Continente #133 - Indígenas

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REPRODUçãO DO lIVRO lendas e mitos dos índios brasileiros

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aos leitores Quando pensamos na realização de uma matéria sobre literatura indígena, lembramonos imediatamente de Isabelle Câmara. Hoje, especializada em Direitos da Criança e do Adolescente (USP) e diretora de Comunicação do TRF5, no início de sua carreira, ela trabalhou aqui, na revista, e, desde aquela época, já apresentava interesse pelas questões indígenas, algo que se desenvolveu e tornouse parte de sua vida. Sabíamos que sua abordagem passaria também pelo coração, o que era importante para nós. Claro que ela aceitou fazer a reportagem e o resultado foi criterioso como esperávamos. Outra presença importante nesta edição – essa, insuspeita para nós – é a de Maurício Negro. Na pesquisa de imagens para ilustrar a matéria de capa, deparamo-nos com seu belo e profundo trabalho. Diante do que vimos em vários dos livros por ele ilustrados, percebemos que seu interesse – assim como o de Isabelle – transcendia o profissional; havia ali uma identificação genuína entre artista e tema. Por conta disso, convidamos o artista para desenvolver as ilustrações de capa e da abertura da matéria. Embora alegasse estar cheio de tarefas, ele aderiu à pauta, e as trocas que mantivemos só confirmaram o compromisso do ilustrador com a questão

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indígena, que o fez não apenas ter o cuidado de nos explicar cada um dos elementos que escolheu para as ilustrações, mas também de ter lido atentamente o texto de Isabelle que enviamos para ele, a ponto de sugerir algumas alterações, que acatamos. Experiências assim, de verdadeira colaboração, dignificam o trabalho de todos, sobretudo o nosso. Para não deixar que as referências de Maurício Negro fiquem apenas entre nós, reproduzimos algumas delas: “Para a capa, prestei um tributo ao povo Kambiwá, que vive ainda no sertão de Pernambuco (Ibimirim, Inajá, Floresta). Vestido de fibra de caroá, da cabeça aos pés, e de maracás nas mãos, um índio participa do ritual do praiá. Do diadema circular sobre a cabeça, em vez de penas, saem de uma boca línguas diversas de diferentes famílias linguísticas indígenas. Na ilustração de miolo, fiz duas licocós (bonecas de argila) do povo Carajá. Uma delas lê um livro, enquanto a outra digita em seu laptop. Remeto assim tanto à tradição quanto às transformações contemporâneas, tendo em vista a convivência entre oralidade e literatura (escrita)”. Esperamos que, como nossos colaboradores, os leitores sejam tocados pelo rico universo cultural – cada vez mais expresso em literatura – dos povos indígenas do Brasil.

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FAZER O FUTURO MELHOR PARA O POVO PERNAMBUCANO. ISSO FAZ TODA A DIFERENÇA. Pernambuco tem em Pirapama a maior obra hídrica da América Latina e em Suape o melhor porto público do Brasil. Conta com a maior rede escolar em tempo integral ou semi-integral do Brasil e construiu quatro hospitais estaduais em cinco anos, quando há 40 não construía nenhum. Deixou de ser o Estado mais violento do País para ser modelo de segurança pública. Duas das maiores obras federais foram trazidas para cá: a Ferrovia Transnordestina e a Transposição do Rio São Francisco. São realizações de um governo que ouve a sociedade para trabalhar melhor por Pernambuco. São obras que, junto a muitas outras, têm o mesmo objetivo: fazer o futuro com participação popular, inclusão social e sustentabilidade. Isso faz toda a diferença. 174 ESCOLAS DE REFERÊNCIA EM ENSINO MÉDIO E 14 ESCOLAS TÉCNICAS ESTADUAIS. AMPLIAR O ACESSO À EDUCAÇÃO DE QUALIDADE É PREPARAR MAIS PERNAMBUCANOS PARA AS NOVAS OPORTUNIDADES.

4 NOVOS HOSPITAIS. AMPLIAR A REDE PÚBLICA DE SAÚDE É TRATAR OS PACIENTES DO SUS COM RESPEITO.

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MAIS DE 4 MILHÕES DE PESSOAS FORA DO RACIONAMENTO D´ÁGUA. FAZER OBRAS COMO O SISTEMA PIRAPAMA É COLOCAR QUEM MAIS PRECISA EM PRIMEIRO LUGAR.

REDUÇÃO DE 29,1%* NOS HOMICÍDIOS NO ESTADO. CRIAR O PACTO PELA VIDA É OFERECER AS CONDIÇÕES PARA O NOSSO POVO VIVER COM SEGURANÇA E PAZ.

16 TERMINAIS INTEGRADOS E CORREDORES EXCLUSIVOS PARA ÔNIBUS. INVESTIR NA QUALIDADE DO TRANSPORTE PÚBLICO É ESTAR AO LADO DE QUEM MAIS PRECISA.

457.589** NOVOS EMPREGOS DIRETOS. INVESTIR EM DESENVOLVIMENTO É PROMOVER O CRESCIMENTO DA NOSSA GENTE. **Fonte: RAIS/CAGED-MTE, outubro/2011

* Comparação dos últimos 12 meses (dez/2010 a nov/2011) com os 12 meses que antecederam o Pacto Pela Vida (mai/2006 a abr/2007).

OBRAS JÁ REALIZADAS EM MAIS DE 1.000KM DE ESTRADAS E IMPLANTAÇÃO, DUPLICAÇÃO OU RESTAURAÇÃO DE MAIS DE 1.900KM DE RODOVIAS ATÉ 2014. INTEGRAR AS CADEIAS PRODUTIVAS É CRIAR OPORTUNIDADES PARA PERNAMBUCO CRESCER POR IGUAL.

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O FUTURO A GENTE FAZ AGORA

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sumário Portfólio

Daniela Hasse 6

cartas

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expediente + colaboradores

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entrevista

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Ana Maria Bahiana Jornalista especializada em cinema comenta livro de sua autoria em que destrincha as etapas da produção de um filme

conexão

Stones Archive Ao completar 50 anos de carreira, os Rolling Stones disponibilizam em site material raro de arquivo

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História

ciência O astrônomo Jorge Marcgrave instalou no telhado da casa de Maurício de Nassau o primeiro observatório moderno das Américas

comportamento O que leva o público a acompanhar com interesse ou negligenciar completamente um filme?

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Palco

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cardápio

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Matéria corrida

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Artigo

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Saída

Balaio

Filme pra dormir Casal consegue ninar ladrão numa “sessão” caseira de Patch Adams. O bandido enfezou-se e processou a dupla

claquete

O que começou como uma brincadeira, criar cartazes para bandas amigas, virou profissão para a artista, que também faz estampas para grifes nacionais

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Dzi croquettes e Vivencial Grupos teatrais surgidos há quatro décadas são homenageados em livros, filmes, menções

Padarias Tendo como carro-chefe o pão francês, alguns estabelecimentos investem em itens de memória afetiva para cativar clientes

José cláudio Meus mortos

João câmara Delano

Suzano Guimarães O estado sou eu?

Leitura

Pequeno elucidário No formato enciclopédico de A a Z, estudo de crítico paulista traz informações sobre variados utensílios e objetos artísticos

Viagem

Paris de bicicleta Não são apenas os franceses, mas também os visitantes podem usufruir do sistema de ciclovias e aluguel de bikes para circular pela cidade, evitando engarrafamentos

44 Capa iLUStRAÇÃo Maurício Negro

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especial

tradição

Editoras investem em autores indígenas, como Daniel Munduruku, que narram histórias de suas tradições, trazendo essas culturas a um público mais amplo

Todos os anos, no Dia de Reis, as mulheres que compõem a Irmandade de Santa Bárbara Virgem realizam cortejo para os santos negros na cidade sergipana

Sonoras

Visuais

Aos 30 anos de morte da cantora, registros de momentos de algumas passagens suas pelo Recife, como o dia em que participou de ato cívico pela libertação de preso político

Livro de autoria de Weydson Barros Leal, baseado em horas de conversas gravadas com o artista e na observação de sua obra, destaca o labor virtuoso do xilogravurista

Literatura

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Elis Regina

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Taieiras de Laranjeiras

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Jan’ 12

Samico

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cartas ReSPoStA DA ReDAÇÃo Prezado Weydson, lastimamos frustrar suas expectativas. Felizes, entretanto, porque você tem a percepção de que nenhuma matéria jornalística, por mais bem-apurada e urdida que esteja, é capaz de abarcar todos os aspectos de um assunto. Mas, fica aqui o convite para que você traga essas histórias para as nossas páginas.

Santo Amaro

Do Twitter

Lendo a matéria de capa da edição de novembro sobre o Cemitério de Santo Amaro, lamentei não ver ali a informação (claro, não se pode ter tudo, sabemos disso!) de que lá existem vários túmulos decorados com esculturas de Abelardo da Hora. Coloquei isso na biografia dele que escrevi há alguns anos, e são histórias engraçadíssimas de quando ele trabalhava à noite, esculpindo e instalando as peças dentro do cemitério.

A revista Continente #131, este mês superouse. Radiado pelo espírito histórico e socioantropológico de seu conteúdo. JARDSon LeMoS JABOATÃO DOS GUARARAPES – PE

Capa Muito boa a reportagem sobre o Cemitério de Santo Amaro na edição de novembro da revista Continente.

WEYDSON BARROS LEAL

eDUARDo SoL

RIO DE JANEIRO – RJ

RECIFE – PE

Publicação Recebi a revista de outubro. Está maravilhosa. Mostrei a diversos amigos e alguns estão interessados em comprá-la, pois são professores de Literatura. Aproveito para agradecer a publicação de meu texto. MURiLo JARDeLino SÃO PAULO – SP

notA De eScLAReciMento Gostaríamos de nos desculpar com a família do Sr. Carolino de Arruda Campos, com relação à informação errônea sobre sua formação, publicada na matéria de capa, na edição 115, de julho de 2010. De maneira alguma quisemos ferir a imagem desse ilustre cidadão, responsável pela construção do Cinema Guarany e por tantas outras benfeitorias em Triunfo. Com relação à grafia incorreta de seu nome, impressa na página 55 da referida edição, publicamos uma errata em setembro do mesmo ano, na edição 117, página 4. Esperamos, com isso, dirimir qualquer mal-entendido que possa ter havido a esse respeito.

VOCê FAz A continente COm A GENTE o nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. envie suas críticas, sugestões e opiniões. a seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (rua Coelho Leite, 530, Santo amaro, recife-Pe, CeP 50100-140). as mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. a continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone

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colaboradores

isabelle câmara

João câmara

Maurício negro

Raul córdula

Jornalista, diretora de Comunicação no Tribunal Regional Federal.

Artista plástico e ensaísta, autor da série de pinturas e litografias Cenas da vida brasileira.

Ilustrador, comunicólogo e designer gráfico, com vários livros lançados.

Artista plástico, crítico de arte e ensaísta.

e MAiS Alejandro Zambrana, fotógrafo. Ana Lira, jornalista, fotógrafa e integrante do Trotamundos Coletivo e do Boivoador. Artur Ataíde, mestre em Teoria Literária e revisor. Augusto Pessoa, jornalista e fotógrafo. carol Almeida, jornalista. eduardo Sena, jornalista. Marcelo Abreu, jornalista, professor universitário, autor de livros-reportagem e de viagem como De Londres a Kathmandu. Marcelo Robalinho, jornalista e doutorando em Comunicação em Saúde, na Fiocruz. olívia Mindêlo, jornalista e mestranda em Ciências Sociais. Pollyanna Diniz, jornalista, colaboradora do blog sobre teatro Satisfeita, Yolanda? e do Diario de Pernambuco. Sérgio Lobo, fotógrafo especializado em gastronomia, integra a equipe da revista Engenho. Suzano Guimarães, doutorando em Filosofia e professor-substituto do Departamento de Filosofia da UFPE.

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ANA MARIA BAHIANA

“O meu olhar é muito pragmático” Prestes a lançar um livro em que aborda as etapas de realização de um filme, a jornalista afirma não fazer crítica, mas defende seu objetivo de provocar reflexão texto Carol Almeida

con ti nen te

Entrevista

no momento em que vários produtos de entretenimento estão aí para “apertar os botões das pessoas”, ela quer dar um ctrl + alt + del em nosso piloto automático cognitivo, ao descortinar o processo por trás da imagem. Há mais de três décadas escrevendo sobre cinema (e nesses últimos anos também sobre televisão) para livros, jornais, revistas, TVs, rádios, internet, a jornalista e escritora Ana Maria Bahiana acredita que não apenas o meio, mas, particularmente, o modo é a mensagem. Diz-se fascinada por tudo que se refere a esse imenso espaço entre o argumento inicial de um longa e sua projeção na sala de cinema, e acredita que nossa leitura dos filmes passa muito pelo grau de conhecimento que temos de sua elaboração. Rejeita, portanto, a ideia de que os filmes – comerciais ou não – devam ser isolados no tempo e observados apenas como uma obra alheia à sua gestação. Com talento para as palavras e paciência de professora, Ana lança, em março, o livro Como ver um filme (Nova Fronteira), dedicado a desdobrar todas as suas etapas de realização desse

produto. O nome da obra é o mesmo de um dos cursos mais populares no setlist de aulas que, volta e meia, ela dá no Brasil. E, tal como no texto do curso, deixa claro que esse não é um trabalho de tese, antítese ou síntese, mas, sim, uma visão pragmática do cinema, resultado de sua experiência entre sets de filmagens e décadas de convivência com os bastidores de Hollywood. Apesar de todo o conhecimento adquirido, a carioca, que é moradora da cidade de Los Angeles, afirma não fazer crítica de cinema e diz ser apenas uma “espectadora informada”. Embora esteja bem longe de ser “só isso”. Ela concedeu essa entrevista à Continente, de sua nova casa, no ameno bairro de Sherman Oaks, na cidade onde é produzida a maior parte da ficção cinematográfica que o brasileiro consome. continente Por que você diz não fazer crítica de cinema? AnA MARiA BAHiAnA A crítica de cinema é uma disciplina e exige toda uma formação acadêmica, que eu não tenho, e que informa o olhar do

crítico de uma certa maneira. Não sei se é melhor ou pior, mas certamente é diferente da minha. Aqui, nos EUA, principalmente em Los Angeles, e em lugares como Paris e Londres, a crítica é uma disciplina muito clara, à qual você pode dedicar quatro anos de estudos, não apenas de teoria cinematográfica – que estudei de uma forma menor, em cursos mais específicos –, mas também de observação da crítica em si e da apreciação cinematográfica. É uma disciplina muito séria e cria um olhar diferente do que eu tenho. O meu olhar é muito pragmático, costumo dizer que sou uma espectadora informada. A minha formação é de jornalista. Sabendo o processo da criação cinematográfica e a linguagem do filme, digo às pessoas: vejo esse filme assim e acho isso. É opinião. Não vou dizer o que as pessoas devem ou não devem ver, não vou passar julgamentos estéticos. Não tenho vontade de fazer isso e não me sinto treinada para isso. O que posso fazer é me informar, saber o que levou à produção daquele filme, a proposta de

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Luis Fernando /rBs/FoLhapress

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continente Falar em “era da passividade” é curioso, quando a internet se tornou popular e a palavra da vez é “interação”. AnA MARiA BAHiAnA Gosto da interação que a internet permite. Até porque a maior parte da minha produção hoje é na internet. Gosto de responder aos comentários dos leitores. Respondo, jogo a bola de volta ao campo deles. Compreendo, quando alguém diz que gosta ou não gosta de um filme, mas não exatamente por quê. Não sei se teria essa paciência, se tivesse a

imagens: divuLgação

cada um dos infinitos departamentos dele. Aliás, uma das coisas mais fascinantes do cinema é saber que ele é extremamente individual e coletivo, ao mesmo tempo. Uma pessoa sozinha não faz um filme. É absolutamente lindo como todos esses talentos, que são incrivelmente técnicos e manuais, ao mesmo tempo século 21 e século 19, se agregam para criar uma narrativa, que, por sua vez, é apreciada também de maneira individual e coletiva. Passo minha opinião sobre o assunto e espero, pelo menos, estabelecer um

con ti nen te

continente Você acredita no empenho das pessoas em tirar as próprias conclusões? AnA MARiA BAHiAnA Sempre me enervou muito ser passiva no consumo de cultura, o que me torna um dinossauro hoje em dia, porque estamos vivendo uma era de passividade. Fico pasma com a possibilidade de você manipular tão bem uma quantidade grande de pessoas. Existem vários produtos cinematográficos que não têm outro mérito, a não ser apertar os botões dos espectadores, e eles sabem quais apertar. O público não percebe, mas gosta disso. Falta essa capacidade de se descolar do mundo, questioná-lo. Gosto de provocar o descolamento.

continente É o processo, então, que a seduz? AnA MARiA BAHiAnA Sim, totalmente. Há muito tempo, perdi a conta de quantos sets de cinema já visitei. Eu era o tipo de pessoa que, enquanto meus colegas jornalistas iam entrevistar as estrelas do filme, ficava para trás e

“e o processo de realização de um filme, do argumento à exibição, determina a forma final que ele terá. A mesma ideia pode acabar sendo Transformers 18 ou ganhar o Festival de Cannes. Sem exagero”

Entrevista diálogo com quem leu. Tenho a maior satisfação em passar o máximo de informações possíveis sobre um filme. Gosto de que o leitor saiba tudo que sou capaz de contar a respeito daquilo, e tire as próprias conclusões.

alguém tem que pagar por ele, mecenas, governos, investidores ou grandes empresas, como estúdios e distribuidores. E o modo como ele vai ser custeado vai defini-lo.

formação acadêmica de um crítico. Possivelmente, seria mais aguerrida. continente O quão importante é deixar que o público entenda o processo de realização de um filme? AnA MARiA BAHiAnA Acho muito importante contextualizar. Não há muita noção de como os filmes nascem. E o seu processo de realização, do argumento à exibição, determina a forma final que ele terá. A mesma ideia pode acabar sendo Transformers 18 ou ganhar o Festival de Cannes. Sem exagero. Tudo depende desse monte de encruzilhadas no caminho, que é fascinante: se é escolhido um diretor autoral ou um profissional, se vai ser um filme de US$ 100 milhões ou de US$ 10 milhões, se vai ser rodado dentro do estúdio ou em locação. Cada uma dessas encruzilhadas dá cara ao filme, e gosto de saber disso. Nenhum filme existe no vácuo,

ia conversar com o eletricista, com o chefe dos maquinistas. É o processo e o engajamento que me fascinam. continente Que tipo de pessoa lê sobre cinema? AnA MARiA BAHiAnA Acho que existem dois tipos. O fã absoluto, que lê tudo sobre aquilo que ele gosta. E a pessoa que vai sair de casa para ver um filme e quer saber um pouco mais sobre ele. Essa última só se interessa pela classificação. continente Você gosta de ler crítica de cinema? AnA MARiA BAHiAnA Não, não gosto de ler crítica nenhuma. Gosto de ler alguns autores, como a Manohla Dargis (NY Times), Anthony Lane (New Yorker) e Todd McCarthy (Variety), porque os conheço, sei da trajetória e da formação deles, e, sobretudo, escrevem muito bem. A Manohla, por

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exemplo. Volta e meia discordamos completamente, mas nunca consigo ficar irritada com ela, porque entendo em que discordamos e adoro seu senso de humor. Tirando esse pequeno grupo, de modo geral, procuro não ler críticas. A coisa que mais adoro é ir para um festival. Porque, quando você vai a um deles, ninguém sabe nada sobre os filmes. Amo ver filme assim, sem ter noção do que seja. Em Cannes, acontece muitas vezes de você entrar na sala errada, porque são muitos filmes por dia. Já entrei

30 Rock sobre a ausência de filmes com roteiristas em Hollywood. Você acredita nisso? AnA MARiA BAHiAnA Não, até porque o filme que tem menos ideias, geralmente, é aquele que tem mais roteiristas. O que existe é o seguinte: ou você tem um roteirista e aquela história é a voz dele, ou você tem o chamado filme por consenso ou por comitê, que pode ter até umas 20 pessoas trabalhando no roteiro. Um dia desses, fui assistir a Thor, ao lado de um amigo roteirista, e a gente morria de rir com a quantidade de roteiristas

estávamos no auge da ditadura militar no Brasil e não tinha filme, a não ser pornochanchada. continente Fale um pouco sobre o livro Como ver um filme. AnA MARiA BAHiAnA Isso tudo começou porque uma amiga me perguntou se eu achava que os escritores leem livros de maneira diferente. Eu disse que sim, claro. Vivendo numa cidade onde dois terços das pessoas estão diretamente envolvidos com cinema, sei que elas

“ou você tem um roteirista e aquela história é a voz dele, ou você tem o chamado filme por consenso ou por comitê, que pode ter até umas 20 pessoas trabalhando no roteiro, como é o caso de Thor” numa sala achando que ia ver um filme chinês, aí, de repente, vejo uma história em Amsterdã… Achei estranho, mas, sei lá, de repente era um filme chinês que começava em Amsterdã. Enfim, o fato é que ele era tão bom, que não consegui sair do cinema. E era Character (1997), que acabou ganhando o Oscar de Filme Estrangeiro. continente Acredita que as pessoas ainda procuram textos bem-escritos sobre cinema ou a maioria lê o que se encontra à disposição? AnA MARiA BAHiAnA Bem, eu sou uma dessas pessoas que procuram bons textos. Um bom texto, um bom filme, uma boa música. Eles contam uma história para você, facilmente. Envolvem e fazem seu cérebro acordar e dizer: “Quero ficar aqui, nessa frequência”. continente Recentemente, a roteirista e atriz Tina Fey fez uma piada na série

nos créditos. E não precisa dizer que o filme é aquela coisa, né? Enfim, só acho engraçado justamente a Tina Fey fazer esse tipo de comentário, porque, na TV, o roteirista manda. continente Por que começou a escrever sobre cinema? AnA MARiA BAHiAnA Comecei a escrever sobre música, ao mesmo tempo em que estudava Cinema, na PUC. Fazia Jornalismo e a minha opção era cinema. Minha mãe era louca por música. A casa era cheia de discos, ela tocava piano e, desde garota, andava com músicos e bandas. Por outro lado, meu pai era fotógrafo e louco por cinema. Tinha uma câmera super-8 e vivia documentando a família e a cidade. Ensinou-me a editar filme na moviola e, até hoje, guardo esse equipamento. Mas, quando comecei a escrever sobre cinema, não havia cinema, porque

assistem aos filmes de outra maneira. Já tive experiências incríveis de ver filmes ao lado de montadores, diretores de arte, com a plateia inteira de profissionais de cinema. E a maneira como eles veem o filme é completamente diferente daquela do espectador comum. Daí, veio a ideia de fazer um livro sobre isso. Porque, se você falar para a pessoa que está na plateia sobre como cada uma das etapas do filme foi realizada, ela vai mudar seu olhar sobre cinema. Assim começou o projeto do livro e, no meio do caminho, a Casa do Saber, do Rio, me perguntou se eu tinha algum curso pronto. Testei o livro como curso e foi um sucesso. Já dei as aulas diversas vezes, de Fortaleza a Caxias do Sul, em praça pública, em teatro. O livro leva o leitor a esse caminho – do começo ao fim do processo de criação de um filme –, explicando cada etapa, mas de uma maneira gostosa.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

con ti nen te

LiterAturA indÍGenA

criStovÃo teZZA

Neste mês, a Continente destaca a produção literária dos indígenas, abordando o esforço pela preservação da cultura, identidade e línguas nativas em diálogo com a sociedade contemporânea. A reportagem especial, assinada por Isabelle Câmara, indica várias ações de manutenção da memória desses grupos e inclui uma entrevista com Daniel Munduruku, importante escritor indígena com mais de 40 livros publicados. No nosso site, é possível conhecer algumas de suas publicações e também ouvir um audiobook com texto de sua autoria.

A partir dos personagens de Um encontro emocional, o autor escreveu o livro de contos Beatriz, do qual o internauta poderá ler o prólogo.

Conexão

eLiS reGinA Neste mês que marca os 30 anos de morte da cantora, ouça entrevista inédita, concedida, em 13 de dezembro de 1979, à radialista Carminha Pereira.

Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br

AndAnçAS virtuAiS

SHoWS

ciÊnciA

videoGAMeS

cineMA

Ênfase em trechos das apresentações do no Ar coquetel Molotov

Prestigiada em todo o mundo, a Royal Society disponibiliza seu acervo

As imagens iniciais de jogos clássicos da era 16-bit estão no title Scream

Adoro cinema é uma das referências para os interessados na 7ª arte

bateucastelo.com/coquetelmolotov

royalsociety.org

titlescream.com

adorocinema.com

Já bastante conhecido fora de sua cidade, o festival No Ar Coquetel Molotov é um dos eventos mais destacados do calendário musical do Recife. Trazendo bandas importantes do cenário brasileiro e nomes do circuito alternativo internacional, o evento ganhou agora uma forma de registrar partes desses shows. A produtora Bateu Castelo reuniu no seu site trechos das apresentações de grupos como Racionais MCs, Health, Guillemots, Maquinado, Copacabana Club e The Sea and the Cake e artistas como China e Rômulo Fróes.

A Royal Society é uma das mais reconhecidas instituições do mundo. Pertenceram a ela nomes essenciais para a história da humanidade, como Isaac Newton, Charles Darwin e Albert Einstein. Considerada a mais antiga academia científica em atividade, ela disponibiliza em site oficial o seu acervo de publicações e documentos, mostrando ao público a evolução do pensamento nas áreas da matemática, física e engenharia. O principal documento da página é o periódico Philosophical Transactions of the Royal Society, criado em 1665, que sobreviveu à peste negra e ao incêndio de Londres.

A proposta é bastante simples, mas garante momentos de diversão e nostalgia para quem gosta (ou costumava gostar) de videogames. O Title Scream reúne as telas iniciais de jogos clássicos, em geral das décadas de 1980 ou 1990, feitos com a resolução precária dos primeiros consoles. A estética da era 16-bit, que já ganhou diversas homenagens nos últimos anos, está presente no resgate de games como Alex Kidd, Prince of Persia e Street Fighter 2, sem deixar de fora as saudosas telas dos jogos da série Mario Bros.

Referência para cinéfilos, o site Adoro Cinema é um dos melhores para se manter ligado nas novas produções e filmagens. Além de trazer críticas, trailers e dados completos das películas, a página mescla notícias leves, como a divulgação de cartazes e especulações sobre a formação de elenco, com informações de filmes como As canções, de Eduardo Coutinho. O site ainda mantém as colunas Sétima Arte, Panorâmica e Sala Escura, dentre outras.

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IMAGENS: REPRODuçãO

blogs inFAntiL themonsterengine.com

The Monster Engine é uma série de trabalhos do ilustrador David DeVries, que decidiu pegar desenhos feitos por crianças para transformá-los em personagens hiperrealistas, muitas vezes assustadores.

LiterAturA leianatela.blogspot.com

stonesarchive.com

Baixar filmes e músicas na internet – legalmente e ilegalmente – é relativamente simples. Livros são mais difíceis de achar, mas o Leia na tela ajuda os interessados a encontrar obras com direitos autorais expirados e em formato digital.

A internet é um excelente modo de fazer circular grandes acervos de vídeos,

FuteBoL

rAridAdeS doS StoneS Para comemorar os 50 anos de carreira, a banda inglesa vai liberar músicas, i magens, dep oimentos e v ídeos p ouco c onhecidos do p úblico

imagens e documentos. Afinal, os arquivos ficam sempre disponíveis e podem ser acessados em qualquer lugar do mundo. Neste ano, uma das principais bandas do rock mundial, The Rolling Stones, completa 50 anos de carreira e, para comemorar, decidiu disponibilizar na rede diversos momentos do grupo, como performances em shows e fotografias de bastidores. O material é todo raro e vai ser liberado aos poucos, começando pelo lendário concerto The Bruxelas Affair, na Bélgica, em 1973, uma das apresentações mais memóráveis do grupo, segundo seus fãs – à época, já depois do fim dos Beatles, eles eram as principais estrelas do universo musical. Além disso, o fotógrafo Michael Putland, espécie de documentador não oficial da banda, conta suas memórias da turnê. O material está dividido em quatro seções: entrevistas, vídeos, galerias e loja. Novos arquivos inéditos vão ser acrescentados até o aniversário de 50 anos da Rolling Stones, no dia 25 de maio, e a ideia é que o site também passe a vender caixas especiais de CDs, litogravuras e materiais personalizados. DioGo GUeDeS

futeboldebolso.com.br

Insatisfeitos com a cobertura esportiva atual, Rodrigo Costa e Rodrigo Édipo criaram o Futebol de Bolso, blog que se dispõe a refletir para além dos resultados de partidas e de eventos datados.

HQS domitille-collardey.com

Em site pessoal, a desenhista Domitille Collardey mostra um pouco do seu trabalho em ilustração, com destaque para suas tirinhas da série Bureau of indisputed truths, com referências à cultura pop.

sites sobre

h u mo r com fa mosos CASAIS

PREGOS

LEGENDAS

amorvei.tumblr.com

awesomepeoplewithpregos.tumblr.com

egoestagiario.com

Mesmo os grandes ídolos, vez ou outra, aparecem junto de uma figura detestável, os chamados “pregos”, e a função do blog é reunir os registros desses encontros.

O Egoestagiário usa as fotos do site de fofocas Ego, da Globo, para criar legendas e histórias humorísticas com as celebridades.

O Amorvei recorda em imagens os casais mais inusitados do Brasil. Você lembra que Preta Gil e Caio Blat já estiveram juntos? E Cláudia Raia e Jô Soares?

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

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coN tI NEN tE

Portfólio

Daniela Hasse

A GAROTA QUE DESENHA MÚSICA TEXTO Mariana Oliveira

Provavelmente, o leitor afeito a eventos musicais alternativos, em algum momento, já deu de olhos com um cartaz de show produzido pela carioca, criada em Blumenau, Daniela Hasse. Esse contato também pode ter acontecido em estampas exibidas em vitrines brasileiras, ou numa coleção de sandálias Havaianas. O trabalho versátil da artista traz uma mescla perfeita entre o passado e o presente, com elementos vintage num contexto contemporâneo. Os traços são delicados, ora formando flores, paisagens bucólicas e meninas singelas, ou figuras mais sombrias, com uma paleta de cores diferenciada. Alguns trabalhos caracterizam-se por um matiz psicodélico que pode se materializar em estampas, conteúdo editorial, cartazes e pôsteres. Independentemente do segmento para o qual está produzindo, a música sempre está presente nas obras de Daniela Hasse. Ela cria sob o efeito de trilhas sonoras que se refletem, de algum modo, naquilo que está sendo produzido. A música é, segundo ela, uma de suas maiores fontes de inspiração. Durante sua adolescência, quando ouvia as canções de que gostava, tentava representá-las em seus traços. Além disso, cultivava uma forte relação com a cena musical da sua cidade. Daniela tinha uma banda e seus amigos faziam parte da agitação underground de Blumenau (SC) e mantinham selos independentes. Como já desenhava informalmente, recebia pedidos na base da “brodagem”, co n t i n e n t e JA N E I R o 2 0 1 2 | 1 6

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5 Página anterior 1 PaDrão

A profissionalização de Hasse se deu com a produção de estampas, como essa feita para a Hering

Nestas páginas 2 criação

Apesar de trabalhar com encomendas, a artista desenvolve ilustrações livres

3 a 5 cartazes O material gráfico para shows e festivais foi fundamental à divulgação de sua obra 6 encarte A designer é bastante requisitada para fazer layouts de discos

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coN tI NEN tE

Portfólio

7 Fantasia As flores são elementos recorrentes em suas peças 8 eDitorial Releitura de uma das capas antigas da Harpper´s Baazar, para a primeira ediçao da revista no Brasil 9 moDa Estampa produzida para a T_ Collection, exclusiva da C&A

para compor cartazes para shows e eventos. Levou um tempo para que essa diversão adolescente se tornasse profissão. Daniela Hasse formou-se em Letras e ingressou em dois empregos públicos. Nas horas vagas, seguia desenhando com sua caneta Bic, até que uma amiga que trabalhava no polo têxtil da região

indicou-a para atuar na criação de estampas da marca Colcci. Foi assim, sem qualquer orientação formal em design têxtil, que ela mudou os rumos da sua trajetória profissional. Depois de alguns anos, ela trocou de empresa, foi para a Hering, em São Paulo. Em paralelo, seguiu criando cartazes e capas de discos. Nesse processo, teve que aprimorar seu modo de produção, passando também a utilizar o computador, numa dinâmica que antes se resumia a papel e caneta. Hoje, atuando como ilustradora freelancer, seu trabalho aparece em vários segmentos, mas a música está sempre lá.

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FOTOS: diVUlgAçãO

contra manhattan

Filme pra ladrão dormir Vez ou outra, os americanos protagonizam estranhos causos, que mais parecem coisa de roteiros hollywoodianos, como a história do fã obcecado por Julia Roberts, que, após ser processado pela atriz porque a perseguia, a processou em resposta, alegando que a estrela de Hollywood destruíra sua vida profissional e pessoal. A mais nova dessas histórias bizarras é a do criminoso que entrou com uma ação contra o casal que, refém dele, usou o filme Patch Adams - O amor é contagioso para fazê-lo dormir e, assim, poder escapar da situação. Em 12 de setembro de 2009, Jesse Dimmick, acusado de homicídio, fugia da polícia em Topeka, no Kansas, quando furaram os pneus da van roubada que ele dirigia. O fugitivo se escondeu na casa de Jared e Lindsay Rowley. Ameaçados por uma faca, ambos conquistaram a confiança de Dimmick e sugeriram que assistissem ao título estrelado por Robin Williams. Durante a “sessão”, o estranho cochilou e o casal aproveitou para sair da residência e avisar a polícia. Agora, Dimmick, que foi condenado, em maio de 2010, a 10 anos e 11 meses de prisão por quatro crimes, incluindo dois sequestros, está processando os Rowley por “quebra de contrato”, alegando que lhes ofereceu uma quantia em dinheiro para se esconder na casa, e que, ao ser (supostamente) aceita, foi estabelecido um “contrato oral legal”. O filme que serviu de sonífero, Patch Adams, conta a história real do médico que inseriu humor no tratamento de pacientes graves, e é uma mistura de drama e comédia bem “água com açúçar”. Fica a dica para os insones. DÉBORa naSciMentO

cOn ti nen te

A FRASE

“Quando era jovem, pensava que o dinheiro era a coisa mais importante do mundo. Hoje, tenho certeza.”

A série American masters, dedicada ao ator e diretor Woody Allen, foi exibida pela rede de TV norte-americana PBS, no final de 2011. O realizador Robert Weide levou quase 20 anos para convencer o diretor a levar a própria história para a tela grande, em Woody Allen: a documentary, ainda sem previsão de exibição no Brasil. Um dos pontos altos da produção é o momento em que o humor autodepreciativo do cineasta faz com que ele chegue à constatação de que nunca criou um grande filme. Para Allen, Noivo neurótico, noiva nervosa, Manhattan e Crimes e pecados não resistirão ao tempo, assim como longas do nível de Ladrões de bicicleta ou A grande ilusão. O cineasta ainda confessou ter se decepcionado com Manhattan, considerado um clássico pela crítica. Na época, chegou a propor à produtora United Artists que não o lançasse em troca de um outro filme, que faria até de graça. (Pedro Paz)

Balaio a última graça

Para quem vive de palavras, é preciso pensar com rigor sobre qual será a sua setença final. Para exemplificar isso, o site BuzzFeed reuniu uma lista das 25 melhores frases finais ditas por escritores e pensadores, incluindo nomes como Jane Austen, Mark Twain e liev Tolstói. A maioria, na verdade, traz o humor atenuando o instante mórbido. “Relaxe – isso não vai doer”, escreveu Hunter S. Thompson, no seu bilhete de suicídio. Voltaire, no seu leito de morte, declinou o pedido de um padre para recusar o diabo: “Agora, meu bom homem, não é o momento para se fazer inimigos”. O primeiro lugar da lista coube a Ernest Hemingway, numa frase simples e trágica, dita para a sua esposa antes de se matar: “Boa noite, minha gatinha”. (diogo guedes)

oscar Wilde

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Fim DoS imPreSSoS deu no Comunique-se: 33% dos brasileiros julgam que, até 2050, não haverá mais jornais impressos, livros e revistas. O site divulgava o resultado de um estudo feito por uma consultoria de gestão de negócios. Algumas surpresas surgiram. Pensavase, por exemplo, que os leitores mais velhos teriam uma postura conservadora, mas foram eles que mais acreditaram no fim dos impressos (42%). Os nordestinos são ainda apegados ao papel: 62% confiam na sua sobrevivência. No que diz respeito às respostas relacionadas ao grau de escolaridade, 57% dos que possuem curso superior pensam que os impressos perdurarão, 48% dos sem curso superior também. E você? Crê no fim dos impressos? Para quando? (Adriana dória Matos)

CRIATURAS

longo DeScanSo Ronaldo Correia de Brito já está com o próximo romance pronto. Segundo o autor, o Recife, seus arquétipos e fantasmas, têm papel decisivo na trama.“Nunca fui tão possuído por um personagem, como aconteceu dessa vez. Eu dormia com esse personagem, transava com esse personagem. Era uma possessão completa”. A obra, que tem mais de 400 páginas, será lançada por sua editora, a Alfaguara, no segundo semestre de 2012. Mas esse nem é o desejo do autor: “Meus editores querem. Por mim, eu deixava o livro ‘descansando’ numa gaveta por mais 20 anos”. (Schneider Carpegianni)

Se colar, coloU Um dos nomes mais procurados da nova geração de atores americanos, Jesse Eisenberg abriu um processo contra a lionsgate e a grindstone Entertainment pelo uso indevido de sua imagem em Acampamento no inferno (Camp hell). O motivo da ação é a capa do dVd, que traz um close do rosto do ator, insuando que este seria o protagonista do filme. Na realidade, sua participação dura menos de cinco minutos. O título foi produzido em 2007, antes de Eisenberg receber uma indicação ao Oscar por seu papel em A rede social. Agora, o astro pede uma indenização de US$ 3 milhões, valor muito acima do custo da produção. Essa prática de lucrar com a fama de atores que, à época das filmagens, eram meros desconhecidos, é comum em Hollywood. Já foram alvo dela Brad Pitt, em O Príncipe das sombras (1988), e Jim Carrey, em Copper mountain (1983). (dN)

Herivelto martins (1912-1992) Por Rodrigo aguiar “Gafa”

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maurício negro

literatura encontro entre oralidade e memória de uma nação Mercado editoral brasileiro apresenta interesse crescente por obras de autores indígenas, que publicam suas histórias e suas tradições como forma de assegurar a manutenção de sua cultura, num país onde ainda resistem mais de 180 línguas nativas texto Isabelle Câmara

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con especial ti nen te JuLiana gaLVÃo/DiVuLgaÇÃo

ele conta que , certo dia, uma

estudante da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) chegou à aldeia Kariri-xokó em busca dos mitos e das lendas daquele povo indígena e que ele, de pronto, disse que ali não existiam fantasias, pois o que para os não índios é fruto da imaginação, para eles, é tudo verdade – como o hábito de falar com as árvores e, através das marcas delas, conhecer as histórias da natureza e, ainda, a história do seu povo, desde os tempos da colonização europeia. Mas nem tudo que Nhenety Karirixokó conta está devidamente registrado. Assim como entre a maioria dos povos indígenas no Brasil, boa parte das narrativas orais dos Kariri-xokó, residentes em Porto Real do Colégio, Alagoas, está guardada no imaginário. Isto se deve ao segredo dos povos, à falta de recursos para registrar casos e causos que se mimetizam com a história do Brasil ou à ideologia política da sociedade dominante para que essas mesmas histórias não venham à tona? Para o contador de histórias Nhenety, as três opções fazem parte da atual página de lutas indígenas, nas quais os povos precisam se reafirmar enquanto índios; lutar pela preservação da cultura, da memória ancestral e das línguas nativas; reconquistar o território como espaço de identidade e sobrevivência; e estabelecer lugares e não lugares de diálogo com a sociedade circundante. Não à toa, ele é um dos gestores da rede Índios Online, que articula mais de 20 povos indígenas no Brasil no ambiente virtual, em torno dos direitos culturais e históricos; da Risada – Rede Indígena Solidária de Artesanato; e da ONG Thydêwá, instituições que, reunidas, já publicaram diversas obras dos povos indígenas, seja em livro, vídeo ou na web. “O portal Índios Online é um canal de diálogo, encontro e troca. Um portal intercultural que valoriza a diversidade, facilitando a informação e a comunicação entre vários povos indígenas e a sociedade de forma geral. Buscamos o espaço virtual porque o custo é mais baixo e o alcance, bem maior”, explica. Também autor do livro virtual Arco digital, disponível no portal Índios Online, Nhenety reflete: “Por que teria que viver sempre com arco e flecha na mão? Eu

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“para mim, o computador é um arco e flecha, pois com ele posso caçar e me defender” nhenety Kariri-xokó não, agradeço a Deus por ter a internet. Pra mim, o computador é um arco e flecha, pois com ele eu posso caçar e me defender, pois ‘caço’ informações para fazer projetos que qualifiquem a vida do meu povo e, ao enviá-los e conquistar apoios, como quem atira uma flecha, defendo minha história, meu povo, minha tradição e minha comunidade”,

afirma. Através da ONG Thydêwá, os povos indígenas no Nordeste já lançaram o vídeo duplo Celulares indígenas + Indígenas digitais, alguns CDs com cantos de rojão (de trabalho) e torés e publicaram a coleção Índios na visão dos índios, que contabiliza três livros lançados.

assUMinDo a VoZ

O título da coleção justifica boa parte dessa iniciativa de registrar as histórias dos povos indígenas. Tudo começou mais ou menos nos anos 1990, quando alguns índios, cansados de verem a sua versão da história da colonização brasileira ser esquecida ou deturpada, decidiram assumir a voz nessa contação. “O brasileiro foi acostumado a ter só a versão oficial

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DIVULGAÇÃO

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1 ativista Nhenety Kariri-xokó (D) está à frente da rede Índios Online, de diálogo e troca entre povos indígenas 2-3 anos 1990 Marcos Terena é coautor do primeiro livro de escritor indígena publicado por uma grande editora

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da história do Brasil. Mas a gente, que vive dentro da comunidade indígena, tem a visão real”, defende Nhenety. Marcos Terena é precursor nesse protagonismo. Hoje, articulador dos Direitos Indígenas na Fundação Nacional do Índio – Funai, Terena é coautor de O índio aviador, de 1994, primeiro livro indígena publicado com apoio de uma grande editora (FTD). “Eu nunca fui afeito a escrever livros como forma de comunicação, mas diante da inexistência de um trabalho para a educação do jovem não indígena, principalmente, achei que poderia retratar a vida indígena para a juventude brasileira que luta por algo na vida.” Depois dessa, outras iniciativas pontuais surgiram, como um livro do

povo Xukuru de Ororubá (PE), Xucuru, filhos da mãe natureza, voltado para a educação escolar indígena, e Trioká Hahão Pataxi – Caminhando pela história pataxó, de Katão Pataxó (BA), ambos publicados com recursos dos autores e de instituições apoiadoras. Um dos escritores indígenas mais profícuos é Daniel Munduruku. Autor de mais de 40 livros publicados por diversas editoras, entre eles Meu avô Apolinário, Coisas de índio, Histórias de índio, O banquete dos deuses, O sinal do pajé e As serpentes que roubaram a noite, Daniel organizou a coleção Memórias ancestrais (Editora Fundação Peirópolis), série de livros infantis que traz narrativas de diversas nações indígenas brasileiras. “A escrita é uma conquista recente para a maioria

dos 230 povos indígenas que habitam nosso país desde tempos imemoriais. Detentores que são de um conhecimento ancestral aprendido pelos sons das palavras dos avôs e avós antigos, esses povos sempre priorizaram a fala, a palavra, a oralidade como instrumento de transmissão da tradição, obrigando as novas gerações a exercitarem a memória, guardiã das histórias vividas e criadas”, explica Munduruku. Os livros escritos pelos indígenas contam sobre identidade, utopia, cumplicidade, esperança, resistência, deslocamento, transculturação, mito, história, diáspora, coragem, orgulho da etnia, tradição, cultura, educação, sociedade da informação, preconceitos, luta pelo território e pela sobrevivência. Falam também das danças, músicas, dos ritos, da cosmovisão, da relação mágica com a natureza e seus elementos. Dão conta de um universo infindo de situações contadas, vividas e sonhadas. Mostram-nos que a palavra indígena, ainda que somente falada, cria, enfeitiça, embriaga, gera monstros, faz heróis, remete-nos à

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nossa própria memória ancestral e dá sentido ao nosso estar no mundo. Mais: recontam uma história milhões de vezes escrita sob a ótica não indígena, o que gerou nesses povos o sentimento de impotência e esquecimento, seja de si mesmo, do seu povo, da sua cultura ou da sua história. “É preciso escrever, ‘mesmo com tintas de sangue’, a história que foi tantas vezes negada. A escrita é uma técnica. É preciso dominar essa técnica com perfeição para poder utilizá-la a favor da gente indígena. Técnica não é negação do que se é. Ao contrário, é afirmação de competência. É demonstração de capacidade de transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o ser, na medida em que precisa adentrar no universo mítico para dar-se a conhecer ao outro. O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re) encontro. Ela não destrói a memória, ao contrário; a reforça, e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral”, acredita Munduruku. “A literatura indígena é um arranjo ou uma estratégia que o índio

“a designação ‘indígena’, ‘nativa’ aguça a noção de identidade, de resistência” Graça Graúna criou para educar o branco na sua própria linguagem, seja ele aluno ou professor. As histórias contadas que sempre foram tratadas como lendas ou mitos pelos ‘especialistas em índios’ são, na verdade, fórmulas para energizar o espírito, manter a língua e também a história do povo vivas”, complementa Marcos Terena. Para a escritora indígena Maria das Graças Ferreira, mais conhecida como Graça Graúna, que é professora universitária, com graduação e pós-graduação em Letras e tem atuação marcante em programas de educação, a literatura indígena é tão universal quanto a literatura brasileira, portuguesa, hispânica, entre outras manifestações artísticas. “A designação

‘indígena’, ‘nativa’, ‘periférica’ ou ‘minorias’ não aumenta ou diminui a noção de estética; mas aguça a noção de identidade, de resistência.” A escrita indígena é a materialização da oralidade. E, segundo eles, cada livro representa uma conquista rumo à afirmação da identidade. Numa dedicatória do livro Mãe-d’água, uma história dos Cariris (Ed. Scipione), o coautor Tkainã, do povo Kariri-xokó, faz questão de dizer que “oferece uma lembrança de uma vitória dos Karirixokó”. Depois de anos de opressão racial e cultural, ver-se abrir a porta desse diálogo é um grande feito para os indígenas. “É a tradução de uma voz silenciada pelo colonizador e que procura demonstrar um conteúdo filosófico e atual para quem deseja, por exemplo, conhecer a natureza, a cultura e as vivências física e comunitária dos povos indígenas”, define Terena. Um capítulo à parte, nesse contexto, são os livros da Global Editora, que, desde os anos 1990, investe na temática indígena. Dessa forma, lançou dezenas de autores indígenas, como A sabedoria das águas

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RICARDO MOURA

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e A primeira estrela que vejo é a estrela do meu desejo, de Daniel Munduruku, e O povo Pataxó e suas histórias (vários autores), ou que falam na temática, como O livro das árvores (organizado por Jussara Gomes Gruber) e Metade cara, metade máscara (Eliane Potiguara). Segundo a assessoria de imprensa da editora, esse interesse começou com o que se pode chamar de feeling do editor, ao descobrir um nicho pouco explorado e apostar nas publicações. “Depois da publicação da lei 10.139/2003, assinada pelo ex-presidente Luiz Inácio da Silva, que obriga a inclusão da História da Cultura Africana na rede curricular de ensino público e privado (visando orientar e conscientizar as pessoas da desigualdade racial), a oferta de autores/assuntos indígenas foi maior”. De acordo com a editora, foi justamente essa lei que aumentou a procura de livros com essa temática, pois as escolas têm que colocar o índio, o negro, os portadores de deficiência na grade curricular. “Alguns dos nossos livros já tiveram mais de uma reimpressão”, afirma.

o Brasil tem cerca de 180 línguas: 40 têm estudos mais aprofundados e a maioria apresenta algum tipo de pesquisa Um caso curioso registrado na Global é o do designer gráfico Mauricio Negro. Por ter ilustrado alguns livros de Daniel Munduruku, ele abraçou a causa de tal maneira, que criou uma nova coleção, na qual ilustra, cuida do projeto gráfico e da edição dos textos de autores indígenas. Ele divide a autoria de dois textos com Munduruku (A palavra do grande chefe) e com Vãngri Kaingáng (Jóty, o tamanduá). Também é coordenador editorial da Coleção Muiraquitãs (colecaomuiraquitas.blogspot. com), que, além de Jóty, o tamanduá, lançou mais duas obras: Tekoa, conhecendo uma aldeia indígena, do guarani Olívio Jekupé, e Por dentro do escuro, de Arthur Shaker, a partir dos relatos dos velhos do povo Xavante. Também ilustrou

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Graça Graúna Escritora e professora universitária, ela também tem atuação importante em programas de educação

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stella telles Doutora em Linguística, ela observa as variações de relação dos povos indígenas com a escrita

Awyató-Pót, histórias indígenas para crianças, do mawé Tiago Hakiy, Ipaty: o curumim da selva, de Ely Macuxi, e Nós somos só filhos, da potiguara Sulamy Katy. “Sempre tive atração por mitologia e filosofia, desde muito cedo, mas acho que uma afinidade profunda é que me liga à percepção indígena. A circularidade que é também comum na filosofia grega pré-socrática. O ser humano como parte da natureza. E não uma natureza à parte, sempre ao nosso dispor, como reza a linearidade judaicocristã consagrada na sociedade que herdamos que, para alguns, é apenas uma versão pop das ideias de Platão e Aristóteles. Ou seja, essa sintonia com culturas autóctones, daqui ou de qualquer outro lugar, é mais do que artística. Tem a ver com meus valores mais íntimos, religiosidade e percepção de mundo”, afirma o ilustrador. E pondera: “Este é um momento especial para o Brasil. Temos acompanhado uma vigorosa e crescente edição de livros, escritos em português (e, às vezes, bilíngues), de autores indígenas. Esse protagonismo é notável porque, até

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então, toda a literatura disponível dependeu da pena do não indígena, sob filtros culturais, macetes e cacoetes. Nosso polifônico Brasil, onde ainda resistem mais de 180 línguas nativas, tem muita história a registrar sobre o papel”. De acordo com Graça Graúna, ainda existe muita coisa a ser feita, visto que, em muitos eventos culturais, a literatura indígena ainda é uma ilustre desconhecida. “Apesar das barreiras, cabe mencionar o apoio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), da Fundação Ecofuturo, da Fundação Ford e do Instituto C&A que, há quase uma década, vem propiciando a realização do Encontro de Escritores Indígenas, em sua oitava edição”, comemora.

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lÍnGUas eM eXtinçÃo

Um relatório da ONU sobre a situação dos povos indígenas do mundo, produzido pelo Secretariado do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas das Nações Unidas e lançado em 2010, dá conta de que quase 90% das línguas indígenas no mundo devem desaparecer nos próximos 100 anos. Não à toa, o governo federal vai destinar R$ 2,1 milhões, em 2012, para projetos de documentação de línguas indígenas ameaçadas de extinção. Será a primeira vez que esse tipo de ação terá uma destinação específica de verbas no orçamento da União. A decisão do governo está ligada a pressões internacionais. O Brasil figura em terceiro lugar na lista dos 10 países do mundo com maior número de idiomas ameaçados. Segundo o Atlas das línguas do mundo em perigo, uma publicação da Unesco, no território brasileiro, chega a 190 o total de línguas condenadas ao desaparecimento. No topo da lista daquela publicação aparecem a Índia, com 198 línguas, e os Estados Unidos, com 191. Como aponta a publicação, qualquer língua falada por menos de um milhão de pessoas corre algum risco. Por esse critério, do total de quase 6 mil línguas existentes no mundo, cerca de 2.500 estão em perigo. No Brasil, estima-se

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“cada índio escreve segundo sua etnia, sua identidade, mas esses livros servem para todos os indígenas” Marcos terena que cerca de 40 línguas são faladas por menos de 300 habitantes. Na avaliação do diretor do Museu do Índio (RJ), o antropólogo José Carlos Levinho, elas devem desaparecer nas próximas duas décadas. Para Marcos Terena, escrever na língua do branco e, no futuro, ser lido por um indígena ou não defende

a estratégia de preservar, por meio da literatura, o dom da oralidade. “A oralidade, no caso indígena, é também a forma de segurança interna filosofal e de defesa diante dos avanços do colonizador, ao impor um sistema educacional que não corresponde à nossa realidade. Por isso, muitos povos no Brasil perderam totalmente a referência linguística. Como transmitir do velho para o novo, se não existe mais essa ponte, que era o idioma, a língua?”, questiona. “Cada índio escreve segundo sua etnia, sua identidade, e os livros desses autores servem para o próprio povo e para outros povos indígenas no Brasil. Quanto mais ler histórias indígenas, mais uma criança poderá valorizar seu

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GloBal

Editora investe, desde os anos 1990, na literatura indígena e já lançou mais de 20 obras com essa temática mãe-d’água

Livro sobre a lenda indígena narra a história dos Cariris, povo que vive à margem do são Francisco o menino e a flauta

Publicação faz parte da série da Melhoramentos sobre mitos indígenas somos patrimônio

Coletânea de textos de autores indígenas apresenta visões diversas de suas culturas

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povo. E quando um não índio lê nossos livros, ele começa a valorizar muito mais o indígena, pois vê que não somos incapazes; somos apenas diferentes, não inferiores”, analisa o escritor guarani Olívio Jekupé. Segundo Graça Graúna, após 20 anos da publicação do Art. 216 (da Constituição Federal), os direitos dos povos indígenas reaparecem no cenário das leis brasileiras na esfera da educação. Em 10 de março de 2008, quando o então presidente Lula sancionou a Lei 11.645, os trabalhadores e trabalhadoras do Ensino Fundamental e Médio, público e privado, foram surpreendidos com a obrigação de incluir o estudo da História e Cultura Afro-brasileiras e indígenas.

“Infelizmente, a história e a cultura na percepção indígena são questões ainda pouco estudadas no Brasil. O nosso futuro reside também no respeito às nossas tradições, respeito ao nosso jeito de ser indígena (seja na aldeia ou na cidade grande). Esse modo de ver não é um pensamento isolado, mas um pensamento que vai ao encontro do desejo coletivo, que é o direito à cultura, à literatura, à educação escolar. Isso faz parte dos desejos indígenas, isto é, dos direitos humanos.” Stella Telles, doutora em Linguística pela Vrije Universiteit Amsterdam e professora do Departamento de Letras e da Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), salienta que a relação dos

povos indígenas com a escrita é muito variada, tanto a familiaridade e funcionalidade da escrita quanto o respeito ao tempo de contato que os diferentes grupos têm com a escrita. Segundo ela, o Brasil tem em torno de 180 línguas, das quais, aproximadamente, 40 têm estudos mais aprofundados e 120 apresentam algum tipo estudo. “A Constituição de 1988 assegurou o direito à língua e à diversidade cultural para as minorias do país, garantindo uma educação escolar diferenciada e de qualidade, intercultural e bilíngue (ou multilíngue, como acontece em alguns grupos no Amazonas). Com a larga diversidade sociocultural, os variados graus de contato com a realidade não índia, as dificuldades de acesso aos grupos e a diferença numérica da população existente entre as mais de 200 etnias, a realidade da educação escolar indígena não é nada uniforme no Brasil. Muitas vezes, a escola ainda funciona de forma muito semelhante ao passado: atuando como agência de controle, impondo um modo de vida alheio às tradições, não raro nocivo e impiedoso com os índios. Uma boa notícia é que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional complementa a Constituição e favorece a busca da implementação de uma educação diferenciada, que atenda às peculiaridades socioculturais das etnias. Dessa forma, a escrita, especialmente no universo escolar, se coloca como instrumento fundamental para que o diálogo entre as sociedades possa ser menos desigual”, avalia a professora. Ela adianta que as línguas indígenas já vêm sendo estudadas e catalogadas por pesquisadores, sobretudo linguistas, e alunos da pós-graduação, mestrado e/ ou doutorado de diversas universidades no Brasil e no exterior. “Esses estudos dão suporte ou mesmo fornecem as bases para a escrita e o seu fomento em muitas comunidades indígenas. Muitos dos estudiosos também se engajam e desenvolvem trabalhos de educação junto aos povos com os quais trabalham. Sem dúvida, esses são uma contribuição e um compromisso continuado que a academia tem para com os povos indígenas, reconhecendo que a manutenção da diversidade inclui direito à acessibilidade e à livre escolha”, assegura.

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con especial ti nen te DIVULGAÇÃO

Entrevista

daniel munduruku “o repertório das histórias é inesgotável” Professor doutor em Educação pela USP, mestre em Antropologia Social (USP), com graduação em Filosofia, História e Psicologia, Daniel também é relações públicas do Instituto Indígena Brasileiro da Propriedade Intelectual e conselheiro-executivo do Museu do Índio(RJ), entre outras funções. Mas é pela literatura que ele se torna conhecido entre o público mais amplo. Sobre essa atividade, ele fala na entrevista a seguir.

continente Qual o lugar da literatura indígena no Brasil? Daniel MUnDUrUKU A Literatura Indígena (Lind) é um fato novo, hoje, no Brasil. Ela foi chegando aos poucos para ocupar um espaço vazio ou que era timidamente ocupado pela literatura indigenista, mas que não tinha a mesma originalidade, por ser uma repetidora de estereótipos, prestando um desserviço para a educação brasileira. A Lind faz parte de uma ação dos próprios indígenas no sentido de oferecer ao cidadão brasileiro uma nova forma de relação com nossos povos. Por si só, e sem o desejo de ser de todo pedagógica, ela educa o olhar da população para as riquezas indígenas que foram sendo deixadas para trás no processo civilizatório brasileiro. Creio que esse seja seu lugar. continente É preciso chamar essa escrita de indígena, tratá-la como uma escrita de minorias? Daniel MUnDUrUKU Já me perguntei diversas vezes sobre isso. Nunca cheguei a uma resposta definitiva, mas creio que seja necessário, sim, considerar essa literatura como a escrita de uma minoria. É preciso lembrar ao Brasil que os povos indígenas foram deixados

ocultos em boa parte do processo colonialista. Foram, e ainda são, povos que sobreviveram por teimosia, por coragem e por puro instinto de sobrevivência. Não há motivo, agora, para homogeneizar isso, tirando esse recorte étnico da literatura produzida por indígenas. Pensar que, há alguns anos, era defendido o fato de que os nossos povos não chegariam ao século 21, e que, hoje, estamos dominando as técnicas e tecnologias do mesmo mundo que não nos queria é algo formidável! É preciso que seja dito a todos. continente De onde surgiu a percepção de que estava na hora de registrar e contar para os não índios as histórias seculares dos povos indígenas? Daniel MUnDUrUKU Não creio que haja qualquer possibilidade de marcar isso no tempo. Creio que as oportunidades foram aparecendo

– como um sopro ancestral – e as pessoas foram sentindo que a hora era aquela. E penso que não se trata apenas da literatura escrita (há alguma contradição?), mas esse sopro chamava as pessoas de todas as áreas de conhecimento. Foi dessa maneira que muitos jovens ingressaram nas universidades; alguns fizeram cursos de cinema e vídeo e outros ingressaram no mundo da música; outros ainda passaram a perceber que a cultura a que pertenciam era seu patrimônio mais rico e passaram a resgatá-la através do teatro. Há um fio muito tênue entre oralidade e escrita, disso não se duvida. Alguns querem transformar esse fio numa ruptura. Prefiro pensar numa complementação. Não se pode achar que a memória não se atualiza. É preciso notar que ela, a memória, está buscando dominar novas tecnologias para se manter viva. A escrita é uma dessas técnicas,

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mas há também o vídeo, o museu, os festivais, as apresentações culturais, a internet com suas variantes, o rádio e a TV. Ninguém duvida que cada uma delas é importante, mas poucos são capazes de perceber que é também uma forma contemporânea de a cultura ancestral se mostrar viva e fundamental para os dias atuais. Enfim, foi um mesmo movimento e cada pessoa que estava “conectada” ao sopro ancestral pôde entrar na onda e desenvolver seu próprio talento. Acho isso muito mágico! continente Ainda existem muitas histórias a serem contadas? E as que fazem parte do sagrado de vocês permanecerão guardadas? Daniel MUnDUrUKU O repertório das histórias é inesgotável. Se cada indígena escrever apenas sobre seu povo, irá produzir um gradiente de livros sem fim. Irá contar suas memórias, suas aventuras, os amores que acontecem na mata, as epopeias dos heróis criadores, as histórias dos encantados, o mundo dos espíritos; poderá criar mil ficções com as histórias que ouviu, viu ou viveu; poderá contar a história de sua gente, sua resistência, suas lutas de sobrevivência. Vai poder falar sobre os conhecimentos da natureza, as relações sociais, as divergências internas, enfim, assunto não irá faltar. As histórias que são consideradas sagradas já estão sendo reveladas, faz tempo. O problema é que a mentalidade ocidental não consegue captar. O tempo todo ela está sendo falada, contada e cantada, mas há uma cegueira proposital entre as pessoas muito racionais. Muitas já estão usufruindo esse saber espiritual. Estão abertas para esse conhecimento partilhado. continente Qual a diferença entre a escrita indígena e a que está posta na sociedade vigente? Daniel MUnDUrUKU São fios tênues, creio eu. A escrita indígena tem um caráter holístico. Um autor indígena não fala apenas de si, ele conta a história de muitos, de todos. Ele tem compromisso com sua comunidade, seu povo. Por isso, busca sempre falar para além de si mesmo. Ele/ela sabe

que seu dom de escrever, contar, cantar, dançar, pintar não é um fim em si mesmo. Sabe que é um dom coletivo, que deve estar a serviço do todo a que pertence. Talvez por isso eu não sinta que haja qualquer tipo de concorrência entre os escritores indígenas. Parece que há um acordo silencioso entre nós, no qual a alegria pelo sucesso do outro é um bálsamo para todos. A escrita ocidental é, basicamente, um exercício de si mesmo. Cada pessoa se sente sua própria empresa, e seu talento é seu ganha-pão. Não há comprometimento com a realidade ou com a vida. O autor ocidental é um solitário, alguém que busca sempre suplantar alguém. Costuma não gostar de crítica e finge não gostar de bajulação, quando, na verdade, vive, deseja, busca ser bajulado pela “grande” obra que produziu. Acho isso um perigo! continente Existem dezenas de livros, feitos por indígenas, sendo publicados hoje no país, uns impressos e outros nos meios virtuais, por falta de recursos. Na sua avaliação, por que você conseguiu esse destaque, a ponto de conquistar o apoio de grandes editoras? Daniel MUnDUrUKU Na verdade, acho que não fui exatamente eu que consegui essa proeza. Tenho livros em algumas editoras grandes (Ática, FTD, Moderna, Companhia das Letras), mas os livros que me dão melhores retornos são os publicados por pequenas e médias editoras (Global, Brinque Book, Callis). Há outros autores que também são publicados por grandes casas editoriais, até mais que eu. O que ocorre é que algumas editoras sabem trabalhar com nossos livros, outras não. A nossa relação com essas instituições é muito variada e sei de livros que encalham por pura falta de competência delas, pois não perceberam que a literatura indígena precisa ser trabalhada de forma diferenciada. Não se pode oferecer a Lind como um mesmo produto. É preciso que os divulgadores conheçam minimamente o que estão vendendo, para poder ter sucesso. E também não basta que o livro seja de um indígena, para que tenha qualidade literária. Tem editora que pensa assim e isso é um erro grosseiro.

continente Como você avalia a aceitação da sua obra? Daniel MUnDUrUKU Não saberia responder de uma forma estatística a essa pergunta. O que sei é o que vejo acontecendo há 15 anos, quando lancei meu primeiro livro pela Companhia das Letrinhas: as escolas estão lendo meus livros e os governos os estão comprando. Por si só, já são termômetros dessa aceitação. Será que compram porque sou um autor indígena ou por que o que escrevo repercute na vida e no coração de quem me lê? Não saberia dizê-lo. O que posso afirmar é que meu trabalho tem sido reconhecido no Brasil por importantes instituições, como a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e a Academia Brasileira de Letras (ABL). Da mesma forma, já recebi um prêmio Jabuti – CBL e ganhei um premio do CNPq pelo conjunto da obra. Acho que isso é a prova de que meu trabalho é reconhecido e tem alcançado seu objetivo principal: mostrar que os povos indígenas estão vivos e presentes no cenário brasileiro. continente Existe alguma vontade político-social nessa escrita, de diálogo com a sociedade não indígena, aceitação ou algo do gênero? Daniel MUnDUrUKU Minha intenção é clara: sou um indígena brasileiro. Quero afirmar isso o tempo todo aos que me leem. Quero dizer que não sou índio, não sou um adjetivo na memória do Brasil. Quero dizer que não sou uma imagem e menos ainda uma definição negativa, estereotipada ou um incapaz. Quero dizer que meu povo é Brasil. Que minha gente é guerreira. Que meu sangue é de paz. Quero mostrar que sou digno de ser brasileiro e que não tenho vergonha de pertencer a um povo marginalizado. Quero que o Brasil entenda que meu povo não é vítima da história... É a própria história que se constrói, dia após dia, num país que fechou os olhos para nossa sabedoria e, consequentemente, para sua própria ancestralidade. Se isso tudo não for uma vontade político-social ou uma tentativa inglória de diálogo, eu não sei mais o que ela pode ser.

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CIÊNCIA Um astrônomo no telhado de casa

Observações das estrelas, feitas por Jorge Marcgrave, na cidade maurícia, foram pioneiras ao usar método científico moderno, defende o professor Oscar Toshiaki Matsuura texto Marcelo Abreu

Ao longo da história, alguns

governantes esclarecidos reuniram em torno de si sábios e estudiosos de várias áreas que fizeram avançar o conhecimento sobre o mundo. O conde Maurício de Nassau (1604-1679) cumpriu esse papel durante a ocupação holandesa de Pernambuco, no século 17. Entre os especialistas que trouxe para a cidade, estava o naturalista e astrônomo alemão Jorge Marcgrave, que montou no Recife o que é considerado o primeiro observatório astronômico das Américas. Essa história é retomada no livro O observatório no telhado, publicado pela Cepe Editora. O autor é Oscar Toshiaki Matsuura, astrônomo paulista e professor aposentado da Universidade de São Paulo, que é enfático em afirmar: a presença desse observatório marca o início da ciência moderna nas Américas. Matsuura conta que foi “fisgado” pelo tema, quando fazia doutorado sobre cometas, nos anos 1970, ao ler referências a Marcgrave na história da astronomia no Brasil. Após aposentarse de sua cátedra na USP, decidiu mergulhar na pesquisa, mas, como surgiram outras atividades – foi diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins do Rio de Janeiro, diretor do Observatório do Ibirapuera, em São Paulo, editor associado da revista Astronomy Brasil –, somente nos últimos

o Recife abrigou, por quatro anos, um observatório com equipamentos avançados, dentro dos padrões europeus anos pôde aprofundar mais a pesquisa sobre o observatório da época de Nassau. Georg Marggraf (esta seria a grafia original em alemão para Marcgrave) nasceu na cidade de Liebstadt, na Saxônia, hoje leste da Alemanha, em 1610. Antes de completar 17 anos, saiu de casa para estudar e percorreu universidades em cidades como Estrasburgo (França), Basileia (Suíça), Leipzig (Alemanha) e Szczecin (Polônia), até ir parar em Leiden, na Holanda. Ao longo de 10 anos de andanças, como um mochileiro renascentista, não obteve grau em nenhum lugar, mas estudou assuntos diversos como matemática, astronomia, botânica, medicina e química, como era próprio dos sábios da época. Depois de pouco mais de um ano estudando na Holanda, acabou embarcando, em 1638, para participar do projeto da Companhia das Índias Ocidentais em Pernambuco.

No Recife, construiu um observatório no telhado da residência de Nassau. Usando uma luneta, quadrantes e sextantes, fez observações e registros do céu austral (o que fica ao sul da linha do Equador), um pioneirismo na época. Após cinco anos no Recife, viajou para Angola, na África, em 1643, e lá morreu precocemente, logo ao chegar, aos 33 anos. A aventura do professor Oscar Matsuura foi reconstituir essa história a partir dos documentos que sobraram da época. Suas fontes primárias foram os dois manuscritos atribuídos a Marcgrave, redigidos em latim; um, localizado no Arquivo Regional de Leiden, e outro, no Observatório de Paris. Além disso, foram utilizadas como fontes uma aquarela do pintor Zacharias Wagner, que mostra em detalhes a residência de Nassau e o observatório; algumas biografias sobre Nassau nas quais Marcgrave é citado de forma periférica; e uma biografia sobre o próprio astrônomo, publicada por seu irmão Cristiano (Matsuura prefere aportuguesar os nomes próprios, seguindo prática já usada no século 17). Ao longo dos séculos, as pesquisas de Marcgrave foram incorporadas por outros estudiosos e seu nome nunca foi desconhecido. Na área

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reprodução de aquarela de zacharias wagner

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das ciências naturais, por exemplo, o alemão foi célebre durante 200 anos porque seu livro Historia naturalis brasiliae, publicado em Amsterdã, em 1648, em coautoria com Guilherme Piso, tornou-se referência por conter descrições detalhadas de animais, pássaros, peixes e insetos do Brasil. Pela primeira vez, porém, um pesquisador faz um estudo mais aprofundado do papel de Marcgrave como astrônomo nos trópicos e o que ficou de suas observações. Com base na sua extensa pesquisa, Matsuura ressalta a importância do trabalho realizado no Brasil. “O que me pareceu de extremo valor para a história da astronomia em Pernambuco é que, por uma sorte muito grande, o Recife pôde abrigar, por quatro anos, um observatório com equipamentos construídos com os melhores e mais avançados padrões da própria Europa, onde foi usado o método da ciência moderna, procurando atingir a máxima precisão e sistematicidade possível. De todo o mapa do Novo Mundo nas Américas, o Recife é um pontinho

o trabalho de Marcgrave foi importante porque o céu austral era desconhecido no século 17 que teve o privilégio de acolher essa ciência com toda a primazia, particularmente a astronomia.” Entretanto, ele chama a atenção para o fato de que o importante não é o observatório em si, pois os índios já observavam o firmamento. O importante é o método usado no Recife, uma prática que não era mais calcada somente no estudo dos clássicos do passado, mas voltada para a observação concreta da natureza, processo que estava em curso na Europa da época com Galileu Galilei (1564-1642) e René Descartes (1596-1650). Curiosamente, ambos passaram por Leiden, tiveram livros editados na cidade, na qual Marcgrave pode ter se encontrado com eles.

MAnUScRitoS De LeiDen

Para chegar às conclusões que estão em seu livro, foi fundamental a Oscar Matsuura estudar os manuscritos de Leiden, elaborados por Marcgrave antes de vir ao Brasil. “Isso foi muito iluminador, o que ele fez no estágio em Leiden tem uma grande particularidade. Do ponto de vista da história universal da astronomia, representa uma das etapas mais revolucionárias dessa ciência.” A cidade tinha uma universidade famosa por abrigar intelectuais refugiados de perseguições. Em 1609, Galileu já usara a luneta pela primeira vez para observações do universo, mas, numa praça, não em um observatório propriamente dito. Isaac Newton (1642-1727) viria a estabelecer os preceitos da física moderna logo depois. “O período de Marcgrave no Brasil se situa nesse intervalo muito curto da emergência da astronomia moderna”, defende Matsuura. O observatório no telhado revê a discussão sobre a localização do mirante e chega à conclusão de que

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ricardo Moura

Página anterior 1 inStRUMento

entre os objetos utilizados para observação astronômica, está o sextante

nestas páginas 2 cASA De nASSAU

na cúpula da residência do explorador holandês, foi instalado o observatório de Marcgrave

3 MAtSUURA autor afirma que o observatório marca o início da ciência nas américas

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ele foi instalado somente na residência de Nassau, construída onde hoje está a esquina das ruas do Imperador e Primeiro de Março, no bairro de Santo Antônio. Ao contrário do que já se afirmou, o observatório não foi transferido posteriormente para o Palácio de Friburgo, que estava em construção na época nassoviana. Para o astrônomo paulista, houve uma série de coincidências que gerou erros cronológicos, o que deu asas à imaginação e consolidou visões erradas sobre a localização. “Os manuscritos não falam de tranferência do equipamento, a análise das observações mostra que isso não ocorreu. Não fazia sentido transferir porque eles já sabiam que iam embora para a Holanda. Quando Nassau se mudou para Friburgo, já era o fim do seu período em Pernambuco.” Do ponto de vista das observações, o trabalho de Marcgrave foi importante porque o céu austral era amplamente desconhecido no século 17. Ele queria estudar as fases do planeta Mercúrio, que é de difícil observação no norte. No

hemisfério sul, Mercúrio aparece mais alto no horizonte e pode ser visto de forma mais efetiva. “Era uma prioridade científica na época”, diz Matsuura. “Além disso, ele foi assíduo, observou todos os eclipses lunares que valiam a pena. Ele queria observar cometas, mas não houve nessa época”. Estudou também os satélites de Júpiter, fazendo anotações que conferem com os cálculos atuais. Segundo o astrônomo paulista, se Marcgrave tivesse voltado para a Holanda e compilado todos os dados recolhidos aqui, teria feito o primeiro catálogo mais preciso do céu visto do hemisfério sul. Quem acabou fazendo isso foi o inglês Edmund Haley (1656-1742), algumas décadas depois, usando uma luneta na ilha de Santa Helena, localizada no Atlântico Sul.

conFLUÊnciAS MiSteRioSAS

Num tempo em que o expansionismo europeu chegava a outras partes do planeta, por que o Recife teria tido a sorte de abrigar esse observatório? Oscar Matsuura acredita em “confluências misteriosas que

fazem as coisas acontecerem”. Para ele, a figura de Nassau dentro da Companhia das Índias Ocidentais é excepcional. “Teve visão diferente, humanista, tinha formação científica, era um renascentista tardio, frequentava reuniões de intelectuais. Ele criou um background que permitiu as pesquisas de Marcgrave. Isso acontecer em Pernambuco é o cúmulo da sorte. Houve colonização holandesa em outros lugares, mas não havia um Nassau. Nesse sentido, não houve desenvolvimento científico e cultural em outros lugares, até onde sei.” Os trabalhos de ingleses e franceses nessa área são posteriores. Apesar das novas iniciativas para se construir observatórios com o intuito de divulgar a ciência e a astronomia, Matsuura diz que, no estágio tecnológico atual, o que conta mesmo são os consórcios internacionais, que constroem e usam grandes telescópios. É o caso de projetos como o Observatório Gemini, no Havaí e no Chile, e do Observatório Europeu do Sul, na Alemanha e no Chile, em que cientistas brasileiros também atuam. Além disso, as condições de observação no Brasil são consideradas muito ruins, devido à luminosidade e à poluição atmosférica, o que, na época de Marcgrave, com sua luneta ainda rudimentar, não fazia a menor diferença. Matsuura acha que o pioneirismo do Recife nessa questão não pode descambar para um “ufanismo bobo do tipo ‘somos os melhores’”. Para ele, o fato histórico deveria gerar consequências para o futuro. “Se o Recife é o berço da astronomia, isso traz responsabilidades, se tem pedigree, tem que agir como tal. Primeiro, isso precisa ser valorizado, absorvido, reconhecido e transformado em senso comum. Em segundo lugar, acho que os pesquisadores teriam de aprofundar estudos históricos e se apropriarem do tema.” Ele acredita que o fato deve estimular as autoridades a olhar com carinho para o assunto. “A história da astronomia no Brasil ainda não foi encampada pela universidade. Está procurando um amparo e isso cabe ao Nordeste e ao Recife”, diz Matsuura.

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CORTEJOS Sob as bênçãos de Rosário e Benedito

Com rituais realizados no dia da Festa de Reis, que encerra o ciclo natalino, Taieiras de Laranjeiras marcam lugar histórico por sua atuação sociopolítica, cultural e religiosa de matriz nagô TEXTO Ana Lira FOTOS Alejandro Zambrana

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É impossível falar de Laranjeiras,

em Sergipe, sem citar as taieiras – e não é porque elas são uma das principais expressões culturais da cidade. Existe uma relação mais profunda entre a entidade que elas configuram e a dinâmica do município que nos impede de colocá-las no lugar de uma simples manifestação folclórica, repetida a cada ano. Em sua trajetória, as taieiras carregam um modo de vivenciar e se posicionar no município que marca a história da região e reverbera até hoje, mais de um século depois de seu aparecimento. Esse tempo, contudo, é incerto. Ainda na década de 1970, Beatriz Góis Dantas fez uma pesquisa para determinar os primeiros relatos sobre

Ainda que seja incerta a data de surgimento das taieiras, seus cortejos remontam a coroação dos reis do congo a presença das taieiras no estado, e não encontrou informações muito claras sobre o início dos cortejos. Na obra A taieira de Sergipe, ela escreve que a manifestação também existia em Alagoas, na Bahia e no Rio de Janeiro; e que, em terras sergipanas, ocorria nas cidades de Laranjeiras, Lagarto e São Cristóvão, ainda no

período escravocrata, como um dos ritos sincréticos nascidos na época da coroação dos reis do Congo. Desde aquela época, os rituais são realizados durante a Festa de Reis, celebrada em 6 de janeiro, mas a homenagem é para Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, os santos negros do Brasil. Com o domínio católico e a segregação das igrejas, eram construídos templos distintos para brancos, pardos e negros. Em Laranjeiras, a igreja dos negros era a de São Benedito, edificada na colina com acesso para as bordas da cidade, pois, na época, os negros não podiam circular pelas ruas centrais. A exceção ocorria durante esses festejos específicos. As taieiras

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Página anterior 1 PRociSSÃo

O cortejo da tarde finaliza a participação das taieiras na Festa de Reis

Nestas páginas 2 SUceSSÃo

Escolhidas pelos orixás, Maria do Espírito Santo e Bárbara Cristina dos Santos são líderes espirituais do grupo

3 bAStidoReS Bárbara Cristina ajuda Maria do Espírito Santo a costurar as roupas das taieiras

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preparavam o ritual meses antes, com ensaios e confecção dos figurinos. O grupo era composto por elas, duas rainhas (uma delas chamada rainha perpétua, que assumia o dever de participar até sua morte), duas lacraias, que carregavam as sombrinhas para proteger as rainhas, um rei e um ministro acompanhados de dois capacetes, que fazem a segurança do rei, e, por fim, um patrão, que carrega à frente do grupo um tambor de couro de animal cujo toque marca os cantos e as danças das taieiras. Esse grupo de mulheres vestiam roupas coloridas e chapéus feitos de papel crepom enfeitados com flores. Na mão esquerda, carregavam

cestas e, na direita, levavam um bastão ornamentado com fitas. Era formado por dois cordões liderados por guias e, à frente dele, o patrão encaminhando o cortejo. Pelas ruas de Laranjeiras, agregavam pessoas ao longo da caminhada até a Igreja de São Benedito, onde todos assistiam à missa. Após a cerimônia, as mulheres rendiam homenagem aos santos negros, cujo ápice era a coroação da rainha das taieiras. O padre retirava a coroa de Nossa Senhora, pousava na cabeça das rainhas negras e as taieiras faziam o ritual de louvação. Encerrado o louvor, elas saíam cantando sem dar as costas para o altar e seguiam pela cidade a visitar as

casas em que havia presépios ou eram convidadas a se apresentar. Nessas casas, eram recebidas com festa, bolos, doces, bebidas e outros mimos que as posses dos donos permitiam ofertar. Em seguida, retornavam à casa da líder do grupo para descansar, almoçar e prepararse para a procissão no final da tarde.

LoUVAÇÃo

Não está claro se a estima pelas taieiras, na época da escravatura ou nas primeiras décadas após a Lei Áurea (1888), se assemelhava à de hoje, nem se sabe como seus cantos e danças eram interpretados por uma sociedade segregacionista, que definia um papel de servidão

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para a mulher. Esse ponto é significativo porque alguns cantos eram religiosos ou firmavam os preceitos morais da época, mas outros discutiam as diferenças sociais e ironizavam a sociedade. A configuração e o lugar que as Taieiras de Laranjeiras ocupavam na história dessa manifestação no país, no entanto, mudou bastante quando Umbelina Araújo (Bilina) assumiu a liderança do grupo. Ela nasceu em 1897 e foi criada com a avó “que não gostava de estudos”, portanto, não teve educação formal e aprendeu a se posicionar por meio dos preceitos da tradição nagô. Diante da morte da mãe, ela foi escolhida pelos orixás para

As cores das roupas e adereços das taieiras relacionamse àquelas atribuídas aos orixás, como o vermelho de iansã dar continuidade ao trabalho na Irmandade de Santa Bárbara Virgem e à frente das taieiras, em qualquer situação política, social e econômica. As duas atividades, até então, eram separadas. Embora o ritual fosse sincrético, a correspondência ocorria na louvação dos santos e não havia outros elos mais diretos com a cultura

local do nagô – tanto é que as Taieiras de Lagarto e São Cristóvão e de outros estados brasileiros nunca possuíram essa característica que singularizou o grupo de Laranjeiras. Bilina criou elos fortes: atribuiu às roupas das moças as cores de Iansã (Santa Bárbara), com predominância para o vermelho das blusas e o amarelo ouro das faixas, e representou as cores de todos os orixás nos laços e traçados de fitas que cobriam as saias brancas. Em seguida, mudou o trajeto do cortejo, que passou a incluir uma passagem pelo Porto do Rio Cotinguiba, com o intuito de louvar os orixás e homenagear Iemanjá, antes da caminhada em direção à Igreja de São Benedito.

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4 PRePARAtiVoS Terreiro da Irmandade de Santa Bárbara Virgem reúne participantes 5 VeStimentA Coroa, capa e cetro compõem vestimenta que se refere à realeza africana

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Ela alterou também a configuração do grupo: os adultos participariam apenas em algumas funções, como rainhas e lacraias. Todas as taieiras e demais personagens masculinos do grupo foram substituídos por crianças e pré-adolescentes. Essa decisão visava assegurar uma das principais características do culto nagô em Laranjeiras: o respeito à pureza. As meninas e meninos deveriam ser virgens e não podiam namorar enquanto participassem do grupo. Assim, a rotatividade nas taieiras era constante e, quando os jovens queriam sair, davam lugar a novas crianças. O legado de Umbelina Araújo se estendeu ainda aos cantos. Ela inseriu trechos da própria história por meio

dos versos“na rua da cacimba/ quem manda sou eu”, demonstrando o poder que exercia sobre a comunidade. A sua relação com a população de Laranjeiras e das cidades vizinhas garantiu a permanência e manutenção do grupo durante as seis décadas em que ela liderou as atividades e construiu uma base para atuação das suas sucessoras, nas mais variadas condições de dificuldades da Irmandade e de conflitos sociais.

PeRSeGUiÇÕeS

Durante a ditadura militar, a atuação das mulheres da Irmandade evitou que o terreiro de Santa Bárbara Virgem fosse fechado, em meio a um dos vários ciclos de perseguição aos cultos afrodescendentes. Por sua vez, em meados da década de 1990, quando dona Lourdes dos Santos, sucessora de Umbelina, conduzia o grupo, um padre de origem estrangeira, recémnomeado pela paróquia, não permitiu que as taieiras entrassem na igreja. Elas realizaram o ritual do lado de fora e a repercussão foi tanta, que ele foi transferido e outro assumiu, com a condição de acolher a cerimônia anual do grupo. O diálogo com a paróquia local, desde então, tem sido acolhedor. Durante os 30 anos em que dona Lourdes esteve à frente da Irmandade

e das taieiras, os princípios gerais de Umbelina foram mantidos e, exceto por uma pequena modificação nas roupas, quase nada foi mudado no grupo. A principal transformação ocorreu nas relações com as políticas de cultura, por meio da articulação para que o grupo fosse reconhecido como patrimônio e, como as demais manifestações culturais, recebesse alguma ajuda do poder público para a sua manutenção. Essa subvenção, no entanto, era mínima: todo ano, a Irmandade recebia o material necessário para fazer as roupas e adereços para os cortejos, contava com um cachê simbólico em apresentações nos eventos culturais e teve um CD com os cantos gravado em 2003. O restante da estrutura continuava sendo mantida por elas, com os apoios recebidos nas atividades cotidianas, até o falecimento de Dona Lourdes, em 2004, quando uma nova transformação começou a ocorrer.

SUceSSoRA

A escolhida pelos orixás como sucessora de Dona Lourdes foi Bárbara Cristina dos Santos, que, à época, estava com 16 anos. Mesmo não sendo surpresa a sua nomeação, a ascensão da jovem à função de santidade do

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cOn ti nen te

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terreiro nagô mais tradicional de Sergipe e, assim, à liderança das taieiras gerou conflitos. Alguns integrantes da irmandade se retiraram e outros mestres culturais relutaram em reconhecê-la como entidade maior, mesmo que estivesse sob a tutela de dona Ciza (Maria do Espírito Santo), umas das mais atuantes mulheres da Irmandade. Bárbara, então, foi construindo um papel bem-definido nas atividades dos dois grupos. Primeiro, encerrou um ciclo de analfabetismo formal

entre as ialorixás da Irmandade, formando-se em Pedagogia. Em seguida, abriu diálogo com a juventude da cidade, aproximando novas pessoas tanto da casa de Santa Bárbara Virgem quanto das taieiras. Isso foi importante porque a permanência do grupo depende, também, de participantes, e as mudanças no perfil identitário, religioso e social dos adolescentes trouxeram situações que ela precisava considerar. Por exemplo, elas recebem pessoas de qualquer religião, mas, enquanto

pais procuram a Irmandade para colocar os filhos no grupo, outros não permitem a participação por causa de sua origem nagô. Outro desafio é o preconceito de alguns participantes das igrejas evangélicas, que condenam as cerimônias aos orixás, e vêm acolhendo um número cada vez maior de crianças e adolescentes em suas atividades. A Irmandade tem optado pelo diálogo e confiado no respeito que possui na cidade para lidar com as diferenças. Bárbara crê que a falta de informação sobre a cultura nagô e a

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6 exPectAtiVA As taieiras esperam o momento de iniciar o desfile nas ruas da cidade de Laranjeiras 7 RitUAL A rainha das taieiras recebe a coroa de Nossa Senhora, no momento mais esperado da cerimônia 8 PeRSonAGenS Os meninos encarnam os papéis de rei, capacetes, ministro e patrão

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sua relação com as taieiras ocasionam esses desentendimentos, mas, como suas antecessoras, continua batalhando junto com Ciza para manter a cerimônia a cada ano. Para isso, preparou-se para atuar mais efetivamente na formação das pessoas e apoiar as ações da Irmandade em espaços formais de discussão de políticas públicas de cultura. O esforço para criar articulações rendeu às taieiras, em 2008, o Prêmio Culturas Populares – Mestre Humberto de Maracanã, do Ministério da Cultura.

O dinheiro ajudou a manter o grupo nesses três últimos anos. Agora, Bárbara, que foi considerada Mestra de Cultura, também está aprendendo a fazer projetos para concorrer a editais públicos e buscar apoios para as atividades do grupo, que, em 2012, não deverá receber mais apoio da Secretaria de Cultura local. Enquanto encaminham essa etapa da trajetória das taieiras, Bárbara e Ciza se empenham para receber retornos de quem realiza trabalhos sobre a Irmandade e as

taieiras. Atualmente, o acervo mais organizado sobre o grupo está no anexo da biblioteca da Universidade Federal de Sergipe, em Laranjeiras. O grupo não possui boa parte dos filmes, artigos, reportagens, fotografias e outros documentos que são gerados sobre ele, mas há o desejo de reunir todo esse material. Um novo momento para as taieiras está começando e o investimento na preservação da própria memória pode ser um passo bem importante para os próximos anos.

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PARIS Um passeio de bicicleta

Com quase 400 quilômetros de ciclovias e um eficiente sistema de aluguel do veículo, a capital francesa revela um jeito próprio de circular sobre duas rodas texto e fotos Augusto Pessoa

o outono europeu transforma

a paisagem e avisa que o inverno está chegando. Pelas calçadas da capital francesa, milhares de folhas denunciam o final da estação e conferem um colorido especial aos já consagrados cartões-postais da cidade: Torre Eiffel, Catedral de Notre-Dame, Obelisco de Luxor, Arco do Triunfo, Museu do Louvre. Numa cidade com tantos ícones, a escolha da forma de se locomover pode fazer toda a diferença. Com uma rede de metrô fantástica, mas quase que inteiramente subterrânea, uma alternativa interessante é a boa e velha magrela. Mas, se você pensa que pedalar pelas ruas de Paris é um programa reservado apenas para os franceses, a boa notícia é que a prática está cada vez mais consolidada entre os visitantes também. E o detalhe mais interessante é que não será preciso levar sua bicicleta na bagagem. Graças a um sistema de aluguel – o Vélib –, extremamente eficiente, conhecer a cidade sobre duas rodas não é privilégio dos seus moradores. Arregace a barra da calça e se aventure. Já faz algum tempo que os parisienses descobriram que essa é uma das melhores maneiras de curtir o que a cidade tem de mais bonito. Em cada calçada, as bicicletas se

multiplicam. Se, antes, predominava as de estilo Ceci, sempre na cor cinza, hoje elas estão mais coloridas e diversificadas. O que não muda, mesmo nas mais modernas, é a onipresença da cestinha, uma espécie de marca registrada e acessório indispensável na hora de levar para casa a tradicional baguete, flores ou qualquer outra coisa. Paris parece ter sido construída para as bikes, já que conta com ciclovias que contabilizam mais de 400 quilômetros – um recorde em áreas urbanas. A sedução do pedal é tanta, que, em 2011, a prefeitura local anunciou um plano que será executado até 2014 e que visa transformr a cidade na metrópole mundial das bicicletas. Além de aumentar em 30% a já extensa malha de ciclovias, o projeto pretende criar mil novas vagas de estacionamento e investir pesado nas vias de sentido duplo, zonas especiais em que os carros não podem ultrapassar 30 quilômetros por hora. Imagine o prazer de subir até a última torre da Notre-Dame, a mais famosa catedral gótica da Europa, erguida em 1163 e, depois, voltar para o hotel pedalando por uma das pontes que conecta a Île de la Cité ao centro de Paris. Ou, que tal, iniciar a pedalada no Arco do Triunfo, construído para

comemorar as vitórias de Napoleão e, em seguida, descer a badalada Champs-Élysées até encontrar o Obelisco de Luxor, uma obra de arte egípcia de mais de três mil anos?

PeDALADAS

São tantas as possíveis rotas dentro da área urbana de Paris, que muitos preferem pedalar sem mapas, um jeito ainda mais “local” de conhecer os atrativos. Se você alugar uma bike, por exemplo, numa das dezenas de estações que circundam o Museu do Louvre, pode atingir a Torre Eiffel em aproximadamente 40 minutos, margeando o Rio Sena e passando por alguns dos mais visitados pontos turísticos da cidade. Ao chegar à Praça do Trocadero, é só devolvê-la em alguma estação e aproveitar uma das melhores vistas da torre construída para a Exposição Universal de 1889 e carro-chefe do diversificado circuito de atrações turísticas da cidade. Criado em 2007, o sistema Vélib é uma parceria entre a iniciativa pública e privada, e opera 24 horas por dia, durante os sete dias da semana. Usar o sistema também não é difícil, basta ter um cartão de crédito. Depois de encontrar uma das mais de 1.500 estações, é preciso cadastrar-se e criar uma senha de quatro dígitos, que

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Página anterior 1 incremento

Prefeitura vai aumentar em 30% a já extensa rede de ciclovias e criar mil novas vagas de estacionamento

2-4 uSuárioS

Antes reservado aos franceses, veículo consolida-se entre turistas

3 PAnorâmicA

Uma das vantagens de percorrer a cidade de bicicleta é usufruí-la completamente

será usada sempre que retirar uma bike. Um débito de 150 euros é préautorizado pelo cartão, mas só será cobrado, se o ciclista não a devolver ao final do passeio. O slogan do sistema é “A cidade é mais bonita de bicicleta”. A primeira vantagem de percorrê-la sobre duas rodas é não ser obrigado à escuridão de um túnel de metrô. Depois, como existem estações de Vélib a cada 300 metros, faz-se o percurso em várias fases, uma estratégia usada por visitantes e moradores. Como a primeira meia hora é gratuita, executivos e estudantes usam o transporte para deslocamentos curtos e, assim, conseguem circular pagando apenas 1,70 euros, que corresponde

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à assinatura de um dia. Essa prática incentiva a rotatividade das bikes nas estações e ajuda no desafogamento do trânsito nas áreas centrais da cidade.

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VeÍcuLo correto

Além de ser agradável e saudável, pedalar pelas ruas de Paris também resulta numa atitude de “sustentabilidade”, a demanda contemporânea. Calcula-se que o sistema Vélib é capaz de gerar reduções de até 30 mil toneladas de CO2 na atmosfera a cada ano. Isso sem contar com os milhares de parisienses que não abrem mão da bicicleta na hora de sair de casa. O fato mais recente em relação a isso é o aumento do subsídio dado pelo governo para a compra de bicicletas elétricas, numa clara política de incentivo ao uso de transportes alternativos. Metade da população parisiense não possui carro próprio e os

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espaços destinados aos pedestres e às bicicletas só têm aumentado a cada ano. Um bom exemplo são as vias ciclísticas de sentido duplo, onde as bikes podem circular na mesma pista que os carros. Nesses trechos, os automóveis são obrigados a obedecer uma velocidade tão baixa, que facilmente podem ser ultrapassados pelas bicicletas. Claro que um sistema desse nível exige, antes de tudo, educação por parte dos ciclistas e, principalmente, dos motoristas. O mais curioso é que a capital francesa – com população de quase 2 milhões de habitantes – tem conseguido equacionar os problemas relativos à mobilidade, enfrentando a difícil realidade de ser

calcula-se que o sistema Vélib é capaz de gerar reduções de até 30 mil toneladas de co2 na atmosfera, a cada ano uma cidade densamente populosa. Para se ter uma ideia, existe mais gente querendo se deslocar ao mesmo tempo em Paris que em São Paulo. Sem uma rede de transportes eficiente, educação e consciência por parte da população, locomover-se ali seria uma tarefa penosa. Nesse contexto, uma das decisões mais

acertadas do poder público local foi apostar no uso da bicicleta. Considerada a mais arborizada cidade da Europa, Paris agrega ainda a fama de ser a capital mundial dos parques e áreas de lazer. Em cada bairro, dezenas deles servem como oásis em meio ao burburinho urbano. Qualidade de vida e mobilidade são faces de uma mesma realidade nessa cidade que ensina ao resto do mundo como aliar desenvolvimento urbano e respeito ao ser humano. Barata, sustentável e inesquecível. Essas são as três palavras que refletem a escolha de uma visita às ruas de Paris sobre uma bicicleta. A brisa do Rio Sena, acariciando o seu rosto, será apenas mais uma das recompensas.

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ELUCIDÁRIO Para profissionais do ramo e curiosos Publicação de Fernando Cerqueira Lemos explica, em seus quase 400 verbetes, um espectro vasto de temas e objetos culturais TEXTO Artur A. de Ataíde

Às vezes dizemos, daqueles que

FOTOS: REPRODUÇÃO

sabem demais sobre tudo: “Fulano? Fulano é um leitor de dicionários”. A frase esconde um juízo ambíguo, tanto sobre Fulano quanto sobre os dicionários. Parece falar de alguém que se dedica, provavelmente com muito tempo a perder, à estéril tarefa de memorizar, como um robô que nada discerne, alheado das premências do mundo e da vida, um catálogo de coisas desarticuladas, relacionadas uma à outra senão pela ordem alfabética. É como aquela personagem de Sartre que planejava tornar-se inteligente lendo de A a Z, sem distinções, toda a biblioteca de sua cidade. Não é exatamente admiração o que nos inspira. Completamente outro, no entanto, é o papel de “leitor de dicionários” que o Pequeno elucidário (Cepe Editora), do crítico de arte Fernando Cerqueira Lemos, nos convida já de início a desempenhar, capturando-nos com um subtítulo irresistível: “Útil para leiloeiros, marchands, decoradores, colecionadores, arquitetos, estudantes, antiquários e você... que não é nada disso, mas é um curioso”. E o sequestro dos curiosos, de fato, não fica apenas na promessa da capa: seus quase 400 verbetes, complementados por 82 apêndices, cobrem um espectro bem variado – e curioso – de assuntos. Deve estar pronto o leitor para passar do processo de oxidação do estanho, e de como recuperar as peças por ele acometidas, para a história do expressionismo paulista, sem deixar de aprender algo, claro, sobre a função das falsas portas nos mastabas do Antigo Egito, sobre as várias teorias acerca do surgimento do

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PoRceLAnA

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PAineL

entre os verbetes, vários referem-se a utilitários e decorativos produzidos com este material Metal, madeira, tecidos. arte e artesanato. Técnica e criação. religiosidade e laicismo perpassam os temas do Pequeno Elucidário

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milho, sobre a técnica da cera perdida ou sobre as provas irrefutáveis em favor de Santos Dumont, e contra os irmãos Wright, na polêmica sobre a invenção do avião. Mas, além de encontrar respostas para perguntas como o que é o niello, o que é sheffield plate ou quem foi Antoine Daum, o leitor poderá se inteirar, eventualmente, de verdadeiras histórias de detetive. Há, por exemplo, o caso das três peças de majólica italiana que integram o acervo do Paço da Vila Viçosa e do Museu de Arte Antiga, ambos em Lisboa, e que exibem a marca peculiar de uma asa negra. O desenho não consta dos catálogos dos maiores especialistas do mundo no assunto,

Além de encontrar respostas sobre objetos e tais, o leitor poderá se deparar com informações detetivescas que aparentemente nunca a teriam visto, mas pode ter sido aplicado pelo conhecido ceramista italiano Orazio Fontana, ainda no século 16, na cidade de Urbino, condição que talvez compartilhe, aliás, com outra marca de forma semelhante, reproduzida no alto e à direita da página 188 de certo catálogo francês.

Talvez menos borgiano, mas também interessante, é o caso da tambuladeira, misterioso utensílio de prata listado em mais de uma centena de inventários do tempo dos nossos bandeirantes, mas de forma e função ainda não determinadas de modo conclusivo. A coincidência de algumas de suas descrições com a de certa peça seiscentista, encontrável à página 147 de um livro sobre a ourivesaria portuguesa, faz pensar se não corresponderiam à menos misteriosa tembladeira, cujo nome, acrescente-se, faria referência à sensação tátil de quem nela transporte o vinho ou a sopa: a vibração dos líquidos seria facilmente transmitida às mãos pela fina folha de metal com que era fabricada.

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riCardo meLo/divuLgação

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SeGReDo cAULiM

E que dirá da matéria branca lustrosa, não fundível, que só chegou à Europa com as Grandes Navegações do século 16, embora já mencionada por Marco Polo no século 13? Fabricada na China pelo menos desde o século 7, a porcelana só teve seu segredo milenar descoberto – um segredo chamado caulim –, em âmbito europeu, no século 18, por obra do incansável alquimista alemão Johann Friedrich Böttger. Antes disso, alguns acreditavam que punhados de certa substância arenosa, moldados em formas de metal, queimavam por 15 dias num forno à lenha, no qual, em seguida, esfriavam por mais 20 dias, até serem dali retirados

Apesar da predominância do descritivo, o texto também se reserva à análise e argumentação por um ministro especial do imperador chinês, que examinava peça por peça dando o seu aval, e garantindo ao Império seu quinhão. À parte o estímulo à curiosidade implicado em semelhantes exemplos, outra diferença fundamental afasta o Pequeno elucidário de um catálogo desinteressante e aleatório de coisas.

no LAnçAMento Trabalho de Fernando Cerqueira Lemos reflete sua experiência como jornalista, crítico de arte e marchand

Trata-se da clave em que todo esse conhecimento é partilhado, que se deixa tingir sem cerimônias pela fonte nada impessoal de onde provém. Resultado de um trabalho de décadas, dividido entre a pesquisa nos livros e o contato efetivo com esses tantos objetos e técnicas num escritório de arte, traço que reflete a condição múltipla do autor, de jornalista, crítico de arte e marchand, o texto dos verbetes se divide entre a informação especializada, a experiência prática individual e a pessoalidade da conversa, com seus parênteses e ponderações circunstanciais. Há lugar mesmo para a eventual suspensão cética dos juízos últimos, casos em que ao leitor é facultado tomar lugar no debate. Esse espírito, que anima os melhores momentos do volume, parece uma transposição, para os tempos atuais, do ar de pesquisa empírica e pessoal sempre em aberto, nunca conclusa, que reconhecemos nos antigos vocabulários da língua, a exemplo do de Rafael Bluteau, de 1712, e do Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente foram usados e que hoje regularmente são ignorados, de Santa Rosa de Viterbo, de 1798, ambos frequentemente lembrados pelo autor. O tom do pequeno prólogo, “À guisa de explicação”, e a escolha de Montaigne para uma das epígrafes do livro talvez apenas reforcem essa impressão. Esteja pronto quem lê, portanto, para entender de que modo o azul dos quadros pintados com a azurita transforma-se em verde com o passar dos anos, ou para saber algo sobre as expedições enviadas por D. João II em busca das terras lendárias do Preste João. Se é verdade que pode se tratar de um mero livro de referência, como se vê, é também verdade que não deixa de ser, o Pequeno elucidário, um bocadinho a mais que isso.

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CRISTOVÃO TEZZA Em torno de um (des)encontro

Em Beatriz, seu primeiro livro de contos, o autor catarinense, radicado em Curitiba, retoma os personagens de Um erro emocional TEXTo Schneider Carpeggiani

divuLgação

Se fosse um estrategista, um técnico de futebol, Cristovão Tezza teria armado a jogada perfeita. Na primeira página do romance Um erro emocional (2010), encontra-se o medo de dois jogadores diante não do pênalti, mas da entrega a essa coisa imediatista que convencionamos chamar de “paixão”, por falta de outro substantivo de lastro mais fulminante. Uma mulher abre, displicentemente, a porta para um estranho que conhecera há poucas horas. Jogada errada. “Cometi um erro emocional,” confessa o estranho, logo nas primeiras linhas, logo no passe inicial do livro. “Beatriz se imaginou contando à amiga dois dias depois – foi o que ele disse assim que abri a porta, o tom de voz neutro, alguém que parecia falar de uma avaliação da Bolsa, avançando sem me olhar como se já conhecesse o apartamento, dando dois, três, quatro passos até a pequena mesa adiante em que esbarrou por acaso”, narra Tezza, visivelmente fascinado com a destreza dos seus “jogadores” em não saberem se movimentar em campo. Como estrategista, Tezza é um sádico dos melhores. A movimentação dos dois jogadores – um escritor e uma revisora – pelo romance persiste por poucas horas, com frases pela metade (travestidas em confissões), uma garrafa de vinho, uma pizza prestes a esfriar e, na mente do leitor, um pedido, que só agora tive como fazer ao escritor: “Tezza, por favor, explique o que é um erro emocional!” “É engraçado, mas não sei a resposta. O romance Um erro emocional nasceu para ser um conto, com a perspectiva do conto, e a ideia de que alguém possa cometer ‘um erro emocional’ era o gancho do que teria sido um breve divertimento narrativo. Há um toque de sedução na expressão do personagem Paulo Donetti, que quer seduzir Beatriz, e usa a expressão para causar um estranhamento irônico. Só que o texto tomou um rumo muito mais denso e deu no que deu: virou romance. Quis também brincar com o paradoxo, a ideia de que a paixão amorosa seria um espécie de erro das emoções. Aliás, pensando bem, acho que é mesmo”, respondeu, deixando elipses, como costuma fazer todo escritor que se preze.

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CaroL guedes/FoLhaPress

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conSAGRAção autor recebe, em 2008, das mãos da atriz Fernanda montenegro o Prêmio Portugal Telecom de Literatura pelo livro O filho eterno

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Donetti, o tal jogador de sentimentos errados, e Beatriz retornam em Beatriz, primeiro livro de contos de Tezza, que utiliza agora seus “superpoderes” como escritor para montar e desmontar, outra vez, o destino desses personagens, com lances entre o carinho e a fúria divina. Não se trata de uma continuação do romance, e, sim, do seu princípio. Agora, Tezza nos conta as preliminares do “erro” e faz uma espécie de making of de como criou Beatriz e Donetti, de como se deixou fascinar pelos dois e de como ele próprio, de certa forma, também abriu aquela mesma porta para um erro emocional. “Agora sei mais sobre Beatriz e Donetti do que sabia ao inventá-los”, revela. Esse catarinense, radicado em Curitiba, virou unanimidade com O filho eterno (2007), romance que mexeu em verdadeiros e imaginários arquivos familiares. Nas entrevistas que fiz com Tezza, desde que o livro foi lançado, era incrível sua tranquilidade em prosseguir a carreira, como se nada houvesse acontecido, sem rastro de estrelismo, apesar das expectativas altíssimas que a obra havia lançado nas suas costas. Lembro que conversamos rapidamente, logo após ele ter recebido o Prêmio Portugal Telecom por O filho eterno. Foi durante a festa de premiação, em São Paulo, em 2008,

“o pior dos mundos é escrever uma tese como se fosse um romance, ou escrever um romance como uma tese”, diz tezza com champanhe e uísque voando sobre nossas cabeças. Nas poucas palavras que trocamos, ele só conseguia falar sobre uma história de amor que monopolizava sua criação, à época. Recordo que ele corrigiu a palavra “amor” logo em seguida. Não era bem “amor”, mas um jogo entre duas pessoas, regido por uma atração fulminante, com toda a ação acontecendo em pouquíssimas horas, como um Ulisses emocional. Não houve muita discussão sobre o livro, então vencedor, naquela noite. Tezza parecia já ter dito tudo o que fora necessário sobre tal obra, ainda que não se negasse a continuar repetindo as mesmas respostas para o batalhão de repórteres. Escritores precisam esvaziar as suas criações, abortá-las, logo que elas são publicadas. Eles seguem em frente, a despeito de nossas dúvidas, de nossa insistência em retornar aos mesmos parágrafos, às mesmas frases que nos (des)completam.

A tranquilidade perante expectativas de anos atrás permanecia intacta na entrevista que tivemos no mês passado. Ele parecia ainda mais distante do seu best-seller. Mas sua editora (especialista em livros que alcançam grandes cifras) nos lembra o passado, na capa de Beatriz, que chega às livrarias revestido pelo mercadológico aviso “Autor de O filho eterno”. “Sim, já me sinto completamente distante da repercussão extraordinária que O filho eterno teve. Do ponto de vista do meu trabalho, essa repercussão não me mudou, rigorosamente, em nada. Como sempre, sigo minha vida de escritor, que é escrever um livro depois do outro…”, afirmou Tezza, reprisando a segurança das nossas conversas anteriores. “A capa é sempre uma opção da editora, e eu não me opus a essa menção. Afinal, uma das tarefas mais difíceis para um escritor brasileiro é se tornar realmente conhecido dos leitores. Parece simples, mas é muito difícil. Como O filho eterno foi o livro que, de certa forma, me tornou mais conhecido no Brasil (quer dizer, a popularidade sempre bastante limitada da literatura…), não faz mal relembrar aquele título ao leitor potencial”, ponderou. Os contos de Beatriz são precedidos por um longo prólogo (“Sei que prólogos estão fora de moda – até a palavra é engraçada, com seu sabor antigo”, desculpa-se, nas primeira linhas do texto), em que Tezza “contextualiza” o fato de só agora estar lançando o primeiro livro de contos. É como se houvesse uma espécie de pudor em publicar uma obra de narrativas breves, após ter escrito alguns dos romances mais elogiados da literatura brasileira contemporânea. Mas não se trata de pudor, ele corrige, como se estivesse evitando que eu cometesse

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INDICAÇÕES algum erro (crítico ou mesmo emocional) no julgamento do seu livro. “Não é pudor. É, digamos, vocação. Passei mais de 20 anos sem escrever um conto. Isso diz algo da minha inclinação como escritor. Mas como não estamos condenados a nada na vida, depois de O filho eterno, comecei a escrever os contos de Beatriz, que me deram bastante prazer, a ponto de eu organizálos em livro. O prólogo foi o modo que encontrei para contar a sua gênese e conversar um pouco sobre literatura, numa perspectiva não acadêmica”, reflete. O personagem Donetti é um escritor trapalhão, melancólico, entediado com a iconoclastia típica do mundo literário no qual se vê obrigado a habitar ... Ele é a promessa de criador de uma obra-prima que não consegue concretizar. Quando conhece Beatriz, enxerga na conquista amorosa a chance de criação de uma nova realidade, que não está conseguindo realizar na escrita. Beatriz é sua miragem, sua “Morte em Veneza”. Nas hábeis mãos de Tezza, essa “transferência criadora” parece um joguete, para que a história discuta questões literárias, para além de um viés teórico. O autor nega, no entanto, qualquer manifestação teórica deliberada. “De modo algum. Muito das discussões temáticas que atravessam o livro vem diretamente da vida dos personagens. Afinal, Donetti é um escritor, tudo que ele faz e diz gira em torno dessa realidade. Beatriz é uma mulher ‘literária’, que também vive em torno da palavra escrita. Assim, é normal que eles ponderem sobre esses tópicos ao

longo da narrativa. Mas, em nenhum momento, cedo à tentação acadêmica de fazer da ficção um ‘campo de ensaio’ teórico. São dois movimentos incompatíveis: a pressuposição de verdade de todo pensamento científico e a inescapável ambiguidade de toda linguagem ficcional. O pior dos mundos é escrever uma tese como se fosse um romance, ou escrever um romance como se fosse uma tese. Espero não ter cometido esse erro”, afirma. “A propósito, estou terminando um ensaio com toques autobiográficos, que trata dessas questões. Vai se chamar O espírito da prosa, e sairá no próximo ano, pela editora Civilização Brasileira”, adianta Tezza. Apesar da força das histórias de Beatriz, o livro tem sido recebido com certa restrição por parte da crítica, que costuma tecer longos elogios a toda produção lançada por Tezza. Na verdade, é incrível o quanto a imprensa literária, no Brasil, guarda ressalvas em relação aos contos. Foi o caso da recepção morna que Milton Hatoum e Ronaldo Correia de Brito tiveram, há pouco, com seus recentes (e ótimos) livros de contos. Tezza parece ser a mais recente vítima dessa visão limitada. Ele tem consciência disso, mas não é o tipo de autor que se acomoda a fórmulas prontas ou que resista a abrir sua porta a possíveis (e irresistíveis) erros: “É fato que o mercado editorial hierarquiza os gêneros. Para as editoras, o romance é de ouro, o conto de prata e a poesia… bem, a poesia sofre demais para ser publicada. Mas não acho que, para os leitores e para a crítica, haja um preconceito contra o conto. É uma noção que precisa ser revista”.

ESTUDO

JOÃO BATISTA MELO Lanterna mágica: infância e cinema infantil Civilização Brasileira

gosta de cinema, literatura e mundo infantil? então, este livro lhe interessará. o autor, que é curta-metragista, faz um apanhado histórico da produção cinematográfica para crianças, desde o seu início, em 1900, ao qual agrega uma leitura crítica.

POESIA

ROBSON SAMPAIO Arrecifes (Coletânea & novos poemas) edição do autor

há poetas que, para viver, se alojam em profissões. há profissionais que, fora de seus campos de trabalho, exercitam a poesia. Caso desse jornalista que, fora das redações, veste-se de poeta e canta o recife. No presente volume, ele versa sobre a cidade, gentes, paisagens e manifestações culturais populares.

CONTO

CÍCERO BELMAR Aqueles livros não me iludem mais a Girafa

Curiosa a estrutura desse livro, cujos contos vão crescendo em espiral, à medida que a leitura avança, isso, se o leitor respeitar a leitura das primeiras às últimas páginas. o argumento/conto inicial é intrigante: um catador de papel recebe de uma estranha – rica – uma biblioteca inteira, para fazer dela o que bem quiser.

INFANTOJUVENIL

ÁLVARO MAGALHÃES A Mata dos Medos Comboio de Corda

um delicioso exemplar de narrativa filosófica para criança. escrita por um português, que também é poeta e dramaturgo, a história tem como personagens animais “inconciliáveis” como um ouriço, um coelho, um chapim e uma lagarta, que precisam lidar com as novidades trazidas pela primavera. as ilustrações de Cristina valadares completam a singeleza do livro.

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ricardo moura

Claquete 1

plateia inquieta e insatisfeita

Sessões tumultuadas por barulho e agitação apontam para conflito de expectativas entre espectadores texto Gabriela Alcântara

A imagem exibida na tela é de tensão: Justine – personagem de Kirsten Dunst no filme Melancolia, de Lars Von Trier –, em uma crise de depressão, está traindo o marido no jardim da casa de sua irmã, onde acontece uma festa para celebrar o seu casamento. A cena é de sexo nervoso e abrupto. Em algum ponto da sala de cinema, uma menina solta uma gargalhada, juntamente com um comentário jocoso, igualmente audível. Algum espectador reclama do barulho, e o silêncio é retomado. Em outro momento, dessa vez num cinema multiplex, a sala está razoavelmente cheia para a exibição do vencedor da Palma de Ouro em 2011. O público que foi ver A árvore da vida,

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compoRtAmento

muitas das escolhas de filmes são feitas em função do horário da sessão, desprovidas de informações sobre eles

de Terrence Malick, é heterogêneo. Diante da narrativa reflexiva e não linear do diretor, parte das pessoas ali presentes se sente incomodada. Entre conversas paralelas e agitações, alguns chegam a se retirar da sala. Houve salas de exibição, nos Estados Unidos, que colocaram avisos de que não devolveriam o dinheiro do cliente que desistisse da sessão. Em meio a ofensas e pedidos de silêncio, o espectador que foi ao cinema com o objetivo de apreciar a obra em exibição questiona-se sobre o motivo da agitação do outro. Variadas são as possíveis respostas, mas, dentre elas, uma ecoa: a de que boa parte do público de cinema no Brasil está tão acostumado às narrativas

novelescas e hollywoodianas, que, ao deparar-se com um estilo diferente, estranha e, em alguns casos, rejeita esse “novo” produto. Para o escritor Fernando Monteiro, o público atual está “viciado” no modelo narrativo do cinema “arrasaquarteirão” americano. Ele afirma que isso acontece porque “quase não temos mais contato com outras cinematografias, como acontecia há 30, 40 anos, quando filmes de outras procedências conseguiam espaço na programação ‘normal’ de salas comerciais, e não apenas naquelas chamadas alternativas, que se tornaram uma espécie de ‘gueto’ ”. Tal mudança, por parte dos cinemas comerciais, deve-se a uma ideia pré-concebida de que o público que frequenta essas salas não está interessado em consumir o cinema de diretores como Apichatpong (Tio Boonmee que pode recordar suas vidas passadas) ou, num âmbito nacional, Cláudio Assis (A febre do rato). A linha de pensamento, além de preconceituosa, é também perigosa, pois impõe barreiras ao espectador, dificultando que este crie um raciocínio crítico mais amplo em relação ao cinema que lhe é oferecido. O que acaba acontecendo é que esse espectador, considerado pelos críticos como parte do público médio, forma a ideia de que todos os filmes classificados como “de arte” e que são exibidos em cinemas alternativos, como o Cinema da Fundação, no Recife, possuem histórias muito complicadas ou sem sentido. Dessa forma, ele se vê impedido de experimentar novos contextos e ampliar seu conhecimento cultural, ficando reduzido a uma fórmula cinematográfica cada dia mais gasta e previsível. O cineasta e crítico Kleber Mendonça Filho, que é também programador do Cinema da Fundação, rejeita a classificação de “filmes de arte”, que geralmente é denominada para a grade exibida na Fundaj. Kleber acredita que esse tipo de definição dada pelo mercado facilita de maneira imprecisa a compreensão de uma obra. O cineasta diz, ainda, que sempre compara o cinema com uma refeição: “Se você come, todos os dias, arroz com batata frita e uma coca-

cola, e, na sexta-feira, alguém traz uma pizza com ovo em cima e bacon, você, provavelmente, vai ter uma indigestão muito grande”. Para o programador, cinemas como o da Fundação funcionam como uma espécie de mercearia, com produtos nacionais e internacionais. A ideia é que a grade traga sempre variedade de escolhas e estilos, para que o consumidor experimente um pouco de cada tempero, identificando-se ou não com o que lhe é proposto, mas arriscando-se de forma saudável.

DiStRiBUiÇÃo

A discussão, que começa com um questionamento do gosto pessoal daquele espectador que incomoda e interfere na sessão, acaba rapidamente apontando suas raízes, cada vez mais fortes e evidentes: a gestão dos cinemas de mercado, em sua maioria, interessada no lucro, o que acarreta a má distribuição dos filmes, fazendo com que o cinema independente – especialmente o brasileiro – se torne refém de poucas salas, procurando outras alternativas para que as obras cheguem ao público. Isso fica claro, por exemplo, no Recife, cidade considerada um dos polos de produção cultural e cinematográfica do país, e onde a programação das 44 salas de cinema multiplex é exatamente a mesma, mudando apenas os horários da grade. O espaço para outras linguagens é quase nulo, e restringe-se a uma sala considerada modelo nesse aspecto (a Fundaj) e três “cinemas de bairro” que caminham vagarosamente – Cinema Apolo, São Luiz e ETC –, mas que, ainda assim, buscam dar espaço às produtoras independentes ou menos conhecidas. A crise atinge não só o público, mas também os autores, que se veem obrigados a optar por novas formas de divulgação e disseminação de seus trabalhos, voltando-se muitas vezes à internet. E que não se engane quem pensa que esse problema é específico dos novos realizadores: recentemente, o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, um dos maiores nomes da Nouvelle Vague, resolveu voltar-se aos meios alternativos para divulgar seu último longa. Um dia

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fotos: divulgação

2 e 3 fRUStRAÇÃo apesar de terem atores conhecidos e bons orçamentos, narrativas de de filmes como Melancolia e Árvore da vida (d) ainda causam estranhamento, ou mesmo repulsa

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antes de seu Film Socialisme chegar aos cinemas, Godard disponibilizou o trabalho, na íntegra, no Youtube. Tal saída acaba tornando-se insatisfatória. Por não possuir estrutura física ideal – seja ela sonora ou visual –, a experiência de assistir a filmes no computador ou na televisão mostra-se obviamente inferior à da sala de cinema, podendo impedir que o espectador tenha sensações que se tornariam possíveis num ambiente apropriado. A solução que salta à vista é o sonhado “equilíbrio” entre grandes e pequenas produções. Kleber aponta, como exemplo, o cinema Arteplex, do empresário Ademar Oliveira, que está presente em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Fortaleza. Segundo o cineasta, “ele mistura o blockbuster de bom gosto com duas ou três salas exibindo filmes de outros estilos”. Observando a grade dos cinemas mais comerciais, Kleber acredita que a falta de diversidade é, de certa forma, tola, por não se abrir a novas experiências, embora ele saiba que “os empresários apresentam números que corroboram suas decisões”. Para o crítico Luiz Joaquim, que também é programador do Cinema da Fundação, não é por acaso que os filmes de grandes produtoras, como

A discussão, tida inicialmente como um problema de gosto pessoal, tem suas raízes na gestão dos cinemas de mercado a Globo Filmes, por exemplo, fazem sucesso – com marca aproximada de 1 milhão de pagantes por longa. Segundo ele, há uma massiva campanha de marketing para esse tipo de produto. Luiz Joaquim cita o exemplo da estreia, para convidados, de 2 Filhos de Francisco, que contou com uma equipe de jornalismo da Globo na porta de saída de um multiplex do Rio de Janeiro: “Com eles, estavam os dois cantores sertanejos, Zezé di Camargo e Luciano, cuja trajetória é retratada no filme. Ainda com os créditos finais subindo, os cantores entraram na sala pela porta de saída, eles cantavam ‘É o amor...’. Enquanto isso, os jornalistas entrevistavam os espectadores sob o impacto do longa e a presença dos cantores. A matéria foi ao ar no programa Fantástico daquele fim de semana e, não por acaso, o segundo fim de semana do filme teve uma presença maior de espectadores. Isso era algo inédito”.

O crítico Marcelo Costa concorda em que a desigualdade não está só na geografia das salas, mas também na divulgação: “Existem alguns cinemas que mantêm uma programação com variada filmografia, capaz de atrair a curiosidade do público. Mas, ao mesmo tempo, o espectador é induzido a assistir blockbusters pelo fluxo intenso de publicidade desses filmes. Ao somar a propaganda à quantidade de salas que são dominadas por grandes lançamentos, o resultado é uma luta injusta, em que filmes de menor orçamento mal conseguem espaço”. Para Costa, a noção de expectativa de público que orienta a indústria é, ao mesmo tempo, óbvia e dúbia: “A gente cria a ilusão de que tem uma fórmula moldada, e que dentro dela você sabe exatamente que peças mexer para atrair ou atender a essa expectativa de público. Mas a realidade é muito mais complexa que isso. Pouquíssimos realizadores conseguiram fazer uma leitura bemsucedida do que é uma expectativa de público. Não estou negando que existe uma fórmula fácil, com atores famosos e narrativa novelesca, mas muitos filmes pensados para grandes bilheterias acabaram ruindo, e vice-versa”. Entre casais de namorados, donas de casa, estudantes e advogados, os frequentadores de cinemas de

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INDICAÇÕES AÇÃO

plaNeta DOS MaCaCOS – a ORiGeM Direção de Rupert Wyatt Com James Franco, Andy Serkis e Freida Pinto Fox Filmes

DRAMA

VOCÊS, OS ViVOS

Direção de Roy Anderson Com Jessika Lundberg, Elisabeth Helander e Björn Englund Livraria Cultura DVD

superando a maldição das sequências, o longa surpreendeu os espectadores, contando a história do início da revolução dos macacos. com um forte teor político, mostra que os humanos podem encaixarse bem na denominação de “animal irracional”, com sua sede de poder e prepotência. o filme traz um belo comentário sobre as pessoas que estão à margem, e de como sua revolta violenta se mostra extremamente possível.

refletindo sobre a humanidade com toques de ironia e aparente nonsense, o longa do sueco roy anderson é uma das pérolas do cinema atual. lançado em 2007, e agora redistribuído pela livraria cultura, o filme, apesar de apresentar uma linguagem inusitada para a maioria dos espectadores, acaba conquistando o público, com seu tom tragicômico e reflexivo. anderson presta atenção aos mínimos detalhes, desde os diálogos à fotografia e à trilha sonora.

AVENTURA

COMÉDIA

Direção de Lima Barreto Com Adoniran Barbosa, Marisa Prado e Alberto Ruschel Versátil

Direção de Sebastián Borensztein Com Ricardo Darín, Muriel Santa Ana e Ignacio Huang Paris Filmes

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shopping abrangem vários segmentos. A maioria não nega que já chegou a assistir a filmes sem saber direito o que iria encontrar, escolhendo pelo horário de início da sessão, como o funcionário dos Correios, Rodrigo Dantas, entrevistado antes de assistir a uma comédia romântica.Dantas afirma, porém, que também se interessa por outras linguagens e formatos, como os curtas-metragens, e diz que gostaria de assisti-los antes das sessões normais. Assim como ele, outros frequentadores de multiplex demonstram interesse em experimentar outras cinematografias, como os estudantes de biologia Julião Neves e Williams Souza, que dizem ir ao cinema de shopping por questões de segurança e localização. Williams disse, ainda, que os chamados filmes de arte “atingiriam um público maior, se concentrados nos multiplex”, atendendo,

assim, a uma comodidade do público em geral. Para Rodrigo Carreiro, jornalista e coordenador do curso de Cinema da UFPE, a mudança é gradual e demorada: “O circuito exibidor teria que se expandir em direção às periferias, com redes de cinemas de bairro e ingressos mais baratos. Seria preciso reeducar visualmente o espectador, dando a oportunidade de contato com produções mais interessantes e menos baseadas em fórmulas prontas da televisão diária, das novelas ao jornalismo”. A mudançade raciocínio, ainda que tênue, sobre o gerenciamento e o consumo da programação têm sido crescente, o que pode resultar no amadurecimento do público e no refinamento cultural do país. Como afirma Marcelo Costa, a obra de arte precisa de público e este só saberá se ela agrada ou não quando tiver acesso adequado ao que é produzido.

O CaNGaCeiRO

o filme, que levou o Brasil a cannes pela primeira vez – e saiu de lá com os prêmios de melhor filme de ação e menção Especial Para música –, chega em versão restaurada, numa edição em dvd duplo. o clássico da vera cruz conta a história do bando de cangaceiros, que semeia o terror pela caatinga nordestina. a caixa conta com vários extras, inclusive raros curtas-metragens de lima Barreto, além de um documentário com depoimentos de fernando meirelles, anselmo duarte e outros nomes do cinema brasileiro.

UM CONtO CHiNÊS

a partir da história de roberto e de um chinês chamado Jun, que perambula perdido por Buenos aires, o longa fala sobre a superação das diferenças entre esses dois homens, que sequer conseguem se entender quando falam, mas estão unidos por um sentimento comum, até então ignorado. com simplicidade, o filme convida o espectador a uma afetuosa reflexão sobre o absurdo, e como este pode levar-nos às resoluções de nossos problemas.

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DESBUNDE Escracho e purpurina contra a caretice

1 vivencial Criado sob a influência do Tropicalismo e da contracultura, foi um marco transgressor na cena teatral pernambucana

Quatro décadas depois do surgimento dos grupos teatrais Dzi Croquettes e Vivencial, suas histórias peculiares ganham homenagens, livros e filmes TEXTo Pollyanna Diniz

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reunir os amigos da escola de teatro para fazer um espetáculo. O Vivencial foi criado dois anos depois, em Olinda, nas barbas da Igreja Católica. O líder e mentor Guilherme Coelho era um paraibano que queria ser monge no Tibet, mas foi parar no Mosteiro de São Bento. Encontrou outros “desindexados”, como costuma dizer, e, para celebrar os 10 anos da Associação de Moças e Rapazes do Amparo (Arma), montou um espetáculo. A tensão libertária que havia em cada um dos grupos manifestou-se em cena. “Em Vivencial I, nossa primeira montagem, a proposta era ‘seja você mesmo, busque seu eixo, saia de casa, construa, mude o mundo’”, conta. Mesmo tendo surgido depois, com proposta estética e conceitual semelhante, o Vivencial não tomou o grupo carioca como modelo. “Era a voz da contracultura. O teatro de revista,

este ano, o vivencial deverá ser lembrado no filme Tatuagem, de Hilton lacerda, com irandhir Santos como protagonista

eles queriam fazer diferente.

E conseguiram. As afinidades entre dois grupos que apontaram novos caminhos para o fazer teatral começam com o direito que deram a si mesmos de questionar o estabelecido, no momento em que a repressão vinda com o AI-5 (1968) ainda reverberava. Purpurina, cílios postiços, salto alto e escracho. O Dzi Croquettes surgiu no Rio de Janeiro, em 1972, por iniciativa de pessoas que já estavam próximas da arte, como Wagner Ribeiro, que queria

por exemplo, era muito forte aqui, com Barreto Júnior. Era pornochanchada, eles faziam coisas muito engraçadas e esse escracho a gente achava interessante. Mas não copiava. Tinha o teatro de revista, Nelson Rodrigues, Maria Bethânia, Secos & Molhados, o próprio Dzi Croquettes, a androginia. O mundo estava respirando isso”, avalia Guilherme Coelho. “Acho que fomos muito mais influenciados pelo Dzi Croquettes na época do Diversiones, que era um caféconcerto que abrimos. Os números de plateia, por exemplo, eram uma influência descarada do Dzi - embora não copiássemos, era inspiração”, reconhece o ator Henrique Celibi. Quase 40 anos depois da explosão em cena do grupo carioca e do pernambucano, suas experiências são lembradas em livros, filmes, menções. Em novembro de 2011, o Vivencial foi o homenageado do Festival Recife do Teatro

Nacional, promovido pela prefeitura local, quando houve também o lançamento da obra Transgressão em 3 atos – nos abismos do Vivencial, assinado pelos jornalistas Alexandre Figueirôa, Cláudio Bezerra e Stella Maris Saldanha. Nos próximos meses, deverá ser relembrado no cinema, já que é “referência afetiva” para o filme Tatuagem, primeiro longa dirigido por Hilton Lacerda, que tem como protagonista Irandhir Santos. O Dzi, por sua vez, teve sua história recontada em detalhes e muitos depoimentos no documentário que leva o nome do grupo, assinado por Tatiana Issa e Raphael Alvarez. Dzi Croquettes estreou no Brasil no Festival do Rio, em outubro de 2009, e saiu de lá como o melhor documentário, segundo o júri popular e também o oficial. Levou, ainda, o prêmio do público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no Cine Fest Goiânia, no Torino GLBT Film Festival, e no Los Angeles Brazilian Film Festival.

PaRa SeMPRe

“A gente não deixa de ser Dzi Croquettes. A gente não é ex-Dzi Croquettes, a gente é pra sempre. A maneira de pensar, agir, fazer, continua comigo”, diz o ator Cláudio Tovar. “Não existe ex-Viveca”, confirma Suzana Costa, uma das musas do Vivencial, ao lado da bailarina clássica que, quando percebeu, estava nos palcos “com os peitos de fora”, Ivonete Melo. Enquanto o Dzi Croquettes era formado só por homens – 13, no total (embora as mulheres, fossem namoradas, tietes, estivessem sempre rondando) –, o Vivencial tinha garotas na sua formação. Agregou, aliás, não só as mulheres. Quando, em 1978, no meio do mangue, no Bairro de Salgadinho, construíram o Vivencial Diversiones, havia shows de variedades e muitos travestis também se apresentavam. “Além de dar visibilidade positiva ao universo homossexual e se impor contra o autoritarismo político e moral da época, o Vivencial realizou um trabalho de inclusão social, oferecendo aos travestis uma oportunidade de seguir carreira artística. Ao instalar um café-concerto numa comunidade pobre de Olinda, o grupo não só incorporou aquela realidade à dramaturgia vivencial, como também

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foTos: dzi CroqueTTes//divulgação

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01-- 4

viSibilidade

Por atuar no rio de Janeiro, o dizi Croquettes usufruiu de maior repercussão, inclusive internacional vivencial

o grupo tinha em comum com os cariocas a irreverência, o senso crítico e um certo empirismo

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incluiu jovens do local nos seus espetáculos”, aponta Cláudio Bezerra. Havia no Vivencial certo empirismo que se refletia em cena. “O teatro não era aquela coisa acadêmica. Quando você perguntava pelo método e ninguém respondia, é porque não tinha método nenhum. Mas, como salvação pela palavra, foi a melhor coisa que aconteceu”, avalia Suzana Costa. Já os Dzi tiveram a sorte de contar com o americano Lennie Dale, “pai do grupo”, embora eles também estivessem longe de qualquer fórmula acadêmica. “Quando fui assistir ao ensaio, notei que os meninos tinham, assim, uma garra, uma força de vontade tão grande. O que faltava neles era uma técnica de dança”, contou Dale, numa antiga entrevista. “Então, Lennie pegou os brasileiros ‘mocoronga’ e mandou pau em cima, oito horas de trabalho”, confirmou Wagner Ribeiro, também em antigo depoimento – tanto Lennie quanto Wagner já são falecidos. O Dzi e o Vivencial tinham em comum, no entanto, o improviso, o humor, o sentido crítico no que levavam ao público. Além, claro, da revolução comportamental vivida nos palcos e fora deles. Eram contra o maniqueísmo. “A cultura dizia que homem era assim, mulher era assado e quem fosse diferente não tinha vez. E a gente disse não: ‘Ser humano é para brilhar e não para morrer de fome’. As pessoas que eram diferentes eram obrigadas a entrar em papéis sociais restritos”, pontua Guilherme

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Coelho. “O espetáculo deles não era um espetáculo gay. Havia uma sexualidade boa, masculina, feminina, homossexual. Havia uma possibilidade absoluta do exercício da sexualidade”, depõe Pedro Cardoso, no documentário Dzi Croquettes. Essa liberdade, os dois grupos levaram para a vida que, nem de longe, foi pacífica, sem conflitos. Até porque os integrantes do Dzi Croquettes e os do Vivencial moraram juntos. Assim, as relações eram intensas, as emoções viviam à flor da pele. Algumas Vivecas moraram juntas, antes mesmo da criação do café-concerto.

RePeRcuSSão

Até por conta do Dzi Croquettes ter surgido no Rio de Janeiro, o alcance que os dois grupos tiveram foi diferente. Os Dzi foram à Europa, tinham em Liza Minelli uma madrinha, fizeram temporada com teatro lotado, em Paris. Com Repúblicas independentes, darling, que estreou em 1978, o Vivencial fez apresentações em São Paulo, no Teatro de Arena

os dois grupos foram sucesso de público, embora nem sempre de crítica. acabaram dissolvidos por conflitos internos Eugênio Kusnet, e no Rio de Janeiro, no Teatro Cacilda Becker. Era uma colagem de textos de jornais, crônicas, contos e poesias de Carlos Drummond de Andrade, Carlos Eduardo Novaes, Luís Fernando Veríssimo e, ainda, depoimentos dos próprios atores. “O nome do espetáculo era uma coisa extremamente engajada e depois vinha uma ‘pinta’. A gente relativizava tudo. Em São Paulo, lembro o Plínio Marcos, o Antunes Filho na plateia. E, depois, eles queriam saber como aquilo acontecia, porque para a gente era muito natural fazer teatro daquele jeito, usando todos os subsídios para fazer cenário, figurino. Transformando lixo em arte”, conta Fábio Coelho, bailarino do Vivencial.

Tanto o Dzi Croquettes quanto o Vivencial foram sucesso de público, nem sempre de crítica, embora os talentos fossem inegáveis. Talvez por isso mesmo, por reunir tantas possibilidades artísticas, os dois grupos acabaram se desagregando. O Dzi começou a ruir por conta de uma briga que tomou proporções muito maiores do que a sua causa: um cenário que Cláudio Tovar fez para uma apresentação e Lennie Dale não gostou. O Vivencial também se desfez por conta de conflitos. “Não podia faltar céu para tanta estrela brilhar. Todos eram muito brilhantes, com muito ego. Cada um era uma entidade, todos tinham projetos, e nós demos corda para esses projetos. Sempre poli o ego de todo mundo: ‘Você é linda, vai arrasar’, enchia de purpurina. O Vivencial nasceu para brilhar”, afirma Guilherme Coelho. Há um ditado, entre o cômico e o malicioso, que afirma, bem ao estilo de deboche dos dois grupos: “Bicha não morre, vira purpurina”. O Dzi Croquettes e o Vivencial, nesse caso, só nesse, não fugiram à regra.

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U.Dettmar-mar.78/Folhapress

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ELIS REGINA Doces marcas da Pimentinha

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anos 1970 Imagem deTransversal do tempo, elogiado espetáculo, que teve disco gravado ao vivo

Nos 30 anos de morte da cantora gaúcha, fatos pouco conhecidos e fotografias inéditas são recuperados, além da última entrevista concedida no Recife texto Marcelo Robalinho

no início de 1982, Elis Regina

ligou para amigos, em Pernambuco, combinando passar alguns dias de férias em Boa Viagem e numa praia do litoral do estado, assim que terminasse de gravar o novo disco, em fevereiro daquele ano. A viagem poderia ter-se concretizado, não fosse sua morte prematura, em 19 de janeiro. Trinta anos após o falecimento da cantora, a Continente conversou com alguns de seus amigos e buscou arquivos, a fim de contar histórias pouco conhecidas a seu respeito. Encontrou fotografias inéditas, além da última entrevista concedida por Elis, no Recife. Um dos fatos mais inusitados envolve Dom Helder Câmara. Em 1978, Elis esteve no Recife com a turnê do espetáculo Transversal do tempo, e teve a oportunidade de conhecer o religioso, então arcebispo de Olinda e Recife, por intermédio da atriz e estudiosa em cultura popular Leda Alves, amiga de Elis. O encontro ocorreu momentos antes da via-sacra celebrada por D. Helder, na Matriz de São José, no Forte de Cinco Pontas, em favor da libertação do estudante Edval Nunes da Silva, o Cajá. Membro da Comissão de Justiça e Paz, ele havia sido sequestrado e preso, no dia 12 de maio, pela Polícia Federal, sob a acusação de tentar reorganizar

o Partido Comunista Revolucionário, que atuou clandestinamente durante a ditadura militar. Houve protestos de universitários, exigindo o fim das torturas e a libertação de Cajá. “Elis estava no Recife naquela época e disse que tinha o desejo grande de conhecer D. Helder. Coincidentemente, eu disse que ia encontrá-lo no mesmo dia, então ela foi junto. O encontro dos dois foi muito emocionante. Ela acabou se oferecendo para cantar na viasacra. Foi ao altar da igreja e entoou os cânticos, que foram sendo repetidos pelos fiéis. Todos ficaram sensibilizados com a coragem dela de cantar em favor de Cajá, pois ainda estávamos num período de ditadura militar”, conta Leda, que conheceu Elis através de Frei Betto, amigo em comum das duas. Pouca gente sabe, mas o arcebispo atuou nos bastidores da missa de 7º dia em homenagem à cantora, ocorrida no dia 26 de janeiro de 1982, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. O Recife foi a primeira capital no país a promover a celebração. “Cogitamos com D. Helder a possibilidade de ele rezar a missa. Mas ainda vivíamos uma época politicamente complicada e ele era muito visado. Então, preferiu ajudar

mais reservadamente, deixando a celebração para o pároco da igreja”, revela Yeda Almeida, que trabalhava como assessora local da gravadora Polygram (atual Universal Music) e era amiga de Elis. A mensagem do cartão de Natal de 1981, enviado pela cantora aos amigos, era uma citação do arcebispo: “O que há de apaixonante é que, desta vez, o esforço tem de ser de todos, por todos e para todos”. Assim como Leda Alves, Yeda e o seu marido, Adailto Almeida (representante geral da Polygram no Recife) conheceram Elis em 1978. Com a ida da turnê dela à cidade, o casal assumiu a produção local, algo que, até então, os dois nunca tinham feito. “Topamos a iniciativa para poder trazer o espetáculo dela. Tinha receio de conhecê-la, por todas as histórias que contavam sobre seu temperamento difícil. Porém, assim que cruzamos olhares, na chegada ao aeroporto, ela com Maria Rita, ainda bebê, nos braços e segurando o Pedrinho (o cantor Pedro Mariano) pela mão, sentimos uma empatia muito forte uma pela outra. Ficamos amigos de Elis e César Mariano (pianista e marido da cantora no período) e passamos a nos visitar em Pernambuco, São Paulo e no Rio de Janeiro, sobretudo nas apresentações dela”, conta Yeda.

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reprodução

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reprodução/arquIvo pessoal leda alves

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BoM HUMoR

Lula Cardoso Ayres Filho também teve contato com Elis no Recife, nesse período, e destaca o seu lado bemhumorado. “Conheci a Elis através do compositor Maurício Tapajós, que era um dos diretores do Transversal e grande amigo meu. Fomos jantar após a estreia do espetáculo, no Teatro de Santa Isabel, e daí passamos a nos conhecer melhor. Ela e César foram à minha antiga casa, em Piedade (Jaboatão dos Guararapes), durante sessões de cinema que promovi. Era

um casal muito simpático, culto e simples no trato com as pessoas, bem diferente do que falavam”, afirma Lula. Ele lembra que, numa noite, na casa de Adailto e Yeda, ouvindo o disco gravado ao vivo de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Toquinho e Miúcha, comentou como seria bom se trocassem a Miúcha e o Toquinho por Elis e João Gilberto. “De pronto, ela brincou: ‘Você está querendo o que mais? Jesus Cristo no contrabaixo e Deus na bateria?’. As tiradas dela eram muito engraçadas”, comenta.

Elis e o Quinteto Violado também tiveram uma boa proximidade. No início dos anos 1970, o irmão dela, Rogério Costa, trabalhou como técnico de som do grupo. “Rogério passava por problemas pessoais e foi trabalhar conosco por indicação de Roberto Santana, produtorexecutivo da Phonogram e amigo de Elis. Tivemos simpatia por ele, que se integrou à banda, modificando-a bastante. Isso chamou a atenção de Elis, que passou a ter uma relação carinhosa com a gente e levou Rogério para trabalhar como técnico dela, depois”, conta Marcelo Melo, um dos fundadores do grupo. Marcelo lembra que, uma vez, a cantora chegou a expor a vontade de gravar um disco com a banda. “Elis queria que o Quinteto fizesse os arranjos para um disco dela. Era um período em que estava descobrindo o som do Nordeste e se mostrava encantada com isso. Tínhamos uma sonoridade diferente da sua banda, e acho que ela queria experimentar algo novo. Chegouse a falar em criar um repertório, mas não conseguimos levar adiante a proposta, devido aos nossos compromissos profissionais”, recorda. Do Quinteto, Toinho Alves (falecido em 2008) era o grande amigo dela.

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arnaldo Barros

reprodução

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FULa Da ViDa

Mesmo com todas as qualidades, Elis também tinha o seu lado explosivo, o que lhe rendeu o apelido de Pimentinha, dado por Vinicius de Moraes. Que o diga a radialista Carminha Pereira. Em 1978, Carminha entrevistou Elis para uma matéria no extinto periódico A Semana. “Aproveitei o nome do espetáculo Transversal do tempo e sugeri ao jornal o título: ‘Uma transversal no tempo de Elis’, para retratar as preocupações artísticas dela na época. Só que o editor modificou o título para: ‘Flávio Cavalcanti só quer aparecer’, utilizando o trecho de uma fala dela sem qualquer contextualização. Isso mudou completamente o sentido e deu um tom sensacionalista à matéria. Assim que Elis viu o texto publicado, ficou fula da vida, porque parecia que eu fazia parte da imprensa marrom”, relembra. O desentendimento ocorreu na reunião

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HeRança elis brinca com o primogênito João Marcelo Bôscoli, que, adulto, se tornaria dono da gravadora Trama

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Foto RaRa Cantora em show no sport Club do recife, no final dos anos 1960

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no ReciFe d. Helder, elis e leda alves, que apresentou o arcebispo à cantora. elis se dispôs a cantar na via-sacra promovida por ele pela libertação do preso político Cajá

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eMoção Interpretação marcante de Atrás da porta, em especial de Tv

promovida por Elis com músicos pernambucanos na antiga sede da Casa do Radioamador de Pernambuco, no Espinheiro, para expor as diretrizes da Associação de Intérpretes e Músicos (Assim). Na ocasião, amigos de Carminha que conheciam Elis buscaram contornar o mal-entendido. Logo após o incidente, a radialista decidiu entregar uma carta protocolada ao jornal, informando sobre o seu desligamento, e enviou uma cópia dessa correspondência para Elis,

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Homenagens

SHOWS E MOStRAS MARCAM OS 30 ANOS DE MORtE O Recife está inserido na rota de homenagens que marcarão os 30 anos da morte de Elis, em 2012. Ao longo do ano, está prevista a realização de dois grandes shows e uma exposição multimídia na cidade. Uma das apresentações será de Maria Rita. A partir de março, ela inicia uma turnê por cinco capitais brasileiras, cantando apenas músicas imortalizadas pela mãe. Além do Recife, o espetáculo passará por São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte. Os shows serão gratuitos e ocorrerão em locais públicos. “O Recife foi escolhido pela ligação afetiva que Elis tinha com a cidade. Minha mãe sempre levava a família junto, quando ia fazer shows na cidade. Além disso, a Trama tem uma relação forte com artistas da terra”, explica João Marcello Bôscoli, filho mais velho de Elis com o compositor Ronaldo Bôscoli e diretor da gravadora. João Marcelo é o organizador da exposição que passará pelo Recife depois da apresentação de Maria Rita. A proposta é pontuar a trajetória da cantora por meio de fotos, entrevistas, figurinos dos espetáculos, imagens de shows e objetos pessoais. Um documentário e um novo livro sobre Elis, que será distribuído gratuitamente para bibliotecas públicas de todo o país, também farão parte da mostra. A capital pernambucana também está na pauta de outra série de shows, que reunirá no mesmo palco Milton Nascimento, Ivan Lins, João Bosco e Renato Teixeira, compositores lançados por Elis Regina. A turnê está sendo organizada pela Palco Produções, produtora baiana do casal Adailto e Yeda Almeida. “É uma forma de lembrar a nossa amiga”, explica Adailto. As datas e locais ainda estão sendo definidos. No final deste mês, serão lançadas duas caixas com 12 CDs cada: Elis nos anos 60 e Elis nos anos 70. A novidade é a gravação inédita de Comigo é assim, de Luiz Bittencourt e José Menezes, encontrada nos arquivos da gravadora Universal. MARCELO ROBALINHO

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arnaldo Barros

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junto com uma cópia da entrevista e da matéria original. “Elis nomeou um advogado, que encaminhou ao jornal uma carta assinada por ela reclamando da modificação feita no texto e reconhecendo que o problema não tinha sido causado por mim. Felizmente, eu tinha provas e pude mostrar-lhe que o fato ocorreu à minha revelia”, afirma Carminha. A radialista guarda uma cópia dessa correspondência até hoje. Em 13 dezembro de 1979, Carminha reencontrou Elis para uma nova entrevista, a última concedida pela cantora no Recife, para o programa Sábado Som, da Rádio Jovem Cap. Foi durante a turnê do show Essa mulher, apresentado no Teatro do Parque. A

“Gosto muito do Recife, independentemente da cultura popular, que dá uma reciclada na gente” elis Regina conversa ocorreu no Othon Palace Hotel, em Boa Viagem, na suíte em que Elis, César e os filhos estavam hospedados. A Continente teve acesso a uma cópia da entrevista. Num clima descontraído, Elis falou sobre vários assuntos. Fez um balanço da década de 1970, opinou sobre o problema da violência no Brasil, comentou sobre

a situação do músico brasileiro e contou como gravou, pela primeira vez, uma música inédita do Cartola. “Eu gosto muito do Recife, independentemente do lance da cultura popular, que é um negócio que dá uma reciclada na gente em termos de brasilidade. Ainda tem muita coisa de brasileiro para ser vista por aqui. Cada dia que passa, isso está rareando no sul do país”, afirmou Elis. Na entrevista, ela demonstrou a vontade de fazer um show na cidade a preços mais populares. “Ano que vem, se Deus quiser, volto para um espaço maior para poder cantar, afinal, para um grande público”, prometia a cantora. Em 1980, no espetáculo

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IMagens: reprodução

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entReVista em foto inédita, elis regina conversando com jornalistas, no othon palace Hotel, em dezembro de 1979

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sétiMo Dia nota publicada em jornal pelos produtores Yeda e adaílton almeida, que se tornaram amigos da intérprete

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RepeRcUssão Jornal noticia vontade da cantora de passar temporada em pernambuco, onde tinha amigos, como o compositor Capiba

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Saudade do Brasil, apresentado apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo, a roda formada no palco no final das apresentações com ela, os 13 músicos e 11 bailarinos, para dançar a canção Redescobrir (composta por Gonzaguinha especialmente para ela), era uma referência direta à ciranda, uma dança típica das praias pernambucanas, segundo Marika Gidali, criadora do Ballet Stagium e coreógrafa do show. A morte de Elis, aos 36 anos de idade, pegou todos de surpresa. Exames toxicológicos atestaram a presença de cocaína e álcool no seu sangue. Artistas e amigos chegaram a contestar o resultado, pela fama de careta da cantora. “Um mês

antes de morrer, ela ligou para mim, combinando que iria a Pernambuco com o namorado na época, o advogado Samuel MacDowell, e os filhos, para descansar por alguns dias, após a gravação do seu disco (que não foi feito). Como eu estava me mudando para a Bahia, combinei que deixaria o meu apartamento em Boa Viagem, ainda montado, para que ela pudesse ficar no Recife, e acertei com uma transportadora que faria a mudança depois da sua saída. A notícia da morte foi um choque para mim. Passei um tempo mal e até hoje sinto uma saudade muito grande dela”, lamenta Yeda. Em 20 de janeiro de 1982, o Jornal do Commercio noticiou sobre os planos da cantora de vir a Pernambuco.

Tempos depois, Yeda Almeida recebeu do irmão de Elis um par de sapatilhas que a cantora havia comprado para ela. “Elis não teve tempo de me dar. Só que comprou um número semelhante ao dela, que era 35/36, enquanto eu calço 37/38. Guardei o presente com todo o carinho e decidi dar a Maria Rita, quando crescesse e se calçasse o mesmo número, o que acabei fazendo numa de suas apresentações em Salvador”, disse. Leda Alves também guardou, até 2005, um colar com uma grande pomba de madrepérola, presenteado por Elis ainda em vida e decidiu dar a Maria Rita depois que se tornou cantora. “Quando ela veio para uma apresentação no Recife, fui ao hotel em que estava hospedada e lhe dei uma caixa-vitrine montada pelo artista plástico Bernardo Dimenstein, contendo o colar, uma foto tirada durante a via-sacra com Dom Helder, Elis e eu e peças do fã-clube Elis em Movimento, que havia em São Paulo”, diz Leda, atual presidente da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe).

@ continenteonline Ouça no site a íntegra da entrevista concedida por Elis Regina, em 1979, à radialista Carminha Pereira.

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dIvulgação/CIa de foTo

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AVANTE O rabequeiro e o guitarrista

Anos depois de ter abandonado o rock, Siba volta ao estilo em que se iniciou musicalmente e elabora um de seus álbuns mais pessoais texto Gabriela Alcântara

os riffs de guitarra começam

baixos, como se preparassem o ouvinte. E não é por menos: cinco anos após o lançamento de seu último álbum, ainda com a banda Fuloresta, o pernambucano Siba Veloso volta à guitarra e abre a safra de 2012 com o esperado Avante. Produzido por um dos melhores guitarristas do país, o cearense Fernando Catatau, e com a ajuda dos músicos Léo Gervázio (tuba), Samuca Fraga (bateria) e Antônio Loureiro (vibrafone

e teclados), o disco é um presente tanto para o músico quanto para o seu público. Depois de quase 20 anos com seu nome vinculado à tradição da música nordestina, graças às influências do coco, forró e maracatu nos grupos Mestre Ambrósio e Fuloresta do Samba – e ainda projetos como o disco Violas de bronze, com Roberto Corrêa –, Siba volta ao instrumento que o iniciou na música, numa transição que ainda apresenta traços de seu trabalho anterior, no qual

tocava rabeca. O preparo, no entanto, foi longo: o processo de composição e gravação foi como uma terapia, segundo o músico, “demorada e conflituosa”. Enquanto voltava à guitarra, Siba contou com a ajuda de Catatau, que, além de produtor, foi também um dos grandes inspiradores do disco, sendo o Método tufo de experiências – da Cidadão Instigado – um dos pontos de partida para Avante. Não só a melodia, um pouco mais elétrica, tornou-se terapêutica. As canções possuem um tom confessional e parecem contar a história de uma caminhada de descoberta do homem e do poeta, que amadurece após naufragar nos “balés da tormenta”. Esse é, possivelmente, o trabalho mais autobiográfico de Siba, e o próprio músico confessa que, “nesse disco, a matéria-prima foi muito da minha vida, das coisas que passei. Talvez eu tenha tentado economizar com o psicólogo, não sei”. O resultado são algumas das mais belas poesias do pernambucano, seja em tributo que presta aos cantadores, com bem-realizadas rimas, ou em momentos de melancolia, como em Qasida, que percorre memórias

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INDICAÇÕES traz os super-heróis que povoam o mundo do filho de Siba (junto com ele, na foto da capa do CD).

ReGistRo De pRocesso

afetivas, embaladas pela guitarra de Catatau. No conjunto, destaca-se a sequência formada por Canoa furada – aqui regravada com um pouco de peso –, Mute, Um verso preso e Avante. Agrupadas, evidenciam o trabalho do poeta com a voz. A letra da faixa-título representa, para Siba, o desejo de não silenciar e o vigor da poesia, bases do seu trabalho. Siba revela, ainda, que a música – e o disco como um todo – tem mais a ver com a ideia de “descobrir sua força interior, para poder achar a propulsão que leva ao movimento”, do que com a quebra de uma fase e o início de outra. Embora desafios e melancolias deem corpo a Avante, o álbum guarda espaço ao lúdico, presente nas faixas A bagaceira e Bravura e brilho. A primeira é uma homenagem ao Carnaval, a segunda, que fecha o disco,

Além do álbum, Siba gravou também um documentário, que mostra seu processo de realização. Balés da tormenta, gravado por Caio Jobim e Pablo Francis, da Doble Chapa, deve ficar pronto em abril e, segundo Caio, vai correr o circuito de festivais, além de ser exibido em um canal de televisão. Por causa das influências que vão desde Jimi Hendrix às guitarras do oeste africano – e especialmente à transposição da música tribal da África ao som mais elétrico e urbano –, passando pelas sonoridades cubanas e caribenhas dos anos 1940, com uma pitada da Cidadão Instigado, definir o estilo de Avante é uma tarefa difícil. Porém, por conta das nossas recorrentes necessidades de classificação, quem se propuser à aventura terá que concordar com Catatau: trata-se de um “rock estranho”. O certo é que não há lugar para saudosismos. Assim como migrou sem problemas do Mestre Ambrósio para a Fuloresta, Siba chega ao novo projeto com vigor e sinceridade, emocionando, ao transformar sua trajetória em poesia. O show – que rodou um pouco em São Paulo no último semestre de 2011, como uma espécie de ensaio da banda, que só havia se reunido para gravar o disco – deve chegar ao Recife ainda nos primeiros meses deste ano. Com o carisma reconhecido de Siba, e a força de entrosamento que o cantor tem com o público, Avante, ao vivo, deverá ser como a audição do álbum: sublime e intenso.

POP

MUNDO LIVRE S/A Novas lendas da etnia toshi Babaa Coqueiro verde

a parabólica fincada na lama (símbolo do manguebeat) não deixou de processar as informações nestes tempos de internet, pelo menos, a julgar pelo novo e contagiante trabalho da Mundo livre s/a. depois de seis anos sem material inédito, a banda entrega um disco equilibrado entre arranjos irresistíveis e a ironia das letras de fred 04, como em Se eu tivesse fé/ Fucking shit: “se eu tivesse fé/ no fundo, eu explodiria o mundo”.

POP

EDDIE Veraneio independente

os reis de olinda seguram bem a onda em veraneio. sucessor do estimado Carnaval no inferno, o disco que carimbou a eddie como a embaixadora cultural da cidade-símbolo, o novo Cd mantém, com sucesso, a resistente proposta da banda: um passeio pela cidade-patrimônio. Veraneio, ao contrário do sucessor, não sai do forno com hits instantâneos, mas, fazendo trocadilho com o título de uma faixa do álbum, você vai querer frevar assim mesmo.

ROCK

tHE RAPtURE In the grace of your love DFa

o grupo continua confuso neste quarto álbum de estúdio. a noção de vanguarda já se esvaiu e o desespero de bandas contemporâneas em mostrar “o novo” acaba comprometendo seu desenvolvimento. É o caso do rapture, que, passados mais de 10 anos, ainda soa como uma banda promissora. Com arranjos e letras delirantes, In the grace of your love pode até dar a impressão de ser provocante em seus raros pontos altos, mas não constitui propriamente “música para os ouvidos”.

SOUL

AMy WINEHOUSE Lioness: hidden treasures Universal

durante a tumultuada vida de amy Winehouse, muito se falou sobre um sucessor à altura de Back to black. Com sua morte, o póstumo Lioness: hidden treasures deixa claro o quanto a decadência física prejudicou a criação. Com produção de salaam remi, o disco frustra os fãs do tom sessentista que Mark ronson imprimiu a hits como Rehab. Lioness é um álbum que diz mais sobre a tristeza da perda de um grande talento do que revela canções escondidas.

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SÉRGIO LÔBO

Cardápio PADARIA Do hábito atávico de comer o pão

Alguns estabelecimentos mantêm o tradicional estilo de loja de bairro, atraindo amantes do saboroso alimento TEXTO Eduardo Sena

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Há coisas que só os hábitos

muito íntimos, artérias de um DNA cultural, podem explicar. O acordar e ir à padaria para saborear o pão ainda quentinho, fruto da primeira fornada da manhã, certamente, está entre eles. É lá que o dia começa de verdade, na passarela em que o bairro desfila e acontece, local em que as primeiras notícias do dia são comentadas – sejam as dos jornais ou da vida alheia. Para muitos, é também a extensão da cozinha de casa, referência para a primeira refeição do dia de todas as subsequentes. A “Meca” dos amantes dos carboidratos, frituras e afins está lá, sobre o balcão em fórmica, através da vitrine que blinda o tangível. No ar, o aroma permanente do café coado misturado ao do pão na chapa, e, principalmente, com o funcionário solícito de caneta apoiada atrás da orelha, de onde só sai para fazer as contas. Funcionando há 54 anos em Jardim São Paulo, bairro da periferia recifense, a Padaria La Roque é a corporificação de todos os significados, tangíveis e intangíveis, que a palavra padaria pode carregar. Fundada em 1957, pelo padeiro Armando Pedrosa, o estabelecimento é referência de primeira ordem naquelas plagas e adjacências, quando o assunto é panificação. Pudera. O negócio cresceu junto com o bairro, que, nos idos de sua fundação, era limitado a apenas uma avenida principal. Atualmente, se ele contempla uma população estimada em 30 mil habitantes (segundo o último senso do IBGE), sua principal padaria segue o mesmo crescimento. Para se ter uma ideia, uma média de 1,5 mil pessoas passa pelo local diariamente. O foco principal é o infalível pão francês, que é como deve ser: macio por dentro, crocante por fora e com pestana (nome técnico para a abertura na parte de cima). Em média, 280kg do alimento são vendidos diariamente, algo em torno de 7 mil unidades, índice que aumenta nos fins de semana, números superlativos em relação a muitos estabelecimentos do segmento. Ainda no rol dos pães, a casa oferece os clássicos baguete, sedinha, bolachão, doce, crioulo, e os sofisticados

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ricardo moura

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brioches, roscas e foccacias de recheios que passeiam entre o de charque com queijo coalho e frango com catupiry. Mas não são apenas os pães os astros da La Roque. Todas as minúcias gastronômicas “tem-que-ter” de padarias estão lá: tortas, bolachas, sonhos, coxinhas, pastéis de festa, salgadinhos de queijo, sanduíches, extensa linha de confeitaria e frios. Ao todo, o empreendimento tem cerca de 500 itens de fabricação própria, e ainda oferece banquete para as três refeições, todas no estilo self-service, a preço justo e com farta variedade. “Sempre tivemos uma lanchonete dentro da padaria, que contava apenas com 16 lugares. Atento às mudanças comportamentais dos clientes que nos procuravam, cada vez mais, para fazer suas refeições, investi internamente no segmento de cozinha. Hoje, nosso salão para refeições conta com 70 lugares e, se antes oferecíamos apenas lanches rápidos, agora, contamos com bufê variado para as três refeições”, orgulha-se Luciano Pedrosa, proprietário da La Roque. Ainda segundo ele, esse é um caminho natural que as padarias

Além do pão, as padarias vêm apostando em especialidades que agreguem um valor distinto à casa estão tomando. “Os serviços de bufê nas padarias é uma demanda que é fruto de uma tendência, sociológica até, da contemporaneidade. Em detrimento do pouco tempo que têm, as pessoas abrem mão de realizar as refeições em casa, e passam a fazê-las na rua. É mais cômodo e rápido”, diagnostica Luciano, que também é presidente da Associação dos Industriais de Panificação do Estado de Pernambuco. Esforços para garantir a qualidade do serviço plural e versátil da casa são feitos. A La Roque conta, hoje, com nada menos que 100 funcionários fixos e, entre eles, manobristas para dar conta do intenso fluxo de estacionamento no local.

E é nessa reinvenção que as padarias apostam, numa busca constante por novas especialidades, além do pão, que agreguem valor à casa. Com 25 anos de idade, no Bairro da Iputinga, zona norte da cidade, é a Padaria Massa Pura que faz bom uso desse novo conceito. Além de oferecer um exemplar sistema self-service de pães, em uma sala fechada, com mais de 70 tipos do carboidrato, a padaria encontrou na pizza um motivo a mais para fidelizar o cliente. As redondas são produzidas em forno especial, e saem em 19 sabores. O sucesso é tanto, que, pelo menos, 800 delas são vendidas mensalmente. O segredo, segundo o proprietário Murilo Cavalcanti, é a massa do tipo italiano e o molho de tomate pelado. Além do pão e da pizza, outro ponto forte da Massa Pura são as emblemáticas bolachas caseiras. Elas ganham as prateleiras do estabelecimento nos tipos praieira, suíça, soda, sete capas e doce. “Juntamente às pizzas, as bolachas são motivos de desvios de rota. Tem gente da zona sul da cidade que passa aqui só para comprá-las”, garante Murilo.

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fotos: sérgio lôbo

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o “croc” DA torrADA

A verdade é que cada padaria tem uma especialidade para chamar de sua. Com mais de 100 anos e recentemente reformada, a Padaria Santa Cruz, no Bairro da Boa Vista, centro da cidade, é exemplo mais que ideal para a máxima. Desde o fim da década de 1950, sob a direção da família Amorim, a casa produz cerca de 120 itens, sendo que 20 deles são receitas clássicas portuguesas trazidas pelos proprietários da terra dos Afonsinhos. Não são poucos os que vêm de longe para buscar as suas especialidades, e é difícil escolhê-las, árdua missão designada ao afável gerente da casa, Galdêncio Aguiar: “as torradas, o pão de ló e os pastéis de festa”, elenca, com ares de reticência. Douradas, devido à generosa camada de manteiga que recebem, as torradas são artigos que não podem faltar nas prateleiras. Cortadas finamente, crocantes aos olhos – e mais ainda aos dentes –, elas fazem gente de todo o canto da cidade pegar a contramão da

rota trabalho-residência para ir ao Centro em busca das amanteigadas. Diferentemente de outras padarias, em que as torradas são frutos da sobra do pão, na Padaria Santa Cruz, um pão do tipo baguete é feito especialmente para ter como destino final o petisco. Depois de assado, espera o período de quatro dias para ser delicadamente fatiado. Na vitrine, o que também chama a atenção são os pastéis de festa. Tradicionalmente feito de carne moída, temperado de maneira bem particular, o petisco ganha aqui sua versão com frango – não menos irresistível. Depois de frito em imersão, recebe polvilhadas de açúcar refinado. Robusto, demasiadamente fofo e envolto em papelão, o pão de ló é outra estrela da casa. A massa, de receita portuguesa, é à base de ovos, trigo e açúcar. A tradição pede que se coma com as mãos, aos bocados, de preferência com um vinho do Porto. E é melhor assim mesmo, tentar cortá-lo à faca é tarefa difícil de ser executada. Ele se desmancha, simplesmente.

Página anterior 1 clássico

o cheiro do francês saído do forno, quentinho, faz parte da memória olfativa nacional

Nestas páginas 2 AcAbAmento

Padeiro dá os toques finais na sobremesa de massa folhada

3 a 6 tem-que-ter Entre os itens indispensáveis nas vitrines das melhores casas do ramo, estão os pães doces e recheados, empadas, coxinhas e biscoitos tipo tareco

broA DA boA

Igualmente de ascendência lusitana, e que, de tão boa, foi tropicalizada rapidamente por aqui, a broa também se constitui iguaria clássica das casas de panificação. Quem passa pela bucólica Rua da Moeda, no Bairro do Recife, e vê a Padaria BrötFabrik, nem imagina que ali está um dos símbolos materiais – em tijolo, concreto e farinha de trigo – de protesto contra o pão recifense da década de 1990. O “delator” é o alemão Timm Mendes, que chegou

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fotos: ricardo moura

7 sonHo Esse item de confeitaria não foi nomeado por acaso 8 broA o preparo da brötfabrik resulta de ótima qualidade 9 pAstel De nAtA Herança da doçaria portuguesa 10 torrADA a versão saborosa da santa cruz é feita com baguete fresco

comidas de padaria Bolacha sete capas: salgada ou doce, de massa folhada Bolo de bacia: minibolinho sem recheio ou cobertura, de massa branca Broa: minipão redondo de milho, trigo ou aveia

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Coxinha: bolinho de massa recheada de frango desfiado e frito em imersão Pão de metro: sanduíche feito em pão francês que ultrapasse os 60cm, recheado de pastas, frios e salada Pão francês: é fruto da mistura da água, trigo, fermento, sal e açúcar Pastel de festa: minipastel recheado de carne moída, frito e polvilhado com açúcar Queijo coalho: Queijo branco produzido por fermentação e coagulação

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ao Recife nos idos de 1998 para um intercâmbio estudantil da faculdade de administração de sua terra natal. Ao chegar por aqui, “estranhou” o pão local. “Era medíocre”, desabafa Timm. A insatisfação era tão grande, que, mesmo sem ter qualquer experiência no ramo, decidiu, em 1999, abrir a BrötFabrik (Fábrica de Pão, em alemão), como projeto de estágio no curso de Administração, para mostrar o que seria um pão digno. “Fazer pão não tem grandes mistérios. Basta usar ingredientes de boa qualidade. Por exemplo, minha farinha de trigo é importada, a água que eu uso é mineral”, defende. Mas o que as broas tem a ver com isso? É que, na casa, elas não param

Torrada: fatia fina de pão, que recebe manteiga e é assada no forno

na gastronomia, o reencontro com o passado, o que se chama de cozinha afetiva, é hoje uma forte tendência nas prateleiras. Seja de farinha de milho ou de trigo, os pequenos bolinhos de fabricação própria são verdadeiros deleites alimentares para os clientes. “Gastronomicamente falando, acredito que esse reencontro com o passado, o que se chama de cozinha afetiva, é uma tendência forte. Até tenho sanduíches mais elaborados,

mas são as coisas mais simples que despertam mais interesse”, argumenta. Os números corroboram a ideia. Além do pão e da broa, figuram entre os itens mais vendidos do local o icônico bolo de bacia, o misto-quente, e, para bebericar, café com leite. Essas preferências constam de uma espécie de cartilha sociocultural do pernambucano, o que os sociólogos chamam de modus vivendi, em que determinados tipos de gostos e gestos são tão comuns, aos olhos tupiniquins, que parecem ser executados desde sempre. Ir à padaria, ao mercado, e estender a mão para pedir uma prova do queijo coalho é uma delas. Ali, é visto se o queijo está com o sal no ponto, borrachudo ou não,

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mAquiAGem De GrÃ-fino

Segundo dados da Associação dos Industriais de Panificação do Estado de Pernambuco, atualmente, as padarias somam 1,6 mil na Região Metropolitana do Recife, de um total de 3 mil em todo o estado. Mas poucas mantiveram o formato romântico da antiga padaria. Nas avenidas mais reluzentes, viraram delicatessens elegantes, convenientes, desejáveis. Nos subúrbios, são arremedos disso. No lugar da pasta de salmão defumado, quitute de boi enlatado. Se, em uma, os vinhos importados lotam as prateleiras, na outra, as garrafas de Sidra e Campari fazem as vezes. Uma coisa as une, é verdadeS: prestam os serviços alimentares dos tempos que correm. Mas já não exibem a elegância clássica daqueles estabelecimentos abertos pelos primeiros Joaquins e Manuéis de bigodes. “Eu tenho a única padaria de verdade no Recife. Só vendo o que fabrico, sendo tudo voltado para a alimentação”, afirma Timm Mendes, da BrotFabrik. Da La Roque, Luciano Pedrosa lembra a relação “quente” que move seus funcionários com a clientela. “Aqui, todos os atendentes conhecem o nome e o time de futebol da clientela”, orgulha-se. Não se pode negar que os vestígios, que eram os diferenciais “daquela” padaria, ainda existem. Mas, lamentavelmente, passarão a entrar no time de rodar peão e brincar de barra-bandeira. No futuro, certamente, os antropólogos lembrarão como o homem do Brasil foi feliz com suas padarias do século 20.

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velho ou novo. Critérios muitas vezes pessoais, que estão além do mais sábio entendedor de queijos. Sob o epíteto da padaria que tem o “melhor queijo de coalho do Brasil”, alcunha concedida por ninguém menos que César Santos, chef do premiado Oficina do Sabor, a Caramelada, em Bairro Novo, Olinda, mal sabe o que é isso. Há 19 anos trabalhando com o queijo do mesmo fornecedor, que sempre despacha o produto com qualidade mais do que regular, a casa tem com seu cliente uma íntima relação de confiança que poucos atingem. O laticínio, oriundo de São Bento do Una, município do agreste pernambucano, está lá sempre fresco.

“O produto chega duas vezes por semana e não para nas cubas. Por mês, chegam a ser vendidas quatro toneladas – que perfazem inclusive, toda a produção do meu fornecedor”, conta Denis Monteiro, proprietário da Caramelada. Em outras palavras, “o melhor queijo coalho” só é encontrado em um endereço. E é de lá que sai o produto que, pelas mãos de César Santos, viaja o Brasil e o mundo, representando a cozinha do estado. “O ponto do sal é perfeito, a cor, branco claro, é fruto da boa procedência do leite, é sempre fresco, a textura é ideal para qualquer receita”, defende o chef, que usa o coalho desse produtores desde o início de suas atividades na cozinha.

onDe encontrAr O pãozinho e outras delícias

bröt fAbrik Rua da Moeda, 87, Recife Antigo

cArAmelADA Avenida Getúlio Vargas, 856, Bairro Novo, Olinda

lA roque Rua Leandro Barreto, 512, Jardim São Paulo, Recife

mAssA purA Avenida São Mateus, 255, Iputinga, Recife

sAntA cruz Rua de Santa Cruz, 101, Boa Vista, Recife

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meus mortos

matéria corrida José cláudio

artista plástico

É lasca. Começar logo o ano falando

de finados. No mínimo, falta de tato. Ou de inspiração. Deixasse para falar em novembro. Daqui para lá, porém, tanta coisa pode acontecer, aparecer um assunto obrigatório, aí teria que ficar para outro novembro e aí, quando novembro chegasse, eu só lembrasse, como agora, no próprio Dia de Finados, não dando mais tempo de entregar a matéria: e isso sem falar nela, a indesejada, incluindome eu entre os “meus mortos” do título. Assim, antes que o assunto nos liquide, liquidemos com ele. Nunca serei suficientemente grato ao amigo paulista, paulistano até o osso, Arnaldo Pedroso d’Horta, que deve estar enterrado no Cemitério do Araçá, na avenida do mesmo nome dele, Dr. Arnaldo, por onde eu passava quando ia para casa de Pedro Otávio Carneiro da Cunha, na Descalvado um-dois-três (123), no Sumaré, pai do

amigo João Carlos Carneiro da Cunha, pintor, cuja acolhida, de Pedro, paguei com o mal, dando o mau conselho ao filho de deixar de estudar, conselho de que eu muito precisara e ninguém me dera, abreviandolhe o sofrimento que iria torturá-lo a vida inteira bem ou malsucedido em qualquer outra profissão que não fosse a sua, a de pintor, seja ou não considerada profissão, ou vagabundagem, que a vida, seja qual for, não passa de vagabundagem, curta aliás, e sempre malsucedida porque termina na morte. Por mim, a endocrinologista Dra. Geísa Macedo disse que eu estava bem, não precisava nem do toque, porque surgiu na conversa o urologista Marcelo Costa Lima, bela criatura, de quem ela foi aluna, cuja amizade, de Marcelo, herdei de Hermilo Borba Filho, incluindo-os, um mais agora e outro há mais tempo, entre os meus

mortos, neste 2/11/11, de tempo bom, temperatura amena, em que acabo de acordar, às 5h30, terça-feira, nesta Cidade de Olinda, 301 anos depois do primeiro Grito de República, com letras maiúsculas, em todo continente americano, de Bernardo Vieira de Melo, 10/11/1710: seu túmulo deve ser em Lisboa para onde foi levado para ser enforcado ou fuzilado. Vou perguntar a Paulo Santos. Arnaldo Pedroso d’Horta fez por mim o que não fez nem pelos filhos: conseguiu que me dessem uma bolsa para estudar na Europa. Na época, só para rico. Me diziam na cara: você não pode falar de pintura, você não conhece a Europa. Cheguei em Roma num Dia de Finados, 2/11/1957, com 25 anos. E a primeira coisa que fiz foi sair com Beatrice Abramo, irmã do gravador Lívio Abramo de quem eu fora aluno, para visitar as Fosse Ardeatine (Fossas Ardeatinas), o belo monumento

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reprodução: ricardo moura

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onde estão sepultados 335 mortos pelos nazistas em 24/março/1944 em represália a um ataque partigiano, grupo de resistência à ocupação alemã: os alemães pegaram indistintamente militares, civis e até crianças, como o sobrinho de Beatrice, a quem fomos acender uma vela. Meus mortos estão em vários lugares, como um meu único irmão, que nem chegou a ter nome, nascido morto, enterrado em Ipojuca; meu pai e meu avô paterno Pedro Taveira (porque antigo morador do Engenho Taveira, no Cabo), Joaquim Pedro da Silva, também em Ipojuca; minha mãe, no Recife; Carybé, na Bahia; Wellington Virgulino, Ionaldo, Delano, Raul Souza Leão, Ricardo Pontual, todos que me

Meus mortos estão em vários lugares, como um meu único irmão, que nem chegou a ter nome, nascido morto, enterrado em ipojuca quiseram bem, nem que seja por uns dias mas que me ficaram para sempre, como Madame Morin, em Louvain na Bélgica (parece que em português é Louvaina) ou Chico Mendonça. Amaro Antônio, meu primo, meu cunhado Nanau, mas quanto a parentes vamos parar por aqui senão a lista não terminaria. Manoel meu tio.

tio manoel

Óleo sobre eucatex, 1975, 80 x 60 cm

Amerigo Rotelini, da Fundação Amerigo Rotelini, soldado da FEB, Força Expedicionária Brasileira, morto na guerra na Itália, provavelmente enterrado no cemitério de Pistoia, cuja herança nos permitiu e a outros estudantes brasileiros estudarem na Itália; um destes, recentemente falecido, Sady Buttelli, de Porto Alegre, que ficou, como eu, em Roma. Em Louvain, cheguei na mesma tarde da vitória do Brasil na Copa de 58 na Suécia, um domingo. Recebeu-me um rapaz mexicano do meu tope dando-me um grande abraço: “Mostramos a esses europeus o quanto valem nossos índios”. E eu sem saber de nada. Fui saber depois. E como o assunto é finados, encerro com uns versos que escrevi justamente em Louvain: “Minha mãe, quando eu morrer/Me enterre em Louvain/No Drève des Celestins/ Debaixo dos arvoredos”. Esqueci o resto. Deve estar por aí.

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Fotos: Helder Ferrer/divulgação

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samico Todas as etapas de feitura da obra Livro que tem como título o nome do artista, de autoria de Weydson Barros Leal, destaca seu labor meticuloso TEXTo Olívia Mindêlo

Gilvan Samico é uma espécie de artista em extinção. Não pela excepcionalidade de sua obra ou por ter conseguido, como diz, a “sorte” de poder viver do fazer artístico. A raridade de Samico, hoje com 83 anos, está na maneira como pratica seu ofício artístico, numa dedicação que o levou ao nível do virtuosismo. Há cerca de 60 anos, um processo de labor meticuloso e inventivo faz desse pintor e gravador um artista incomum, que leva a cabo o que poucos dominam no campo contemporâneo das artes plásticas: o trabalho artesanal. “É preciso saber que há artistas que fazem apenas o desenho e depois mandam alguém gravar. Eu desenho, gravo e pinto.” O depoimento de Samico

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1 ateliê e oficina samico mantém em sua casa tudo que é necessário à criação 2 Safra 2011 gravura foi desenvolvida durante o ano, especialmente para o livro

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sintetiza como ele encara sua ocupação e pode ser lido no livro sobre o artista que acaba de sair pela editora BemTe-Vi. Com prefácio do escritor Ariano Suassuna, textos do crítico Weydson Barros Leal e fotografias e reproduções de Helder Ferrer, as páginas de Samico estão à altura do nome que o batiza. Edição criteriosa, com projeto gráfico cuidadoso, o livro é o primeiro publicado sobre ele. Embora haja muitos textos sobre o morador da Rua de São Bento, em Olinda, grande parte se encontra em catálogos de exposição, revistas e jornais, muitos dos quais publicações esgotadas ou de difícil acesso. Além de suprir essa lacuna, o livro surge com o papel de zelar pela memória da arte pernambucana, fecunda na

criatividade, mas ainda carente em referências bibliográficas. Nos últimos anos, pesquisadores como Joana D’Arc, Clarissa Diniz e o próprio Weydson Barros Leal, idealizador e curador do trabalho sobre Samico, vêm ajudando a mudar um pouco essa história. O crítico, aliás, já assinou volumes sobre outros nomes de peso no estado, como Francisco Brennand, Corbiniano Lins, João Câmara e Abelardo da Hora, o “pai” de muitos desses, incluindo Samico. Weydson diz ter tido a sorte de poder conviver com grandes artistas pernambucanos, muitos ainda vivos. O livro de Samico, especificamente, começou a ser desenvolvido em 2004. Amigo do artista, Weydson passou a frequentar a casa dele com maior

assiduidade naquele ano, principalmente a cozinha, em que os dois gastaram longas horas de prosa e café. Já com o projeto da publicação em vista, o crítico pediu ao artista, que tem ojeriza a gravadores e holofotes, para fazer o registro das conversas. Meio descrente no que aquilo pudesse dar, ele topou. E foi assim que Weydson conseguiu garimpar um material de mais ou menos 14 horas de áudio em fitas. Durante quase sete anos, elas ficaram na estante do escritório-biblioteca do autor. Primeiro no Recife, depois no Rio de Janeiro, onde voltou a morar há três anos. De vez em quando, as fitas saltavam, exibiamse. “Era pra lembrar que eu estava devendo um livro ao meu amigo. Um dia eu iria fazer.” A promessa se cumpriu quando, bem por acaso, encontrou uma velha amiga, Liana Schipper, editora da BemTe-Vi. Ela acabou sendo responsável pela coordenação do projeto, após ter sido submetido ao crivo do conselho editorial da empresa.

fonte De PeSQUiSa

Para produzir as páginas de Samico, Weydson levou mais ou menos um ano. Uma escuta das conversas e um exercício de apreciação crítica conduziram a escrita, reunida sob o título de Entre a poesia e o papel. São seis fragmentos textuais ou capítulos mais ou menos curtos e simples, que proporcionam uma leitura acessível e informativa. Não há reflexões densas sobre o artista no livro, mas um relato amplo, que dá conta daquilo que a publicação parece

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–, e ainda em revelações sobre seu processo criativo. Visualmente, a escolha feita por Weydson de 35 estudos em desenho para a gravura A caça, de 2008, é bastante ilustrativa nesse sentido. Uma das partes mais valiosas da publicação. Página a página, é como se o autor nos ciceroneasse, ao abrir a porta da sua casa-ateliê, e desnudasse o mundo de alguém que costuma ser recluso. Samico é conhecido pela timidez e simplicidade, mas basta falar um pouco para conhecermos seu espírito sagaz, bem-humorado e perseverante. Um dos méritos da obra é revelar como o artista empreendeu a busca pela perfeição de suas gravuras, a partir do apuro técnico que faz dele um artista incomum. Se arte não existe sem o meio que a materialize – no caso, a técnica –, essa é uma máxima imprescindível para entender o trabalho de Samico. Weydson nos evidencia isso, mostrando como o gravador criou e recriou muitas

de suas próprias ferramentas, para solucionar problemas, de acordo com a necessidade de sua poética. O exemplo da goiva, ferramenta usada para talhar o desenho na madeira, ilustra essa questão. Percebendo que o fio talhado dificultava a precisão do seu traço, porque enrolava à medida em que o instrumento rasgava a superfície da matriz, Samico inventou uma goiva própria, capaz de atender ao seu rigor. E o mesmo vale para as etapas de pintura e impressão das xilogravuras, para as quais empreendeu novos instrumentos e buscou o papel ideal. Isso tudo também foi possível porque ele mantém uma serralheria em casa, na qual aprimora constantemente o ofício de artesão, criando objetos utilitários, como móveis e caixas marchetadas. Portanto, sua relação com a madeira é intensa: domina cores, cheiros, espécies, texturas, e se diz tão obcecado pelo material, que brinca a esse

Fotos: Helder Ferrer/divulgação

adotar como foco: mostrar quem é esse homem talentoso, legitimando-o do ponto de vista biográfico e artístico – dimensões tratadas de maneira inseparável pelo autor. O livro é uma fonte de pesquisa substancial. Não só pelos textos, mas também pela seleção de imagens, que apresenta o processo de trabalho artístico orientado pelo perfeccionismo, pela busca insistente da autossuperação pelo artista. Tanto que ele tomou por hábito desenvolver uma gravura por ano, o que não deve ser confundido jamais com comodismo, como alguns já chegaram a cogitar. É, ao contrário, a opção por um esforço mais melindroso e demorado. A capa do livro, por sinal, estampa o trabalho inédito de 2011, produzido para a publicação. O rigor de Samico em seu ofício pode ser identificado nos textos de Weydson, nas gravuras reproduzidas no livro – que evidenciam a precisão de sua mão

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3 fiGUrativa gráfica e simétrica, a obra de gilvan samico tem nas narrativas da tradição popular referências profundas 4 PintUra embora escasso, o gênero também integra o acervo do xilogravurista

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respeito. Em depoimento reproduzido em Samico, diz que os cupins devem odiá-lo, porque compete com eles.

o Pintor

Afora as inconfundíveis gravuras de Samico, nessa obra, é possível apreciar suas pinturas, menos conhecidas. Nela nos deparamos com um óleo sobre tela de 1957. Retrata a mulher do pintor, Célida. Nas páginas seguintes, há a reprodução de uma série de paisagens pernambucanas datada de quase 30 anos depois, tempo em que participava do Ateliê Coletivo de Olinda, ao lado de artistas como Giuseppe Baccaro, Guita Charifker, Luciano Pinheiro e José Cláudio. O grupo costumava sair ao ar livre para pintar paisagens. Naturezasmortas, mulheres e outros temas também compõem a temática pictórica do artista, selecionada para a publicação. É interessante notar que a pintura nunca deixou de existir em seu repertório artístico. Repare na reprodução da tela A pesca, de 2011. A obra é marcada, como em muitos de seus quadros e trabalhos de outros pintores de sua geração, pelo ritmo das pinturas modernas da primeira metade do século 20, como atesta o próprio Weydson. O autor identifica, no pintor Samico, elementos de artistas como Cézanne, Braque e Morandi.

“Há artistas que fazem apenas o desenho e mandam gravar. eu desenho, gravo e pinto” Gilvan Samico Apesar de bem diferentes de suas gravuras, as pinturas apontam a mesma predileção pela arte figurativa, por meio da qual, como escreve Ariano Suassuna, vem levando a cabo a tentativa de atingir “as verdades mais nobres e altas da realidade”. Mesmo que esse processo de interpretação do real esteja repleto de seres fantásticos e míticos, como os que habitam suas criações.

olHar eStÉtico

Apesar de ter escrito textos de naturezas distintas, abordando aspectos biográficos e do processo criativo de Samico, é o olhar estético de Weydson que marca sua análise do trabalho do artista. Três dos referidos seis escritos evidenciam isso: A arquitetura dos sonhos ou uma semiologia do fantástico; Um olhar crítico, um olhar íntimo, principalmente; e O pintor secreto. Na pele de esteta, ele se detém sobre os aspectos formais, ressaltando

elementos como uso da cor, características dos traços, escolha de temas e busca por simetria na composição, vista, por exemplo, na dimensão do espelhamento, uma das facetas do trabalho de Samico. Para o autor, a gravura A luta dos anjos (1968) figura como “um divisor estético em sua obra: a questão do reflexo, dos paralelismos, dos planos independentes que se comunicam, elementos apenas insinuados em Suzana no banho, de 1966”. A visão crítica de Weydson proporciona ao leitor adentrar um universo povoado por criaturas fantásticas, que começam a surgir nas gravuras do artista a partir do fim dos anos 1960, quando os “elementos simbólicos do sonho e do fantástico” se instalam, permanecendo até os tempos presentes. Weydson questiona o porquê disso, e recebe a seguinte resposta do entrevistado: “Porque eu continuo acreditando em dragão!”. A abordagem trazida contribui para a compreensão do processo de amadurecimento na trajetória de Samico. São argumentos que ajudam a respaldar a importância de seu legado para a arte brasileira, desde quando seus quadros flertavam com a arte naïf, pela inspiração no universo popular, e sua gravura não tinha atingido o apuro posterior, quando alçou grandes voos.

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Fotos: reProdução

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memória Notícia sobre Jackson Pollock

Nascia, há 100 anos, o artista que melhor reinterpretou os postulados da pintura abstrata “inventada” por Kandinsky TEXTo Raul Córdula

na américa, ainda não eram tempos psicodélicos, liam-se os beatniks Jack Kerouac e Allen Ginsberg. Da Europa, ainda não tinham chegado os Beatles nem os Rollings Stones, a música ainda eram blues e jazz. A vanguarda das artes plásticas era a action painting, movimento apreciado também pelos músicos que os próprios pintores

amavam – tanto é que Dave Brubeck registrou na capa de dois dos seus mais famosos LPs obras de artistas como Franz Kline, em Time in outer space, e Sam Francis, em Time changes. A action painting, assim nomeada em 1952 pelo crítico de arte Harold Rosenberg, no artigo The american action peinters, publicado na revista Art

News, foi confundida por muitos com o expressionismo abstrato e também conhecida como pintura gestual. Nos anos 1950, estava em voga, era a versão americana da pintura abstrata europeia ou, ainda, da pintura tachista (de tache, mancha em francês); e seus ídolos logo começaram a surgir: o alemão Willem De Kooning, o russo Marc Rothko, os americanos Franz Kline, Robert Motherwell, Adolf Gottlib, Mark Tobey e Sam Francis, e o descendente de polonês Jackson Pollock. Esse último foi o mais importante deles, o que melhor traduziu e reinterpretou os postulados de Kandinsky, a quem é atribuída a “invenção” da pintura abstrata, que, por sua vez, somente teve a seu favor o fato de ter chegado antes, pois a pintura mundial inevitavelmente caminhava para a superação da figura ou da realidade objetiva como tema. A figuração e outras

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“maneiras” pictóricas, quando voltaram a interessar aos artistas de vanguarda, vieram com a marca indelével da pintura pura, como obra em si, independentemente de seu significado literal ou temático, mas contaminada pela materialidade da tinta, da textura, da transparência e da monumentalidade, e pelas surpresas que causavam os gestos dos ataques na tela – Pollock declarou em uma entrevista: “Preferi atacar a tela não esticada, na parede ou no chão...”. Nascido há exatos 100 anos, no Wyoming, faleceu em New Island em 1956, tendo revolucionado a pintura americana em seus parcos 44 anos de vida. Nos anos 1940, estudou em Los Angeles, mas fixouse depois em Nova York, onde se colocou no pico da arte moderna americana. No início de sua vida artística, falou-se das influências do chileno Matta e do catalão Miró.

A monumentalidade da obra de Pollock não se encontra nas grandes dimensões que falseiam os conceitos de obra magnífica. Monumentalidade pode ser entendida também como ausência de dimensões, a característica que uma obra de arte tem de ser grandiosa tanto vista diretamente como em uma reprodução. A Guernica, de Picasso, é uma obra monumental de grandes dimensões, porém, suas gravuras da série Tauromaquia são pequenas, mas também monumentais. Pollock foi um pintor de grandes quadros, cuja maioria – os de sua fase madura – era pintada com a tela estendida no chão. Ele disse que pintava, assim, inspirado nos índios que faziam desenhos de areia no oeste americano. No Brasil, com exceção de quem viaja, suas obras só são conhecidas através de reproduções – nem por isso, quem vê uma imagem de sua obra pela primeira vez deixa de se

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action painting Partindo da tela nua, o artista conferia à pintura a gestualidade que lhe era intrínseca

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tÉcnica dispensando o cavalete e, depois, o pincel, Pollock criava suas pinturas imiscuindose nelas.

impressionar e, talvez, notar que ele é um dos maiores artistas do mundo. Sua forma de pintar sem dizer nada, sua maneira de derrotar qualquer sugestão temática com a representação textural da pintura, sua agressividade poética são coisas que não passam despercebidas do olhar mais complacente. O crítico de arte Clement Greenberg, famoso pelo teor filosófico que imprimiu em seus ensaios sobre a arte moderna, foi seu grande amigo e teórico, e o chamou de o melhor pintor de sua geração, não só pela surpreendente força de sua obra, mas também pela atitude renovadora do seu “fazer” artístico, transformador da “pintura de cavalete”. Ao lado da colecionadora Peggy Guggenheim, mulher do pintor Max Ernst e herdeira da fortuna de Salomon Guggenheim, fundador do museu que leva o nome da família – homenageando o filho desaparecido numa excursão pela África em busca de objetos de arte autóctone –, Greenberg sacralizou para o mundo a maturidade moderna da arte americana, ao dizer que a melhor produção da arte de vanguarda não estava na Europa, mas na América. Dessa arte, Pollock foi o mais apolíneo representante, e, da arte de sua época, o mais dionisíaco contestador. A arte americana deve, portanto, a Greenberg o aval à geração que ocupou seu lugar definitivo no mundo, geração centenária, hoje. O álcool e a velocidade tiraram Jackson Pollock do convívio das gentes numa noite de farra, quando virou seu carro numa curva da estrada. O artista subiu aos céus das estrelas de uma sociedade que ancora seus sentimentos na ideologia do sucesso, e que chora seus mortos como se os aplaudisse.

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imagens: reprodução

Artigo

joão câmara delano “Soy el imaginador de una cosa: la no-muerte, y la trabajo artisticamente por la trocación del yo, la derrota de la estabilidad de cada uno en su yo” (Macedonio Fernandez, em Museo de la Novela de la Eterna)

“A fila está encurtando, seu João.

Disse isso para Marco Polo, falei para ele, outro dia, que já dava para ouvir as chaves de São Pedro tilintando...” Delano falou-me isto na última vez que o vi, vivo e brincalhão. Via-o constantemente – nossos ateliês ficam na mesma rua, a poucos passos. Às vezes, conversávamos na calçada, como naquela última vez em que ele, inadvertido, tangenciou com humor machadiano o presságio perigoso. Levianos, falávamos da morte dos outros, até porque, como está gravado no último ready made de Marcel Duchamp, sua lápide, “Aliás, são sempre os outros que morrem”. Bom paradoxo e boa lógica, mas pouco consoladores. Melhor fez Macedonio Fernandez, citado na epígrafe, em não contrapor Vida à Morte, escapando de opostos óbvios e refugiando-se no território da não morte, dissolvendo o ego em entes e coisas que a Comadre Morte não pode discernir. Basta de morte. Só uma sensação, ainda. Delano morreu moço, quero dizer: hoje se espera viver mais. Vê-se mais gente na maratona da senectude e, ainda mais, gente nova atropelando-a e a pisoteando com arrogância juvenil legítima ou meramente cruel. Quase todos chegam ao pódio, maltratados embora. Digo que ele morreu moço, porque nossa amizade fraterna estabeleceu uma juventude residual e disponível, uma resistência aos achaques físicos e às agruras do espírito. Com a idade, fomos ficando mais e mais recolhidos, Delano mais que eu, até. Caseiro seria exata palavra para ele. Não por acaso, sua mulher Macira é ambientadora. Ele percorria um roteiro exíguo no largo desenho projetado por Macira. Da televisão para o estúdio, dali para a rede, uma

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vista ao mar, pela varanda, de volta à rede, olhos postos em Brás Cubas. Bem antes, porém, quando jovem de verdade, Delano fez o mundo. Viveu em São Paulo em meio à contracultura da poluiceia desvairada. Fazia desenhos no INPE, pela grana. Um dia, largou o guarda-pó no espaldar da cadeira e foi ser free lancer para jornais. Fixava os gols da rodada com desenhos esquemáticos. Veio daí seu gosto por futebol? Tornou-se jogador esforçado e exigentíssimo nas peladas que,

artistas quase todos, organizávamos aos sábados, em Olinda. Mas, antes do futebol, em São Paulo, talvez influenciado pelas piruetas de Bruce Lee, tentou as artes marciais. O resultado da imprudência foi uma cirurgia de vértebras tão dolorosa quanto o baque no tatame que a motivou. A vantagem foi que voltou para Pernambuco. Delano estudou desenho com Abelardo da Hora no MCP, nos anos 1960. Ficou-lhe o gosto pelo croquis de pose rápida, a observação sintética

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1-2 trAço mesmo nas pinturas que delano veio a fazer, o desenho é preponderante 3 retrAto perfil do artista por João Câmara

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e a ênfase no traço. Mesmo nas pinturas que veio a fazer, o desenho é preponderante. Está lá, conspícuo, nem tanto por exigência da figuração – à qual foi fiel e devoto –, mas pelo traçado que indica um panejamento, uma tatuagem cifrada na pele de um nu, o rasgo de movimento numa paisagem. As figuras cobrem-se com as roupas destes traços veementes que, vez por outra, são vestes que tomam o espírito e a descrição dos personagens, como se estes estivessem indumentados pelo indício de uma

pintura. A roupa pelo personagem, o hábito pelo monge ou por outras figuras menos beatíficas. Há ironia nas pinturas, mas não há ódio, nenhuma intenção prática de ferir. Alguns personagens estão mais aflitos de estar ali, na tela, que satisfeitos com o exibicionismo contingente. Essa metáfora de urdiduras, roupas e disfarces convive com coisas prosaicas e com o inusitado. Delano não era imune à fantasia disparada pelo absurdo pacífico de uma cena, de um tipo ou de uma fotografia

escandalosa em revista ou jornal. Aliás, era impossível ver televisão na casa dele. Munido do remoto, zapeava por todos os canais, criando clips cinéticos e dadaístas. Veio-lhe depois um computador e a internet, o que lhe permitiu melhor serenidade voyeurística. Essa nova janela, de dentro de sua clausura, era propícia a seu temperamento discreto. Permitia que espiasse sem ser incomodado, podia pescar o brilho, a vanitas vanitate do mundo e comentála, sem que dessem por isso. Por outro lado, convenhamos, seu ascetismo domiciliar, seu isolamento (com exceção às poucas amizades), subtraiu-o da escalada do currículo artístico, do poder e da glória prometidos à carreira. Isso não se devia, nele, à humildade ou modéstia. Sabia exatamente o que queria. Avesso a exibir, porém, poucas foram as exposições que realizou. Daí que se desconheça a latitude do que produziu e que reside em gavetas, dentro de livros, num canto mais escuro do ateliê. É tempo agora de que essas coisas sejam iluminadas

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Suzano Guimarães O ESTADO SOU EU?

Suzano Guimarães

é doutorando em Filosofia e professor-substituto do Departamento de Filosofia da UFPE DIVULGAÇÃO

Um espectro ronda o Brasil. E ele não é somente ideológico, mas igualmente tecnológico. É um “espectro eletromagnético”, uma concessão pública à iniciativa privada. Ocorre que poucos “grupos familiares” são responsáveis pela produção e distribuição de mais de 85% dos “conteúdos nacionais” de mídia. Daí que, sob qualquer sistema político, uma superconcentração das fontes de informação pode resultar em “liberdade de latifúndio”. Há muitos modos de se dizer “direito à comunicação”. Ademais, os “cenários para a comunicação” pública contemporânea apresentam graves oposições entre grandes corporações de mídia e certa imprensa “independente”; ambas determinadas por novas tecnologias da informação. Haveria também proposta para uma distinção essencial entre “democracia representativa” e “democracia totalitária”, em que a primeira dependeria da “opinião pública”, enquanto a última se definiria exatamente em sua extinção; corroborando, assim, um “controle sazonal da mídia”. Diante disso, o debate sobre a “liberdade de imprensa” reflete disputas entre regulamentar ou “apostar” em nenhuma legislação específica. Contudo, enquanto mediação da opinião pública, a liberdade de imprensa não se encontra “fora do Estado”; seus agentes já participam dos direitos e deveres constitucionais. Com efeito, o conceito de Estado não deve ser confundido com o de “governo”, tampouco com o de “público” com “estatal”, com aquilo que “existe, mas não funciona”. Do mesmo modo, “interesses privados” não se referem a “inimigos públicos”. Nesse sentido, quando os cidadãos participam dos assuntos públicos, acabam por conhecer e se reconhecer naquilo que é feito pelos seus representantes. E como o “fenômeno da opinião pública” tem o signo da contradição, tomar ciência das contradições já é início de uma avaliação mais crítica sobre a “vida do Estado”; uma vez que “opinião” ainda não é “conhecimento”, mas diz respeito à “vida em comum” e ao “julgo da confusão”. Afinal, foi a “opinião da multidão” quem gritou “Barrabás”. Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e de expressão. Ora, liberdade de verdade, somente aquela experimentada; daí que, se o Estado “sou eu”, então essa coisa de “cala a boca” já morreu (?!). E quanto àquele “vivo desejo de dizer e de ter dito sua opinião”, acho que tal revolução (não) será televisionada.

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