A mulher caminha pela estrada do terceiro-mundo,
mesma.”3 Sem tirar a importância do cinema novo
depois recua, e pega a estrada oposta. Os caminhos em
questiona a homogeneidade social do movimento, e
aberto para um cinema emancipatório... A cena é bela
conclui que esta produção poderia ter ido muito mais
por mostrar dialeticamente o impasse na escolha entre
longe não fosse o golpe de 1964 que acelerou seu fim.
caminhos diversos: o de Godard - da aventura e des-
No vazio de ideias presente no cinema contempo-
construção - o de Glauber - de construir em meio ao
râneo localizemos para trás e adiante estes mestres
fascismo. A personagem sente o peso da complexidade
reverenciados e ignorados. Passado quase meio século
das lutas. Há escolhas a serem feitas, mas a primordial,
os novos “mentores” do cinema nacional querem nos
escolher o cinema político, já fora tomada.
fazer crer que as discussões acima apresentadas carre-
Pouco antes desta cena o filme questiona a postu-
gariam um arcaísmo latente, e teriam sua importância
ra de um certo cinema progressista que diz combater
delimitada pelo período histórico em que se colocaram.
o imperialismo Hollywoodiano na imagem, mas que o
O cinema dominante no Brasil apresenta-se divi-
faz apenas superficialmente, ao não enfrentar a opres-
dido em dois polos que dividem de forma desigual as
são e exploração como um problema estético central.
verbas públicas, fonte primordial e praticamente úni-
Só é possível fazer um cinema revolucionário encaran-
ca de financiamento. De um lado o cinema “de mer-
do este problema de frente. Questiona “um cinema que
cado”, que embora medíocre e ocupando uma fatia
se julga liberado” e complementa: “Um cinema droga-
pequena das salas de cinema detêm a maior parcela
do. Um cinema sexual. Um cinema que diz ter se li-
do dinheiro disponível. Estão neste campo os filmes
bertado pela poesia. Um cinema para qual nada é tabu,
fascistas de ocupação das favelas, as globochanchadas,
a não ser a luta de classes.”
as produções das grandes corporações publicitárias e
Nesta mesma época Paulo Emílio escrevia o seminal
os cineastas “internacionalizados” com suas co-pro-
ensaio “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”,
duções hollywoodianas. Aqui o que está em jogo é o
onde fazia um balanço do cinema brasileiro até o final
dinheiro como valor absoluto. A mercadoria como
dos anos 60 à luz do conceito de subdesenvolvimento,
regra. A ideia como exceção.
que para Paulo Emílio não é uma etapa de nossa for-
Do outro lado um conjunto de diretores que reali-
mação, mas um “estado”. O cineasta brasileiro, não
zam filmes para festivais e circuitos voltados para a
sendo parte das classes exploradas (o ocupado), também
classe média, onde são discutidos os valores, a sensi-
não se identifica com o ocupante: “Não somos europeus
bilidade e a visão de mundo deste extrato da socieda-
nem americanos do norte, mas destituídos de cultura
de. Na maioria das vezes, mesmo quando buscam
original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A peno-
discutir questões populares, o corpo e o imaginário
sa construção de nós mesmos se desenvolve na dialé-
que apresentam são os de seu grupo social.4 Estes
tica entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro
diretores pautam-se na maior parte das vezes pela
participa do mecanismo e o altera através de nossa
estética dominante no circuito “biscoito-fino” dos
incompetência criativa de copiar.”2 Paulo Emílio vê com
festivais internacionais e buscam participar de ofici-
bons olhos a juventude do cinema novo que “sentia-se
nas de aperfeiçoamento organizadas por corporações
representante dos interesses do ocupado e encarregada
e festivais estrangeiros que adequam as narrativas aos
de função mediadora no alcance do equilíbrio social. Na
interesses de seu público “especializado”. Os diretores
realidade esposou pouco o corpo brasileiro, permaneceu
que seguem esta linha acreditam que pensam o mun-
substancialmente ela própria falando e agindo para si
do para além dos localismos e dos limites do pensa-
A reflexão de Paulo Emílio segue atualíssima neste momento em que grande parte do novo cinema independente brasileiro pauta-se pelas “tendências” apresentadas nos grandes festivais internacionais. 3 Nota-se aqui como a ideia de conciliação de classes foi central no projeto do cinema novo brasileiro (e no pensamento e arte de nossa esquerda de um modo geral). Acredito que a crítica (ainda por fazer) sobre esta lógica de conciliação de classes e suas consequências é fundamental para um futuro projeto estético-político a ser construído. 4 Tal qual apontado por Paulo Emílio em Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento sobre a geração do cinema novo. Definitivamente não aprendemos muito com a história... 2
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