pertencente as regiões da Nigéria. Em terras de matriz Yorubá foi originado os cultos aos orixás, e por conta do processo de nagotização tornou-se a língua mais difundida do candomblé brasileiro. Atualmente, mesmo nas casas de Jeje Mahi, alguns termos yorubanos são utilizados por conta desta hegemonia construída. Notas 1 Orisá inserido dentro do culto de Vodum. 2 Orisá inserido dentro do culto de Vodum. Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. In: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1994. CARVALHO, Marcos. Gaiaku Luiza e a trajetória do Jeje-Mahi na Bahia. Rio de Janeiro: Pallas, 2006. COSTA LIMA, Vivaldo da. A família-de-santo nos candomblés jeje-nagôs da Bahia: Um estudo de relações intragrupais. Salvador: UFBA, 1977. Dissertação de Mestrado. ____________. O conceito de nação nos candomblés da Bahia. In: Afro-Ásia. Publicação de CEAO, n° 12, Junho de 1976. DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart. Ed. 34. São Paulo, 1992. FERRETTI, Sérgio F. Querebentã de Zomadonu, etnografia da Casa das Minas. Maranhão: Edufma, 1986. OLIVEIRA, Rosenilton Silva de. Orixás e a manifestação cultural de Deus: uma análise das liturgias católicas “inculturadas”. Rio de Janeiro: Mar de Ideias Navegação Cultural, 2016. RASSINOUX, Jean. Dictionnaire Français-Fon, 1987. RISÉRIO, Antônio. Uma história da cidade da Bahia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Versal, 2004. VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na África. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: EDUSP, 1999. ____________. Orixás, deuses iorubas na África e no Novo Mundo. São Paulo: Cor-

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rupio, 1981. ZENICOLA, Denise. A coreografia das iabás. In: O percervejo. Programa de PósGraduação em Teatro ou Departamento de Teoria do Teatro. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003.

Rennan Carmo (Rio de Janeiro, 1994) é graduando do Bacharel em História da Arte pela Escola de Belas Artes - UFRJ. Tangencia suas pesquisas acadêmicas junto de suas vivências no culto afro, pertencente em uma casa de Candomblé da tradição Jeje Mahina. Pesquisa os processos de Transculturação e analisa a construção de hegemonias ao falar das pluralidades culturais existentes em continente africano. Email: rennancarmo@hotmail.com

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ENSAIO

CORPO NEGRO COLONIZADO E ALGUMAS IMPLICAÇÕES DO IMPERIALISMO EUROPEU SOBRE PARTES DA ÁFRICA POR

EUMARA MACIEL DOS SANTOS

Resumo: Neste texto, promove-se uma reflexão acerca das representações da África e dos africanos na dinâmica do colonialismo europeu sobre o continente, inclusive nos relatórios do colonialismo a serviço do “imperialismo humanitário” e sua missão de cura do corpo negro com suas pautas racista e eurocêntricas gerados nos contatos com os nativos. Nessas investidas coloniais e a sua tendência da objetificação do Outro, pode-se observar esses corpos personificando generalizações e degenerescências, através do projeto europeu de higienização das populações africanas. Para esta análise, contou-se com os estudos de Robert Gordon (1996), Jean Comaroff & John Comaroff (1992), Lilia Schwarcz (1993), entre outros. Palavras-chave: Colonização na África; Eurocentrismo; Racismo científico; Objetificação do corpo negro. Quando, nos idos de 1810, a sul-africana denominada Sarah Baartman foi exibida nas categorias das bizarrices humanas de feiras europeias, como nas atrações de circo em Londres e Paris, o que estava imbuído nessas apresentações era muito mais do que a água para a sede 156  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


do público ocidental ávido pela prova do exotismo dos tipos encontrados nas empreitadas coloniais europeias pelo continente africano. Na cena de Baartman, a metáfora da África como a fêmea negra, - para remeter às nomenclaturas do animal irracional disponível à descoberta masculina branca - estava imbuída também das vozes do racismo científico do século XIX com seu esforço para provar a superioridade do europeu e que operou no nível da mensura da humanidade do não europeu. Concebe-se, então, o africano, em seu então corpo negro, como personificação da degenerescência de uma humanidade que estava acima de si. A caricata Vênus Hotentote seminua e fumando um cachimbo causava alvoroço nos espectadores pelo tamanho de seus grandes lábios, o “avental Hotentote”, e suas nádegas volumosas que, não passados pelo senso de uma história eurocentrada, podem revelar sua ligação com a cultura dos khoikhoi: povos de descendência de pastores da África Austral. No mais, “[...] utiliza-se os termos khoi para os hotentotes e san para os bosquímanos e khoisan para referir-se aos dois. Os holandeses logo diferenciaram esses dois grupos pelos aspectos físicos e culturais e os classificaram como duas raças distintas. Os bosquímanos eram caçadores e coletores, possuíam uma língua própria e distinguiam-se por uma estatura mais baixa. Os hotentotes eram criadores de gado e em função disso considerados ‘mais evoluídos’” (ZANOTO; GARCIA; ORESTES; QUINSANI, 2010, p.41).

Entre esses povos denominados genericamente de Hotentotes, havia uma marca fenotípica comum: a esteatopigia, para falar de uma condição genética que causa o acúmulo de gordura na região das nádegas. Talvez o contexto geográfico, cultural e, até mesmo a biologia, expliquem o que os europeus pareciam não estar interessados em saber sobre as relações entre escassez e armazenamento de energia na dinâmica desse grupo de descendentes de pastores nômades na região da África Austral, por exemplo. ed. 5  |  dezembro 2018 157


ENSAIO O interesse residia mesmo era nos shows étnicos com humanos “exóticos” na Europa, prova disso é que, mesmo depois da morte de Baartman, seu cérebro, esqueleto e órgãos sexuais ficaram expostos até 1974 no Museu do Homem de Paris. Apenas em 2002, Nelson Mandela, quando presidente da África do Sul, solicitou a repatriação dos restos mortais da “famosa” Vênus Hotentote, para enterrar em Hankey, província onde ela nasceu; isso quase duzentos anos depois de ter partido de sua terra natal. Afora as discussões acerca de um dito voluntariado de Sarah Baartman nesses espetáculos, o que pode ser observado é que tudo isso é reflexo de discursos e práticas insuflados pelo processo colonizatório em seus aspectos social, político, econômico, cultural, histórico e antropológico. Vale retomar uma inquietação citada anteriormente: já que o que está imbuído aí é também a tese de inferioridade do outro na esfera da objetificação dos negros corpos colonizados, já que é um corpo objeto, como lidar com esse corpo-outro? Talvez essa fosse uma questão que precisasse ser problematizada, haja vista as implicações dos contatos nos horizontes, sobretudo econômicos, demandados pela colonização e sua investida no interior das colônias. Então, como lidar com essa mão de obra? Seria esta a reelaboração da pergunta, finalizando com a adjetivação de “escrava”, de preferência. Com a ascensão dos Estados coloniais na África Austral, figuram algumas preocupações como esses colonos. Além da preocupação com a apropriação do corpo do colonizado como capital de fato e como capital cultural, muitas outras giravam em torno da higiene das populações negras, já que as doenças locais eram um desafio para a conquista dos territórios africanos, assim como na América, para a implantação 158  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


de uma “civilização” nos moldes ocidentais. O domínio das epidemias era a ordem do dia para o fortalecimento do projeto de interiorização da dinâmica de dominação capitalista dos impérios. Então, era preciso domesticar a força de trabalho nativa, o ouro africano (COMAROFF, 1992), por meio da promoção da saúde e da disciplina corporal para o trabalho urbano; bem como a atenção com a expansão da educação para a religião e para a saúde dos nativos domesticáveis. Eram os corpos colonizados, submetidos, utilizados, transformados, aperfeiçoados, dóceis, nos termos de Michel Foucault (1987). E seguia-se com a reconstrução da corporeidade, da sexualidade, da identidade, vestido o colonizado com os (ul)trajes do colonizador. E leia-se: “Hotentote, Hotentote / Eu não sou um Hotentote” (COETZEE, 1996, p. 95), as palavras do livro Dusklands, do sul-africano Coetzee, fazem um eco literário dos relatos de exploradores alemães na ocasião das suas expedições na região do Sudoeste da África, assombrados com a “crueldade” do povo Hotentote capaz de “cortar a garganta e barriga de uma ovelha e deixar o sangue derramar-se nas vísceras, a mistura sendo mexida com um graveto e bebida com prazer” (COETZEE, 1996, p. 112). Os tons de um racismo oficial na África do Sul também são recorrentes em Coetzee, e ecoa em sua literatura, além do jogo linguístico e estilístico, a mentalidade colonizadora nas descrições antropológicas dos nativos da região e a condição dos Hotentotes praticantes da caça na província do Cabo.

Nas narrativas dos arquivos do colonialismo, os selvagens não faziam parte de um ideário edênico africano, ora “The garden was overtaken by a ‘foul plague’ from Europe-slavery-and ‘Nature recoiled, and tore with frantic hands her own immortal features’” (ROSCEO apud COMAROFF & COMAROFF, 1991, p. 221), e eram, sim, animais entregues à própria má sorte que precisaed. 5  |  dezembro 2018 159


ENSAIO vam ser salvos. Isso, usando os parâmetros ocidentais de subjugação e salvação, é evidente, ou, nas tentativas de interação perigosa, no mínimo, “[...] logo se leva consigo o cheiro de hotentote: gordura de ovelha e fumaça de arbusto” (COETZEE, 1996, p. 57). Transpondo a literatura, pelo domínio dos corpos, das terras, das populações, das mentes, de todo modo, os objetivos primeiros dos funcionários coloniais era a garantia do bem-estar dos colegas nas suas entradas pelo continente. Sim! Perder um missionário, além de ser um prejuízo material era uma perda espiritual para o investimento considerável da colonização. Então, havia ainda a oferta de condições de adaptabilidade, da imunidade às doenças locais, visando a longevidade da obra missionária, portanto, do avanço da dominação colonial. Daí o interesse no desenvolvimento na área da Biologia e a consequente ascensão da medicina nas colônias, como pontuaram os Comaroff (1992), para falar do protetorado britânico na África do Sul. Pensava-se a saúde do homem branco no “coração doente da África”, na descrição do Reverendo Willoughby, representando, pelos relatórios do colonialismo, a missão de cura do corpo negro colonizado. Nesse sentido, a implantação de escolas e hospitais naquelas terras “inóspitas e insalubres” foram algumas ações a serviço do “imperialismo humanitário”, como ocorreu, por exemplo, com os missionários evangelistas britânicos em território sul-africano: a eles competia a tarefa, enquanto homens brancos “superiores”, os heróis europeus, de salvar os africanos de si mesmos. Essa problemática das representações da África e dos africanos, com a alusão do início do século XIX, subsidiadas pelos estereótipos do exótico e do selvagem, é objeto de estudo de John e Jean Comaroff, professores do Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago. Os autores promovem uma crítica à “imaginação etnográfica”, envolvendo a relação da medicina com o colonialismo na África do Sul, entre os Tswana, quando tratam das personificações, generalizações e “degenerescências” do corpo negro, na visão dos missionários metodistas que trabalharam na região. 160  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Os Comaroff, em Medicine, Colonialism, and the Black Body (1992), discutem a existência do jogo nas relações entre a ascensão da medicina e do imperialismo colonial na África, especificamente na África do Sul, no final do século XVIII e início do século XIX, na dinâmica de benefício mútuo pelo domínio do corpo do outro. E pretendia-se, assim, a “cura moral” e também física dos corpos negros do continente dito incivilizado e sujo, portanto, sem Deus, entregue ao calor, à sensualidade, à sexualidade incontida, ao contágio e à decadência, de acordo, inclusive com diversos registros nas literaturas de viagem da época, que remontam representações de referências pretéritas da África e dos africanos; dados ao atavismo, o que ia de encontro às ressonâncias da lógica iluminista ocidental, agora, dada à ciência.

Essa relação entre ciência e colonialismo expressa a razão dominando a natureza. Desse modo, as ideias do Iluminismo eram realizadas no continente africano, partindo das leituras europeias da domesticação do animal (selvagem) pelo homem (racional) como um feito heroico, digno de epopeias ultramarinas e seus agora domáveis monstros não europeus “sujos e gordurosos”, degenerados, ou ainda, a própria “encarnação da sujeira” e da desordem; e seu “ambiente pestífero” (COMAROFF, 1992, p. 216). No nível de objetificação dos nativos, como um laboratório a céu aberto, nas colônias, dava-se a institucionalização também da medicina europeia, admitindo, inclusive, o papel, secundário, da medicina tradicional, e, justamente nesse sentido, os Comaroff (1992) inscrevem no seu texto o famoso diálogo de Livingstone, o missionário e explorador britânico no interior da África, travado com um curandeiro Tswaed. 5  |  dezembro 2018 161


ENSAIO na, o Médico da Chuva, e segue citado: [Medical Doctor]: You can not charm the clouds by medicines. You wait till you see the clouds come, then you use your medicines, and take the credit which belongs to God only. [Rain Doctor]: I use my medicines, and you employ yours; we are both doctors, and doctors arc not deceivers. You give a patient medicine. Some- times God is pleased to heal him by means of your medicine; sometimes not-he dies. When he is cured, you take the credit of what God docs ... When a patient dies, you don’t give up trust in your medicine, neither do I when rain fails. If you wish me to leave off my medicines, why continue your own? M.D.: I give medicine to living creatures within my reach, and can see the effects, though no cure follows; you pretend to charm the clouds, which are so far above us that your medicines never reach them ... Could you make it rain on one spot and not on another? R.D.: I wouldn’t think of trying. I like to see the whole country green... (COMAROFF & COMAROFF, 1991, p. 223). Para os Comaroff, ao concluir a conversa, parece que Livingstone percebe tanto a sabedoria do Médico da Chuva quanto a equivalência lógica das alegações extraídas das duas falas dos dois tipos de “médicos”, um “reconhecimento” dos limites do seu projeto da missão: outra visão entre o eu e o outro. A crítica final dos autores gravita sobre a ideia do domínio da ciência sendo apresentada enquanto um novo colonialismo, tendo em vista a detenção ainda voltada para o ocidente dos saberes da Biomedicina – e por que não dizer da indústria farmacêutica -, da tecnologia e, portanto, da manutenção de dependências mesmo frente às chamadas decolonialidades: descolonial, mas dependente? Em moldes semelhantes de ponderações com métricas coloniais, 162  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


os “desbravadores” do Norte Global também agiram na zona de referência para o texto de Robert Gordon, da Universidade de Vermont, Estados Unidos: The rise of the Bushmam penis: germans, genitalia and genocide (1998), uma das discussões que, em dada medida, liga-se ao pensamento dos Comaroff. Então, “Can the Bushmen be Civilized?” (GORDON, 1996, p. 48). Tal pergunta retórica fazia parte da crença dos colonizadores germânicos na não possibilidade de encontrar humanidade nos povos San (a que chamavam bosquímanos, assim como para os Hotentotes) da África do Sul, Namíbia, Botsuana, ramificação dos khoison. Bushmam, notadamente, mostra-se como uma terminologia estigmatizante, segundo a antropologia, para caracterizar os San que foram resistentes à colonização alemã; seriam os bosquímanos colocados no plano do animalesco, alvo de tentativa de “domesticação” para o trabalho desses seres “inferiores”, de acordo com o ideal do império e essa lógica binária. Dessa maneira, mais uma vez, propaga-se a ideia do atávico supremo, dignos de terem seus crânios levados para a Alemanha, onde seriam estudados e certamente provada cientificamente, pela frenologia, pela antropometria, e outras tecnologias das teorias raciais do século XIX, a superioridade dos europeus, tendo em vistas as capacidades e habilidades humanas. Isso, partindo das proporções do seu crânio e do seu cérebro, que, para Schwarcz (1993), foi um modelo de classificação que ganhou novos impulsos com os estudos do comportamento criminoso. Os bosquímanos eram concebidos como selvagens que guardavam semelhanças com os macacos, bem como seus pênis semieretos com tais animas, o que incomodava os olhos do colonizador e sua relação com o corpo. Incomodava e instigava: o próprio Gordon (1998) inicia o texto fazendo menção à solicitação do professor de Anatomia e Antropologia da Universidade de Freiburg, em 1913, Eugen Fischer. Ao governador do sudoeste da África Ocidental pediu que lhe enviassem um pênis conservado de um Bushman. Concordou-se, porém com ed. 5  |  dezembro 2018 163


ENSAIO contrapartida da discrição, mas, não se sabe se a solicitação foi mesmo atendida, em virtude da mudança de focos com a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Mas o fato é a natureza do pedido que liga as questões do genocídio e da genitália. No argumento de Gordon: “Their concern with Bushman genitals was clearly not a fixed stereotype, but a site embodying confusion and indeterminacy about their own sexuality” (GORDON, 1998, p. 43). Será por isso - por considerar uma provável incontinência dos “instintos” - os bosquímanos eram alocados, para a administração colonial alemã e suas representações, na mais baixa das posições da leitura europeia da hierarquia entre o eu e esses outros (des)norteados pelo nomadismo e sexualidade incontida que os guiava, tornando-os ainda mais de difícil domesticação. Animais que caçavam outros animais. Mas, não seriam mesmo caçadores os bosquímanos? Ao responder que sim, eram descendentes de caçadores-recoletores, lembra-se também dos episódios de matança de animais selvagens promovidos por ordem governamental na África Oriental Alemã. Segundo Correa (2011), tomadas como prática do “sanitarismo colonial” no combate às tripanossomoses e outras zoonoses, as matanças indiscriminadas alvejaram muitos mamíferos. Essas chamadas campanhas de evicção da fauna bravia foram constantes durante o século XX, em áreas de domínio colonial alemão, inglês e também português. Quem seriam mesmo os caçadores cruéis? Ao discutir sobre a ação colonial alemã no Sudeste africano, ainda sobre as conquistas da África ao longo do século XIX, Robert Gordon promoveu reflexões sobre a execução de projetos de eugenia que, para o cientista britânico Fracis Galton, seria definida tendo em vistas o melhoramento das raças através de [...] proibições aos casamentos inter-raciais, as restrições que incidiam sobre alcoólatras, epilépticos e alienados, visavam, [...] a um maior equilíbrio genético, um aprimoramento das populações [...]. (GALTON apud SCHWARCZ, 1993, p. 60).

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Não só de eugenia: existiam ainda os projetos extermínio desses povos, sob um signo que seria nazista, também pela metodologia dos campos de concentração, registrando na História da Namíbia, e sua antiga colonização germânica, considerado o primeiro genocídio do século XX (OLUSOGA; ERICHSEN, 2010). Para a prova de que se era uma potência mundial, a corrida do imperialismo expansionista pela exploração econômica e política, foi mola propulsora para a realização de ideologias da metrópole aplicadas nas colônias. Sendo assim, o que ocorre não é a formação de mais um elo entre a História da África e a História da Europa? Mas o que se percebe é a tendência da apartação da História da África do resto do mundo, como que para reforçar uma excepcionalidade negativa da trajetória do/no continente, inclusive quando há a apartação também do próprio continente de experiências exitosas em sociedades africanas, como se não pudessem existir. Partido do pressuposto tratado anteriormente, para Olusoga e Erichsen (2010), o fato é que, na experiência germânica mencionada, quando abordado o isolamento de grupos diferentes, no sentido último de exterminá-los na colônia, eram declaradas guerras raciais entre “Brancos” e “Pretos”, e, como na falsa ideia de ganho da guerra, só uma das partes poderia terminar vencendo; para a outra, a destruição. E executava-se, pois, um protótipo para o que os alemães fariam quase quarenta anos depois na Europa, com o holocausto e a política da pureza racial como fortaleza da “nação”, levando às últimas consequências o antissemitismo, enquanto leitura de um ódio religioso aos judeus (ARENDT, 2013): mais uma lastimável ponte histórica intercontinental. E o mundo, interligado que é, faz ser interessante observar o caso do Brasil. A partir da década de 1870, tais ideais europeus baseados no positivismo, evolucionismo e darwinismo social ganharam força no país e subsidiavam os discursos pós-abolição da escravatura. A miscigenação como enfraquecimento da raça, portanto, como prova de inferioridade, também trouxe à baila o conceito de eugenia que ed. 5  |  dezembro 2018 165


ENSAIO começa a se desenvolver como solução para os países miscigenados (SCHWARCZ, 1993). O “branqueamento”, nos termos do formulador francês Arthur de Gobineau, então, parecia ser a solução para o problema, no caso brasileiro, após a abolição da escravatura com o fortalecimento das teorias raciais europeias. Vinham levas de imigrantes italianos, alemães, espanhóis e mais portugueses. Ou era isto, ou, partindo da concepção da degeneração social ligada à uma vertente evolucionista social, o Brasil também estaria fadado ao atraso devido à presença de “raças inferiores”. E davam-se as tentativas de “limpezas étnicas” lá e cá. No Sudoeste africano, seguia-se com a política oficial da colônia com as ordens de extermínio. Nesse movimento, um sem-número de comunidades nos territórios-alvo, se negros, sucumbiram. Daí a posterior instalação da política da criação de campos de concentração em todo a região. E a lida com os corpos era a entrega à violência, às violações, à exaustão, às doenças, nos campos de trabalho forçado (OLUSOGA; ERICHSEN, 2010). O trabalho escravo nesses campos de concentração parecia ser justificado ideologicamente pela concepção de superioridade sobre o outro e, assim, os discursos de decadência moral, portanto, da inferioridade cientificamente comprovada do corpo negro “desalmado”, animalesco. Discursos como esses não só fizeram ascender o exotismo e a “fama” de Baartman; também facilitaram as aberturas para a rota dos escravos e de outras maneiras de exploração ou do próprio extermínio do outro. Esse trabalho libertaria mesmo? Aqui, as teorias raciais aparecem enquanto ferramenta para a legitimação da dominação e da exploração imperialista sobre as colônias europeias na África e na Ásia. A propósito da exploração imperialista, que se dava também nos corpos negros, tanto a bunda gigante e os grandes lábios da vagina das Hotentotes quanto os pênis semieretos dos Bosquímanos, como os macacos, dotados de corporeidade e sexualidade excessiva, são argumentos para a defesa da animalidade dos Khoikhoi e dos San, assim equivalentes estereótipos: 166  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Bushmen and Hottentots, collectively merged as the Khoisan or Sanids, were famous foremost for their genitalia, thus Eickstadt (1934) in his classic volume on Human Races starts his section on the Khoisan with the Valliant’s famous picture of a naked female displaying her genitalia and then follows it with of Seiner’s pictures of Bushman penises. (GORDON, 1998, p. 43)

Repousam, assim, sobre o corpo da mulher negra, repousam assim sobre o corpo do homem negro, sobre o corpo das gentes negras, as representações do exercício dos impérios sobre os colonizados e as lógicas da imposição baseada na suposta subalternidade e coisificação do outro em relação ao eu, supostamente superior. Apesar de fazer referências aos estudos desenvolvidos sobre tempos passados, coloniais, nos textos discutidos, estão inscritas formas cotidianas envolvendo, por exemplo, o racismo, a xenofobia, o machismo, as “formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror” (MBEMBE, 2003, p. 146), não obstante as interligações das trajetórias dos povos do mundo, o fenômeno da diáspora, sobretudo, pelo tráfico negreiro, bem como o da escravidão acabaram moldando como nós somos e as formas como podemos conceber, reconhecer e relacionar tais leituras em pleno século XXI. Refêrências bibliográfica ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, Imperialismo e Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 8ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. COETZEE, J. M. Dusklands. Nova Iorque, Londres: Penguin Books: 1996. COMAROFF, John e COMAROFF, Jean. Medicine, Colonialism, and the Black Body. In: Ethnography and the Historical Imagination. Boulder: Westview Press, 1992. CORREA, Sílvio Marcus de Souza. Cultura e Natureza na “África Alemã”. In: Tempos Históricos. Volume 15 - 2º Semestre – 2011 – p. 363 – 381. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987. GORDON, Robert. The Rise of the Bushman Penis: Germans, Genitalia and Genocide. African Studies 57, no. 1 (1998): 27–54. Disponível em: http://dx.doi. ed. 5  |  dezembro 2018 167


ENSAIO org/10.1080/00020189808707884. Acesso em: 30 de junho de 2017. MBEMBE, Achille. Necropolitics. Public Culture, 15, 2003. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. OLUSOGA, David; ERICHSEN, Casper W. The Kaiser’s Holocaust: Germany’s Forgotten Genocide and the Colonial Roots of Nazism. Faber and Faber: Londres, 2010. ZANOTO, Diego Schwalb; GARCIA, Jeferson; ORESTES, José Beck; QUINSANI, Rafael Hansen. África Meridional Inglesa: Das Estruturas Coloniais Ao Desenvolvimento Econômico, Político E Social No Século XXI. Revista Historiador. Número 03. Ano 03. Dezembro de 2010. Disponível em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador. Acesso em: 28 de abril de 2017.

Eumara Maciel dos Santos: Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia, com mestrado em Estudo de Linguagens e graduação em Letras pela Universidade do Estado da Bahia. Participa dos Grupos de Pesquisa: Estudos de produção e recepção em culturas e linguagens (UNEB) e África: história e identidades (UFBA). Email: eumaramaciel@hotmail.com

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foto @sigayuridias

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caderno ARTE-EDUCAÇÃO

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CRÍTICA

A IMPORTÂNCIA DA ARTE NO PROCESSO COGNITIVO

POR DANIELLE MANSUR Resumo: Esse artigo busca apresentar a necessidade de repensar o saber escolar em função da escola na vida dos docentes e dos discentes do século XXI. Ensinar aos docentes a pesquisar a partir dos problemas relacionados com determinadas situações da vida real, poderá ser o caminho. O modo como hoje os diversos saberes propõem o desenvolvimento da pesquisa, sem uma finalidade específica, sem uma integração entre os saberes, não faz do espaço escolar um espaço interdisciplinar. Estimular os docentes e despertá-los para o estudo de práticas educacionais e estimular a iniciação científica através de pesquisas pertinentes aos seus saberes e aos seus quereres com a prática do estudo através da metodologia de projetos. Palavras chaves: Ensino-aprendizagem; habilidades e competências; prática pedagógica. INTRODUÇÃO Com o mundo globalizado, promover a pesquisa em artes para o enriquecimento do ensino é uma tarefa para o educador contemporâneo. Assim é importante conhecer os diversos artistas, brasileiros ou estrangeiros e desenvolver o hábito da apreciação e do desenvolvimento estético. Também é fundamental seu conhecimento para a constru172  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


ção do interesse pela produção artística nas crianças, nos jovens e nos adultos em fase acadêmica, mesmo com as dificuldades de promover aulas de campo em museus e centros culturais, espaços fundamentais para o processo ensino-aprendizagem da arte. Desde Platão, ninguém conseguiu defender de modo tão convincente como Herbert Read a tese de que a arte deve constituir a base da educação. Jonh Dewey (1979, p. 143) diz que o sistema tradicional de educação, que tem o aluno como sujeito, não prevê o mesmo sucesso na aprendizagem como quando esta se dá a partir da problematização dos conhecimentos prévios dos alunos, aliados às novas informações adquiridas. Com a experiência de um professor mediador formado em artes ou arte educação e através dos estudos contemporâneos das artes, pode-se ter uma melhor qualidade no ensino com a metodologia de projetos. Segundo Fernando Hernandéz (1998, p. 57), o projeto de trabalho é entendido como uma oportunidade onde os alunos percebem que o conhecimento não é exclusividade de determinada disciplina. Considerando a importância do ensino da arte no sistema educacional brasileiro, não se pode dissociar a questão pedagógica do fazer artístico para garantir a construção de um mundo crítico e que reconhece na sua cultura, a fonte de seus valores essenciais. A ARTE NA EDUCAÇÃO A arte “inventa” trabalhos, transforma ilusões dando a indústria uma nova dimensão ao homem. Na consciência do criador plástico, a imaginação é superior à razão. Qualquer trabalho ou invenção artística é uma viva transgressão à rotina e ao aborrecimento que os poderes públicos nos impõem. A cada dia é possível perceber que a arte educação é uma disciplina indispensável na formação cognitiva e cultural do aluno. Na educação brasileira a arte tem um espaço privilegiado, não só como disciplina, mas nos temas transversais como forma de trabalho integrado, pois as “manifestações artísticas são exemplos vivos da diversidade cultural dos povos e expressam a riqueza criadora dos ed. 5  |  dezembro 2018 173


ENSAIO artistas de todos os tempos e lugares” (PCN – Artes, 1997). Um exemplo é o livro didático de Eduardo Bueno lançado pela editora Ática: “Brasil: uma História” todo ilustrado com quadros de pintores famosos contando a história e a saga do país. No processo arte educação, a criança e ou jovem traça um percurso de criação e construção individual que envolve escolhas, experiências pessoais, aprendizagens, relação com a natureza, motivação interna e/ ou externa. Operar o mundo dos símbolos é perceber e interpretar elementos que se referem a alguma coisa que está fora dos próprios objetos. Não se procura formar artistas, mas sim, favorecer o surgimento de habilidades, atitudes e de interesse pela pesquisa e pela descoberta de novidades em todos os setores do conhecimento científico e tecnológico. Tal qual o artista, o aluno desenvolve a sensibilidade e intuição para perceber certas possibilidades de mudança onde outras pessoas só veem fatos realizados, acabados, definitivos e imutáveis. A cada prova do ENEM, nota-se até 20 questões envolvendo as artes plásticas, algum artista renomado interagindo com os componentes curriculares básicos ou até mesmo com o contexto artístico contemporâneo. Dessa forma, nas formações de professores, nunca se falou tanto em interdisciplinaridade e Projetos Pedagógicos. Todas as formas de artes estão presentes (Plástica, Cinema, Teatro, Música e Dança) interagindo e facilitando o processo ensino aprendizagem, fazendo com que o aluno desenvolva sua capacidade criadora e crítica tanto na política como nos aspectos sociais do mundo que o cerca. A arte é uma linguagem que exige aprendizagem e experiência, e por outro lado, uma forma de pensamento solidário com o desenvolvimento da inteligência do sujeito. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais, a educação em artes desenvolve o pensamento crítico caracterizando um modo particular de dar sentido às experiências pessoais ampliando a sensibilidade, a percepção, a reflexão e a imaginação, conhecendo, apreciando e refletindo as distintas culturas, suas influências no dia a dia. De maneira geral, através das artes aliada ao conteúdo programático como também ao estudo da história da arte, 174  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


podem-se compreender questões ligadas ao universo cultural e, assim, desenvolver a apreciação e a estética de uma determinada obra ou até mesmo da própria produção. De acordo com Dora Incontri (1997, p.44) “A arte é a capacidade de exprimir um sentimento estético, pois de conhecer as técnicas, o professor tem que viver a arte dentro de si, fazer desabrochar sua capacidade criativa, no sentido da Beleza e da Harmonia para com ela contagiar seus alunos.”. A tendência cada vez mais forte e necessária em nosso sistema educacional é a implantação de um sistema de ensino mais globalizado e, consequentemente, a interdisciplinaridade. Isto faz com que o profissional seja capaz de trabalhar diversos conteúdos, além do conteúdo de sua formação, e que, em particular, tenha uma visão de conjunto. Poderá o educador engajar-se num trabalho interdisciplinar sendo sua formação tão fragmentada? Existem condições para o educador entender como o aluno aprende se não lhe foi reservado espaço para perceber como ocorre sua própria aprendizagem? Que condições terão para trocar com outras disciplinas se ainda não dominou seu próprio conteúdo específico? Poderá entender, esperar, dizer, criar e imaginar se não foi educado para isto? Buscará a transformação social, se ainda não iniciou o processo de transformação pessoal? A interdisciplinaridade vem sendo tratada como uma possível solução para o restabelecimento de uma nova ordem na educação/ensino, no país. Isto implicaria em uma relação de reciprocidade, de mutualidade, que pressupõe uma atitude diferente a ser assumida diante ao problema do conhecimento. É a substituição de uma concepção fragmentária por uma concepção unitária de ser humano. Para trabalhar a interdisciplinaridade dessa forma, é necessário fazer um planejamento prévio, organizando todo o conteúdo programático a ser trabalhado. Por isso reuniões pedagógicas periódicas com todo o corpo docente são necessárias, para o desenvolvimento de como e o que vai ser trabalhado. São os Projetos sendo inseridos nos planos curriculares das escolas públicas e particulares brasileiras em consonância com métodos parecidos aplicados internacionalmente. A formação de professores do ed. 5  |  dezembro 2018 175


ENSAIO ensino fundamental e médio, ainda não permite que se possa trabalhar de forma mais integrada com a arte, utilizando os Projetos como elo integrador dos conteúdos básicos. A educação que apenas pretende transmitir significados e que estão distantes da vida concreta dos educandos, não deve ser considerada. Os conceitos têm que estar em conexão com as experiências de cada indivíduo. O educando quando aprende tende a transformar o meio, pois sua consciência reflexiva é função de todo o processo de conhecimento e da aprendizagem que se dá sobre suas vivências (o que é sentido) e as simbolizações (o que é pensado). A educação deve significar o auxilio aos indivíduos para que pensem sobre a vida que levam, permitindo uma visão do universo cultural em que estão inseridos. E é pela arte que a imaginação é convidada a atuar, rompendo o estreito que o cotidiano lhe reserva. A imaginação é algo proibido em nossa civilização racionalista, que baniu do próprio campo das ciências por ver nela uma fonte de erros no processo de conhecimento da realidade. Também pela é possível de conhecer aquilo que muitas vezes não se pode de vivenciar na vida cotidiana. A prática da Arte pode ser o caminho à libertação no mundo atual mecanizado e tecnológico, o processo artístico é um grande símbolo de liberdade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Dessa forma, a arte educação é um componente curricular indispensável na formação cognitiva e cultural do aluno, onde todas onde as linguagens da arte estão presentes interagindo e facilitando o aprendizado, fazendo com que o aluno desenvolva sua capacidade criadora e crítica tanto na política como nos aspectos sociais do mundo que o cerca. Na educação brasileira, a arte ainda tem um espaço privilegiado, não só como disciplina, mas através dos temas transversais como forma de trabalho integrado, pois as manifestações artísticas são exemplos vivos da diversidade cultural dos povos e expressam a riqueza dos artistas de todos os tempos e lugares. 176  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


No processo arte-educação, a criança e ou o jovem traça um percurso de criação e construção individual que envolve escolhas, experiências pessoais aprendizagens, relação com a natureza, motivação interna e/ou externa que é importante em sua preparação tanto para a vida, qualificando-o para a cidadania, quanto para a sua formação para o mercado de trabalho, já que hoje existem várias profissões ligadas diretamente à arte e à tecnologia. Referências bibliográficas ALVES, Rubem. Escola que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. São Paulo: Papirus Editora, 2003. BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA. Parâmetros Nacionais Curriculares: arte. Secretaria de Educação Básica: Brasília (DF), 1997. BUORO, Ana Amélia Bueno. Olhos que pintam: A leitura da imagem e o ensino da arte. São Paulo: Cortez Editora, 2002. CAMARGO, Luiz. Arte-Educação: da pré-escola à Universidade. São Paulo: Nobel, 1989. Construindo a Escola Cidadã, Projeto Político Pedagógico: Secretaria de Educação a Distância. Brasília: Ministério de Educação e do Desporto. Salto para o Futuro – Seed, 1998. COSTA, Cristina. Questões de Arte. São Paulo: Editora Moderna, 2001. DEWEY, John. Experiência e educação. 3 Ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1979. DUARTE JR, João Francisco. Por que Arte Educação? 12 Ed. São Paulo: Papirus, 2000. FISCHER, Ernst. A Necessidade da Arte. 4 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. Fundação Brasileira de Educação – Projeto Crescer. Fundamentos da Educação: Filosofia e História da Educação Brasileira – Educação no Brasil anterior e posterior a 1930. Rio de Janeiro: CEN, 1995. GROSSI, Esther Pillar. Celebração do Conhecimento na Aprendizagem. Porto Alegre: Ed. Sulina, 1995. HERNÁNDEZ, Fernando. Transgressão e mudança: os Projetos de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 1998. INCONTRI, Dora. A Educação Segundo o Espiritismo. São Paulo: FEESP, 1997. READ, Herbert. A Educação pela Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001. RIBEIRO, Maria Luísa Santos. História da educação brasileira: a organização escolar. 4 ed. São Paulo, Moraes, 1982. ed. 5  |  dezembro 2018 177


ENSAIO SECRETÁRIA de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: arte/ Secretaria de Educação Fundamental SF BRASIL – Brasília: MEC/SEF, 1978.

Danielle Mansur é professora especialista em Arte-Educação formada pela PUC-Rio. Pós-graduada em Arte-Educação pela Unilassale e em Gestão e Administração Escolar pela Cândido Mendes. Atua há 23 anos em sala de aula nas redes pública e particular, com a prática de Projetos Pedagógicos aliando as Artes com os demais componentes curriculares. Contato: masurd@gmail.com.

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foto @sigayuridias

ed. 5  |  dezembro 2018 179


ENTREVISTA

Profissão: Professor de Artes - uma entrevista com Eduardo Souza e Mariana Paixão

POR MARCELA TAVARES Entrevista realizada em 25 de julho de 2018 em São João de Meriti por Marcela B. Tavares com os professores do ensino público municipal Eduardo Souza e Mariana Paixão.

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Marcela Tavares: A primeira pergunta que eu queria que vocês respondessem é sobre seus estudos. Onde vocês estudaram desde a escola até a formação superior? Eduardo Souza: Eu fui aluno da rede pública, mas estudei uns dois ou três anos do Ensino Fundamental em escola particular. Isso ocorreu devido à mudança de bairro, mas minha formação basicamente foi em escola pública, devido às condições financeiras da minha família. Minha primeira formação foi em Produção Cultural pelo IFRJ, mas no decorrer do curso ficou claro meu interesse na área de Artes. Até então eu não tinha muito “pique”, nem muito estímulo para enfrentar uma EBA/UFRJ. Por conta dos horários, eu achava que seria muito difícil porque precisava trabalhar. Então, fui para o IFRJ que era público, já que não podia pagar por uma graduação. Uma outra dificuldade que tive, foi encontrar cursos de graduação em Artes. O que fiz, foi trancar a matrícula no IFRJ e puxar todas as matérias de Artes que tive nos quatro semestres lá. Comecei a procurar graduações em Artes e descobri duas: na Universidade Bennett e na Unigranrio. A princípio, tive mais interesse na Bennett porque acreditava que, por ser na Zona Sul, seria a melhor opção e, por isso, não dei muito crédito para a Unigranrio, em Caxias. Eu ainda tinha a ideia de que a arte estava na Zona Sul. Para minha sorte, a Bennett não formou turma naquele ano e fui pra Unigranrio. Apesar de ter uma ideia do que seria a Licenciatura e do que a EBA poderia me oferecer, eu não me arrependi da minha escolha. No entanto, percebi que na graduação eu não teria tanto contato com ateliês e com o fazer artístico. Mesmo tendo a ideia de ser professor, comecei a fazer cursos extras e procurei as bolsas do Parque Lage. Fiz cursos de pintura, fotografia e de outras mídias. E finalmente, fiz a especialização em Ensino de Artes na UERJ, em parceria também com o Parque Lage, onde todos nós nos conhecemos. Mariana Paixão: Na minha formação, fiz o fundamental 1 e 2 todos na rede particular, em escola religiosa. Lá, percebi que eu não tinha ed. 5  |  dezembro 2018 181


ENTREVISTA liberdade para desenhar e criar, por isso, pedi à minha mãe para me tirar de lá. Então, ela me matriculou numa escola em Caxias, onde havia muitas atividades como dança, pintura e desenho, e também apresentações. E foi lá que eu comecei a entender um pouco o que era arte, através de uma professora de literatura e de uma professora de matemática, que dava aula de Artes. Com esta professora, conheci o trabalho da Tarsila do Amaral, que despertou minha curiosidade. Essa professora passou uma atividade de pintura e fiz o Urutu, só que não sabia quem era a Tarsila e nem o que era o Urutu. Eu não sabia nada! A minha dúvida, levei até o Ensino Médio, busquei entender porque a Tarsila havia pintado aquele ovo com uma figura, que ninguém sabia explicar o que era exatamente. Meu Ensino Médio fiz na Escola Alfa, em Caxias, porque minha mãe era psicóloga e fazia teste vocacional lá. Por isso, eu tive bolsa. Nesta escola, a professora de literatura tinha algum conhecimento sobre história da arte e ela me disse que a Tarsila era uma artista modernista e que o Renoir – um artista que eu tive contato na sétima série num livro paradidático – fazia parte do movimento Impressionista. Só que eu ainda não sabia o que isso tudo significava, não era claro para mim o que era arte. Eu não entendia ainda que a arte podia ser a expressão de sentimentos, uma forma de comunicação. Foi aí que comecei a pesquisar naquela enciclopédia que se utilizava antigamente, a Barsa. Mas a Barsa não tinha muito espaço para as Artes, quando procurei sobre a Tarsila encontrei apenas coisas sucintas. Foi aí que decidi, queria estudar algo ligado às Artes. Depois de ter tido contato com um arquiteto, pensei que dentro das artes meu caminho poderia ser a arquitetura, tentei o pré-vestibular, mas não passei na primeira fase para a rede pública. Na segunda tentativa, ainda na rede pública, perdi a reclassificação na terceira convocação. Sabendo disso, minha tia, me disse que na Unigranrio existia o curso de Artes Visuais, e que inclusive ela estava cursando porque gostava de arte. Ela me aconselhou que fizesse o curso e depois, quando eu me encontrasse na carreira, poderia trabalhar com o que quisesse. Entrei, assim, na Unigranrio, não porque quisesse estudar arte – eu não que182  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


ria nem ser professora, não sabia nem a diferença entre bacharelado e licenciatura, eu não sabia o que estava fazendo lá – entrei porque a mensalidade era barata e meu avô poderia pagá-la, porque a família se uniu para me dar apoio, porque eu gostava de desenhar e porque tinha que fazer faculdade. No entanto, durante a graduação, me encontrei como professora porque comecei a compreender o que era a história do estilo e me dei conta, que se alguém tivesse me dado uma aula de história da arte no Fundamental 1 e 2 eu teria tido uma ideia do que era arte e teria me empenhado mais na técnica do desenho. Terminei o curso, certa de que iria ser professora e comecei a dar aulas no último período. Depois de formada, ainda fiz o curso de História da Arte e da Arquitetura no Brasil, na PUC-Rio, para alcançar meu sonho de estudar arquitetura. Nesse curso, fiz uma pesquisa sobre a Igreja do Pilar em Caxias, redescobri assim que queria ser professora e fui buscar essa pós Lato-Sensu em Ensino de Artes oferecida pela UERJ em parceria com o Parque Lage.

Tarsila do Amaral | Antropofágica 1928 - 1930 - URUTU, 1928, óleo sobre tela ed. 5  |  dezembro 2018 183


ENTREVISTA M.T.: Minha segunda pergunta já foi parcialmente respondida por vocês, mas eu gostaria que vocês me dissessem em que momento descobriram que queriam ser professores? E.S.: Eu era um aluno bom! Um aluno de boas notas. Na minha família, a minha mãe só tinha o ensino primário completo e o meu pai havia feito um curso de contabilidade, desenvolveram uma prática para mim: faziam com que estudasse por duas horas todos os dias quando eu chegava da escola. Só que eu era realmente um aluno bom, e nessas duas horas comecei a fazer todos os exercícios dos livros, porque eu precisava mostrar um resultado para a minha mãe. Sendo assim, adiantava todos os exercícios da escola, o que causou um problema, porque comecei a ficar ocioso dentro da escola, chegava lá e já tinha feito tudo. Assim eu aprendi como estudar sozinho. Apenas tirava algumas dúvidas dos exercícios que não conseguia realizar e passei a ter muito tempo livre dentro de sala de aula, o que me converteu em um aluno problemático. Eu comecei a fazer os trabalhos dos meus colegas, tinha tempo para brincar e ainda conseguia tirar boas notas. Passei a incomodar os professores e a ser retirado de sala de aula, ficando de castigo na secretaria. Ficava sentado ou de pé olhando para a parede. Se tivesse uma briga com um colega, ficávamos em pé abraçados.

Nesse momento, comecei a ter aula com um professor de Artes que passava e sempre me via na secretaria. Um dia ele perguntou às secretárias o que tanto fazia ali, porque eu era um bom aluno que tirava boas notas. Elas disseram que eu arranjava problemas nas outras aulas. Só que na aula de artes eu não podia adiantar o trabalho em casa. Para mim, ali acontecia uma verdadeira aula e eu não dava problema para o 184  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


professor. Esse professor disse às secretárias que a partir daquele momento eu deveria ficar de castigo na sala de artes. Passei a frequentar a sala de artes e a conversar com o professor. Seu nome é Wilson e hoje ele é professor da UFRJ. Lembro de uma conversa específica que tive com ele, depois dele apresentar algumas imagens do Renascimento. Fiquei muito impressionado com a habilidade técnica dos artistas do Renascimento, mas o que mais me fascinou era a quantidade de discursos por trás daquilo que em geral se vê apenas como uma habilidade técnica. Todas as informações, mistérios e interrogações que circundavam aquelas imagens. Ele então me perguntou porque eu gostava tanto de ficar na sala de artes e porque eu não dava problema lá? Eu lembro de ter dito: aqui eu sinto que realmente estou usando as duas horas que tenho que estudar em casa, aqui sinto que estou aprendendo coisas realmente novas, sempre aparece alguma curiosidade, que não aparece nas fórmulas matemáticas que eu apenas tinha que decorar e executar. Na escola, a matemática, o português e a história são ensinados através da memorização e na aula de artes eu vivia experiências. Depois que respondi isso, ele me disse que eu seria professor de Artes e que, se eu quisesse, deveria tentar fazer coisas minhas, seja desenho, pintura ou escultura para me expressar, falando de coisas que me interessassem, ou só para fazer e praticar. Mas nessa época, tinha 12 anos, estava na 6ª série e já sabia o que eu queria ser. Só que ainda na escola encontrei muitas dificuldades para conseguir ser um professor de Artes: não tinha acesso a salas de exposição, galerias, museus. Essa ideia me parecia impossível! Foi quando minha família me colocou num cursinho de teatro e com esse grupo comecei a assistir peças, mas eu sempre me interessava mais pela parte visual do que pela interpretação. Nessa época, comecei a me interessar por cenários e figurinos, muito mais do que decorar um texto. Já durante o Ensino Médio, na Federal de química, fui estudar no Maracanã, que por ser mais próximo do centro da cidade e da zona sul, me permitiu ed. 5  |  dezembro 2018 185


ENTREVISTA “dar rolé” com meus amigos e visitar museus, como o CCBB, o Museu de Belas Artes, a Caixa Cultural. Eu ficava circulando, e como eu era muito curioso acabava entrando em todos os lugares e perguntando às pessoas se haviam outros lugares. Assim conheci o MAM, simplesmente circulando. Mas, ainda não entendia como poderia me formar em Artes, já que precisava trabalhar para ajudar em casa. Somente na vida adulta descobri como faria isso, mas sempre soube que queria ser professor.

MICHELANGELO BUONARROTI - (1475 – 1564) Capela Sistina

M.P.: Eu decidi ser professora quando eu tive contato com a obra “Jovens meninas ao Piano” de Renoir, e essa pintura me salvou na adolescência. Eu pedi à minha mãe aos 14 anos, estava na 7ª série, e ganhei um livro chamado “Renoir: um eterno verão”, só que depois da morte dela, perdi o prazer de ler e ia para a escola apenas para passar o tempo. No entanto, esse livro me comoveu tanto que ficava horas lendo e reli diversas vezes. Se para o Edu foi o Renascimento que o impressionou, 186  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


para mim foi a pintura de Renoir. Quando eu via aquelas meninas tocando piano, só me perguntava como ele, apenas com tintas, conseguia trazer essa luz para o cabelo delas? Como eu já tinha alguma noção de desenho, passei a copiar as obras do Renoir. Minha tia quando viu meus desenhos, me deu um caderninho sem pauta para que ali eu pudesse passar todas as minhas emoções. Completei toda minha jornada no Ensino Médio desenhando e transformando toda minha tristeza e frustrações em desenho. E quando entrei na faculdade e estudei o Impressionismo, aquilo tudo passou a fazer muito sentido para mim! E percebi que tinha uma veia artística, que a arte me atravessa e me faz bem. Quando tive contato com as técnicas de pintura e comecei a estudar sua história, pensei que, se tivesse tido um professor que facilitasse meu acesso à arte, isso teria resolvido várias das minhas dúvidas e das angústias que tinha durante o Ensino Médio. Decidi, assim, que iria ser professora de Artes, pois além de ser uma área carente de profissionais formados, qualificados e que sentem prazer em lecionar, era uma disciplina que poderia fazer a diferença na vida dos alunos. Quando estava no final da graduação, os concursos públicos para professores de artes começaram a explodir, porque era uma disciplina realmente carente de professores formados e passou a ser exigido nos concursos a graduação na área. Tudo isso me fez decidir imediatamente que eu seria professora para ensinar aos alunos que existe uma forma de se comunicar, que não é verbal ou escrita, e que teria me feito muito bem se eu soubesse disso quando era aluna. Era uma necessidade de dar o que não tive! Auguste Renoir, Jovens meninas ao piano, 1892 Óleo sobre tela; 116 x 90 cm - Paris, Musée d’Orsay ed. 5  |  dezembro 2018 187


ENTREVISTA M.T.: Agora, eu gostaria de perguntar para vocês: qual é o maior desafio dentro da sala de aula? M.P.: Eu acho que é a questão do espaço. Porque em relação ao interesse dos alunos, sempre existirão alunos mais ou menos interessados em qualquer disciplina. Mas, quando se tem pia, materiais, mesas adequadas, ou seja, condições para que o aluno pratique e possa expressar através de linguagens visuais seus sentimentos, isso atrai o aluno. É difícil dar uma aula apenas mostrando imagens, pois o professor muitas vezes compra um datashow, ou imprime as imagens e os alunos ficam excitados para produzir, mas só pode dar uma caixinha com 5 lápis de cor, quebrados por dentro e sem um bom papel para desenhar. Isso para mim, hoje, é a pior coisa que tem! E.S: Eu também acho que o maior desafio é viabilizar a produção dos alunos. Ou seja, dar essa oportunidade aos alunos de produzir algo deles. Mas não é só falta de material, são vários outros os condicionantes para isso acontecer. Às vezes, é necessário uma outra pessoa junto, dentro da sala de aula, para ajudar na coordenação dos exercícios. Por exemplo, agora tenho bastante material na minha escola para utilizar com os alunos, mas meu maior desafio agora, é dar uma aula prática para 45 alunos. Porque uma aula teórica, mesmo com desinteresse de alguns alunos, eu consigo fazer: com datashow, com videoclipe, com filmes. Mas uma aula prática, com 45 alunos eu não consigo. Minha última experiência foi pintar com eles umas caixas para fazer umas assemblages, depois de uma visita que fizemos à exposição do Farnese de Andrade, apesar de estarem interessados, 45 adolescentes me chamando ao mesmo tempo para realizar um trabalho foi impossível, pois não conseguia atender a todos. Isso foi frustrante para eles e para mim também! Ou seja, o trabalho não rendeu, a tinta foi desperdiçada, os trabalhos ficaram mal-acabados… Para mim o desafio é esse: as turmas serem muito cheias para uma aula de artes. 188  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Composição em Vermelho (1972) - Farnese de Andrade materiais diversos

M.P.: Nessa hora, acho que entramos em outro problema: a questão do estágio docente. É muito difícil ver estagiários na área das artes! Na minha escola, por exemplo, tem estagiários para matemática, química, português, etc. Mas nenhum estudante de licenciatura em artes. Eu não sei se não tem gente se formando… E.S.: Para mim, parece que não há uma regulamentação dos estágios docentes, muita gente se forma, mas não realiza efetivamente o estágio. Eu digo isso, porque fiz estágio no município, mas todos os colegas da minha turma não fizeram estágio, conseguiram a assinatura, mas não foram efetivamente às escolas acompanhar as aulas. Mas eu acho que esses estagiários seriam de grande valia nas escolas. E para eles ed. 5  |  dezembro 2018 189


ENTREVISTA também, (teria grande valor) porque só assistindo às aulas você pode realmente ter a certeza de que quer dar aula. M.T.: Minha próxima pergunta, depois de pensar os desafios, é saber o que vocês acham mais recompensador dentro da sala de aula, no fazer do professor? E.S.: Aprender! Eu acho que aprendo todos os dias. Aprendo sempre com os alunos e com eles descubro novas referências – me interesso muito por referências e acho que a arte é feita disso. Aprendo com essas novas referências, mesmo que estejam fora do contexto que estou trabalhando com eles. No final, acho que sou professor, porque eu gosto de aprender! Eu sou curioso e essa é uma das razões que me fez ser professor. Toda a curiosidade que tinha dentro da sala de artes, foi percebida pelo professor e ele me deu uma dica que funcionou. O que mais me motiva é ter curiosidade de conhecer mais sobre eles, meus alunos. De saber porque eles não estão interessados na aula e o que realmente interessa a eles. E assim, sempre descubro um artista novo: um cantor, um novo tipo de roupa, uma nova dança. Dessa maneira eu sinto que eu recebo algo ali, não de um aluno, mas de uma pessoa. M.P.: O meu retorno vem mais quando vejo uma turma falando de fato o que pensa, sem o medo da repressão. Isso porque fui muito tolhida a vida inteira, e a arte abre essa possibilidade de você falar o que pensa sem o medo do julgamento. Por exemplo, quando eu mostro uma imagem e o aluno mais tímido, que tem vergonha de falar e que se considera a pior pessoa da sala – como eu mesma me sentia na escola – começa a falar e dizer o que está vendo na imagem e, assim, desenvolver um pensamento sobre aquilo e começo a ver aquela paixão no olhar, não só pela arte, mas porque ele está descobrindo algo novo... Ou quando um aluno, que acha que não sabe desenhar, pega um papel e começa a produzir e a ver beleza no que faz… Acho que vê-los se encontrando, não importa se vão se interessar por arte ou não, mas se naquele momento 190  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


eles sentem prazer e sentem que fazem parte da escola… Pra mim, esse é o ponto G do tesão! Eu me arrepio toda! M.T.: Voltando a falar da parte difícil da docência, gostaria de saber: Na opinião de vocês, quais são os problemas mais graves da escola pública? M.P.: Acho que a violência, o fato de os alunos entrarem sob efeito de drogas na escola e algumas escola possuírem pontos de venda de drogas dentro das suas instalações. Também a sexualidade precoce dos alunos, tendo casos de relações sexuais no banheiro, por exemplo, mas de uma forma pouco ou nada consciente. Falta um acompanhamento profissional para esses alunos, porque como professora é difícil lidar com isso tudo sozinha! Essa impotência, me levou às crises de ansiedade que tive no começo da minha carreira. Quando eu via alunos do Fundamental 1 relatando casos de estupro e, também, alunos que estupravam dentro da escola, ou que agrediram violentamente outros colegas, atirando pedras na cabeça, por exemplo, isso me afetava muito! Eram situações muito pesadas, que são difíceis de resolver. São vários atores nessa história: a escola, a família, os colegas, a equipe, as questões emocionais e psíquicas. E.S.: Pode parecer estranho, mas, na minha opinião, o público da escola pública não é tratado apropriadamente! Por isso, essas questões ganham tanta relevância: a violência, a erotização, as drogas, etc. Isso tudo se agrava, porque a maioria das escolas no Rio de Janeiro estão próximas às comunidades, ou seja, o entorno faz parte desse ensino. E o que acontece é que a escola lida com esse aluno como se ele não vivesse essas coisas todas. Nesse sentido, muitas vezes acho que os alunos fazem tudo isso com o intuito de mostrar para a escola a realidade deles, pois parece que a escola finge não ver essa realidade. E de alguma forma precisamos ver, mas não sabemos como lidar, porque estamos em um lugar que ignora essa realidade. E é por isso, que muitas vezes nas aulas de artes, eles entendem que a forma como apresentamos os ed. 5  |  dezembro 2018 191


ENTREVISTA conteúdos e discutimos sobre esses personagens são livres: os artistas, eles se sentem mais à vontade para conversar sobre a sua realidade. Quando apresentamos um artista, seja um ícone da cultura pop ou um artista visual renomado, eles percebem que o artista é alguém livre, que muitas vezes está acima do bem e do mal. Por isso, dentro da sala de artes, muitas vezes se sentem livres como os artistas para falar o que pensam e expressarem suas ideias de diversas formas. Mas, isso gera um peso muito grande para os professores de artes, pois estes não conseguem sempre administrar essas vivências todas para torná-las mais positivas dentro da escola. Portanto, creio que o problema seja o fato de que a escola não entende esse público, já que tem a expectativa de um aluno ideal, que irá fazer um concurso, passar no vestibular, quando na realidade estamos tratando de meninas que são estupradas dentro de casa, meninos que estão envolvidos com o tráfico. E em geral, essas coisas são ditas na sala de artes, através de um desenho, de um comentário. No entanto, a própria escola muitas vezes ignora essas realidades. M.P.: Exatamente! Por isso, muitas vezes ouvimos dos alunos que a escola não é o espaço deles, que não se sentem à vontade, por isso preferem não ficar na escola. Só que na aula de artes eles se sentem mais livres e reconhecidos, pois como apresentamos artistas e contamos sua história de vida, os alunos percebem que a própria história de vida deles também é importante para o processo criativo. M.T.: Gostaria de seguir a conversa, perguntando sobre metodologias. Que tipo de metodologias vocês utilizam em sala de aula? M.P.: Recentemente tenho estudado as metodologias ativas, ou seja, os alunos têm que ser os protagonistas das aulas. Acho que essa metodologia não funciona apenas para as aulas de artes, mas seria bastante interessante se as outras disciplinas funcionassem assim. De maneira sintética, a metodologia parte de um planejamento, que não deve ser rigoroso. Pois, apresentar uma aula A em uma escola B, nunca será 192  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


idêntico à mesma apresentação em uma escola C, já que os alunos são pessoas diferentes e têm vidas e histórias distintas e suas experiências direcionam os rumos das aulas. A aula depende da reação das pessoas, por isso o professor tem que ser sensível, ter flexibilidade, ou seja, estar de fato ali na sala de aula. E saber que aquelas 45 pessoas que estão dividindo o espaço como você têm visões diferentes e que o espaço da aula é um lugar onde é necessário pensar e, por isso, estar aberto a rever nossas próprias certezas. Sendo assim, tenho tentado falar menos e ouvir mais, apenas vou dando algumas ideias de atividades e eles vão dando o retorno e vamos chegando juntos a uma proposta final de trabalho. Ultimamente, tem dado certo! A turma me ajuda a decidir, por exemplo, se estudamos determinado artista e a pergunta que faço é: Que tipo de trabalho podemos realizar para transformar nosso conhecimento em imagem visual? E quando eles se sentem parte do processo, quando sentem que eles estão criando, que eu quero a opinião deles e que eu preciso deles, de fato a experiência se torna sincera e eles percebem que, de fato, eles são as pessoas mais importantes naquela sala. E.S.: Bem, tudo o que eu queria era a proposta triangular, que a gente aprende na faculdade. A fruição, o fazer artístico e o contexto histórico. Meu grande sonho sempre foi entrar na sala de aula e fazer isso! Porque eu tive isso com aquele professor e quando eu aprendi na faculdade que eu poderia dar nome a isso, pensei: Que maravilha! Agora poderei fazer isso com TODOS os alunos que passarem pela minha vida! E a verdade é que não rola, não é possível aplicar essa metodologia com todas as turmas. Então, o que fui fazendo foi um pouco intuitivo, conversando com as pessoas, mas sempre tendo em vista essa proposta triangular. Mas aí eu me deparei com algo muito complicado: a prova teórica, exigida pelas escolas. E isso é muito difícil de fazer, porque não há tempo suficiente dentro da escola para organizar o fazer técnico e o conteúdo teórico em uma disciplina, como a de artes, que tem menos carga horária. Daí, comecei a experimentar outras coisas, e tenho feito isso agora. A primeira, trabalhar um filme que tenha ed. 5  |  dezembro 2018 193


ENTREVISTA uma temática afim ao conteúdo que eu queira trabalhar. Por exemplo, se vamos estudar arte egípcia veremos um filme, mesmo que seja um Blockbuster, e a partir do filme desenvolvo uma proposta que vai se desenvolver ao longo da aula, enquanto vou falando sobre arquitetura, pintura, cultura, etc. Eles trazem algumas informações de casa e depois fazemos uma atividade prática. Mas ainda quero fazer isso de uma maneira melhor e ouvindo a Mariana, pensei que também posso começar com eles oferecendo o tema que eles tenham interesse. Outra coisa que me deixa muito feliz é poder levá-los para algum Museu e, a partir da visita, desenvolver um trabalho. Claro que isso dá muito mais trabalho, porque essas saídas têm que ser divididas e ocupam a semana inteira, mas a minha escola comprou essa ideia. Nessa proposta consigo realizar a triangulação, porque eles têm a fruição (indo à exposição), o contexto histórico (na própria exposição eles têm acesso às informações a partir do trabalho da mediação) e o fazer técnico (que é decidido dentro da sala de aula). Eu também tento apresentar artistas que não são esses cânones, ou seja, é o artista que está disponível no museu no dia da visita. Nesse sentido, basicamente utilizo essas duas estratégias metodológicas para trabalhar com meus alunos atualmente. M.T.: Vocês já começaram a falar, mas eu gostaria que vocês contassem as principais referências que utilizam, tanto teóricas quanto artísticas. M.P.: Minha principal referência teórica é a Ana Mae Barbosa, que propõe essa ideia de triangulação como o Eduardo já mencionou. Também me apoio nas ideias da Fayga Ostrower, principalmente no seu conceito de criatividade. Em relação às referências artísticas, como eu tento sempre trabalhar a ideia da liberdade do fazer, acho que trazer exemplos da arte moderna e das vanguardas sempre é produtivo, pois esses artistas se empenharam em produzir algo que escapasse às regras da academia, eles se preocuparam em apresentar o olhar individual e a levar em consideração também o tato. E isso me ajuda muito a produzir uma aula, já que os alunos também se sentem atraídos por essa 194  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


temática.

E quando mostro a eles, que não é necessário saber desenhar de maneira virtuosa para expressar seus sentimentos, acho que a arte se aproxima mais da realidade daqueles alunos. Muitos alunos já chegam dizendo que não sabem desenhar, que suas mães jogam fora seus desenhos e desde o Fundamental 1 foram obrigados a copiar desenhos ou a pintar desenhos impressos. Ou seja, eles pensam que se a professora está me dando o Cebolinha para pintar, isso significa que não tenho capacidade de desenhar meu próprio Cebolinha. Dessa forma, os alunos vão sendo adestrados desde cedo a não saber desenhar, ou a pensar que não sabem desenhar. Porém, quando eles começam a ver um Pollock, um Kandinsky, um Mondrian, um Miró, os alunos começam a sentir que eles podem fazer algo também. No entanto, no começo eles acham tudo muito feio, pois não mostra a realidade, mas aí entra o professor que apresenta a história e conta porque os impressionistas, por exemplo, se empenharam em representar uma impressão individual e não uma realidade geral. E quando o aluno começa a entender que é possível produzir um trabalho artístico que seja diferente do resultado da máquina fotográfica, ele começa a enxergar a beleza do abstrato. É muito difícil fazer isso! Mas se cinco alunos começam a ver a arte abstrata e a se sentir mais à vontade para produzir, os outros vão seguindo como num efeito dominó. O que tenho feito agora é levar os artistas modernos para o Fundamental 1, ou seja, já no primeiro ano, trabalho o surrealismo, trabalho com arte abstrata, para aquela criança poder chegar à conclusão de que o sol pode ser azul, verde ou rosa. Respondendo finalmente a sua pergunta, minhas principais referências artísticas são os modernos e os contemporâneos eu ainda tenho um pouco de receio, porque não me ed. 5  |  dezembro 2018 195


ENTREVISTA sinto capaz de dominá-los, e em relação à teoria é a Ana Mae e a Fayga Ostrower. E.S.: Para mim também, a principal referência é a Ana Mae, com sua proposta triangular. Creio que ela funcione, quando é possível aplicá -la, mas o principal desafio é adaptar essa proposta triangular para os dias de hoje, já que ela foi criada em tempo que não existia a internet, por exemplo.

Em relação às referências artísticas, abri mão dos cânones e trabalho com artistas e movimentos que gosto. Embora, ainda trabalhe com temas da história da arte, porque acho importante os alunos terem acesso a isso e pressuponho que eles irão passar alguns anos de formação comigo, por isso, ainda consigo abordar os conteúdos básicos da disciplina. A diferença é que as referências que utilizo para trabalhar esses conteúdos não vem mais dos artistas que seriam os ícones representativos desses conteúdos, o que uso hoje como referência nas aulas é a cultura pop. É por isso que hoje eu tenho passado muito tempo vendo clipes de cantores pops como: Lady Gaga, Katy Perry, Beyoncé, etc. Assim, a partir desses clipes eu trabalho os conteúdos dentro da sala de aula. Por exemplo, se estamos estudando o Egito vamos começar vendo o clipe “Remember the time” do Michael Jackson e o cilpe “Dark Horse” da Katy Perry. Portanto, hoje eu utilizo esses artistas que se apropriam das referências da História da Arte. Ou seja, quando eu falo de Leonardo Da Vinci, trabalho com a música da Beyoncé, que colocou a Monalisa 196  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


dentro do seu clipe.

Imagens do clipe Remember The Time do cantor Michael Jackson, 1991

Imagens do Clipe Dark Horse da cantora Katy Perry, 2014 ed. 5  |  dezembro 2018 197


ENTREVISTA

Imagens do Clipe Apeshit da cantora Beyoncé, 2018

M.T.: Em relação aos planos de vocês para o futuro, o que vocês pensam sobre seu trabalho daqui a 5 ou 10 anos? Em relação à educação, à sua formação e aos seus objetivos profissionais. M.P.: Como eu vi que nesses 8 anos que estou dando aula fui evoluindo, fui me descobrindo e percebendo as coisas que dão certo e as que não dão no fazer dentro da sala de aula. Há um acúmulo de experiências. Então,

espero que daqui há algum tempo, quando avançar na minha formação - já que agora estou terminando o meu Mestrado profissional em Práticas de Educação Básica no Colégio Pedro II - possa dar aula na formação de professores e compartilhar, com a garotada que está entrando agora na graduação, as coisas que eu fiz que 198  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


podem dar certo e ouvi-los, para testar novas metodologias e didáticas. Porque tudo isso me faltou durante a graduação, ter contato com a realidade da sala de aula, já que na teoria é tudo muito lindo e romântico, mas quando você vê dentro da classe o aluno tacando tinta para todos os lados, é necessário ter muita calma e jogo de cintura, para você poder se aproximar deles e considerá-los protagonistas, para você entender que não são 40 alunos, que são 40 vidas dentro de uma sala. A maioria das pessoas desiste no primeiro obstáculo, pois passa todo o período de formação acreditando na estabilidade de um concurso, mas quando enfrenta a realidade muitas vezes desiste. E quem ficará nesse ambiente para ser a ponte entre o mundo da arte e essas pessoas? Por isso, minha intenção é estar ao lado desses formandos e incentivá-los a continuarem, insistirem e compartilhar minhas experiências exitosas para ajudá-los a desenvolverem um bom trabalho. E.S.: Eu, ultimamente, tenho mesmo pensado em planos para o futuro. Gosto de ser professor, mas não gosto do sistema educacional. Apesar de não ter tanta experiência quanto a Mari, já dei aula em algumas escolas tanto no sistema público, quanto no privado, e eu acho uma falácia esse ideal de educação. E, sinceramente, me desanima pensar na sala de aula daqui a 5 ou 10 anos, porque imagino que em 5 anos as coisas podem melhorar um pouco, mas podem piorar muito! Porém, como gosto de ser professor, hoje penso na possibilidade de ser um professor universitário, me esforço para alcançar isso. E lá na graduação contribuir para a educação básica. No entanto, paralelamente, tento desenvolver meu trabalho artístico utilizando, muitas vezes, essas referências que pesquiso para trabalhar dentro da escola. E respondendo à pergunta, eu não gostaria de estar no mesmo lugar daqui a 5 anos, na mesma sala de aula, na mesma escola, no mesmo formato em que se encontra a educação básica hoje. ed. 5  |  dezembro 2018 199


ENTREVISTA M.T.: Minha penúltima pergunta é sobre seus trabalhos artísticos individuais. Eu sei que vocês dois são artistas, sei que a Mariana desenha e pinta e o Eduardo pinta e produz vídeos. O que eu queria saber é: Como é possível conciliar a docência com uma produção pessoal artística? M.P.: Eu tenho muita dificuldade! Parei de produzir quando comecei a dar aulas, eu pintava bastante antes e conseguia vender algumas telas. Mas, acredito que a educação nos suga tanto, que você tem que planejar tantas aulas, analisar todas as possibilidades, enfim… É muita energia e tempo gastos com isso! E quando chego em casa eu não me sinto à vontade e relaxada para produzir com a liberdade que eu tanto falo em sala de aula. Precisava ter mais tempo livre, porque o professor está sempre estudando, se envolvendo em projetos, dando aula, resolvendo problemas na escola e por isso, hoje não tenho tempo para produzir. E.S.: Para mim, a principal questão é ter um planejamento. É necessário planejar para conseguir fazer as duas coisas. A questão mais complicada é entender seu processo de doação para a aula. Se você se doar muito, realmente não vai conseguir produzir nada. Porque costumo acreditar que a criatividade é algo latente, mas se você não puder direcioná-la, ela se perde. O que faço hoje, tento me aproximar dessa proposta triangular utilizando-a na minha vida, se relaciona com as referências que busco para utilizar na sala de aula. Ou seja, não separo mais as experiências com as diversas imagens, seja o vídeo, o desenho, ou a pintura. Para mim elas todas têm o mesmo valor! Eu não separo mais um videoclipe de uma pintura, para mim os filmes, os clipes, a moda, são as grandes obras de arte contemporânea. Essas obras serão estudadas daqui há 200 anos! Por isso, parto dessas obras para produzir, mas realmente se você doa toda a sua energia, toda a sua criatividade, todo o seu tempo, toda a sua habilidade para a sala de aula, você não vai produzir nada.

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Uma alternativa é misturar o que você produz, não de uma maneira cretina, dentro da sala sem fugir muito da proposta da escola. Ou ser fiel a um planejamento, planejar o que fará em sala de aula e o que você irá produzir artisticamente. Agora, acho que o maior problema dos professores de artes que têm a necessidade de produzir alguma coisa, e aí falo por mim, é tentar dar menos aulas, como por exemplo, eu, que só tenho uma matrícula e dou aula em uma única escola. Eu escolhi não dar aulas a noite, não dar aulas de manhã e à tarde, ou seja, abri mão disso e também de um salário maior, para poder ter um tempo para um ócio criativo, que significa ter tempo para ir aos museus, produzir em casa, pensar em projetos, pesquisar. Por isso não dá para dar aula em duas escolas, ter duas matrículas, trabalhar em escola particular, o que muitos fazem para ter uma renda maior. Tenho alguns colegas que são 40h no município e também 40h em outra matrícula no município, e ainda dão aulas em escolas particulares. Para um professor de ciências já é muita coisa, mas para um professor de artes seria impossível ter um trabalho artístico concomitante. Sendo assim, acho que o segredo é administrar seu tempo e ter planejamento. M.T.: Minha última pergunta é sobre um tema que me interessa bastante. Gostaria de saber o vocês pensam sobre um artista que surge na periferia, ou seja, para vocês como surge um artista na periferia, na Baixada Fluminense, em São João de Meriti, ou aqui na Pavuna? O que vocês acham que é necessário, e vocês podem pensar nos seus alunos, para que um artista consiga se desenvolver nesse contexto periférico? M.P.: Bom, vou começar dando um exemplo de um artista que eu co-

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ENTREVISTA nheci no Lote XV, em Caxias: Marco Bonfim. Ele nos deu uma entrevista, para os meus alunos e eu, e nos disse exatamente isso. Ele começou a descobrir que desenhava, começou a vender os trabalhos dele na escola por preços baixos e como naquela época a fotografia ou a máquina fotocopiadora ainda não eram tão comuns, ele ganhava dinheiro reproduzindo órgãos humanos para as freiras da escola religiosa. E como ele percebeu que aquilo dava dinheiro, ele junto uma quantia e partiu para o mundo. Viajando, assim, pela América Latina inteira, sem muito dinheiro, mas que conseguindo sobreviver e seguir viagem vendendo seus trabalhos. Na minha opinião, é muito difícil para um aluno da Baixada Fluminense ter maturidade, ou melhor, visualizar que tem um potencial para ser alguém, ainda mais se for para desenhar e vender quadros. Porque aqui na Baixada, pelo que tenho percebido, as pessoas reproduzem um pensamento de que aqui não tem arte e não tem cultura. Vide a Igreja do Pilar, que em Caxias está trancada, abandonada e se deteriorando. Quando ele vê que isso acontece do lado dele e que as maiores referências da arte estão no centro do Rio de Janeiro, eles pensam de duas formas: ou eu vou para a Zona Sul e me transformo em um artista de lá, ou eu vou ser um artista que fica numa garagem reproduzindo objetos com ferragens, que serão vendidas a 20 ou 30 reais, isso se forem vendidas.

O artista da Baixada, para eles, é um artista que “tapa buraco”, que produz objetos decorativos, muitas vezes de baixa qualidade. Ou seja, uma visão menosprezada. Mas, a realidade é que temos muita cultura, mas não nos damos conta e ficamos esperando que alguém de fora venha valorizar para aceitarmos a sua existência. Parece que sempre esperamos o olhar do outro! Portanto, para um artista se desenvolver e defender seu trabalho como artista, terá que suar 202  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


muito! Tenho muitos alunos talentosos, mas muitas vezes eles têm que cuidar dos irmãos, têm que fazer comida, que têm que trabalhar com 15 anos para ajudar nas finanças da casa. Então, é como se a vida não desse espaço para criar, produzir e acreditar no que faz.

Cartaz da Exposição “O Estranho Mundo De Marco Bomfim”, ocorrida em Novembro de 2017 no Museu Vivo São Bento, em Caxias.

E.S.: Na minha opinião, para surgir um jovem artista, terá que ser muito corajoso. O que falta é uma certa coragem! Porque eles que não têm referências. E eu posso dizer por mim, hoje tenho 40 anos, mas quando eu tinha 12, alguém me disse que poderia e acreditei que realmente conseguiria, mas minha maior dificuldade foi descobrir aonde buscar isso. Eu lembro que esse professor que tive, me disse que poderia ir ao ateliê dele para aprender e produzir, mas o ateliê era no Largo do Machado. E como tinha apenas 12 anos, minha mãe teria que me levar, haveria uma despesa de passagem, o que dificultava tudo. Sempre parece difícil demais para quem é da periferia. E o trabalho artístico nunca é reconhecido como uma profissão. Digo isso porque ninguém nunca me disse que eu iria ganhar dinheiro com isso, apesar de elogiarem meu trabalho. Sabiam que era bom aluno e me diziam para fazer a Federal de Química, eu fiz e passei, mas eu poderia ter feito a Martins Pena, pois também seria aprovado. Mas as pessoas da periferia, da ed. 5  |  dezembro 2018 203


ENTREVISTA Baixada, pensam que só há dois caminhos para um menino: seguir a carreira militar ou fazer um curso técnico. Esses são os grandes ofícios de sucesso para um garoto da periferia. As escolas vão trabalhar nesse viés e mostrar unicamente estes caminhos. Imagina um professor incentivando um aluno a fazer Belas Artes? A pessoa pode desenhar muito bem, mas ninguém vai dizer que ela poderá ser uma artista. Os professores te darão livros de química, aulas extras, etc. Eu sei porque tive sorte, pois esse professor me incentivou, mas ele foi o único e apenas durante a 6ª série. Depois disso quantos professores passaram e me mostraram várias outras possibilidades? Mas ninguém disse para mim que eu poderia ganhar dinheiro sendo artista. E só me dei conta disso, quando fiz e produzi uma exposição no Sesc de São João de Meriti e a minha mãe foi. Ela me via produzindo, fazendo uns trabalhos com papel machê, mas quando ela entrou na exposição, onde todos os trabalhos estavam expostos, ela me disse: “Me desculpa, Eduardo, porque não sabia como te apoiar, pois eu não podia imaginar um caminho para você dentro das artes. Se eu soubesse, você poderia estar fazendo isso há 20 anos atrás! Eu teria apoiado há 20 anos atrás se eu soubesse!”

Nesse momento, caiu minha ficha. É impossível vislumbrar essa possibilidade se não há nenhuma referência, vemos nossos tios e primos virando militares, mas não vemos ninguém na família virando artista. Por isso, acho que essa referência de sucesso nas artes para um jovem não existe e eles ficam limitados às possibilidades que veem. Quando falamos em arte, dentro da escola, com alunos mais velhos, sempre irão falar do grafite, então, quando você apresenta alguma outra técnica, perdem o interesse porque parece muito distante deles. Porém o grafite é 204  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


algo que ele vê, na rua, no seu dia-a-dia e é por isso que eu sempre digo: A arte deve ser vista! Não adianta somente falar, os alunos têm que ir ao museu, porque assim materializam a ideia, que tentamos discutir na sala de aula. Não adianta apenas ver no Jornal Nacional que uma obra do Van Gogh foi vendida ou foi roubada, porque isso ainda é muito distante para eles. Mas quando o aluno está dentro do museu, pode ver obras, ter contato com os artistas, ver um documentário na exposição sobre a vida dele, isso pode fazer toda a diferença. É necessário haver uma identificação, senão fica muito difícil para o aluno produzir algo com o intuito de profissionalizar. Eu posso dizer por mim mesmo, já que não saio com meus trabalhos embaixo do braço oferecendo para galerias. A única coisa que tenho é o apoio dos amigos que fiz e dos professores que tive durante minha vida adulta, mas para um aluno de 18 anos que acabou de sair da escola isso não acontece tão facilmente. M.P.: Mesmo uma faculdade de artes parece impossível para um jovem, já que o curso técnico e o militarismo parecem mais viáveis para um jovem da Baixada. Porque termina o Ensino Médio e já tem que trabalhar, sempre por uma pressão da família e pelas condições da mesma. Por outro lado, as meninas saem da escola e vão fazer unha em algum salão, ou fazer algum curso de estética, ou elas vão trabalhar em alguma loja. M.T.: Engraçado pensar no uso da palavra “estética”… E.S.: Essa palavra é ótima quando usada na sala de aula! M.P.: E os meninos vão servir aos 18 anos, às vezes eles nem querem, mas são obrigados. Ou vão trabalhar com um tio que é pedreiro, ou com o irmão que é borracheiro, eles têm essa obrigação de entrar a ed. 5  |  dezembro 2018 205


ENTREVISTA qualquer custo no mercado de trabalho. Para um jovem da baixada, quatro anos de faculdade sendo sustentados pelos pais é inviável, por ser muito caro. E.S.: E além disso a formação na escola pública é frágil para ele tentar o ingresso numa universidade pública. E também não tem referências de familiares ou conhecidos que entraram na vida acadêmica. E continuo afirmando que o motivo maior dessa impossibilidade é a falta de referências, não existe ninguém na família que tenha se formado e ninguém que saiba como funciona a universidade. Mesmo que na infância minha parede estivesse cheia de desenhos e de pinturas, eu tive que trabalhar num barzinho na frente da minha casa para poder comprar material para pintar e desenhar. E mesmo assim, fui fazer primeiramente um curso técnico de química, porque eu tinha uma tia que era engenheira química. Porque nunca ninguém me disse que poderia ser artista, nunca me puseram num curso de pintura, pois essa profissão não existe na periferia. M.P.: Recentemente, estava pensando nisso. Pois, em Caxias temos algumas frentes artísticas, que procuram promover e incentivar a potência do fazer artístico, embora seja tudo muito difícil. Lá temos o Museu Vivo de São Bento, que é perto da Fioduc. Ele é vivo, porque precisa dos moradores do bairro para existir, já que reúne artesãos, promove a capoeira, possui um acervo de obras de arte e fazem exposições, embora ainda seja muito pontual e tímido. Também temos o Dudu de Morro Agudo, que é de Nova Iguaçu e que está à frente do movimento do rap e da rima e dá oficinas de Rap Lab. Também temos a Gomeia Galpão Criativo, que está começando a fazer oficinas para ensinar aos jovens a fazer cinema. Mas, ainda é tudo muito tímido e escondido! Então, a necessidade que tem de ganhar dinheiro, para sustentar a família e ser alguém, é mais urgente do que a vontade de ser e fazer o que realmente se quer. Tenho muitos alunos que querem estudar Artes, porém as condições são as mais difíceis. Por exemplo, tive uma aluna que era uma 206  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


excelente atriz e sempre escreveu peças teatrais para a escola e consegui uma vaga para ela no teatro Armando Melo, dirigido pelo Guedes, que é namorado da minha prima, só que ela me disse que a mãe não a deixaria fazer teatro porque teria que trabalhar e conseguir dinheiro, e por esse motivo teria que abandonar o seu sonho. Isso é muito triste e vemos isso se repetir várias e várias vezes! E.S.: Mas você imagina de ela tivesse uma referência, alguém do bairro ou da escola que ela estudou, que tivesse sido bem-sucedido de alguma forma com o teatro, a história seria diferente. Porque mesmo que ganhe pouco dinheiro como atriz, como figurinista, como cenógrafa ou como diretora, até mesmo servindo cafezinho na coxia do teatro, também ganhará pouco dinheiro trabalhando em uma loja. Mesmo ganhando pouco estaria em contato com o teatro. O que falta aos alunos é esse contato, por isso não sei se essas ONGs e organizações funcionam tão bem para isso, ainda fica tudo no âmbito do amador e não se mostra a possibilidade real de uma profissão artística. Porque artistas para essa garotada ainda são as “celebrities”, o que também está muito distante, já que eles se colocam sempre como fãs e não como alguém que faz! O problema de ser fã, hoje em dia, é que as pessoas não são fãs do que o artista produz e sim do personagem criado pela mídia. Eu por exemplo, não tiro foto com artistas, pois sou fã das obras que eles produziram, como no caso da Madonna, gosto de uma fase específica e alguns álbuns e clipes e de outros não gosto tanto, por isso não tiraria uma foto com ela, mas conversaria sobre o que ela fez. Na minha opinião, essa realidade de ser fã distância, pois falta a ideia de profissão, que deve ser apresentada. Mas dentro da escola, a profissão de artista é subjugada, já que a aula de artes é uma “submatéria”, serve para completar o tempo, para fazer o mural da escola ou enfeitar a escola para as festas, para recrear os alunos, ou seja, nunca está nessa esfera profissional. E, talvez, isso seja uma falha nossa como professores. M.P.: Lembrei de algo em relação à essa discussão sobre a importância ed. 5  |  dezembro 2018 207


ENTREVISTA das referências. Quando eu levei meus alunos no Museu Vivo de São Bento para entrevistar o Marco Bomfim, ele nos contou sua história e disse que não terminou o Ensino Médio, que não fez faculdade e simplesmente decidiu viver do trabalho dele e começou a falar sobre o preço das suas obras no começo. Foi então, que um dos alunos que dizem ter problema com todas as disciplinas, mas faz pequenas esculturas com latas de alumínio, disse para mim: “Poxa, professora! É possível ganhar dinheiro com arte. Se ele conseguiu, eu também consigo!” Isso mostra a importância da proximidade, do contato, da referência de alguém que é do bairro, que está acessível e pode servir de exemplo. * Marcela Tavares mora na Tijuca e é professora do IFRJ campus Belford Roxo. Mestre em Estética e Filosofia da Arte pela UFOP e doutoranda em História e Crítica da arte pelo PPGAV/EBA-UFRJ. Cursou a Especialização em Ensino da Arte na EAV/UERJ com os entrevistados. Mariana Paixão, 30 anos, mora no Parque Fluminense em Duque de Caxias e é professora do CIEP 032 – Cora Coralina no Bairro Cidade dos Meninos em Duque de Caxias e também na Escola Municipal Heitor Beltrão em Vigário Geral, Rio de Janeiro. Eduardo Souza, 42 anos, mora na Vila Rosali em São João de Meriti e é professor da Escola Municipal Escultor Leão Veloso na Pavuna, Rio de Janeiro.

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foto @eualiceferraro

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RELATO DE EXPERIÊNCIA LICENCIANDO EM ARTES VISUAIS NO COLÉGIO DE APLICAÇÃO (UFRJ):

OS QUADRINHOS E FANZINES EM SALA DE AULA POR

LUCAS ALMEIDA DE MELO

Quando pensamos em quadrinhos em sala de aula, lembramos quase exclusivamente das suas aplicações durante as aulas de português, literatura e línguas estrangeiras. Apesar do grande apelo dessas disciplinas aos quadrinhos, muitas outras matérias podem usar dessa linguagem para enriquecer as propostas dentro de sala de aula. Congressos como as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos promovidos pela na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e Fórum Nacional de Pesquisadores em Arte Sequencial organizado Pela ASPAS - Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial são um dos mais importantes congressos sobre quadrinhos produzidos no Brasil e no exterior. Além de dar visibilidade a tais estudos, o encontro acadêmico contribui para promover intercâmbio de conhecimento entre os autores dos temas abordados.

Os congressos sobre quadrinhos demonstram a importância transdisciplinar e alertam sobre 210  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


o uso de quadrinhos em todas as camadas de ensino para fomentar a pesquisa de uma universidade pública, gratuita e de qualidade. Todo professor também é pesquisador. Precisamos encarar a sala de aula como laboratório, sempre ser atualizados com as propostas de aula pois como bem disse o educador Paulo Freire, “não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino.” (FREIRE, 2015, p. 32). As histórias em quadrinhos hoje são importantes instrumentos paro uso didático dentro das escolas e sua linguagem pode ser trabalhada em diversas disciplinas, não havendo limites para sua aplicação, sendo reconhecidas por autoridades educacionais e mencionadas em documentos oficiais como: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Para o professor Waldomiro Vergueiro, fundador e coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da Universidade de São Paulo (USP), estamos no momento da inclusão dos quadrinhos no ensino, ou seja, não existe empecilho ou nenhum obstáculo real para os professores não usarem quadrinhos em sala de aula. Em 2011, por exemplo, a prefeitura do Rio de Janeiro, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e os Parâmetros Curriculares Nacionais da Língua Portuguesa, pensou em um material para prática pedagógica e o incentivo à leitura do qual foram impressos 5.600 exemplares. A Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e a MultiRio foram responsáveis pelo Guia Prático de Quadrinhos, destinado a professores e a alunos da Rede Municipal de Ensino. É um material de metalinguagem sobre as características formais dos quadrinhos. Em suas referências bibliográficas, encontramos três livros fundamentais de Scott McCloud, que inspiram diretamente o material da prefeitura: Desvendando os Quadrinhos (2004), Desenhando Quadrinhos (2005) e Reinventando os Quadrinhos (2006). O guia é ened. 5  |  dezembro 2018 211


RELATO DE EXPERIÊNCIA contrado facilmente em formato de PDF no site MultiRio em conjunto com cinco animações sobre as características formais da linguagem: balão, enquadramento, texto, timing e letreiramento. Desde que entrei na universidade, a pesquisa acadêmica sempre me interessou, alguns professores no ensino médio comentavam que os projetos paralelos dentro das universidades públicas acrescentavam bastante na formação pessoal. Antes de entrar para Escola de Belas Artes, fui bolsista por dois anos no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), no projeto de pesquisa sobre o Uso de Documentários para a Educação Científica e Ambiental atualmente vinculado ao Laboratório de Divulgação Científica e Ensino de Ciências, coordenado pelo professor Marcelo Borges Rocha. Fiquei muito empolgado por participar desse laboratório porque os bolsistas eram os responsáveis na produção dos documentários educativos, desde a elaboração dos roteiros até a captura das imagens em parceria com TV/CEFET, vinculada a Divisão de Mídia Educacional (DIMED) coordenado por Edgar Richter, o qual responde, entre outros, pela gestão da TV universidade e dos auditórios da instituição, através da SERED - Seção de Recursos Didáticos. No final do meu primeiro semestre no curso de Licenciatura em Educação Artística - Artes Plásticas em 2015.2, o professor Marcus Vinicius de Paula comentou sobre os projetos que existem dentro da universidade e, mais especificamente, sobre sua pesquisa. A partir de então, pensando em minha formação como pesquisador na universidade e como futuro professor, começamos a trabalhar juntos na investigação sobre a linguagem dos quadrinhos e a narrativa na pintura acadêmica. A pesquisa teve início dentro da universidade, estudando e adquirindo conhecimento teórico sobre as linguagens artísticas, e se expandiu para fora dos limites da universidade, quando pude aplicá -los durante o estágio no Colégio de Aplicação da UFRJ. Estagiando nas aulas ministrada pela professora Sônia Bibe Luyten, pioneira nos estudos acadêmicos das Histórias em quadrinhos japonesas no Brasil, e juntamente com o jornalista José Alberto Lovetro, expandiu a per212  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


cepção sobre a linguagem dos quadrinhos e contribuindo para o seu uso como instrumento pedagógico porque a história em “quadrinhos é a linguagem mais próxima dos alunos, desde a infância até as universidades.” (LUYTEN e LOVETRO, 2017, p. 8.). Esses dois anos da pesquisa mostraram o quanto é importante trabalhar com um objeto que você goste. E assim, levar essa didática diferenciada para dentro de sala de aula. Pesquisar as histórias em quadrinhos me deu garra para continuar na faculdade e sempre tentar atualizar a minha formação como profissional. A Carta de Recomendação do Colégio de Aplicação da UFRJ e a Menção Honrosa no 8ª Semana de Integração Acadêmica da Universidade Federal do Rio de Janeiro mostraram o quanto é gratificante estudar, permanecer e trabalhar com ótimos profissionais. Essas duas conquistas demonstram o quanto o ensino de arte é importante para formação de nossos alunos. Lembrando também que o trabalho ganhou menção honrosa em uma unidade onde muitas das orientações para pesquisa e extensão ocorreram nos corredores da Faculdade, devido ao incêndio na Escola de Belas Artes em outubro de 2016. A arte existe para resistir. Os Quadrinhos no Colégio de Aplicação da UFRJ No estágio como professor no setor de Artes Visuais do Colégio de Aplicação da UFRJ, levei as propostas da minha pesquisa acadêmica para dentro da escola. Para turma do 5° ano do ensino fundamental, a proposta pedagógica pensada pelo setor de artes visuais trabalha cores, ritmo e movimento. Curiosamente, pareceu-me um tema rico e importante a ser trabalhado através da linguagem dos quadrinhos. O objetivo principal da aula era apresentar as diferentes formas de quadrinhos mundiais e a importância das cores como elemento visual que compõe a narrativa. As cores também são ideológicas, ou seja, também possuem significado através do pensamento do quadrinista. Segundo Fredrik Strömberg, jornalista de quadrinhos e presidente da The Swedish Comics Association, em seu livro Comic Art Propaganda (2010), ed. 5  |  dezembro 2018 213


RELATO DE EXPERIÊNCIA comenta que, “os quadrinhos têm uma maneira quase mágica de capturar e manter a atenção do leitor.” (STRÖMBERG, 2010, p. 9).

Assim, a proposta da aula foi promover com os alunos a capacidade de observar e desenvolver a leitura de páginas e fragmentos de quadrinhos das diferentes partes do mundo buscando a compreensão de estilos, cores e composições. Foi muito gratificante perceber que esta linguagem é naturalmente reconhecida entre alunos e os professores do setor de artes visuais. Além disso, participei de três aulas com professores diferentes que usaram da linguagem dos Fanzines como recurso didático. Em julho de 2018, apresentei um trabalho no IV Fórum Nacional de Pesquisadores em Arte Sequencial, onde principais pesquisadores de publicação independente estavam presentes, como o professor Gazy Andraus, responsável pelo capítulo Uso e aplicação de fanzines de quadrinhos em sala de aula do curso Quadrinhos na Sala de Aula da Universidade Federal do Ceará (2018). Comentei com professor que na UFRJ tínhamos matérias específicas como História em Quadrinho I na grade do curso de Licenciatura em Educação Artística - Artes Plásticas e a eletiva em comunicação visual sobre fanzines denominada Projeto Com Visual (Edit Independente) oferecido no Atelier de Gravura da faculdade e lecionado por dois professores: Julie de Araújo Pires e Pedro Sanchez Cardoso. Essas matérias são importantes conquistas que demonstram a importância do campo para o estudo acadêmico. Sem contar que os alunos da licenciatura tem contato com uma ferramenta importante para o ensino de artes nas escolas. Conversando nas Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos em 2017 com pesquisadores de diversas regiões do país, percebi o privilégio que tenho de poder cursar uma disciplina de Quadrinhos ofertada pelo o curso de licenciatura. Posso dizer que é uma exceção no país, muitos professores ficaram surpresos quando eu comentava sobre minha grade na universidade. 214  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Durante o estágio de Artes Visuais no CAP/UFRJ, somos responsáveis por acompanhar três turmas de diferentes segmentos do colégio. No ensino fundamental I e II, as turmas são divididas e a quantidade de alunos não chega a 15 alunos por turma. Essa proposta foi conquistada pelo setor de artes visuais, que entende a importância de trabalhar com a quantidade de alunos ideal. Já no ensino médio, os alunos escolhem as propostas que pretendem seguir e podem escolher entre artes visuais, música ou dança. As turmas do ensino médio oferecem propostas curriculares diferenciadas, o professor responsável pela turma pode elaborar aulas em sintonia com os projetos pessoais de pesquisa. No primeiro dia do estágio para a turma do ensino fundamental I, soubemos que o pedido de aposentadoria da Professora Fátima foi aceito e não seria mais nossa professora-orientadora. O interessante nesse processo é que tivemos o contato com duas professoras diferentes revezando a cada semana. A professora-orientadora responsável pela turma estava de licença para o cumprimento do doutorado. Ao primeiro momento, parecia um grande problema, entretanto, consegui ter contato com outros professores do CAP e entender outras abordagens de ensino. Contudo, com as diversas adversidades, como a troca constante de professores, naturalmente, ocorreu o afastamento dos licenciados com a turma do ensino fundamental I. A Professora Marilane Abreu, após o fim da licença, foi bastante solícita sobre as nossas ideias para as regências das turmas e até mesmo sugeriu livros e revistas em quadrinhos guardados no armário dentro da escola. Uma coleção grande de quadrinhos foi doação de um antigo amigo da professora. O 5° ano do fundamental I era uma turma bastante agitada e as próprias crianças não prestavam atenção na interação do grupo e na turma como coletivo. Decidi colocá-los em roda e sentados em um grande tapete, a configuração atípica da sala estimulou os debates sobre os quadrinhos. Selecionei páginas de diferentes quadrinistas pelo mundo, as quais trouxeram as cores como elemento narrativo. Entre elas, páginas de Armandinho (2012 - Presente), Bidu - Caminhos (2014), Joe o Bárbaro (2011), Fire de Lorenzo Mattotti (1952 - Presente), Macanudo ed. 5  |  dezembro 2018 215


RELATO DE EXPERIÊNCIA (2011) e Moebius (1938 - 2013). As páginas de Lorenzo Mattotti (figura 01), são importantes para reflexão necessária sobre a ideologia das cores nos quadrinhos, em Fire (1988), por exemplo, o leitor é engolido por explosões de vermelho e amarguras de preto com linguagem, referenciando a técnica do pastel. Cada página são labaredas que transferem ao leitor o desgosto e a podridão das guerras. Logo, o quadrinho queima as páginas e os leitores. O vermelho não está impregnado no trabalho por acaso. O professor de artes alfabetiza para a compreensão das imagens.

Fig 01: Em Fire (1988) de Lorenzo Mattotti as cores pulsantes lembram o leitor sobre os horrores da guerra. Fonte: Pinterest

Quando preparamos as aulas, não sabemos como serão as reações das crianças com os materiais apresentados. O quadrinho Bidu - Caminhos (2014) fez bastante sucesso com a turma, sendo essa a história criada por Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho, contando so216  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


bre o primeiro encontro entre Bidu e Franjinha. Trabalhei com a turma as cores complementares e comentei como os artistas impressionistas lidavam com as sombras coloridas nas pinturas. Em Bidu, não necessariamente a representação da noite necessita ser em tons escuros. As cores também trazem camadas de significação e não estão no álbum somente com objetivo de colorir a história, cabe ao professor da disciplina alertar sobre essas questões com a turma. O interessante de Bidu - Caminhos, além do trabalho em contar a história sobre os primeiros personagens da tirinha de Maurício de Sousa, é que os animais, como o próprio Bidu, conversam com balões de falas singulares, no caso, a comunicação ocorre através de imagens visuais e não de texto escrito. (figura 02). Uma verdadeira aula sobre narrativa gráfica.

Fig 02: Os balões de fala em Bidu - Caminhos (2014) é uma aula sobre narrativa. Fonte: Senhor Castanha.

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RELATO DE EXPERIÊNCIA As crianças ficaram impressionadas pelo modo de narrar dos quadrinistas de Bidu - Caminhos (2014) e decidiram fazer uma história cujos personagens se expressavam com balões de fala do Whatsapp. (Figura 03). As aulas de artes são importantes para a alfabetização visual das crianças, pois a imagem proporciona formas diferenciadas de pensar. O mundo se tornou cada vez mais visual. Em tempos de facebook, instagram, youtube e até mesmo as mensagens de whatsapp, elaboramos o pensamento pictográfico. As crianças utilizam o sistema de comunicação simples, porém extremamente poderoso. Todas as crianças na turma possuíam celulares de última geração, seria natural que essas novas tecnologias perpassassem pelos saberes dentro das disciplinas no colégio. Demonstrar os quadrinhos para as crianças e ver o quanto a aula é proveitosa para turma é muito gratificante. São nesses momentos que bate aquele orgulho de ser professor.

Fig 03: Em Invasão do E.T Bilu (2017), A dupla apropriou-se da linguagem do whatsapp na construção dos balões de fala. Fonte: Fotografia do autor.

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Nota

1 De acordo com a descrição do projeto presente no currículo lattes do coordenador, os objetivos específicos são: produzir documentários educativos voltados para a área de educação socioambiental; utilizar os vídeos educativos em aulas de educação formal com alunos do Ensino Médio; investigar como estes vídeos são vistos e re-significados por professores e alunos como recurso em atividades de educação ambiental.

Referências Bibliográficas

ANDRAUS, Gazy. HQ Curso de Quadrinhos em Sala de Aula: Uso e aplicação de fanzines de quadrinhos em sala de aula. vol. 10, 2018. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2014. LUYTEN, Sônia Maria Bibe e LOVETRO, José Alberto. Efeito HQ, 2017. STRÖMBERG, Fredrik. Comic Art Propaganda: A Graphic History. Pennsylvania State University, 2010. VERGUEIRO, Waldomiro. HQ Curso de Quadrinhos em Sala de Aula: As Hqs e a escola. vol. 1, 2018.

Referências Iconográficas

DAMASCENO, Eduardo e FELIPE, Luís. Bidu - Caminhos. 2014. Disponível em: <http://www.senhorcastanha.com/quadrinhos-de-quinta-bidu-caminhos//>. Acesso em: 07 ago.2018. MATTOTTI, Lorenzo. 1988. Disponível em: <https://br.pinterest.com/ pin/228205906091563818/>. Acesso em: 07 ago.2018. MELO, Lucas Almeida. Fotografia do Autor.

Lucas Almeida de Melo é graduando em Educação Artística (UFRJ), onde integra o projeto de pesquisa A Linguagem dos Quadrinhos e a Questão da Narrativa na Pintura Acadêmica como bolsista de Iniciação Científica. É Monitor nas disciplinas de História da Arte I e II. Email: lmelo496@gmail.com

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ARTIGO

“PERDER TEMPO”:

UMA PRÁTICA NECESSÁRIA NA ARTE-EDUCAÇÃO POR ANNA CAROLINA RODRIGUES E TAYLANE DA SILVA

Resumo: O presente artigo tem como objetivo levantar questões sobre Arte-educação a partir das reflexões de Ana Mae Barbosa (2010) e Duarte Jr (2011) pensando a importância de uma formação sensível. Nessa busca se faz necessário pensar não só a relação arte e educação, e como ela se dá na prática, mas também a relação que o educador tem com a arte e com o ensino (VALENTE, 1993) (OSTROWER, 1991). A partir destas questões é possível iniciar uma discussão sobre a importância do “tempo livre” (VASCONCELLOS, 2009) (SCOVINO, 2003) nos processos formativos, construindo assim, novas formas de ver e sentir o mundo (GONÇALVES, 2011). Palavras-chave: arte-educação; tempo livre; educação estética; formação sensível INTRODUÇÃO A relação da arte e educação pode ser compreendida de duas formas, segundo a autora brasileira Ana Mae Barbosa. Na primeira compreendemos que é uma relação de subordinação, isto é, um campo de conhecimento é compreendido como mais importante que o outro e assim um campo é subordinado ao outro. Na segunda forma podemos 220  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


observar uma relação de interpenetração, ou seja, uma relação onde os dois campos de conhecimento tenham importância equivalente e sejam abordados conjuntamente. Barbosa nos ajuda a pensar a necessidade de uma reflexão sobre qual dessas formas de arte-educação estão sendo abordadas nas escolas. Segundo a autora, uma reflexão neste sentido nos ajudará a tornar clara as novas e férteis tendências da Arte-Educação, no sentido de transformar o processo de aproximação dual num processo dialético, dando como resultado novos métodos de ensino de Arte, não mais resultantes da junção da Arte à Educação ou da oposição entre ambas, mas de sua interpenetração. (BARBOSA, 2010, p.13)

Assim, o presente artigo tem a compreensão da Arte-Educação a partir da ideia de Barbosa na qual a arte e a educação são trabalhadas de forma conjunta e em igualdade (BARBOSA, 2010, p.13). A partir dessa compreensão serão abordadas as relações entre arte e educação, pensando o lugar da arte no espaço escolar em relação a ideia de “perder tempo” (VASCONCELLOS, 2009, p. 89) (SCOVINO, 2003, p. 70). Além disso, também será de extrema importância para esta discussão a ideia de educação estética, apoiada em Duarte Jr, que nos diz ser necessário considerar um (re)pensar do lugar do pensar antes do sentir, do refletir antes do vivenciar, do inteligível antes do sensível. Assim, o autor traz para sua discussão a ideia de experiência estética, que segundo o próprio é “aquilo que a arte produz nos nossos corpos quando percebida adequadamente” (DUARTE JR, 2011, p.7). Portanto, embasado nestes autores que não só estudam arte ou somente a educação, mas se dedicam a estudar o campo da Arte-Educação, é possível compreendermos o valor do “perder tempo” neste processo buscando uma formação sensível e autônoma do sujeito. E para discutir a formação sensível que busca a autonomia do estudante a partir do seu olhar para o mundo (GONÇALVES, 2011, p. 26) também será necessário perceber a importância da formação do arte educador (VALENTE, 1993, p. 63) e como sua formação é essencial para ed. 5  |  dezembro 2018 221


ARTIGO a construção da relação com os estudantes e desta forma, a construção de uma relação entre arte e vida (OSTROWER, 1991, p. 20-21). REAPRENDER A PERDER TEMPO Em uma sociedade onde precisamos produzir o tempo todo e que cada vez mais a flexibilização do trabalho está consumindo mais tempo e controlando cada vez mais os trabalhadores, não podemos descartar a escola deste sistema. Um sistema de produção, ou seja, a escola também está nesse movimento de produzir, diminuindo os espaços para momentos considerados “perda de tempo” como a prática artística, a brincadeira, o próprio momento de reflexão sem a “produção”. Nesse contexto de valorização da produção, tanto para a arte quanto para a educação o processo também é muito importante. E em alguns casos até mais importante que o produto final. Assim, se faz necessário um olhar mais atento aos detalhes, criando novas possibilidades, dando lugar ao novo, com atividades que possibilitem “(...) não apenas a dimensão cognitiva, mas também as dimensões sensível, afetiva e lúdica no processo de ensino aprendizagem” (MASSA, 2015, p. 112). Ao falar sobre “dimensão cognitiva”, podemos dizer que, adequado ao nosso tema principal, pode ser visto como as atividades que possuem mais valor no campo do conhecimento, em detrimento de outras, tais como trazidas pela autora, a “dimensão sensível”. Estas atividades que buscam ativar essa dimensão sensível, podem ser vistas na escola a partir do lúdico, termo este complexo e vasto de possibilidades (MASSA, 2015, p. 113). Segundo Massa (2015) com aporte em Lopes (2004), existe uma variação muito grande das significações do termo ludicidade, mas o define em cinco palavras, estas usadas frequentemente “tanto por leigos quanto especialistas” e afirma que essas palavras são: brincar, jogar, brinquedo, recreação e lazer (MASSA, 2015, p. 115). Todas com seus próprios significados, mas associados ao cotidiano, podem ser relacionadas, por diferentes percepções de mundo, a atividades que 222  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


são praticadas no que chamamos de “tempo livre”. Pensar sobre “tempo livre” a partir da concepção romana significa tempo dedicado aos amigos, ao conhecimento e à experiência de estar no mundo (VASCONCELLOS, 2009, p. 85). Contextualizar o “tempo livre” na escola é, como já foi dito, pensar nos intervalos de recreação, lazer, atividades lúdicas, porém, segundo Vasconcellos, é necessário “aprender a perder tempo”. Isto é, “aprender a perder tempo” vai ser, segundo a autora, fundamental para o processo de humanização, pois as atividades relacionadas ao tempo livre estão associadas a compreensão de si, a diversão, a autonomia. Assim, “(...) afirmar o tempo de ócio como ‘tempo livre’ é afirmá-lo não apenas liberado da obrigação de produção, mas também liberado da medida aprisionadora do tempo cronológico.” (VASCONCELLOS, 2009, p.89). É a ideia de estar livre, de não possuir nada, mas também sentir que nada e ninguém o possui. Esse momento é muito importante não só para os estudantes, mas também para os educadores, pois segundo Vasconcellos o fazer da educação requer uma dose de “ociosidade amorosa” (VASCONCELLOS, 2009, p. 91). Isto é, um tempo de vazia contemplação, um momento amoroso de abertura a si mesmo e ao entorno. Atitude esta que podemos relacionar com o que Sovino diz sobre o processo artístico, Deixar-se tomar pelo prazer do instante parece ser uma prática negligenciada hoje em dia, mas há que se re-aprender a perder tempo, a estar nas coisas e com estas coisas sem nenhuma preocupação produtiva. É a intensidade deste tempo, aparentemente, lúdico que abre a possibilidade desta poética assumir-se também como o chamado exercício experimental da liberdade. Inventar novas potencialidades é uma forma consciente de liberdade e conhecimento de si. O artista não pretende nenhum tipo de ‘cura’ psicológica, mas um novo condicionamento de viver, de se relacionar e conhecer a si e os seus próximos. (SCOVINO, 2003, p. 70)

Desta forma, se faz necessário pensar a importância e a falta de possíveis espaços de “tempo livre” na escola e como a aula de artes poderia vir a ser um desses espaços - fora outros momentos de caráter ed. 5  |  dezembro 2018 223


ARTIGO lúdico e o tempo de lazer dos estudantes. Porém, compreendemos que ao falarmos de escola estamos também falando sobre horários, pois as atividades têm horários para acontecer: hora e dia marcados para “criar”. Assim, ter um horário para atividades artísticas, lúdicas, não é o suficiente. Como já foi citado, o “tempo livre” está mais relacionado à ideia de liberdade do que a de tempo cronológico. Essa atitude aqui explicitada em relação a aula de artes é a atitude de liberdade, o que tanto Vasconcellos (2009, p. 88) quanto Scovino (2003, p. 70) afirmam ser importante no campo da educação e no campo da arte, respectivamente. E é a partir desta liberdade que também pode-se compreender a importância da experiência estética na formação dos estudantes não só como estudantes, mas como indivíduos. POR UMA FORMAÇÃO SENSÍVEL Partindo da concepção de educação defendida por Duarte Jr, Toda e qualquer aprendizagem simbólica, toda e qualquer reflexão acerca da vida e do mundo, deve partir, necessariamente, da experiência vivida. Daquilo que o corpo captou de uma dada situação através dos sentidos, vale dizer, de nossa humana sensibilidade. (DUARTE JR, 2009, p.7)

É possível compreender como uma educação estética preza pelas experiências sensíveis relacionadas a uma prática de “tempo livre”, pois compreender a importância do “perder tempo”, é também valorizar as experiências de vida. Isto é, perceber que a experiência nem sempre precisa vir obrigatória ou imediatamente com um aprendizado assimilado como válido pela escola e pela sociedade. Além disso, compreendendo a importância de uma formação que não só esteja relacionada a uma valorização da experiência estética, mas que também a entende como uma aprimoração de percepções e sentimentos. Empenhar-se para uma formação sensível é buscar com a experiência estética uma nova relação com o mundo. Segundo Duarte Jr, “a experiência estética permite que nosso corpo se aprimore em suas percepções e sentimentos, descobrindo novas facetas do mundo e da 224  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


existência, ao captá-lo por ângulos novos e inusitados.” (DUARTE JR., 2009, p. 9). Isto é, quando se pensa em arte-educação, em uma relação igualitária entre esses campos de pensamento, é possível pensar também em um processo de autoconhecimento, de autonomia, de compreensão do mundo ao seu redor. Gonçalves a partir de Didi-Huberman, afirma que “(...) o que o mundo nos apresenta não é apenas o que vemos. Pode-se perceber muito mais, ou além, daquilo que se apresenta, ou seja, o que se apresenta por si só já é muito mais do que aquilo que consigamos perceber.” (GONÇALVES, 2011, p. 28). E a arte, o olhar sensível contribui para conseguirmos perceber além do superficial que nos é apresentado. Sendo constituídos dentro de uma cultura somos determinados a compreender o mundo a partir deste olhar, porém com a preservação da experiência, sem pressa, potencializando o sentir, é possível sentir o mundo. “(...) uma percepção global, direta, da situação em que nos encontramos. Ou seja: sentimento aí significa uma apreensão do mundo ainda não mediatizada nem conceitualizada pela linguagem” (DUARTE JR apud GONÇALVES, 2011, p. 29). Trata-se de uma formação sensível que se dá pela arte-educação e pela valorização da experiência estética é uma formação, não só transforma a relação do estudante com a arte, significando-a na vida, mas também a relação desse sujeito com o mundo ao seu redor. Assim não só é necessário pensar a prática do ensino de arte nas escolas, mas também a formação do profissional, do arte educador. Pois, segundo Valente, “a importância da formação do professor de Educação Artística está também no fato de que é na sua relação com os alunos que se evidenciará o conceito que ele tem de arte.” (VALENTE, 1993, p. 63). A importância da construção de um pensamento crítico em relação a sua própria formação. Além do conhecimento sobre a história da Arte-educação no Brasil e o entendimento do porquê ela se dá desta forma atualmente, é importante também as reflexões sobre a sua relação com a arte. ed. 5  |  dezembro 2018 225


ARTIGO Fayga Ostrower, artista e professora, afirma que (...) o que conta mais na sala de aula, além das informações que o professor possa transmitir, é a própria postura diante do seu fazer. Se para ele as obras de arte não representam valores de vida, estendendo-se esta avaliação à sensibilidade das matérias e das linguagens, o professor pouco terá a dar aos alunos fora receitas técnicas ou nomes ou datas - nada que toque ao essencial da experiência artística. Se, porém, para o professor, a arte representar algo de fundamental na sua vida, uma necessidade de sentir e de ser, ele haverá de transmitir sua convicção de uma maneira ou de outra. (...) É com o que de mais valioso ele poderá contribuir: em vez de mera informação, a formação do ser sensível. (OSTROWER apud VALENTE, 1993, p. 65)

Portanto, a formação sensível do estudante está também vinculada a formação sensível do professor. Pois, uma atuação comprometida com o sujeito, com sua sensibilidade e autonomia é o que Fayga Ostrower afirmaria como sendo “lealdade” (VALENTE, 1993, p. 65). E que se dá na prática do cotidiano, onde esse comprometimento está relacionado não só ao valor dado à arte, mas também ao ensino. Fayga em relato sobre sua experiência em dar um curso de História da Arte para funcionários de uma fábrica conta não somente seus objetivos, mas também a construção de relacionamento com os outros participantes do curso e como as relações não hierarquizadas e de liberdade de expressão foram importantes. Em relato a artista conta, Queria mostrar a arte como um patrimônio da humanidade e, mais, queria mostrar que a arte surge como uma linguagem natural dos homens. Todos nós dispomos da potencialidade dessa linguagem e, sem nos darmos conta disso, usamos elementos com a maior espontaneidade ao nos comunicarmos uns com os outros. Mas, continuei, se vim para ensinar alguma coisa, também vim aprender. O quê? Era difícil defini-lo no momento e em palavras. Só o poderia formular em termos de vida: eram valores humanistas, experiências que eu talvez pudesse incorporar, mais tarde, em meu próprio trabalho artístico e também, evidentemente, na

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prática de ensino. (OSTROWER, 1991, p. 27)

Desta forma, vislumbrar uma formação sensível é também repensar a atitude enquanto professor, repensar seu lugar diante da arte, da prática artística, do “tempo livre”, da liberdade de não possuir e nem ser possuído, mas também na construção do pensamento crítico. É na formação do ser sensível, através do ensino das linguagens expressivas, ‘oferecendo (aos) alunos a possibilidade de descobrirem seu próprio potencial’ (OSTROWER, 1990: 223), que o professor de arte estará colaborando para formar o sujeito que se apropriará do seu discurso e construirá sua autonomia. (VALENTE, 1991, p. 65)

CONSIDERAÇÕES FINAIS Iniciando uma discussão sobre uma atitude perante a Arte-educação que vise uma formação sensível dos estudantes este artigo buscou pensar a importância do posicionamento do arte educador diante do espaço destinado ao “tempo livre” em potencial. Isto é necessário compreender que o “tempo livre” pode ser de criação, mas pode estar carregado de autoconhecimento, liberdade, lazer é um tempo que deve ser proporcionado aos estudantes. Na lógica em que estamos inseridos, onde o estudante está acostumado com horários, perder tempo pode significar um atraso. Assim, ter a liberdade a disposição é uma escolha. Compreendendo o “perder tempo” como uma atitude de liberdade é preciso também entender que essa atitude parte do arte educador. Alguém precisa criar esse espaço de liberdade. Assim, se faz necessário pensar a relação do arte educador com a arte e com a educação, pensar na sua formação, pois essas peculiaridades de sua formação enquanto sujeito irão definir como será sua relação com o ensino e com os estudantes.

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ARTIGO Notas

1 É importante citar que Duarte Jr (2011) prioriza um primeiro momento sem nenhum tipo de mediação entre a arte e o sujeito que a está experienciando. Assim, segundo ele, esta é a forma de fruição que o educador deve priorizar e somente após esse primeiro momento deve haver mediação, discussões, complementações teóricas e afins. 2 Neste trabalho será usado o termo arte educador, pois estamos falando sobre qualquer educador envolvido com as artes e não necessariamente apenas o professor de artes.

Referencias bibliográficas BARBOSA, Ana Mae. Arte-Educação no Brasil. Perspectiva: São Paulo, 2010. DUARTE JR, João Francisco. Prefácio: O primado da experiência sensível na educação. In: FERREIRA, L. (org.). Arte de Olhar: percursos da educação. Ilion: Campinas, 2011. GONÇALVES, Tatiana Fecchio. Convergências entre arte e educação: por uma formação mais sensível. In: FERREIRA, L. (org.). Arte de Olhar: percursos da educação. Ilion: Campinas, 2011. OSTROWER, Fayga. Universos da Arte. Campus: Rio de Janeiro, 1991. MASSA, Monica de Souza. Ludicidade: a etimologia da palavra à complexidade do conceito. APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação, n. 15, ano IX. Vitória da Conquista, 2015. Disponível em: http://periodicos.uesb.br/index.php/aprender/ article/viewFile/5485/pdf_39. Acesso em 07 de agosto de 2018. SCOVINO, Felipe. A construção do lúdico e o lugar do jogo na arte contemporânea brasileira. In: Corpo em expansão - Anais do X Encontro dos alunos do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. EBA/UFRJ: Rio de Janeiro, pp. 67-72, 2003. VALENTE, Tamara da Silveira. O papel do professor de educação artística. Educar, Curitiba, n. 9, pp.59-68, 1993. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/educar/article/view/36056. Acesso em 06 de agosto de 2018. VASCONCELLOS, Tânia de. Um minuto de silêncio: ócio, infância e educação. In: MELLO, M.; LOPES, J. O jeito que nós crianças pensamos sobre certas coisas: dialogando com lógicas infantis. Rovelle: Rio de Janeiro, 2009.

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Anna Carolina Eckhardt de Medeiros Rodrigues é bacharel em História da Arte pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, licenciada em História pela Universidade Católica de Petrópolis e integrante do grupo de pesquisa Infâncias, docências e alteridade (IDA) da Universidade Católica de Petrópolis. e-mail: annacarolina.eckhardt@gmail.com Taylane Lopes da Silva é graduanda em Pedagogia pela Universidade Católica de Petrópolis e integrante do grupo de pesquisa infâncias, docência e alteridade (IDA) da Universidade Católica de Petrópolis. e-mail: taylanetaylane@outlook.com

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ARTIGO

MUSICALIZAÇÃO NO ENSINO FUNDAMENTAL II:

UM ESTUDO DE CASO, NA ESCOLA E.E. PROF. JOAQUIM LUIZ DE BRITO POR VICTOR MUNIZ Resumo: Este artigo debate sobre a importância da musicalização em salas de aulas no ensino fundamental II, utilizando-se da música como formação pedagógica, e instrumento de pesquisa para o desenvolvimento da criança em sala de aula. Com base nas oficinas de musicalização da professora Ma. Claudia Cascarelli (2012), e o embasamento teórico de Debora Alves de Oliveira (2001). A pergunta proposta nesse estudo é, (a) musicalização realmente funciona no ensino fundamental II e (b) musicalização é para todos? Um estudo de caso na E. E. Professor Joaquim Luiz de Brito, nos últimos anos do ensino fundamental. A metodologia aplicada nesse estudo foi pesquisa e estudo de caso. Palavras-chave: Musicalização. Educação básica. Ensino de Arte. Fundamental II. INTRODUÇÃO De fato, a música é parte do cotidiano de todas as pessoas. Independentemente de gêneros musicais, é incontestável a presença desse fenômeno na sociedade. A música pode ser popular ou erudita, e é 230  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


sim uma expressão de arte que carrega consigo a cultura em que está inserida, seja um grupo social, uma cidade ou uma nação, etc. Por ser uma forma de linguagem, ela interfere no modo como o indivíduo se comunica/expressa com o meio em que vive. Na educação básica não é diferente, o estilo musical setoriza determinadas expressões interpessoais nesse final de infância e início da pré-adolescência. Podemos, então, como educadores, nos apropriar dessa linguagem para aproximação de nossos alunos e trabalhar um desenvolvimento e questionamento social através da musicalização, criando um senso crítico. Por meio da musicalização, também é possível trazer uma aproximação da cultura e a noção de pertencimento de cada aluno, como também, trabalhar com as questões emocionais, que permeiam essa faixa etária. O objetivo central desse artigo é demonstrar a importância da musicalização em sala de aula e não somente trabalhar com a repetição de canções em ensaios para determinadas apresentações, e sim o estímulo e desenvolvimento benéfico que a musicalização traz para o aluno. Os parâmetros curriculares de artes (PCN) trazem a importância de propostas pedagógicas a serem trabalhadas em sala, justificada por meio de reflexões como o novo pensamento na vida dos jovens, e seu gosto musical pela própria evolução da música através da tecnologia. Nas últimas décadas tem-se presenciado a profunda modificação no pensamento, na vida, no gosto dos jovens. (...) É necessário procurar e repensar caminhos que nos ajudem a desenvolver uma educação musical que considere o mundo contemporâneo em suas características e possibilidades musicais. Uma educação musical que parta do conhecimento e das experiências que um jovem traz de seu cotidiano, de seu meio sociocultural e que saiba contribuir para a humanização de seus alunos. (PCN, 1998, pg 78 e79)

E quando a musicalidade é trazida para o ambiente escolar, na maioria das vezes trata-se apenas de decorar letras de canções e reproduzir sem nenhum envolvimento maior com a música, ou qualquer contato com instrumentos. Não é passado ao educando como se apropriar desed. 5  |  dezembro 2018 231


ARTIGO sa linguagem musical, ou mesmo, se comunicar com, e através dela. Segundo Luciene Fagundes (2014), “a música contribui para formação de seres humanos sensíveis, criativos e reflexivos e proporciona o conhecimento e a reflexão sobre a ligação entre a fantasia e a realidade.” ( FAGUNDES, 2014, p.2) O intuito desse trabalho, portanto, é trazer um olhar específico para a importância do desenvolvimento acadêmico da criança através da musicalização, e da experiência cultural que isso acarreta. Trazendo apontamentos científicos em relação ao desenvolvimento através da comunicação não verbal, e sim musicalizada, com jogos musicais, e o resgate da infância através da música em sala de aula. A partir dos referenciais teóricos da autora Débora Alves de Oliveira (2001) e das oficinas de práticas pedagógicas de musicalização da professora Ma. Claudia Cascarelli (2012), proponho algumas questões: a musicalização no ensino fundamental II realmente é para todos? Musicalizar em sala realmente é possível, ainda que em escolas sem estrutura? 1. POR QUE MUSICALIZAR? Segundo Débora Alves de Oliveira (2001), a musicalização é um processo de aprendizado da criança, já que busca deixar a criança sensível à música em si. Existe uma diferença entra a música e a musicalização, e é importante ter em mente que a música é a linguagem, já a musicalização é a experiência básica da música, é o primeiro contato que a criança tem, sendo esse de experimentação e percepção sonora, aproximando o aluno da cultura musical. Os estudos de Rafael Beling (2014) trazem a diferença entre a musicalização e a música, sendo a primeira a fala e a segunda o assunto falado. Ele também aponta que a musicalização não significa dom musical, ou seja, o aluno não nasce sabendo e não segue uma necessidade de ler e configurar códigos (partituras), a musicalização é acessível a todos e não exclusiva aos alunos com “dons” musicais. Esse processo de musicalização em sala de aula auxiliará o aluno no futuro a desen232  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


volver suas habilidades musicais, seja essa com instrumentos, cantos ou produção musical. George Snyder (1994) aponta a problemática elitista da cultura musical, como os instrumentos são muito caros, e precisam de um investimento maior, a educação musical pode se tornar elitista, principalmente em escolas de periferia por questões de verbas. Oliveira (2001) acredita que o que poderia amenizar essa desigualdade é a musicalização, ou seja, aproximar a criança da música durante sua infância no ambiente escolar, através do contato musical inicial, fazendo-se uso de instrumentos tradicionais ou confeccionados em salas de aula de maneira lúdica e artesanal. Durante o estágio na escola E.E. Professor Joaquim Luiz de Brito, pude perceber essa problemática social, a maioria dos alunos não tinha conhecimento de música, além do funk brasileiro. Ainda que o mesmo seja uma cultura de periferia, a elitização da música priva e limita esses alunos a esse único estilo musical. O processo de musicalização para esses alunos foi de caráter puramente experimental e de descoberta. A música é uma construção e comunicação entre diversos vínculos que a criança pode desenvolver, a música é parte presente da criança desde sua formação uterina, ou seja, seu processo de musicalidade vem desde sua formação biológica, segundo o artigo de Teca de Alencar Brito (2001) sobre musicalização infantil. Existe uma necessidade natural do ser humano em reproduzir sons a sua volta, quando crianças o mexer com os lábios, as cantigas de dormir, são fatos presentes na nossa formação como ser social, mas em determinado momento, como diz Snyder (1994), existe um distanciamento da música para determinadas classes sociais, decorrente do elitismo. Quando mencionamos o elitismo musical apontado por Snyder (1994), trazemos aqui a reflexão sobre a desigualdade social, não só na defasagem educacional que alunos de periferia têm. Aqui é apontado a falta de estrutura e o distanciamento que pessoas de baixa renda têm de modo geral da música, arte e cultura, devido ao fato de que os ed. 5  |  dezembro 2018 233


ARTIGO instrumentos são caríssimos e de difícil acesso, além de conservatórios completamente inacessíveis por precisarem de habilidades específicas para ingressar, e quando falamos de escolas de música pensamos também em investimentos altíssimos, que novamente são inacessíveis, já que são pouquíssimas instituições que oferecem esse ensino musical gratuito. Proporcionar aos alunos da E.E. Professor Joaquim Luiz de Brito contato com outros instrumentos como violão, teclado, além do canto e as oficinas de musicalização de Cascarelli (2012) trouxe uma nova perspectiva cultural e artística para esses alunos, estimulando a vontade de aprender novas formas de expressão. Nesse sentido, foi quebrado aqui o distanciamento não só pedagógico, mas também social. As aulas de musicalização foram de suma importância para que esses alunos de periferia pudessem ter contato com outra realidade cultural/musical, e evitar esse elitismo e afastamento das linguagens da arte, como diz Snyder (1994). 2. A MUSICALIZAÇÃO EM SALA DE AULA É importante ressaltar que o processo de musicalizar não ocorre do dia para noite, é preciso: (a) estimular a experimentação do aluno e (b) ambientar o mesmo ao processo musical, pois muitos deles, nunca tiveram contato com nenhum instrumento, dependendo da situação socio-econômica. A musicalização busca trabalhar o estímulo da criança, e a sua sensibilidade, dando uma nova linguagem para esse aluno pensar na musicalização como um processo de alfabetização musical, ou seja, que ensinar o que é música, seja por (a) meio de signos (partituras clássicas), ou por (b) significação dada pelo professor (ex: determinada pintura/cor pode significar um som). Partindo desse ponto, as oficinas de musicalização podem dar a criança um aprendizado mais acessível, por meio de jogos, brincadeiras e oficinas musicais, trazendo uma ludicidade para o ambiente acadêmico. 234  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


Quando falamos do conceito de música em sala de aula, precisamos ter em mente que a música é definida por convenções culturais e sociais (Beling 2014), por isso é importante ambientar a questão musical inicialmente à cultura daquela criança. É importante que essa criança tenha contato musical com todos os estilos e instrumentos possíveis, mas para isso é preciso ambientar essa criança através de sua própria percepção cultural do que é música. Respeitar as questões socioculturais é o primeiro passo para um bom desenvolvimento musical em sala de aula. Quando falamos que a musicalização é uma comunicação e a música é o assunto falado, precisamos usar nossa comunicação de forma sábia e coerente com a faixa etária e adaptar nossa forma de expressão, pois queremos que a nossa comunicação seja eficaz e assertiva. É importante trabalhar para essas crianças também, segundo Cascarelli (2012), oficinas e jogos musicais para que ela tenha acesso à cultura. As oficinas, que também podem ser jogos e brincadeiras, trazem uma ressignificação para a música como processo pedagógico, cria uma aproximação mais intimista do aluno com o assunto trabalhado. 3. OFICINA MUSICAL – PRIMEIRO CONTATO Durante o estágio supervisionado na escola E. E. Joaquim Luiz de Brito, o processo de musicalização em sala de aula começou através de jogos musicais, devidamente adaptados do livro Oficinas de Musicalização (Cascarelli 2012), nesse caso o funk carioca foi utilizado, por ser um estilo mais próximo dos alunos. Diferentemente do Funk americano, o funk carioca, traz uma rítmica bem marcada e muito popular desde a década de 90 nas culturas ed. 5  |  dezembro 2018 235


ARTIGO periféricas, por trazer à tona questionamentos sociais como: desigualdade, violência, facção etc, segundo o artigo da revista ‘Mundo Estranho” de Pedro Henrique Tavares (2017). Foi trabalhada em sala de aula uma oficina rítmica através da técnica de cup songs, literalmente música de copo, onde o aluno utilizava o copo, as mãos e a mesa como instrumento musical, e com isso era possível construir o ritmo que elas mais conhecem (funk carioca). Inspirada na oficina de musicalização número cinco de Cascarelli (2012). Essa primeira descoberta dos alunos proporcionou a eles uma experiência musical com pouco material. Aqui, o meio de comunicação foi o próprio corpo da criança, o copo e a mesa, e a mensagem transmitida foi o ritmo mais popular entre eles, além de estimular o contato com o próximo, por estarem juntos fazendo essa tarefa. Quando trabalhamos a musicalização em sala de aula, temos que ter em mente que a criança precisa de tempo, precisa entender o porquê de cada movimento, e conhecer os possíveis sons que cada objeto tem, e como transformar esses objetos em instrumentos. O próprio jogo cup songs faz sons diferentes quando batido na mesa, nas mãos, com a boca do copo e sua base. Essa descoberta cria na criança uma memória cognitiva e aguça a curiosidade dela para os sons de cada objeto, ajudando também no processo de aprendizado tornando essa criança mais curiosa. 4. O PROCESSO DE MUSICALIZAR NO FUNDAMENTAL II Depois que saem do ensino infantil, a partir do fundamental I, as crianças segundo Oliveira (2001), começam a se sentirem envergonhadas de utilizar qualquer tipo de som para se expressarem, já que constantemente são obrigadas a se silenciar, por falta de estímulo da escola, e em alguns casos, também dos pais. Outro ponto a ser observado, é que a musicalização deve ser trabalhada de maneira lúdica. De acordo com Oliveira (2001): Entretanto, o professor(a) deve tomar cuidado para não transformar a aula em um momento de descontração total, fazendo a criança acreditar

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que ela não está fazendo nada, além de se divertir, e acabar perdendo o foco do que é musicalizar.

Quando esses alunos chegam ao fundamental II, passaram cinco anos sendo silenciados e em sua grande maioria, eles não vivenciam a música como processo pedagógico, muito menos tiveram algum estímulo musical.

Inicialmente os alunos do Fundamental II na escola E. E. Professor Joaquim Luiz de Brito tiveram medo de trabalhar a expressão musical, muitos com vergonha do que poderiam falar, medo de fazer muito “barulho” com as salas ao lado. A musicalização desses alunos era limitada ao ouvir música com fone de ouvidos escondido dos professores, ou no pátio na hora do intervalo. Os alunos não são estimulados a nenhuma expressão musical, principalmente alunos de periferia onde geralmente seu estilo musical é o funk carioca. É preciso ter uma metodologia ativa, ou seja, colocar os alunos como peças principais em seu próprio aprendizado, levando em conta o respeito ao ambiente social dessa criança. Ter como objetivo avivar nessa criança a musicalidade que ela já tem em si, e como resgatá-la. Durante o estágio na escola E. E. Professor Joaquim Luiz de Brito, os alunos do fundamental II trabalharam a musicalização, através do ritmo com o cup songs, após esse processo de familiarização com a musicalidade em objetos inesperados como o copo, foi proposto a eles mais uma oficina de Cascarelli (2012) sobre grafismo sonoro. Essa oficina tem como objetivo explorar a percepção sonora dos instrumentos e representá-la com grafismos, seja linha, forma, cor, etc. Fizemos o uso ed. 5  |  dezembro 2018 237


ARTIGO de um celular para apresentar sons de diversos instrumentos enquanto eles representavam cada som produzido. O objetivo dessa atividade era além da percepção sonora criar uma nova bagagem musical, dando a eles conhecimento de diferentes sons e registrando-os de maneira lúdica, buscando diminuir o afastamento social do aluno da música, além de proporcionar maior conhecimento e percepção, trabalhando também o processo criativo e a imaginação. Em seguida, propus aos alunos uma apresentação para a reunião de pais, onde eles fariam um coral cantando a música “Amigo estou aqui – Toy Story”. Inicialmente apresentamos o instrumento que seria trabalhado, nesse caso o violão, foi explicado os diferentes sons que podem ser emitidos, diferentes ritmos, abafamentos, até enfim apresentar a proposta de música, e então significar cada estrofe, para que os alunos não apenas reproduzissem a música e sim, entendessem a proposta musical. Inicialmente as crianças tinha vergonha de cantar, e a maior problemática encontrada em sala de aula não foi necessariamente o decorar a letra, ritmo, mas trazer a conscientização que a musicalidade não é errada. Tirar da criança a imposição do silêncio em lugares acadêmicos foi um processo árduo, nas aulas onde trabalhávamos o canto, muitas crianças não conseguiam cantar por não estarem habituadas a serem ouvidas. Quando falamos de alunos do fundamental II, estamos falando de crianças que estão em processo de transição para adolescência. É exigido constantemente de outros professores desse ciclo o silêncio absoluto, fora a vergonha da mudança de voz no caso dos meninos, então o professor que pensa em trabalhar a musicalização no ciclo do fund. II precisa respeitar o processo e tempo de cada aluno, estimulando sua musicalização de maneira lúdica e sensível, não impondo técnicas musicais, esse não é o objetivo da musicalização. 5. PROCESSO EM AULA A música em sala de aula sofre muitas barreiras, principalmente se 238  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


o educador não se sente apto a trabalhar a musicalidade em sala. Teca Alencar (2011) também nos fala que o medo da experimentação vem do pensamento do senso comum, que afirma que a música é somente um dom e não algo a ser aprendido. Já Viviane dos Santos (2006) em seu livro sobre Educação Musical e Deficiência aponta que a música pode e deve ser aprendida por todos, desde que seja respeitada a individualidade e particularidade de cada aluno. Por ser um experimento pedagógico deve ser considerado também o psicológico/motor de cada criança, por isso é necessário trabalhar com oficinas e metodologias que respeitem a todos. Santos (2006) também nos alerta sobre a necessidade de usar a música para sensibilizar o aluno para que ele possa se desenvolver suas habilidades nas demais áreas, portanto, a música tem não somente num caráter pedagógico, mas também psicossocial. No estágio em artes visuais, o processo de musicalização experimentado na Escola Estadual Professor Joaquim Luiz de Brito, se pautou no livro de Musicalização no ensino Infantil e Fundamental da professora Claudia Cascarelli (2012), o que resultou num trabalho com oficinas de caráter pedagógico e experimental. Os alunos do 6º ano fundamental II nunca havia vivenciado em sala de aula professores que se apropriassem de música para trabalhar em sala. A própria diretora da escola apontou que nunca houve professores que houvessem trabalhado quaisquer instrumentos musicais em sala. Foram três meses de trabalho, onde discutimos o que é música, o que é som, quais são os diferentes sons, como representar cada som, até então, discutir a música que seria apresentada, a função do violão, o ritmo, voz, harmonia. Esse trabalho foi feito de maneira lúdica, pois os alunos descobriam a função de cada nomenclatura citada através da experiência e prática com base nas oficinas de Cascarelli (2012). As aulas eram feitas em roda dando mais proximidade aos alunos, que aos poucos foram se interessando cada vez mais pelo processo de aprendizado musical. Este se dava também através da prática das artes plásticas, por meio do desenho da música, a chamada partitura visual ed. 5  |  dezembro 2018 239


ARTIGO trabalhada na Faculdade FMU no curso de licenciatura em artes visuais com a professora Ma. Claudia Cascarelli e repassada aos alunos no estágio da escola estudada. O objetivo dessa prática era criar um imaginário, ou seja, um significado específico sobre o que estava sendo falado (musicalização). Essa oficina de desenho da música foi feita com a música Aquarela de Toquinho, e as crianças desenhavam partes da música e quando ela foi cantada em sala de aula, elas colocavam na lousa esses desenhos formando então a música visual, conforme a ordem sequencial que lhes foi dada. Os alunos ao entender o processo ficaram muito impressionados por ver a possibilidade de ler a música de outra forma, sem ser através de partituras, segundo eles: “bolinhas difíceis de ler”. Vale ressaltar que a ludicidade das aulas permitiram uma aproximação maior dos alunos com o conhecimento. Neste sentido, podemos afirmar que as oficinas foram de extrema importância para desmistificar a ideia de que a música seria exclusiva para pessoas com dons natos, e pessoas da elite. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Baseado nos estudos apontados e experiência em sala de aula, acreditamos que o(a) professor(a) é uma peça fundamental para a quebra do elitismo da educação musical e a musicalização permite ao aluno criar uma identidade sociocultural através da apropriação musical. Durante o processo de estágio e as aulas de musicalização muitos alunos acreditavam que a música era algo muito distante deles, seja por falta de conhecimento ou por acreditarem ser algo somente para pessoas com dons naturais (“nascença”). Cabe ao educador o papel de aproximar a cultura musical do aluno em sala de aula e desmistificar a música como exclusiva de pessoas “divinamente abençoadas”. Algumas crianças em sala de aula também descobriram aptidão para música, e em reunião de pais foi apresentado o desenvolvimento pessoal de cada aluno, o que gerou uma satisfação pessoal dos pais por terem filhos que estão se dedicando, crianças que outrora estavam dan240  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


do problemas em sala de aula por falta de comportamento, por serem muito distraídas. Por meio das aulas de musicalização elas obtiveram melhoras significativas tanto na postura quanto no desempenho acadêmico, além da gratificação não só dos pais, mas também dos alunos que ao final apresentaram a música “Amigo estou aqui” na reunião de pais. Outro ponto muito importante é que percebi, através dessa experiência, que o professor precisa estar preparado para improvisar e também buscar um preparo para a área de música, é indispensável e indiscutível a necessidade de um aprofundamento teórico, não necessariamente o professor precisa tocar algum instrumento, mas o conhecimento da história da música e suas práticas/estruturas se fazem imprescindível. Quando falamos do processo de musicalização precisamos estar cientes que estamos lidando com uma ciência onde há muitas pesquisas e teorias comprovadas que precisam ser levadas em consideração para que haja realmente um processo de aprendizado dos alunos. É importante também, que o(a) professor(a) esteja disposto a respeitar cada aluno, já que o processo de aprendizagem musical é diferente do processo de aprendizagem regular (português, matemática, etc.). Quando falamos em educação criativa é imprescindível tempo e respeito ao aluno, além dos estímulos criativos. A música se estabelece no imaginário dos alunos como algo divino, e para que esse processo seja desconstruído é necessário experimentação, inicialmente com objetos e com partes do corpo, antes de ser apresentado qualquer instrumento pronto. É interessante trabalhar também em sala de aula a construção de instrumentos musicais através de matérias recicláveis, para descaracterizar esse endeusamento da música, e para que a criança entenda todo o processo estrutural do instrumento até o momento em que ele transforma o silêncio em música. Muitos alunos chegam à aula de musicalização com medo de falar, cantar ou simplesmente de se expressar, mas com tempo, podemos ver ed. 5  |  dezembro 2018 241


ARTIGO que eles descobrem potenciais que nem mesmo nós como educadores poderíamos prever, e isso constrói neles uma autoconfiança necessária para enfrentar problemas não só sociais e da vida, mas internos. Além do mais, é importante o sentimento de gratificação pessoal de cada um ao atingir metas que, segundo eles, seriam impossíveis. Por isso, o educador precisa estar preparado e munido de conhecimentos sobre a área de educação musical, pautado também em práticas pedagógicas que incluam o brincar em sala de aula, para aproximar os alunos da musicalidade. O educador é o caminho para que esse conhecimento seja propagado e que a cultura não seja limitada, principalmente em escolas com pouco investimento na área da arte. Faz-se necessário um educador preparado para improvisar e propagar o conhecimento independentemente de condições financeiras, quebrando o medo dos alunos de se aproximar da sua própria cultura. Referências bibliográficas

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Victor Muniz é graduando do Curso de Artes Visuais da FMU-SP.

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artista da capa

Laíza Ferreira, 1988 Nascida e criada no Pará, atualmente vive em natal, RN. Trabalha com as técnicas de fotomontagem e fotografia analógica como poética de resistência e memória ancestral. Flores invisíveis ( processo em andamento) Série de colagens analógicas cujo o objetivo é transitar entre fragmentos de recortes de apropriação/desconstrução de imagens esquecidas encontradas em sebos, nas ruas e fotografias analógicas autorais de mulheres à margem, essas que diariamente são silenciadas e invisibilizadas pelo racismo estrutural. laiza.ferr@gmail.com 244  Desvio |  revista da graduação eba/ufrj


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