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Edu de Barros

Edu de Barros

Renata Lucas,Farsa, 2019.

FARSA

Ao cruzar a dimensão material dos discurso, a desconstrução do logocentrismo e a vital e fabulação da vida, a mostra , no Sesc Pompeia São Paulo, investiga desafios da língua e da linguagem, e reúne mais de 50 artistas entre Brasil e Portugal. Ao aproximar as propostas experimentais das décadas de 1960/1970 da produção de artistas que emergiram no século XXI, no Brasil e em Portugal, coloca ênfase no poder da linguagem mas também as estratégias de desconstrução da mesma, em países que compartilham uma língua que foi simultaneamente fator de opressão e vetor de liberdade. Questiona a colonialidade e unidade linguística do português, e o apagamento das línguas africanas e dos povos originários.

FARSA, LÍNGUA, FRATURA, FICÇÃO: BRASIL-PORTUGAL • SESC POMPEIA • SÃO PAULO • ATÉ 28/11

Every Hour, 2019.

BRUNO dunley ,

BRUNO DUNLEY É PINTOR: UM DOS PROTAGONISTAS ESSENCIAIS DA GERAÇÃO DE PINTORES QUE DESPONTOU NO BRASIL NO INÍCIO DO SÉCULO 21. A COMPLEXIDADE E RIQUEZA DE SUA OBRA - SUA VARIEDADE E CONSISTÊNCIA - LHE CONFEREM UMA SINGULARIDADE NOTÁVEL

POR LILIAN FRANÇA

AS DESSEMELHANÇAS ARTICULADAS DE BRUNO DUNLEY

Analisar o discurso da exposição , de Bruno Dunley, em meio a uma desconcertante pandemia, requer compreender a dinâmica de produção de sentidos inserida nos suportes continentes da expressão do artista. As paredes da Galeria Nara Roesler se revestem de convites à reflexão, mediados pelos gestos fortes e incisivos, apresentados em diálogo direto, provocado pela disposição das telas em uma configuração que conduz a um percurso de graduais desestabilizações e à sensação de que é necessário rever o conjunto após cada quadro. O artista, jovem, carrega na bagagem o “Projeto Piauí”, a experiência junto ao Grupo 2000e8, as angústias de quem precisa lidar com a pretensa morte da pintura e seu renascimento, a realidade da constante formulação de novos vocabulários eletrônicos digitais emuladores de imagens.

As asas, 2015. Fotos: Galeria Nara Roesler.

Abaixo: O Fuzileiro, 2019. À direita: Sem título, 2014. Fotos: Galeria Nara Roesler

Nesse turbilhão, os tons de cinza, antes marcantes, cedem espaço em a uma profusão de cores, fruto do otimismo em contraponto ao caos ordinário que Bruno Dunley evoca ao selecionar as obras para a mostra. Em , a visão em detalhe (Figura 4) descortina um espaço interpretativo que dilui o conflito e lança luz, na medida em que parece conduzir o olhar para um futuro, ainda que distante e precedido por formas mais ou menos complexas que preenchem o intervalo entre os planos perspectivos. Uma chamada mais intimista à decifração se apresenta nos pequenos formatos (29,7 x 21 cm) cravados de letras que se destacam por sua característica gráficovisual, sem remeter, diretamente, ao léxico, como acontece em (2017) e (2018).

Acima: Agenda, 2017 e Bombshel, 2018. À direita: Picadilha, 2019. Fotos: Galeria Nara Roesler

A narrativa mostra um momento de ebulição, capaz de provocar uma dança dos sentidos, alternando a flicagem de cores complementares com o equilíbrio cromático, desafiando o fluxo lógico aristotélico do pensamento. Aquilo que poderia indicar uma leitura óbvia, leva de súbito ao desvio instigado ora pelo título ora pela cortina de matizes que parecem transparecer um “não sei quê” de provocação, como ocorre em (2019). Em um breve vídeo em que comenta , Bruno Dunley destaca que são três os eixos centrais que o alimentaram na produção e seleção dos trabalhos expostos: o deslocamento, o conflito e a expansão. Os conceitos fundadores por ele propostos mesclam trajetórias pessoais, de seu universo micro, ao campo macrossocial, tomando como partido as mudanças, os ruídos e as interferências, a liberdade criativa que vai ganhando consistência com a maturação de seus exercícios pictóricos ao longo dos anos.

Págs. 16 e 17: Virá, 2020. À esquerda: Jokerman, 2019. Fotos: Galeria Nara Roesler.

(2019) reúne traços de musicalidade e formas que, coringas, oferecem pistas de leitura desse grupo de composições unidas antes pela diferença e pelo distanciamento do que pela contiguidade. (2020), por sua vez, tela que dá nome à mostra, condensa a transição entre os estados de alma do artista, sintetiza as qualidades pictóricas adquiridas, ao mesmo tempo em que revela uma construção metódica de um fundo-base filigrânico, ponto de partida para o roteiro proposto (Figura 9). O motivo central se abre, explode de forma rizomática em direção às bordas da tela, em uma ilusão de movimento resultante do aumento do volume expressivo e da liberação de energia que a fricção entre o figurativo e o abstracionismo – formal e informal – propiciam. Um encontro de ideias com potencial ígneo, materialidade loquaz e provocadora possibilitam a fruição pelos caminhos abertos por Bruno Dunley, para além dos momentos escorregadios que nos afligem e rumo aos azuis que hão de voltar.

BRUNO DUNLEY: VIRÁ • GALERIA NARA ROESLER • SÃO PAULO • 30/09 A 21/11/2021

Lilian França é Pós-Doutorado em História da Arte pelo IFCH/UNICAMP e membro da ABCA e da AICA.

Venice, the Bridge of Sighs, 1840. © Fitzwilliam Museum, Cambridge.

JMW turner ,

UM DOS MAIORES ARTISTAS DA GRÃBRETANHA, JMW TURNER VIVEU E TRABALHOU NO AUGE DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL. O VAPOR SUBSTITUIU A VELA; A FORÇA DA MÁQUINA FOI SUBSTITUÍDA PELA MÃO DE OBRA; AS REFORMAS POLÍTICAS E SOCIAIS TRANSFORMARAM A SOCIEDADE. MUITOS ARTISTAS IGNORARAM ESSAS MUDANÇAS, MAS TURNER ENFRENTOU ESSES NOVOS DESAFIOS E TRANSFORMOU A MANEIRA COMO PINTAVA PARA MELHOR CAPTAR ESTE NOVO MUNDO

POR MARIA TERESA SANTORO DÖRRENBERG

Apesar da pandemia, o Tate Britain, em Londres, retoma sua programação para este ano, apostando na volta do público aos museus. é o título da retrospectiva, aberta de 28 de outubro 2020 até 7 de março de 2021. Organizada por um grupo de curadores, o Tate Britain teve também a colaboração do Kimbell Art Museum e do Museum of Fine Arts de Boston. A exposição de um dos maiores artistas britânicos conta ainda com a exibição de três filmes em que o especialista em aquarela, Mike Chaplin, introduz e desvenda como Turner trabalhou a linha, o tom e a cor. Chaplin apresenta as técnicas específicas de aquarela com que o artista trabalhava. Aliás, merece o prefixo de megaexposição, com a seleção de 160 trabalhos mais importantes do artista, exibidos em seis salas do museu, apresentando desde os trabalhos iniciais dos tempos de juventude, em torno dos anos 1790,

Peace - Burial at Sea, 1842.

Acima: The Field of Waterloo, 1817. À direita: The Northampton Election, 6 December, 1830-31 e Venice, the Bridge of Sighs, 1840. © Fitzwilliam Museum, Cambridge.

retratando os signos de seu tempo, as telas do período de guerra e posterior a ela, revelando as criações que refletem o pensamento moderno do artista, documentando às causas políticas, culturais e sociais que abraçou em seus quadros, a velocidade e a técnica da máquina a vapor que suas telas estampam, até a sua última fase adulta e mais madura e independente, a do pintor moderno nos anos 1840 e 1850. A exposição contempla ainda os cadernos de esboços, encontrados na casa dele depois de morrer, e apresentados nessa exposição pela primeira vez. São aproximadamente 300 pequenos que Turner começou a escrever aos 21 anos de idade e mostram como o pintor registrava o que via e retrabalhava seus esboços, servindo de memória para suas futuras produções artísticas. Tais esboços evidenciam para o visitante os estágios de desenvolvimento do pintor na prática de seu trabalho. A tela (O Temerário Navio de Guerra), de 1839, por exemplo, é apresentada ao lado do esboço preparatório que o artista fez nos cadernos. Os dois momentos evidenciam o estudo anterior imaginado por Turner, mostrando as diferentes composições que ele pensou em retratar. No esboço, os

Untitled, 2012. Courtesy Stieglitz19 and Ren Hang Estate.

The Fighting Temeraire tugged to her last berth to be broken up, 1838. © National Gallery, London.

claros vapores aparecem em evidência e o navio ao longe vai esvanecendo. Na pintura a óleo, o Navio Temerário fica evidente em plano principal. No verso da tela, aparecem versos escritos pelo artista. Na parte legível lê-se “ ” (que poderia ser traduzido por: envergonhado de sua desgraça), fazendo referência à venda do navio Temerário para recuperar o valor da madeira do casco. Tão britânico quanto uma xícara de chá, Joseph Mallord William Turner, mais conhecido como William Turner, nasceu em Londres, em 1775, e faleceu na mesma cidade em 1851, sendo considerado um precursor da modernidade porque retratou, como poucos da época, sua curiosidade pela vida, pelo mundo e pelas ideias de seu tempo. Depois de concluir a escola, Turner prosseguiu os estudos de arte na Academia Real, aprofundando sua habilidade com o pincel e o lápis, fazendo esboços de esculturas antigas, copiando trabalhos de outros artistas e experimentando ainda o desenho técnico relacionado à arquitetura. A variedade

Acima: The Fall of Anarchy c.1833–4, Tate. À esquerda: War, The Exile and the Rock Limpet, 1842.

e a curiosidade do artista atestam sua necessidade de aprofundar o conhecimento, atuando não só como excepcional pintor, desenhista e mestre da aquarela, mas também como poeta e posteriormente acadêmico (a partir de 1802), trabalhando com os alunos as técnicas da perspectiva e de sua prática artística com as paisagens que retratou. Vivendo no contexto romântico do século 19, foi também um gravador e aquarelista, aprofundando e refinando sua técnica e se consagrando como mestre da atmosfera, com dramáticas representações de paisagens e cenas históricas do século 19 que buscam o efeito emocional do observador e antecipam as pinturas e o movimento impressionista posterior. Integrante da Royal Academy, junto com seus conterrâneos desde 1790, Turner viveu em tempos turbulentos, de revoluções e lutas de independência pelo mundo. Testemunhou ainda a explosão do capitalismo, a transição da mão de obra humana para a mecanização e importantes reformas políticas, científicas e culturais que

transformaram a sociedade e criaram um mundo novo. E seu trabalho reflete tudo isso com energia, transportando para a tela tais temas em cor e luz, criando uma linguagem visual que melhor captasse tais mudanças e esses novos tempos. Engajado com as mudanças à volta dele, retratou em suas pinturas a brutalidade exercida sobre os escravos, seus navios e naufrágios, a guerra entre seu país e a França de Napoleão, a morte e o caos restante das batalhas, envoltos em tempestades, sombras e vapores, além da fragilidade e precariedade do ser humano em forma de revolucionárias cenas. Nos quadros mais sombrios, em que mostra a catástrofe, a dizimação e a violência do ser humano, aproxima-se do tema religioso de Hierônimus Bosch, da imagem do sofrimento e da morte do inferno de Bosch, enquanto nas paisagens procura o poético mais romântico, da atmosfera mais fantástica e iluminada, como quando retrata a Veneza visitada. Fascinado pelo impacto que a industrialização e a tecnologia provocaram, foi o primeiro artista a trazer à arte, à academia e ao público a mania da máquina, uma novidade de sua época, mostrando em (Chuva, Vapor e Velocidade), pintura de 1844, a grande linha oeste ferroviária da Inglaterra. Com rápidas pinceladas, sem se preocupar com a perfeição, afasta-se das tendências de seu tempo à procura de um estilo, do momento e do instante, dos contrastes

À esquerda: The Disembarkation of Louis-Philippe at the Royal Clarence Yard, Gosport, 8 October 1844, 1844-45. Abaixo: Rain, Steam and Speed , 1844.

entre o claro e o escuro, das misturas de cores, às vezes interferindo diretamente na tela com a mão, assoprando e cuspindo no trabalho, imprimindo assim sua marca visual que surpreendeu seus contemporâneos pelo equilíbrio entre o tema e a forma, e apontou o caminho do mundo moderno. Também apelidado de mestre da luz, manteve a rotina de viajar no verão, pintando, desenhando e anotando as cenas escolhidas, e trabalhar no estúdio nos meses mais frios. Diversificou ainda seus temas, com foco na literatura, na história e na mitologia, sem deixar de lado a paixão pelas paisagens luminosas das montanhas e das marinas inglesas por onde passou. Nos anos de 1820 e nos posteriores, ampliou horizontes viajando para outros países e outras paisagens europeias, de onde buscou e retratou os momentos históricos e as impressões mais relevantes. O Tate, sempre britânico e atual, abre seu espaço para lembrar um pintor que viveu momentos históricos, políticos e sociais difíceis e, como artista, usou a criatividade para enfrentar as agruras de sua época, propondo outro modo de ver o mundo e uma nova estética na pintura. Assim, dialogando com Turner e o presente incerto e temeroso do vírus que experimentamos, a megaexposição propõe ao visitante uma reflexão sobre nossa atual e frágil realidade como inspiração para futuras mudanças e novas criações.

Maria Teresa Santoro Dörrenberg vive em Colônia, Alemanha, é escritora, curadora e pesquisa o corpo na arte, nas mídias e tecnologias contemporâneas.

Snow Storm - Steam-Boat off a Harbour’s Mouth, 1842.

JMW TURNER: TURNER’S MODERN WORLD • TATE BRITAIN • REINO UNIDO • 28/10/2020 A 7/3/2021

J’acusse, 2017. Fotos: Dih Lemos e Gui Gomes.

attia, KADER

O ARTISTA FRANCO-ARGELINO KADER ATTIA, EXPÕE PELA PRIMEIRA VEZ NA AMÉRICA LATINA, NO SESC POMPEIA, OBRAS INÉDITAS E TRABALHOS EMBLEMÁTICOS DE SEUS 20 ANOS DE PRODUÇÃO

POR TEREZA DE ARRUDA

Kader Attia nasceu em 1970, na França, reside na Alemanha e seus pais são imigrantes provenientes da Argélia. Essa transição entre duas culturas referenciais de sua biografia chamou a atenção dele para o universo sócio-político-cultural dos contextos onde vive e percorre no âmbito de sua atuação como pesquisador, observador e protagonista da arte contemporânea internacional. Por questões políticas, ele não vive na Argélia, mas essa temática o acompanha e influencia sua percepção de história, tempo, corpo, crença, herança e violência. Além disso, o conflito da identidade cultural e religião no âmbito da migração também o intriga, pois surge de sistemas autoritários, colonialistas e mandatários. é sua primeira mostra na América Latina e, para satisfação do público, uma mostra ampla que pode ser vista como o compêndio de sua carreira desenvolvida nos últimos 20 anos. Sob curadoria da alemã Carolin Köchling, houve uma adaptação expográfica do Galpão do SESC Pompeia para abrigar, em sete salas distintas, a diversidade da obra de Kader Attia apresentando instalações, fotografias, esculturas e obras sobre suportes distintos, sendo que algumas delas são inéditas

Untitled, 2017. Fotos: Kader Attia.

concebidas para essa exposição. Expor no Brasil sempre foi uma das ambições do artista por observar há tempos a evolução histórica deste gigante País repleto de diversidade, multiculturalidade, herança colonial, vestígios de uma ditadura recente e com uma democracia fragilizada vigente. soa como uma tentativa predestinada a ser frustrada de aprimoramento de algo irreversível. Certamente, enquanto não houver a tentativa, nunca haverá a possibilidade ou mesmo a intenção de rever algo inicialmente inconvertível. Kader Attia atua, porém, como um incansável decodificador e moderador de contextos díspares que foram nos últimos séculos sobrepostos em camadas de vivências aleatórias resultantes da obrigatoriedade de suas relações sociopolíticas e em grande parte impostas. Em sua vasta perspicácia, é ciente de que os contextos por ele tematizados em sua obra existem concomitantemente, mas respaldados em perspectivas diversas como dois lados de uma mesma moeda. A partir de sua investigação, tornou-se ciente de que há diferenças fundamentais entre a ideia de reparação no mundo ocidental em contraponto ao mundo não ocidental. Esse tema o acompanha há anos e foi

Holy Land, 2006.

foco da monografia , lançada em 2014, na qual o artista desenvolveu, em nove capítulos, amplos diálogos e narrativas com autores a partir da obra de Kader Attia ou de textos emblemáticos de filósofos, historiadores, pesquisadores e críticos de arte desde o início do século passado até a atualidade. Somente essa revisão e tematização de ordem horizontal podem guiar a sociedade atual ao caminho de reparos essenciais. Nesta publicação em diálogo com o cirurgião francês Bernard Mole, que já atuou na África, Kader Attia revela o início de seu interesse pelo ato de reparo no sentido amplo de reparação, de compensação, indenização tanto moral quanto financeira, assumindo a responsabilidade por um ato ilícito de terceiros. “A questão do reparo é agora um foco principal em minha pesquisa artística. Pensei nisso depois de observar um simples pedaço de ráfia que um amigo me deu no Congo, em 1997. O curioso dessa tanga tradicional é que ela é salpicada com pequenos remendos de tecido ocidental, que lembram o tecido Vichy (guingão). Durante anos, pensei que esses elementos eram apenas decorações com uma estética inesperada, pedaços de material oriental moderno adicionados como uma espécie

de transplante em um pedaço de pano tradicional africano. Um dia, virei esse item ambivalente e descobri que atrás de cada remendo havia um buraco causado pelo uso excessivo. As manchas são, na verdade, sinais de um ato estético e ético: é um reparo. A partir de então, passei minha vida procurando esses sinais. Isso me permitiu descobrir a complexidade da reparação, nas sociedades tradicionais extraocidentais e também nas sociedades ocidentais modernas. Objetos, máscaras, danos físicos intencionais ou não intencionais, todos vêm de uma intenção de reparar que muda de uma cultura para outra”.

Asesinos ! Asesinos !, 2014.

A instalação , exposta pela primeira vez na 57ª Bienal de Veneza, em 2017, faz parte da mostra atual no SESC. Além de ser uma de suas obras mais emblemáticas, ela traduz visualmente o ato do reparo ao apresentar bustos de madeira entalhados a partir de fotografias de veteranos que lutaram na Primeira Guerra Mundial e sofreram lesões faciais. O que à primeira vista nos choca pelos rostos deformados e refeitos é apenas a ponta de um . Esses retratos são a metáfora de sequelas, traumas e dramas de guerras retratados com base na pesquisa e na concepção do artista com relação a conflitos históricos pós-

J’Accuse, 2016. Fotos: Kader Attia.

coloniais. Não somente a história passa a ser revista, mas também os efeitos do trauma material e imaterial sobre o indivíduo e a sociedade em geral. Já na obra , torna-se visível a troca de bens culturais, os quais passaram por exemplo a serem assimilados em sociedades colonizadas pelo mundo ocidental. Materiais e objetos típicos do universo do colonizador passaram a fazer parte do universo do colonizado. Fotografias e objetos são colocados lado a lado para ressaltar a importância, por exemplo, dos ornamentos femininos, como broches antigos, a testemunhar o papel que exerciam no processo de interferência de colonização à busca também de uma perfeição e estética idealizadas. Não era uma mera troca de bens culturais, mas uma tentativa de reparo pela assimilação aos preceitos e estética ocidental. Já a videoinstalação soa como um alerta à destruição da natureza, a exemplo do risco que assola a Amazônia e o Pantanal pelas queimadas e o desmatamento irregular. Neste vídeo, tem-se o som de pássaros, manaquins azuis provenientes do Brasil, Paraguai e da Argentina, que desenvolveram a aptidão de imitar o som, entre outros, de motosserras, objeto invasivo e presente em seus cotidianos. Este é o resultado de uma vasta pesquisa de Kadar Attia quanto ao tema da reapropriação, considerando que ela seja parte efetiva também do reparo no processo de assimilação. Para ele, esta é uma evolução problemática conectada ao ato da repetição, transmissão ou mesmo educação. Os pássaros desse vídeo exemplificam esse contexto e nos provam que, a partir do momento em que eles imitam o som das motosserras, estão se reapropriando de um elemento superior existente na natureza – o qual, na verdade, é um intruso indesejado. Contudo, os pássaros se adaptam a esse novo universo e entoam o mesmo som em uma tentativa de sobrevivência, como uma camuflagem a resistir ao avanço do perigo da destruição.

A complexa temática abordada por Kader Attia não se esgota e não se repara, ela também não se transforma. Suas correlações entre humanidades e objetos culturais, arquitetura, gênero e natureza, bem como os efeitos do trauma material e imaterial sobre o indivíduo e grupos sociais, fazem parte da responsabilidade e conscientização sociocultural de rever e reparar danos causados por abusos de poder e ideologias. Instituições culturais e museus renomados mundialmente se deparam atualmente na revisão de sua existencialidade, potencialidade e função. Um exemplo é o Museu Humboldt Forum, a ser inaugurado em dezembro deste ano, na região central de Berlim, como um centro para arte, cultura, ciência e educação baseado no acervo de arte não europeia da Fundação Prussiana. Ele tende a seguir a diretriz de projeto de vida de Alexander von Humboldt: a ideia de uma visão holística do mundo. Porém, hoje é seguro dizer que esta visão não pode existir somente a partir da perspectiva eurocentrista, mas evoluir a partir de um diálogo bilateral, a fim de evitar ainda mais irreparáveis reparos emergenciais futuros.

Abaixo: Artificial Nature, 2014. À direita: Ghost, 2007.

KADER ATTIA: IRREPARÁVEIS REPAROS • SESC POMPEIA • SÃO PAULO • 20/10/2020 A 30/1/2021

Tereza de Arruda é historiadora de arte formada pela Universidade

Livre de Berlim. Curadora convidada da Kunsthalle Rostock desde 2016,

Bienal de Curitiba, de 2009 a 2019, e da Bienal de Havana desde 1996.

La récompense de la devineresse, 1913. © Artists Rights Society (ARS), New York / SIAE, Rome. © ADAGP, Paris, 2020.

A RETROSPECTIVA PINTURA METAFÍSICA TRAÇA O PERCURSO E AS INFLUÊNCIAS ARTÍSTICAS E FILOSÓFICAS QUE ALIMENTARAM O ARTISTA GIORGIO DE CHIRICO QUANDO DESCOBRE AS VANGUARDAS PICTÓRICAS DO SEU TEMPO. DE FORMA INÉDITA, SERÃO DESTACADAS AS LIGAÇÕES DO PINTOR COM OS CÍRCULOS CULTURAIS E LITERÁRIOS DE PARIS

POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA E PAULO ROBERTO AMARAL BARBOSA

Um dos mais sofisticados pintores do século 20, Giorgio De Chirico é dono de um percurso marcado pela criação da pintura metafísica – algo que está para além da vida; qualquer coisa que extrai da obra de arte o mais profundo, o silêncio, a presença que se dá pela ausência. Agora, ficou difícil? Não se nega, há bastante complexidade nas referências do artista. Por esse e outros motivos, é imperdível a exposição , que acontece nesta temporada, no Musée de l’Orangerie e, depois segue para o Hamburger Kunsthalle. E por que a mostra é excepcional? Porque nessa busca “pelo que está além do que se vê”, a exposição traz as influências artísticas e filosóficas que servem ao artista. Mas, o inovador da mostra está em recriar as viagens do pintor, levandoo de Munique a Turim, depois a Paris, onde ele se aproxima das vanguardas e, por último, Ferrara, onde surge a Escola Metafísica.

Composition métaphysique, 1914. © ADAGP, Paris, 2020.

L’incertitude du poète, 1913. Photo © Tate, Dist. RMN-Grand Palais / Tate Photography. © ADAGP, Paris, 2020

A exposição, como uma grande “viagem”, enfatiza os vínculos do pintor com o escritor e crítico Apollinaire e, posteriormente, com o Paul Guillaume. Um detalhe importante: a mostra também é apresentada através de um virtual, reunindo uma seleção de obras que elucida o percurso. Porém, com ousadia, faremos aqui o nosso próprio diário de bordo – que os curadores nos perdoem, mas, na verdade, esse itinerário metafísico tem como ponto de partida Volos, região da Tessália, terra natal de Giorgio De Chirico. Em terras gregas, ele teve as primeiras aulas com mestre Mavrudis, exímio desenhista e funcionário da ferrovia Atenas-Salônica. No seu , De Chirico diz que, quando estava na companhia do mestre, “vagava por um mundo quimérico de coisas fantásticas”. Após as lições de Mavrudiz, o jovem teve aulas com os mestres Barbieri e Gilleron até ingressar no Instituto Politécnico de Atenas, onde estudou quatro anos de desenho e iniciou na pintura com o retratista Jacobidis. Andrea De Chirico, seu irmão mais novo, formou-se em piano e composição no conservatório de Atenas. A morte do pai de De Chirico, em 1905, causou imensa transformação na vida da família, que saiu de Atenas para Munique. Porém, no entremeio, a família fez uma pausa em Florença, onde permaneceu até 1906. É uma temporada de visitas a museus e galerias de arte, onde as obras de artistas, tais como Tintoretto, Ticiano, Veronese, Segantini e Previati, impressionam o aspirante a pintor. Em Munique, De Chirico se revezava entre as aulas da Academia e o estudo de pintura antiga na Pinacoteca. A cidade neoclássica, de espaços alargados e pequenos acostamentos, influenciou seu estado de ânimo. Ele passeava por Munique observando as obras de Bröcklin, Lenbach, Dürer, Rubens, Nazareni, Von Marées e Menzel. Admirava Wagner, enquanto Andrea estudava com Max Reger, considerado o “II Bach moderno”.

Sérenade, 1909. © ADAGP, Paris, 2020.

À época, De Chirico descobriu Nietzsche e Schopenhauer. Os conceitos de Nietzsche do super-homem, o valor da surpresa transmitida pela obra de arte, a angústia do labirinto, o significado da , o nascimento da tragédia e, sobretudo, o enigma, formaram um universo a ser explorado pelo jovem pintor. Ele iniciou uma temporada de muita produção. Fez suas primeiras telas, explorando temas brocklianos: cidades marinhas, centauros e sereias – em todos os trabalhos, o tom romântico predomina. Ele também pintou seu primeiro autorretrato, daí surgiram temáticas desenvolvidas por toda a vida dele: a melancolia, expressa no modo como a cabeça posa sobre o braço, em uma óbvia referência ao retrato de Nietzsche, e o enigma, proposto no título da obra e remete ao templo de Delfos e ao mito de Apolo. Em 1910, seu irmão Andrea seguiu para Paris. De Chirico e a mãe retornaram à Florença. As crises de melancolia e as cólicas intestinais que o acompanham se acentuaram e, inversamente, sua produção se intensificou. É o fim do período brockliano e o início da melancolia das tardes de outono. Nos seus escritos, o artista diz que uma obra de arte somente pode surgir da revelação – aqui um traço de Schopenhauer. Para esse filósofo, as ideias originais e extraordinárias nascem do isolar-se do mundo por alguns momentos, assim, de modo completo, os fatos comuns se apresentam como novos e desconhecidos – eles revelarão sua verdadeira essência. De Chirico transporta o mecanismo de isolamento, estranhamento e revelação do universo filosófico para a pintura.

À direita: Le voyage sans fin, 1914 e Pomeriggio di Arianna Ariadnes Afternoon. © ADAGP, Paris, 2020.

À esquerda: Lénigme dun après midi dautomne, 1910. The Red Tower, 1913.

Em uma passagem rápida por Turim, em um verão muito quente, De Chirico se impressionou com as praças italianas. A arquitetura e a atmosfera da cidade deserta eram as inspirações para sua produção parisiense. Ele chegou à cidade na noite de 14 de julho de 1910, e estava novamente doente e em depressão. De imediato, tomou conhecimento do e, incentivado por Calcovoressi, um crítico musical amigo de Andrea, inscreveu-se no salão. Apresentou os trabalhos produzidos em Florença: , e o , com dedicatória nietzschiana. O encontro com Apollinaire foi o incentivo para sua participação, no ano seguinte, no . Dessa vez, apresentou as telas: , e . Apollinaire acompanhava De Chirico, apresentando-o “aos que interessam em Paris”, entre eles, Picasso, Braque, Mancusi, Derain e Max Jacob. Em novembro de 1913, o pintor exibiu, no , as obras , , – esse foi seu primeiro trabalho vendido. Nesse período, Andrea adotou o nome de Alberto Savinio para se distinguir de De Chirico e homenagear Apollinaire – isso porque há o polígrafo Albert Savine em uma de suas crônicas literárias. Juntos, os irmãos frequentaram o restrito círculo cultural parisiense, que reconheceu a originalidade de seus trabalhos. Também nessa época, Paul Guillaume adquiriu alguns trabalhos de De Chirico e manifestou seu interesse em ser seu . A produção de De Chirico é abundante: visões arquitetônicas, praças italianas, estátuas solitárias, manequins e suas primeiras naturezas-mortas.

Portrait (prémonitoire) de Guillaume Apollinaire, 1914. © ADAGP, Paris, 2020

Porém, a festa estava prestes a acabar. No ano de 1914, em Paris, trabalhava-se pouco. Amigos e conhecidos desapareceram atendendo à convocação militar. Muitos voltaram aos seus países de origem, imaginando que cumpriam um dever. A atmosfera era muito tensa, os pintores se recolhiam. De Chirico teve uma experiência profética: retratou Apollinaire como “homem-alvo”. Pouco tempo depois, no , o poeta foi ferido justamente onde o pintor marcava uma circunferência, como um alvo, em sua cabeça. No verão, ele regressou à Itália, passando em revista em Florença, onde foi destinado ao 27º regimento de infantaria de Ferrara. Seu frágil estado de saúde causara sua transferência para um convento, espécie de hospital militar para convalescentes. Lá, conheceu Carlo Carrà – ambos com saúde debilitada. Essa condição propiciou aos dois a continuidade do exercício da pintura. Carrà recém-abandonara o futurismo e buscava por uma arte mais estável e monumental voltada à tradição italiana. Momentos antes da guerra, o futurismo representava a modernidade – era uma estética inspirada no nascimento das cidades industriais, no mito do progresso, na velocidade e na energia das máquinas. Para Carrà e outros artistas italianos, esses ideais não mais eram suficientes.

© ADAGP, Paris, 2020. Les deux sœurs (L’ange juif), 1915.

Ao se deparar com os trabalhos de De Chirico, ele entendeu que aquela era a pintura que estava à procura. Carrà expôs suas telas metafísicas, em Milão, em 1917. De Chirico expôs seus trabalhos metafísicos em Roma, em 1919, mas lembremos de que sua produção já era bastante conhecida na França. No mesmo ano, foi publicada a , revista dominada pela tendência metafísica. O número duplo, de abril e maio, guardava a mais completa exposição do ponto de vista da Escola Metafísica, com artigos de Carrà, Savínio e De Chirico. Nesse número da revista, De Chirico sustentava que a ideia da pintura metafísica era atingir uma realidade visionária na qual o pintor trabalha em um estado de devaneio. Carrà e De Chirico não estavam interessados em sonhos, mas no fenômeno mais intrigante das associações que nascem das observações cotidianas. A concordância entre eles não durou muito tempo, De Chirico acusou Carrà de ter assumido a autoria da pintura metafísica, ignorando que suas telas pintadas antes da Guerra já haviam sido consagradas metafísicas. Os trabalhos dessa escola, a série de “enigmas”, de De Chirico, datam da década de 1910. Porém, o termo somente surgiu em 1915, quando ele encontrou Carlo Carrá. Assim, a arte metafísica se desenvolveu entre 1910 e 1917, graças a De Chirico e Carrà, sendo conceituada

como um estilo no qual vistas de cidades, paisagens desoladas, figuras solitárias e estranhas naturezas-mortas eram dispostas como se não pertencessem ao mundo físico. Houve cisões entre as pinturas metafísicas de De Chirico e Carrà: o primeiro estava fascinado pelo presságio do desconhecido e, o segundo tendia a uma espécie de reflexão passiva. Carrà exaltava a perfeição impessoal das formas ordenadas, em contraposição as de De Chirico, que retratavam sempre obsessões enigmáticas. Para De Chirico, a obra de arte imortal devia abandonar por completo os limites do humano. Os elementos clássicos da pintura italiana somados à evocação de lugares, especialmente, Ferrara com suas amplas perspectivas, brancas e desertas, levaram o pintor a um mergulho em sua alma que, por sua vez, o conduziu inevitavelmente a uma arte metafísica. Nessa busca “pelo o que está além do que se vê”, juntam-se Giorgio Morandi, Atanásio Soldati, Filippo de Pisis, Gino Severini, entre outros. Como movimento, a Escola Metafísica durou poucos anos. O caráter onírico desse universo pictórico antecipou alguns aspectos do repertório surrealista, cujo precursor era o próprio De Chirico, além de influência sobre certos aspectos do e do pós-modernismo Assim, o “nomadismo” de De Chirico proporcionou o conhecimento. São muitas cidades: Volos, Antenas, Munique, Paris, Roma, Florença, Turim e Ferrara. Todas elas são relevantes para a construção de suas referências. No fim, a “viagem” pelo percurso estético de De Chirico mostrou suas ressonâncias para além de sua época.

Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela ECA USP (2008). Professora do CELACC ECA USP, membro da ABCA e pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes. Autora do livro Schenberg: crítica e criação (EDUSP, 2011).

Paulo Roberto Amaral Barbosa é doutorado em Artes Visuais - ECA USP (2011). Chefe da Divisão Técnico-científica de Acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.

GIORGIO DE CHIRICO • LA PEINTURE MÉTAPHYSIQUE • MUSÉE DE L’ORANGERIE • PARIS • 16/9 A 14/12/2020

Les poissons sacrés, 1918. © ADAGP, Paris, 2020

mundo DO

TOMÁS ,esson

COM UMA RIGOROSA FORMAÇÃO ACADÊMICA IMBUÍDA DA TRADIÇÃO DO GROTESCO, AS VÁRIAS SÉRIES DE PINTURAS DO ARTISTA CUBANO TOMÁS ESSON CONVERGEM EM UM ESTILO REPLETO DE ENERGIA, HUMOR MORDAZ E NARRATIVAS EVOCATIVAS

POR REDAÇÃO

é a primeira exposição individual do artista cubano Tomás Esson (n. 1963, Havana) apresentada em um museu. A mostra oferece pinturas realizadas ao longo de trinta e cinco anos e reúne seus primeiros trabalhos produzidos entre 1984 e 1989, sua série de meados dos anos 1990 e suas paisagens mais recentes. Também está em exposição um novo mural encomendado que traz a série e uma releitura de uma instalação pictórica antiga produzida pela primeira vez em Havana em 1988. Esson se formou no Instituto Superior de Arte de Havana em 1987. Sua obra apareceu em várias exposições polêmicas no final dos anos 1980, quando surgiu como a principal figura do chamado “renascimento da arte cubana” daquela década e passou a expor internacionalmente. Em 1990, saiu de Cuba e desde então mora em Miami e Nova York. Sua obra consta em grandes coleções públicas, incluindo as do Whitney e do Museu de Arte Contemporânea de Monterrey.

Tomás Esson iniciou sua carreira artística na convulsiva Havana dos anos 1980. Ganhou notoriedade por sua obra, muitas vezes povoada de criaturas sexualizadas e monstruosas, e pelas críticas à hipocrisia que percebia na sociedade cubana e seus projetos revolucionários. Como resultado, em 1988, as autoridades cubanas ofereceram sua primeira exposição em Havana. Particularmente escandaloso o quadro intitulado (1987), em que dois seres monstruosos se entregam a um vigoroso abraço sexual diante do retrato do herói revolucionário Ernesto “Che” Guevara, que se destaca pela pele morena. Durante este período, Tomás também produziu uma figura talismã composta de dois chifres e uma porção retorcida de carne brilhante que se tornaria um tema recorrente em muitas de suas pinturas. Embora tenha continuado expondo tanto em Cuba como no exterior desde o encerramento de sua primeira mostra em Havana e tenha sido aclamado como um dos artistas mais importantes de sua geração até o final da década, deixou a ilha em 1990. No ano 2000, após alguns anos de produtividade em Nova York, Esson voltou para Miami, onde continuou sua prática artística e encontrou novas formas de

Abstract nº 2, 1947. © The Pollock-Krasner Foundation.

representar seus monstros e seu talismã. Da mesma forma, realizou uma série de murais para espaços específicos derivados de seus . Em 2015, Tomás voltou sua atenção para a flora local de Miami com suas ervas daninhas desordenadas e flores voluptuosas e começou sua mais recente série de pinturas . Nessas obras, vegetação, órgãos sexuais, fluidos corporais e uma energia irreprimível se combinam na forma de paisagens abstratas de grande dinamismo. Depois de se estabelecer em Miami em 1991, Tomás continuou a criar pinturas que criticavam o regime cubano e seus líderes corruptos. Focou seu olhar paródico em Fidel Castro, mas também prestou atenção às questões sociais. Durante esse período de residência em Miami, Tomás iniciou a sua série de , pinturas nas quais funde deliberadamente o retrato tradicional e a dimensão grotesca que a sua obra apresenta. Também começou a encontrar objetos incorporados como machados, chicotes e estátuas de cerâmica em outra série de telas em grande escala. Tomás Esson mudou-se para Nova York em 1994, onde viveu uma série de experiências sociais e religiosas que o marcaram profundamente. Continuou depurando seus para produzir algumas das pinturas mais importantes da série. Empreendeu um novo conjunto de obras intitulado , em que sua figura talismã evolui para um amálgama mais completa de peças

anatômicas montadas, incluindo dentes, bocas, línguas e genitais. Estas obras são acompanhadas pelos , esboços monocromáticos de execução rápida com linhas gestuais e dinâmicas que mostram a importância que Tomás sempre deu ao desenho. Durante esse período em Nova York, Tomás também experimentou a fotografia e o uso performativo de distorções faciais, como caretas exageradas e olhos esbugalhados. Não apenas o dos monstros que ele pinta, mas seu próprio corpo se tornou um meio de expressão pela primeira vez.

TÓMAS ESSON: THE GOAT • ICA MIAMI • EUA • 8/7/2020 A 02/5/2021

pa CA

WILLIAM ,kentridge

The Primal Wing, 1933.

WILLIAM KENTRIDGE É UM DOS MAIS IMPORTANTES ARTISTAS VISUAIS CONTEMPORÂNEOS DA ÁFRICA DO SUL. SUA OBRA ABRANGE TÓPICOS COMO INJUSTIÇA SOCIAL, A HISTÓRIA DO SEU PAÍS, COLONIALISMO, FAMÍLIA, FUGA E DESLOCAMENTO COM UMA AMPLA VARIEDADE DE MÍDIAS. NO INÍCIO DE SUA PRÁTICA ARTÍSTICA, PORÉM, SEMPRE ESTÁ O DESENHO

POR ELISA MAIA

A arte, dirá William Kentridge, é uma forma própria de conhecimento. Não segue um pensamento linear e não pode ser inteiramente compreendida nos termos racionais das disciplinas acadêmicas. Necessita dos processos materiais que envolvem os olhos, as mãos, o papel, o carvão. E tudo começa com o desenho. É conhecida a sua afirmação de que o desejo de desenhar é a base de todo seu trabalho – “tudo começa com o prazer sensorial de colocar as marcas do carvão no papel.” Para Kentridge, o desenho funciona como uma metáfora para a maneira como pensamos, é uma versão do pensamento em um tempo mais estendido em que o corpo está também implicado – “A forma incerta e imprecisa pela qual se faz um desenho pode ser um modelo para a maneira como se constroem os significados”. Ao longo de quatro décadas de trabalho, Kentridge desenvolveu uma linguagem artística absolutamente peculiar. Diz-se dos seus desenhos que são póscinemáticos, pois incorporam efeitos como e e, a partir de 1989, lançando mão de um processo lento e artesanal, o artista de fato começou a transformá-los em pequenas animações, cujos títulos escritos à mão e os movimentos bruscos da câmera remetem às primeiras décadas do cinema. As figuras são desenhadas, modificadas, apagadas e redesenhadas por

Drawing 'Untitled (9 flying birds)', 2011.

Felix in Exile, 1994.

cima das manchas acinzentadas que a rasura do carvão deixa no papel. Em constante metamorfose, os desenhos se tornam visualmente hipnóticos. Diante deles, temos a impressão de testemunhar o processo criativo por trás de cada mudança nos traços e contornos que dão vida à narrativa. No universo labiríntico de Kentridge, a fumaça do cigarro vira uma máquina de escrever, um gato se torna um aparelho de rádio ou uma máscara de gás, um estetoscópio se transforma em um telefone, o tripé de uma câmera assume a forma das hélices de um helicóptero e sua lente a de uma metralhadora – “Para mim, o desenho tem a ver com fluidez. Você pode começar com uma vaga noção do que se vai desenhar, mas ao longo do processo acontece uma série de coisas que modificam, consolidam ou lançam dúvidas sobre o que se sabia”. Esse processo vai dotando as imagens de memória. Infiltradas com manchas e borrões, é como se elas conservassem os vestígios visuais de sua história recente. Seu interesse na construção de personagens – uma característica incomum entre artistas visuais – deriva em grande parte de sua vasta experiência no teatro, onde escreveu roteiros, desenhou cenários e figurinos, atuou e dirigiu peças teatrais desde 1975. De maneira inventiva e espirituosa, Kentridge é capaz de explicitar de forma primorosa a personalidade de uma personagem por meio

de um simples gesto e criar tipos que transbordam de suas silhuetas para representar todo um conjunto de ideias que marcam culturalmente a África do Sul. Suas personagens parecem encenar a um só passo eventos íntimos de uma história privada e acontecimentos públicos da história de seu país. Essa dupla envergadura torna suas imagens um caleidoscópio de metáforas sobre memória, culpa, trauma, submissão, emancipação e reconciliação. Na animação que fez para (1997) – espetáculo inspirado nos interrogatórios da Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul –, há a imagem de um corpo que explode e se torna uma constelação. A cena se baseia em uma prática real da polícia sul-africana de dinamitar os corpos das pessoas que havia matado e depois juntar os pedaços para explodi-los novamente, de forma repetida, até que não houvesse mais qualquer fragmento identificável. Kentridge aborda poeticamente fatos históricos do , sublinhando a importância de se olhar para o absurdo não como um erro periférico, mas um sistema político racional apresentado pelo Estado.

Ubu tells the truth, 1997. Image courtesy of Zeitz MOCAA. Photo: © Anel Wessels.

O século 20 chegou ao fim inviabilizando os idealismos utópicos que caracterizaram seu início e estabelecendo de forma assertiva os limites da representação no que tange à sua capacidade de transformação cultural. Um dos legados do colonialismo europeu na África foi o reconhecimento da dificuldade que sempre paira sobre as tentativas bem-intencionadas de um membro da classe dominante de representar os membros de outra classe sem que acabe reproduzindo inadvertidamente a mesma lógica hierárquica que pretende questionar. Esses impasses não escapam à atenção de Kentridge. O pequeno elenco de personagens criados em suas animações remete a uma realidade insular dentro da sociedade sul-africana. O poderoso empresário Soho Eckstein, a melancólica srª Eckstein (cujo nome nunca é revelado) e o poeta sonhador Felix Teitlebaum, que vive um romance apaixonado com a mulher do empresário, encenam seus dramas pessoais de maneira relativamente alheia aos conflitos sociopolíticos que os cercam. Brancos, presumidamente judeus e alheios à batalha cotidiana pela sobrevivência da vasta maioria dos sul-africanos, cada um dos três é um do próprio artista, cuja

Acima: Sea Change, 1931. À direita: Ahmi in Egypt, 1931. Whitney Museum of American Art, New York.

Acima: Mine, 1991. À direita: Blue Head, 1993-98. Courtesy of Zeitz MOCAA. Photo: © Anel Wessels.

aparência física se faz notar de forma manifesta tanto na imagem austera do engravatado magnata, quanto na silhueta nua do poeta. Nascido em uma proeminente família judia de advogados comprometidos com a luta contra o , Kentridge atravessou os piores anos do regime segregacionista em um estado de relativa “marginalidade” em relação às convulsões políticas que assolavam o país. Percebia a barbárie daquele sistema violento e arbitrário, sentia-se parte de suas transformações históricas, ao mesmo tempo em que se sabia protegido dele por ser branco. Há ainda um quarto personagem nos filmes – a massa anônima e destituída de trabalhadores que circula pelos arredores de uma cidade devastada pelos desastres humanos. As referências artísticas de Kentridge são muitas e aparecem explicitamente citadas em sua obra de forma recorrente. A figura glutona de Soho, que veste terno de risca de giz e fuma charutos cercado da parafernália burocrática de seu escritório, aponta para o universo satírico da República de Weimar, especialmente para as caricaturas de George Grosz. O sul-africano Dumile Feni, que abordou em seus enormes desenhos a carvão a luta contra o na África do Sul, e com quem Kentridge estudou em Johannesburgo, é apontado pelo artista como a mais crucial de suas influências. Entre os europeus, o artista cita a importância que tiveram para

ele Daumier, Hogarth e Goya, além de expressionistas alemães como Otto Dix e Max Beckmann, aos quais seu trabalho presta clara homenagem. Em conversa com a curadora Carolyn Christov-Bakargiev, Kentridge conta que muito do que se produzia na Europa e na América do Norte, durante os anos 1960 e 1970, parecia-lhe distante e incompreensível – “As imagens se tornavam familiares para mim por meio de exposições e publicações, mas o impulso por trás dos trabalhos não fazia o salto transcontinental para o contexto sul-africano.” Da perspectiva da África do Sul, onde os conflitos políticos eram tão graves, o silêncio do Abstracionismo soava “quase catatônico”, uma confissão “autoindulgente” da dificuldade de se descrever o mundo. Kentridge olha para a esperança e para o idealismo do momento histórico que produziu Vladimir Tatlin, Kazimir Malevich, Vladimir Mayakovsky e Dziga Vertov sentindo uma “proximidade distante” e “certa inveja” da convicção no racionalismo científico e na revolução política como instrumentos de emancipação social – “Foi um período marcado pelo otimismo político antes de o mundo ser exaurido pela guerra e pelo fracasso”. Sua admiração pelas vanguardas do início do século convive com o niilismo e a melancolia de quem tem a vantagem histórica de poder ver o futuro olhando pra trás – “aquele tipo de esperança, aqui e agora, parece-me impossível”. Referências à tecnologia que na estética modernista simbolizavam o entusiasmo com o progresso e o futuro também são recorrentes em sua obra. Mas, em seus filmes, a novidade já nasce obsoleta. Não há celulares ou computadores, mas pesados telefones fixos de discar, vitrolas, gramofones, megafones, lunetas, binóculos e todo um maquinário nostálgico que já fora emblema do futuro em algum momento no passado. Os cenários das animações misturam objetos reais – luminárias, mesas, rodas de bicicleta, instrumentos de sopro – com outros desenhados com giz nas paredes, como portas, janelas e quadros. Desde os seus primeiros desenhos até seus projetos mais recentes, Kentridge faz questão de evidenciar a natureza artesanal do seu processo. Podemos ver os chapéus feitos de papelão ou a fita adesiva usada para prender algum apetrecho – “é importante que as pessoas

History of the Main Complaint, 1996. Image courtesy of Zeitz MOCAA. Photo: © Anel Wessels

Even Song, 1934 Future, 1941

olhem para a obra e entendam que elas poderiam tê-la feito, que é algo possível, não requer qualquer tecnologia extraordinária a que elas não têm acesso algum.” Em 2010, Kentridge se uniu ao físico e historiador da ciência Peter Galison para apresentar uma reflexão ambiciosa e abrangente sobre a natureza do tempo, tendo como pano de fundo o ano de 1905, quando Albert Einstein publicou seu ensaio sobre a teoria da relatividade demonstrando que não havia um único tempo absoluto, mas múltiplos tempos relativos. A vídeo instalação (2012) apresenta uma profusão vertiginosa de tentativas de empreender uma tarefa irrealizável por excelência – materializar o tempo. Diferentes imagens projetadas em cinco telas fragmentadas dão uma concretude poderosa ao conceito de simultaneidade. Acontecimentos exibidos de trás pra frente alteram o vetor

inexorável do tempo. Por meio dos sons e da música de Philip Miller, o tempo é acelerado, retardado, sincopado, pausado e invertido. A dança aparece como uma metáfora de resistência à domesticação e à exploração que transformam os corpos em máquinas, e de valorização da fruição do presente em detrimento do planejamento do futuro. Em termos coloniais, a recusa do tempo é também uma metáfora à recusa da ordem e do controle europeus impostos à África do Sul. As sombras da instalação saem das cavernas organizadas em procissões e avançam sobre a geografia de uma paisagem distópica em direção ao destino de todos os corpos. Suas silhuetas projetadas nas paredes carregam consigo bandeiras, utensílios e instrumentos musicais. Marcham resolutas em direção à morte, mas no trajeto que percorrem entre a escuridão de onde saíram e o buraco negro para

onde caminham, há uma faísca de luz. E também há música, dança, performance e melodrama. Em uma das cenas da obra, vários pedacinhos de papel picado flutuam no ar e, por um segundo, seus fragmentos formam uma imagem coerente, uma cafeteira de alumínio, antes de se dissiparem no caos novamente. Esses breves instantes de coerência são, para Kentridge, “o máximo que podemos esperar do mundo”. Giorgio Agamben, em diálogo com as ideias de Nietzsche, definiu a contemporaneidade como uma “singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente que adere a este através de uma dissociação e um anacronismo.” Para o filósofo, aquele que coincide muito plenamente com a própria época se deixa cegar por suas luzes e, não podendo entrever também a parte das sombras, não é capaz de compreendê-la com clareza. A fim de apreender verdadeiramente determinado tempo, faz-se necessário imprimir ao olhar algum grau de inatualidade para que nele se possa ver também o escuro – “contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo”, diz Agamben. Parte do fascínio que as obras de Kentridge exercem sobre nós vem do seu poder de expor as fraturas do tempo. São imagens que se inscrevem no presente para expor antes de tudo a sua dimensão arcaica, para interromper a sua linearidade inexorável e colocá-lo em fricção com outras épocas. E é justamente recusando o tempo que Kentridge, com seu cinema mudo e artesanal, torna-se, no melhor sentido do termo, o arquétipo do artista contemporâneo.

Elisa Maia é doutorando do programa de Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ.

WILLIAM KENTRIDGE: WHY SHOULD I HESITATE: PUTTING DRAWINGS TO WORK • DEICHTORHALLEN HAMBURG • ALEMANHA • 23/10/2020 A 18/4/2021

Awakening (Memory of Father), 1943

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