Continente #118 - Armorial: 40 anos

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álbum de família

outubro 2010

aos leitores Há 40 anos, surgia em terras pernambucanas um movimento que pretendia fundir a arte erudita aos elementos da cultura popular nordestina. Vivia-se, à época, um intenso processo de transformação social, com a industrialização, o alto crescimento urbano, o“milagre brasileiro”. O Brasil abria portas ao capital estrangeiro e à indústria cultural. Justamente para combater o que se entendia como a vulgarização da cultura nacional, provocada por essas inundantes transformações, criou-se o Movimento Armorial, tendo como figura central o escritor Ariano Suassuna (na foto, em set de filmagem nos anos 1970). Hoje, num mundo mais diverso e complexo, o armorial continua a despertar interesse, servindo de base a manifestações artísticas em diversas linguagens, ainda que, em alguns casos, os protagonistas não queiram ser rotulados como armoriais. No intuito de reencontrar o movimento sob a perspectiva do presente, nesta edição,

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investigamos as manifestações artísticas tuteladas pelo armorial, movimento que, segundo pesquisadores, surgiu antes de sua formalização, na década de 1970. Abre a série sobre o assunto uma análise do movimento a partir do Romance d’A Pedra do Reino, considerada sua obra basilar; juntamente com uma entrevista com seu autor, Ariano Suassuna. Na sequência, tratamos de expressões contemporâneas da estética armorial no teatro, na dança, na música, nas artes plásticas e no cinema. Quem são os artistas e realizadores que balizam suas obras pelos pressupostos da imbricação entre as artes populares e eruditas? Viajando por outras terras, a revista desloca-se ao norte e a leste do globo, indo ao encontro de cidades peculiares. No primeiro caso, percorre as ruas de Nova York, interessada no cardápio diário daqueles que vivem em Manhattan; no segundo, ruma a Istambul e explora essa cidade-ponte, que liga Ocidente e Oriente, rica e diversa, estranha e adoravelmente familiar.

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sumário Portfólio

Romero Cavalcanti

04 Cartas

05 Expediente

06 E ntrevista

+ colaboradores

Matéria Corrida

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Visuais

The Brazil series Bob Dylan tematiza o país, em exposição na Dinamarca

78

Leitura

82

Sonoras

88

Saída

18

Balaio

38

Peleja

Aurélio Nova versão do dicionário inclui expressões usadas na internet

John Lennon As notícias que cercam os 70 anos de nascimento do ex-beatle Showbiz Premiações atestam o valor de um artista?

História

Trotski Textos do líder da Revolução de Outubro permanecem atuais, 70 anos após sua morte

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Roteiros Recurso do final aberto, um dos trunfos de A origem, tem sido recorrente na cinematografia atual

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Conexão

Claquete

10

46

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Liniers Desenhista argentino revela o processo criativo que gerou as tirinhas de Macanudo

Comportamento

O pobre na mídia Com a popularização das redes sociais virtuais, evidencia-se o embate entre as representações das classes sociais brasileiras

Bráulio Tavares escreve sobre a obra do ilustrador paraibano, que trabalha com diferentes técnicas, do bico de pena à colagem

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José Cláudio Vovó

Poesia Apesar da grande quantidade de poetas existentes no país, o gênero sofre a falta de quem o edite Recife Jazz Festival Em sua 7º edição, evento se estabelece como espaço de intercâmbio entre jazzistas internacionais e brasileiros

Fabiano Sobreira O marketing do “consumo sustentável” chega sorrateiramente à arquitetura

Viagem Istambul

Meio Ocidente, meio Oriente, a 5ª cidade mais populosa do mundo atrai visitantes por sua riqueza cultural e histórica, com destaque para a música

50 Capa ILUSTRAÇÃO Karina Freitas sobre foto de arquivo e dingbats de Buggy/Tipos do Acaso

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Especial

Pernambucanas

Há 40 anos surgia o movimento que encontrou manifestação em variadas expressões artísticas e tem em Ariano Suassuna sua figura central

Construções de porta e janela, que remontam à arquitetura do século 17 e às necessidades daquele tempo, continuam a compor a paisagem urbana do Recife

Cardápio

Palco

Mais de 18 mil estabelecimentos, que vão de restaurantes chiques a bodegas, fazem da cidade o destino ideal para gourmets exigentes

Quais as regras que limitam o entendimento do que é teatro para criança ou para adulto? Profissionais das artes cênicas propõem uma transgressão de fronteiras

Armorial

20

Nova York

66

Casas geminadas

40

Out’ 10

Teatro infantil

84

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cartas reprodução

Mais teatro No mês passado, mandei e-mails para todos os responsáveis pela pauta e divulgação da revista Continente. Falei sobre a importância de termos uma matéria na referida revista. É preciso aproximar mais a arte e os artistas pernambucanos do público. A revista é pernambucana, a equipe é pernambucana. Entendo que ela tem um perfil mais voltado para a literatura, as artes plásticas e o audiovisual. Isso é fato. Percebo que artes cênicas têm

seu espaço, tem sim! Mas não tão acentuado. E, como observador, leitor, artista teatral e fomentador dessa linguagem, sempre vou defendê-la pela sua capacidade de comunicação, interação, reflexão e indignação. Solicito uma maior cobertura da cena teatral local. É preciso que a revista Continente nos assuma! Fomente-nos. É necessário esse canal de diálogo, para juntos construirmos a nossa identidade. Temos uma cena que surge à margem de críticas tradicionalistas e conservadoras. Este ano, Pernambuco ferve teatralmente. Hoje, no Recife, grupos e pessoas da área teatral vêm agitando a vida cultural cênica do Estado e é preciso legitimá-las. Os consagrados conseguiram isso por competência e por direito, mas é preciso que a revista também alargue seu campo de visão para o que tem sido feito com qualidade e tenacidade, dando vida ao teatro pernambucano. Por isso, venho reivindicar uma nota, um matéria, uma crítica, um espaço na Continente para

o espetáculo Cordel do amor sem fim, com texto da baiana Claudia Barral e encenação minha, juntamente com o grupo O Poste Soluções Luminosas. Claro que estou em busca de um espaço para o espetáculo que dirijo, mas também para outras produções, trazendo os jornalistas da revista até nós, tecendo suas criticas e seus pontos de vista. Vocês não sabem como isso nos fortalece no campo estético e crítico. SAMUEL SANTOS

Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140).

RECIFE – PE

RESPOSTA DA REDAÇÃO Felicitamos o seu empenho na divulgação das artes cênicas e agradecemos o envio da carta, sobretudo por seu teor e ênfase. Aqui, na redação da revista, estamos atentos à necessidade de divulgar e discutir mais essa produção, seja ela pernambucana ou de qualquer outra parte, entendendo ser o teatro um campo valioso de expressão artística e humana.

As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

(81) 3183 2780

Fax

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Email

redacao@revistacontinente.com.br

Site

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colaboradores

Bráulio tavares

Paulo Floro

Fernando Lara

Liana Gesteira

Escritor, compositor, teatrólogo, colunista do jornal Diário da Paraíba

Jornalista, editor da revista O Grito! e repórter do JC Online, no qual assina coluna sobre HQs

diretor de comunicação da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais

Jornalista, bailarina, coordenadora do Acervo Recordança. dedica-se a uma especialização em dança

e MAiS Alexandre Figueirôa, jornalista, professor e doutor em Cinema pela universidade Paris III. Ana Lira, jornalista e fotógrafa. Anderson Foca, músico e produtor. carlos eduardo Amaral, mestrando em Comunicação Social pela uFPE e crítico de música. carlos newton Júnior, poeta, ensaísta e especialista na obra de Ariano Suassuna. cavalcante, ilustrador, caricaturista. cristhiano Aguiar, mestre em Teoria Literária. Daniel Buarque, jornalista. Diana Moura Barbosa, jornalista, mestre em Comunicação. Fabiana Moraes, jornalista e doutoranda em Ciências Sociais. Fabiano Sobreira, arquiteto, urbanista e professor, com pósdoutorado na École d’Architecture (université de Montréal). Fernando Monteiro, escritor. Jarmeson de Lima, jornalista e produtor do Festival Coquetel Molotov. Marcelo Abreu, jornalista e professor universitário. Rafael teixeira, jornalista. Rodrigo carreiro, jornalista, professor e mestre em Comunicação pela uFPE.

GoVeRno Do eStADo De PeRnAMBUco

SUPeRIntenDente De eDIÇÃo

contatoS com a ReDaÇÃo

atenDImento ao aSSInante

goVeRnaDoR

Adriana dória Matos

(81) 3183.2780

0800 081 1201

Eduardo Henrique Accioly Campos

SUPeRIntenDente De cRIaÇÃo

Fax: (81) 3183.2783

Fone/fax: (81) 3183.2750

SecRetÁRIo Da caSa cIVIL

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Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão ReDaÇÃo

PRoDUÇÃo gRÁfIca

eDIÇÃo eLetRÔnIca

coMPAnHiA eDitoRA De PeRnAMBUco – cePe

danielle Romani, débora Nascimento,

Júlio Gonçalves

www.revistacontinente.com.br

PReSIDente

Mariana Oliveira e Thiago Lins (jornalistas)

Eliseu Souza

Leda Alves

Maria Helena Pôrto (revisora)

Sóstenes Fernandes

DIRetoR De PRoDUÇÃo e eDIÇÃo

Gabriela Lobo, Gianni Paula de Melo, Maíra

Roberto Bandeira

Ricardo Melo

Gamarra, Maria doralice Amorim e Raquel

DIRetoR aDmInIStRatIVo e fInanceIRo

Monteath (estagiários)

PUBLIcIDaDe e maRKetIng

Bráulio Mendonça Menezes

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

e cIRcULaÇÃo

conSeLHo eDItoRIaL:

Armando Lemos

Mário Hélio (presidente)

aRte

Alexandre Monteiro

Antônio Portela

Hallina Beltrão, Karina Freitas e Sebastião

Rosana Galvão

José Luiz Mota Menezes

Corrêa (paginação)

Gilberto Silva

Luís Reis

Nélio Câmara (tratamento de imagem)

daniela Brayner

Luzilá Gonçalves Ferreira

Joselma Firmino de Souza (supervisão de diagramação e ilustração)

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE ReDaÇÃo, aDmInIStRaÇÃo e PaRQUe gRÁfIco Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700

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LINIERS

“Minhas tiras nascem do espanto” Desenhista e quadrinista, fenômeno da internet e um dos mais famosos artistas argentinos na atualidade, conversa sobre quais influências sustentam o seu ofício texto Paulo Floro

con ti nen te

Entrevista

O banal sempre foi muito caro a

Liniers. Desenhista e quadrinista argentino, ele se tornou sucesso no Brasil com as tiras em quadrinhos Macanudo, publicadas na Folha de S.Paulo e em coletâneas da editora Zarabatana (o terceiro volume acaba de chegar às livrarias). No imaginário desse artista, os personagens vivenciam experiências surreais, enquanto refletem e comentam coisas simples. “Minhas tiras nascem do espanto”, disse. E o espanto é o elo para que o leitor adentre o mundo de Liniers, povoado por personagens como um pinguim da Patagônia, um monstro que tem uma amiga imaginária, duendes, um misterioso Homem de Preto e o próprio artista, representado na forma de um coelho. O sucesso do autor no Brasil provavelmente repercute apenas aquele por ele conquistado no próprio país, já que é hoje um dos artistas mais cultuados na Argentina. Sua tira Macanudo é publicada desde 2002 pelo jornal La Nacion, por uma indicação de outro nome forte dos quadrinhos, Maitena, que teve seu Mulheres alteradas

na lista dos mais vendidos por aqui. Além do Brasil, Liniers é publicado em países como a França, Espanha e o Canadá. Nesta entrevista à Continente, ele falou de sua relação com o Brasil e comentou suas memórias afetivas de Quino, nome que é uma instituição das HQs e famoso no mundo todo por sua personagem Mafalda. “Por vezes, encontro com ele em meu subconsciente”, comentou Liniers. Conhecido entre brasileiros antes mesmo de ganhar uma edição nacional de suas tiras, Liniers teve seu Macanudo “retuítado” e enviado por e-mail por diversas pessoas, muitas vezes acompanhadas da tag #gênio ou simplesmente #hilário. Tudo graças ao seu blog Cosas que te pasan si estás vivo (Coisas que te acontecem se estás vivo, em tradução literal), que ele ainda atualiza. “É meu diário íntimo e, talvez, minha autobiografia in progress”, define. CONTINENTE Você consegue perceber o sucesso que Macanudo alcançou no Brasil? Antes mesmo do lançamento pela editora Zarabatana, sua obra já era comentada pela internet e lida em espanhol.

LINIERS Sempre me surpreendo com qualquer repercussão que tenho fora da Argentina. É algo lindo de ver, sempre. Acabo criando interesse por pessoas e lugares que não conheço, que não entendo. É engraçado. Acho que, no início, os leitores do Brasil chegaram a mim através de outros artistas, como Maitena ou mesmo Quino. Uma vez, coloquei o nome deles no Google e, entre os resultados da busca, lá estava eu. Fico feliz de marcar presença com eles. Tenho sorte. CONTINENTE E o que acha das edições lançadas no Brasil? Estranhei, no início, ler Macanudo traduzido. LINIERS Para mim também é muito estranho (risos). E agora estão traduzindo para o tcheco, o que será mais esquisito ainda. Mas acho bonito olhar minha obra em um idioma que não compreendo. É sempre uma sensação estranha e bela ao mesmo tempo. CONTINENTE Você gostou das traduções? LINIERS Fiquei feliz. Algumas ficaram maiores do que a versão lançada na

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nora lezano e sebastiån arpesella/divulgação

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Argentina. Mas tenho um carinho enorme por todas elas. CONTINENTE Qual a lembrança mais remota que você tem de Macanudo? Como surgiu a ideia para criar os personagens? LINIERS Eu estava desenhando minha tira semanal chamada Bonjour, no jornal Página 12, em 2002. Foi quando Maitena insistiu muito com o jornal La Nacion, no qual ela trabalhava, para que eles me publicassem todos os dias. Na verdade, comecei sem ter muita ideia do que iria sair. Comecei desenhando

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muito com o absurdo, com coisas surrealistas muitas vezes. Esses três são meu jeito de dizer que também curto esse tipo de humor mais antigo e direto, como Snoopy, Mafalda e Calvin e Haroldo. E gosto de trazer um pouco desse mundo mais clássico, de quando as tiras eram para crianças. CONTINENTE Como surge a inspiração para desenhar as histórias de Macanudo? Como é o processo criativo? LINIERS Meus desenhos nascem da surpresa. Minha inspiração é sempre

acho pouco útil, como desenhista. Durante a tarde, dedico-me a outros projetos, como livros, ilustrações. CONTINENTE Quando você descobriu o talento para desenhar? LINIERS Descobri desenhando (risos). Como todo mundo, comecei a rabiscar aos três, quatro anos de idade. Nunca fui o melhor desenhista da classe. Sempre tinha dois ou três que faziam desenhos melhores que o meu. Não tive um talento natural, como Picasso, por isso tive que trabalhar muito para

Entrevista um pinguim, porque acho divertido desenhá-los. Não sabia como seria a tira, como iria desenvolvê-la, então aquele pinguim no meio da Patagônia acabou refletindo todas as minhas inquietações. Não sabia se teria outros personagens ou não. Então, todos foram aparecendo. É como se as tiras chegassem a mim e não o contrário. CONTINENTE Em Macanudo, alguns dos poucos personagens fixos da série são a menina Enriqueta, seu gato Felini e o urso de pelúcia Madariaga. Eles remontam a personagens clássicos dos quadrinhos, como Calvin e Haroldo, por exemplo. LINIERS Sim, são três personagens da tira que têm um humor mais clássico, já que em Macanudo trabalho

fruto de um espanto. Algo que me surpreenda, por mais banal que seja. CONTINENTE Falando em banal, queria que você comentasse um pouco a sua rotina. Essas pequenas coisas do dia a dia devem influenciar seus trabalhos. LINIERS Sim! Tudo tem influência em meus desenhos, tudo que vejo, leio, escuto ou as pessoas com quem falo. As notícias também acabam me dando ideias, de alguma forma. Bem, levanto cedo, já que tenho duas filhinhas. O melhor para mim é desenhar pela manhã, logo após ler o jornal, ver alguma notícia que me interesse. Desenho no papel e pinto com aquarela, sinto-me meio Gepeto com Pinóquio. Depois passo para o computador, que

encontrar um jeito de desenhar que me agradasse. Insisti muito e demorei a gostar de algo que eu criasse e, mais importante, que achasse engraçado. Nunca fiz escolas de desenho, apenas oficinas. Aprender a desenhar, só mesmo tentando muito. CONTINENTE Você já chegou a afirmar que Quino fez parte da sua infância. Quanto desse autor está presente nas suas obras? LINIERS Quino é uma influência muito grande. Mais do que isso. Minha geração aprendeu a gostar de quadrinhos lendo Mafalda. Ela diz muito ao argentino da minha idade que lia aquelas tiras quando criança. Os personagens ficaram no meu subconsciente como se fossem pessoas

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CONTINENTE O conteúdo político das obras de Quino sempre foi muito comentado, mas, para muitas pessoas, não passa de uma questão de interpretação. Qual sua opinião sobre isso? LINIERS Bem, o Quino desenhou

tira sobre a aprovação do casamento gay na Argentina. Mas é algo muito esporádico. CONTINENTE Seu blog, Cosas que te pasan si estás vivo traz impressões pessoais, como músicas e filmes de que você gosta. Fala também de suas filhas, de livros. É como um diário. LINIERS Sim, posso dizer que é como um diário íntimo. São quadrinhos de coisas que me acontecem durante a semana. Acredito que Macanudo seja um diário emocional e no blog posso falar

tiras como um disfarce de mim mesmo. Existe uma escola grande de cartunistas que se representam como animais. Mas acho que, no fim, seja apenas timidez. CONTINENTE Você tem um livro de viagens chamado Conejo de viaje (Caderno de viagem, em tradução livre, embora conejo em espanhol signifique “coelho”, inédito no Brasil). Tem planos de voltar a desenhá-lo? LINIERS Comecei esses diários como uma maneira de registrar minhas viagens. Era algo rápido, pessoal, por isso algumas passagens são um tanto Fotos: reprodução

reais. O próprio Quino é como se fosse uma pessoa presente para mim. Ele é tão presente no meu subconsciente, que muitas vezes nos cruzamos, mas não falamos muito, já que ele é tímido (risos). É uma espécie de base pessoal, como leitor e como pessoa.

“Quino é uma influência muito grande. Minha geração aprendeu a gostar de quadrinhos lendo Mafalda. Ela diz muito ao argentino da minha idade que lia aquelas tiras quando criança. Os personagens ficaram no meu subconsciente”

a Mafalda nos anos 1960 e 1970 e, aqui na Argentina como no mundo inteiro, existia muita politização. As pessoas eram mais informadas. Se eu desenhasse naquela época, com certeza seria mais político com minhas tiras. Gosto muito desse lado engajado de Quino e admiro também suas ideias nesse campo. Muitas pessoas concordam com suas visões, não importam as convicções que tenham. CONTINENTE Você costuma abordar política em suas tiras? LINIERS Normalmente desenho poucas. Acho que não tenho muito o que falar desse e daquele político ou do assunto em detalhes. Já existe gente fazendo isso muito bem. Recentemente, fiz uma

de outros assuntos. E, sim, é como uma autobiografia em curso. CONTINENTE Como tem sido o retorno dos leitores? LINIERS Maravilhoso. Lembro quando era criança e lia as histórias de Quino. Ele me parecia tão inacessível, distante, quase inumano. Hoje, posso ter um relacionamento mais direto com quem admiro, qualquer artista. A internet é uma ferramenta importante no meu trabalho. Sem ela, eu não existiria fora da Argentina, ninguém me conheceria. CONTINENTE No blog, você aparece bastante como um coelho. Há algum motivo específico para isso? LINIERS A explicação é que apareço nas

estranhas. Não era minha intenção publicar. Mas meu editor viu e achou aquilo tudo muito especial, próximo do que as pessoas já liam de mim. Foi uma maneira de sair da rotina. Como desenhista, continuo viajando (risos), mas as viagens estão ficando mais escassas. Quero voltar a desenhar esses cadernos, gostaria muito de desenhar lugares como a Bolívia e a África. CONTINENTE Para terminar: podemos chamar seus personagens de existencialistas? LINIERS Todos somos, de alguma forma. Todos queremos saber por que estamos aqui. Eu desenho para fazer essas perguntas, para questionar coisas que não entendo. Todas as minhas tiras são perguntas, de algum modo.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

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ARMORIAL virtual

DESIGN gráfico

Esta edição é dedicada aos 40 anos do Movimento Armorial. Na web, também damos destaque ao assunto. O internauta pode encontrar em nosso site um vasto material, incluindo o prefácio escrito por Carlos Newton Júnior para o livro Almanaque armorial – que traz ensaios de Ariano Suassuna acerca de diversos temas. Além disso, temos o trailler da montagem de Guel Arraes para O auto da Compadecida, um vídeo do último espetáculo do Grupo Grial de Dança e algumas composições musicais influenciadas pela estética armorial.

Veja outras obras de Romero Cavancanti, que começou sua carreira nos anos 1970, criando capas para livros, discos e cartazes.

Conexão

CARDÁPIO A riqueza e a variedade da culinária de Nova York dão origem a misturas inusitadas. Conheça algumas delas numa seleção do colaborador Daniel Buarque.

Veja esses e outros links em www.revistacontinente.com.br

andanças virtuais

MÚSICA

ANTROPOLOGIA

DESIGN

LITERATURA

Versão digital do Dicionário da Música Popular Brasileira

Publicações sobre a cultura urbana disponíveis na web

Para qualquer tipo de produto, há boas embalagens

A produção contemporânea em discussão

dicionariompb.com.br

osurbanitas.org

lovelypackage.com

cronopios.com.br

O site Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira é um bom representante do trabalho historiográfico feito sobre o tema. Os verbetes tratam de figuras importantes do cenário musical e trazem suas respectivas biografias e discografias. Por sua originalidade e riqueza, a música brasileira desperta não apenas interesse estético e de consumo, mas também impulsiona discussões críticas. Nesse sentido, o Dicionário Cravo Albin tem potencial para atrair pesquisadores e curiosos.

O espaço, criado pela professora da USP, Rita Amaral, reúne textos em vários formatos, desde artigos acadêmicos até charges, passando por entrevistas, poesias e contos. Sob diferentes pontos de vista, todas as produções abordam o mesmo assunto: a cultura das sociedades urbanas. Não por acaso, a revista eletrônica recebe o nome Os urbanitas. As colaborações para a revista podem ser enviadas em português, espanhol, francês, inglês ou italiano; exige-se apenas relevância dos conteúdos para a reflexão da antropologia urbana.

O processo técnico relacionado à concepção e elaboração de um produto não tem compromisso meramente funcional, explorando as várias nuances criativas do artefato. Na página Lovely package, observamos como as embalagens também se configuram de forma estética para atrair o público consumidor. O site mostra que, de ferramentas mecânicas até bebidas e alimentos, tudo pode ser embalado de forma conceitual e inovadora.

Colocar a produção literária contemporânea no centro da discussão, sem perder de vista os autores clássicos, é o objetivo do portal Cronópios. Críticas, ensaios e produções de prosa e poesia possuem espaços exclusivos com a finalidade de divulgar reflexões e autores. Além disso, o site conta com colunistas respeitados, como Bráulio Tavares e Italo Moriconi. Duas seções chamam a atenção: a Cronopinhos, na qual a literatura infanto-juvenil é contemplada, e a TV Cronópios, parte do site na qual estão reunidos vídeos sobre as temáticas literárias.

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blogs CINEMA cinemacultura.blogspot.com

O blog disponibiliza para download filmes de diretores consagrados e de alguns realizadores pouco conhecidos. O que todos têm em comum é o epíteto de cult. É uma oportunidade de ter acesso a obras difíceis de serem encontradas.

ILUSTRAÇÃO desenhodelicia.tumblr.com

EU TUÍTO, TU TUÍTAS, ELE TUÍTA No ano do centenário de Aurélio Buarque de Hollanda, dicionário rende-se às novas expressões derivadas do uso da internet, inserindo-as em sua nova versão Avanços tecnológicos, surgimento de novos produtos e redes interativas

demandam, necessariamente, uma adaptação da língua. No dia a dia, a criação de palavras ocorre intuitivamente, mas a recorrência do uso e a importância adquirida pelo objeto nomeado acabam implicando a oficialização de alguns termos. A confirmação desse dinamismo da linguagem está no lançamento da nova edição do Dicionário Aurélio, no qual consta, entre outras expressões derivadas do uso da internet, o verbete tuitar. Originalmente, to tweet é o verbo inglês para o piar dos pássaros, mas já faz algum tempo que a palavra está vinculada à famosa rede social da internet, o Twitter. No Brasil, é expressiva a popularidade desse ambiente interativo e a criação do verbo tuitar entre os usuários ocorreu de forma espontânea. Em pleno ano do centenário de Aurélio Buarque de Hollanda, o dicionário homônimo ganhou uma versão mais tecnológica e tuitar se tornou uma prática “oficial” para a língua portuguesa. Entre as novas expressões que mereceram espaço na obra, está o verbo blogar, que designa a prática de escrever em blogs, além dos substantivos fotolog, blue tooth, blu-ray disc e blu-ray player. Mais uma vez, a linguagem se afirma como espelho da cultura. GIANNI PAULA DE MELO

Elaboradas a partir de diferentes técnicas, as ilustrações reunidas neste blog tematizam o erotismo e suas possibilidades estéticas. Os responsáveis o definem de maneira exata: “Sacanagem desenhada, pornografia a lápis”.

LITERATURA fsuassuna.blogspot.com

Crônicas, poemas e críticas da professora de literatura Flávia Suassuna estão aqui disponíveis. O espaço também oferece alguns relatos pessoais, mas sempre escritos com apuro estético e fazendo links com o universo literário.

SUSTENTABILIDADE verdinhobasico.com.br

O pensamento sustentável está modificando algumas propostas dos segmentos da moda e da decoração. O blog apresenta bolsas, roupas, móveis e sapatos fabricados a partir da reciclagem de pneus, PET, entre outros.

sites sobre

vinhos DICAS

ENOBLOGS

INTERATIVO

vinography.com

enoblogs.com.br

guiavinum.com

Alder Yarrow aconselhava amigos sobre vinhos, até que resolveu fazer um blog dedicado aos curiosos por essa bebida. Hoje, é um dos mais influentes na internet.

Criado com o objetivo de agrupar e organizar conteúdos da web sobre vinhos, o site oferece atualizações sobre o assunto postadas em toda a blogosfera.

Desconstruindo a ideia de que apenas especialistas podem falar sobre o assunto, o site surge como espaço para o apreciador comum opinar acerca de vinhos.

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reProDução

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Romero Cavalcanti

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UM INVENTOR DE MINÚCIAS Texto Bráulio Tavares

Imagine-se um homem capaz de tocar violão, bombardino, harpa, sanfona,

pistom, clavicórdio e oboé. Para ele, tocar Carinhoso ou Hey Jude em cada um desses instrumentos é uma experiência única. As notas são as mesmas na partitura, mas o resultado sonoro e o modo de produzi-las são únicos e inimitáveis. Com as artes gráficas e plásticas se dá algo parecido, como mostra a obra de Romero Cavalcanti, com quem já dividi vários trabalhos, e cuja obra acompanho há 30 anos. Romero tem no desenho a bico de pena um traço preciso e inesgotavelmente inventor de minúcias. Traço de cartunista aplicado a outros tipos de representação. Pintura e desenho são técnicas aditivas, em que o artista coloca algo que não estava lá; e existem as técnicas subtrativas, como a escultura ou recorte, em que ele desbasta uma matriz com estilete até deixá-la só demoradamente reconhecível. Atletas, políticos, garotas da Playboy, têm suas imagens impecáveis descascadas de fora para dentro ou de dentro para fora, ficando reduzidas a formas alheias ao corpo humano. Uma caricatura ao contrário, que faz a crítica ou a sátira através da deformação dos traços. Esse processo não comenta a pessoa real, apenas fornece uma imagem para que o artista crie uma ficção plástica. Tirando o excesso e deixando a essência. Nascido em Itabaiana (PB), Romero formou-se em técnico de construção de estradas pela Escola Técnica Federal de Pernambuco (1969), antes de transferir-se

Página anterior 1 COLEÇÃO

ilustração integra o conjunto A criado para as antologias de contos fantásticos da editora Casa da Palavra

N estas páginas 2 O Mistério de Irma Vap

esenho a guache feito em D 1986 para um dos espetáculos de maior sucesso no Brasil

3 El dia que me quieras Cartaz para teatro de 1980. Desenho original a bico de pena e aerografia

4 Ópera do Malandro Pintura a guache e aerografia, de 1978, utilizada para cartaz, programa e livro do espetáculo

Próximas páginas 5-6 Páginas de Sombra 1 e 2

I lustrações para livro criadas a partir de gravuras vitorianas digitalizadas

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imagens: reprodução

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Portfólio

para o Rio de Janeiro, onde passou pelo cargo de diretor de arte na McCann-Erickson (1972), e tornou-se ilustrador da Revista de Domingo, do Jornal do Brasil. Foi durante os anos 1970-1980 que ele começou a criar capas para livros e discos, bem como cartazes para peças teatrais. Uma capa ou um cartaz é o rosto da obra que está ilustrando. É a primeira imagem que muitas pessoas terão dela. Uma imagem capaz de atrair a atenção num primeiro olhar, de ficar marcada na memória, e de ser uma síntese ou ideograma da obra. A boa capa ou o bom cartaz são trabalhos em que o autor da obra original vê uma extensão natural do que criou.

Além dessa vocação camaleônica para mudar de técnica, Romero Cavalcanti também sabe se deixar impregnar pelo espírito da obra. Basta ver a perfeita adequação da técnica mista (guache, aerógrafo etc.) do cartaz da Ópera do malandro, em que o dinheiro (ele próprio um tipo de gravura anônima, estatal) serve de suporte para que a imagem do presidente-ditador seja invadida e assimilada pelo malandro. A iconografia (texturas, tonalidades de cor) remete não apenas à Era Vargas e à Lapa, mas ao teatro musical brasileiro. O mesmo se dá com as colagens para as antologias fantásticas da Casa da Palavra. Muitas delas foram

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7 Cutaway Recorte de papel impresso. Uma das obras mostradas na exposição As formas do desejo

8-9 novos Baianos Ilustrações feitas com recorte de papel para o livro de Moraes Moreira

criadas à revelia dos próprios contos. São investigações pessoais do artista no universo proposto. Ilustrar algo é menos importante do que perceber e aplicar o mecanismo inconsciente de criação sugerido por aqueles textos. O resultado remete às experiências de Max Ernst (Une semaine de bonté, 1934), ou às colagens surrealistas de Jorge de Lima (A pintura em pânico, 1943), que já utilizam elementos da fotografia. As ilustrações de Romero têm independência suficiente para se desprender dos livros: viraram obras autônomas, ou, como diz o artista com bom humor, “estão subindo pelas paredes”. A descoberta de uma nova técnica ou de um novo filão criativo impele Romero a uma produção torrencial durante meses, quando ele esgota todas as variações permitidas por uma ideia. Como uma música que precisa se expandir, não importa o instrumento que irá lhe dar passagem.

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FOTOS: dIVuLGAçãO

john, por cynthia John, a biografia de Cynthia Lennon, primeira esposa do ex-beatle, lançada pela Editora Larousse, revela que, apesar de apregoar aos quatro cantos do planeta mensagens de paz e amor, em seu relacionamento com a mulher e o filho Julian, Lennon era de uma total contradição: infidelidade conjugal, irritação frequente, mesquinhez e indiferença eram suas atitudes frequentes. Já para os que achavam que John Lennon “jogava água fora da bacia” com o seu empresário, Brian Epstein, Cynthia nega. Nas suas palavras, o homem era 100% heterossexual. (Luiz Arrais)

poUpando para o FUtUro

Um brinde a Lennon! Outubro é um mês especial para os fãs de John Lennon. No dia 9, são comemorados os 70 anos de nascimento do músico inglês. Morto em 8 de dezembro de 1980, o nome do artista jamais deixou de estar presente na mídia, principalmente quando as notícias são relativas a fatos esquisitos. Um exemplo é o leilão de um vaso sanitário que pertenceu a uma residência do ex-beatle na Inglaterra, na qual morou entre 1969 e 1971. A peça foi arrematada, em agosto, por US$ 14.740. Outra notícia diz respeito à revolta de seus admiradores devido à foto que mostra a cantora Lady Gaga tocando no piano branco que aparece no videoclipe de Imagine. O registro foi feito e divulgado, em julho, por Sean Lennon. Iconoclasta, o rapaz já havia provocado a ira dos aficionados pelo pai ao parodiar com sua namorada, em setembro de 2009, a mítica imagem da última sessão de fotos de Lennon e Yoko, feita por Annie Leibovitz, em que ele aparece nu abraçado a ela, na cama. Neste mês, o nome do ex-beatle deve mais uma vez permear o noticiário, por conta do lançamento do projeto Gimme some truth, que engloba oito discos solos remasterizados do artista, faixas raras e livretos. Já Yoko organiza, para o dia 9, uma cerimônia, na Imagine Peace Tower, na ilha de Vioey, na Islândia, transmitida ao vivo pelo site Imaginepeace.com. Ela ainda planeja um megashow com diversas estrelas musicais, que inclui a famigerada Lady Gaga. DÉBORA nASciMenTO

cOn Ti nen Te

A FRASE

Quando o espiritismo, no Brasil, desponta como a religião do momento, o “mercado financeiro” se habilita para atender às demandas desse público. No Reincarnation Bank, o poupador faz investimentos que serão resgatados por ele na sua próxima encarnação. Segundo a “instituição financeira”, o cliente que retornar numa outra vida, e quiser retirar seus dividendos, deverá se dirigir ao banco e se submeter a algumas sessões de regressão. Só assim o banco poderá confirmar se aquela pessoa é realmente a antiga depositante. (Mariana Oliveira)

Balaio deixa diSSo

Em passagem por Pernambuco, o escritor daniel Galera concedeu entrevista ao repórter Thiago Corrêa, para o Diario de Pernambuco. Corrêa começou a entrevista mencionando a “trajetória vitoriosa” de Galera, que havia galgado o Prêmio da Fundação da Biblioteca Nacional, além do 3º lugar no Jabuti. O escritor, que respondeu não escrever “pensando em prêmios”, fez pouco caso: “Acho esse papo de trajetória vitoriosa uma coisa meio Roberto Justus”. (Thiago Lins)

iMprenSa doS pobreS Em entrevista ao El País, o repórter Óscar Gutierrez pediu a Eduardo Galeano para comentar a frase de um anônimo que o escritor uruguaio costuma citar: Nos mean y los diarios dicen que llueve (“Nos mijam e os jornais dizem que chove”). Inspirado, o escritor conta que viu a frase num muro pichado de Buenos Aires: “Os muros são a imprensa dos pobres. E segue chovendo”. Concluiu: “As notícias são muito manipuladas. A greve de fome dos Mapuche no Chile ocupa pouco ou nenhum espaço nos meios de maior influência e uma greve de fome na Venezuela ou em Cuba merece a primeira página”. (TL)

“Um excesso de vez em quando é ótimo. impede que a moderação vire um hábito.” W. Somerset Maugham

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REPROduçãO

CRIATURAS

MUito eStranho

dIVuLGAçãO

Em fevereiro de 2009, a bizarra entrevista de Joaquin Phoenix no Late Show, de david Letterman, provocou uma série de discussões na internet sobre o que teria acontecido com o ator. Barbudo, de óculos escuros e balbuciando frases sem nexo, o artista informava que iria abandonar o cinema e dedicar-se à sua nova paixão, o rap. A transformação tresloucada, que até virou piada na cerimônia do Oscar 2009, foi documentada por Casey Affleck no filme I’m still here, que estreou nos Estados unidos no mês passado. Na ocasião, o diretor admitiu que a história fora inventada, o que provocou uma nova onda de comentários na web, pois até o renomado crítico Roger Ebert caiu na lorota. Agora, desfeito o mistério, permanece a pergunta: por que Joaquin, desde 2008, está sem fazer filmes (sérios) e não há, até agora, nenhuma previsão de sua presença numa nova produção? (dN)

por QUe SEBO? Matéria publicada no jornal A Tarde, de Salvador, no mês de maio, mostra que, apesar de o comércio de livros usados ter crescido muito na internet, os sebos tradicionais continuam resistindo. O que muita gente provavelmente desconhece é a origem do estranho nome dado a esses espaços comerciais e culturais, que gerou derivações como “seboso”, para designar o cliente, e “sebista”, para identificar o vendedor. Segundo uma das explicações, o termo sebo teria surgido quando ainda não havia energia elétrica e as pessoas, na hora de ler, recorriam à luz de velas, cuja cera, ao derreter, às vezes deixava os livros ensebados. (Gilson Oliveira)

clarice Lispector, homenageada da 6ª Fliporto Por cavalcante

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ilustração e capitulares: buggy/tipos do acaso

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eSPeciAL

armorial

40 anos c co on nt tiin neen nt tee o ou ut tu ubbr ro o 220 0110 0 || 220 1

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Nos anos 1970, surgia o movimento artístico que uniu elementos eruditos aos da cultura popular nordestina, um ideal imaginado e construído com esmero pelo escritor Ariano Suassuna, e que se propagou em obras fundamentais de diversas expressões artísticas, da literatura ao cinema. Esta série registra a importância da iniciativa e aborda a repercussão que teve ao longo das décadas

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liTEraTUra obra-prima do romanceiro popular nordestino Principal criação do Movimento Armorial, o Romance d’A Pedra do Reino permanece como último projeto de matriz regionalista tExto Cristhiano Aguiar

Antes de escrever

este texto, tive uma breve conversa com Ariano Suassuna. Ao lhe mostrar o meu exemplar d’ A Pedra do Reino, ele brincou: “Sabe como meus alunos da UFPE chamavam esse livro?

‘O tijolão do Reino’. E muita gente me dizia que hoje em dia ninguém lê um livro desse tamanho”. No entanto, o prestígio da principal obra do autor do Auto da Compadecida continua a crescer. O Romance d’A Pedra do Reino (1971), além de ter sido adaptado para o teatro e a televisão, já passou da 10ª edição, feito considerável para um livro que ficou anos

fora de catálogo e que é marcado por trama e estrutura bastante complexas. O interesse por esse romance, na verdade, é um sinal da atenção que, 40 anos depois, o Movimento Armorial continua despertando nas pessoas. Como apontam diversos estudos sobre o tema, o Movimento Armorial começou sua gestação décadas antes do seu lançamento oficial, em 1970, e dialogou com as intensas transformações sociais e culturais que o país atravessou desde a década de 1950: o incremento do processo de industrialização com o governo Juscelino Kubitschek e o chamado “milagre brasileiro” do Golpe Militar de 64, por exemplo. Assim, temos um Brasil cada vez mais aberto ao capital estrangeiro, à indústria cultural, à cultura pop e caminhando para um inchaço urbano sem precedentes, cujas estrias de violência, caos e conflitos sociais tão bem conhecemos hoje. Um país que mudava de cara com muita

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1 A PedrA do reino livro de ariano suassuna foi adaptado para a tv, em 2007, na elogiada minissérie dirigida por luiz Fernando carvalho

que é na literatura que se encontra o “coração” do armorial. Não apenas porque o seu idealizador é um escritor, mas porque foi na prosa e no verso que Ariano Suassuna refletiu as questões fundamentais sobre o movimento. A palavra armorial, por exemplo, aparece pela primeira vez não em 1970, ano de lançamento oficial do movimento, mas, sim, na poesia de Ariano Suassuna, com o poema Canto armorial, escrito em 1950.

LiteRAtURA De coMBAte

E que pressupostos seriam esses? Segundo Carlos Newton Júnior, no livro O pai, o exílio e o reino, o armorial queria criar uma cultura erudita a partir da cultura popular, para combater um suposto processo de vulgarização da cultura nacional em decorrência das transformações que foram citadas antes. O armorial possuía duas linhas de ação: recriar uma arte erudita a partir do

o desejo de constituir uma verdadeira cultura “brasileira” retorna com toda a força no Movimento Armorial velocidade e que vivia sob a sombra do autoritarismo e da censura. A literatura brasileira daquele momento dialogava intensamente com essas transformações, nas obras de José Agrippino de Paula, Antonio Callado, Ignácio Loyola Brandão, Rubem Fonseca, entre outros. Esse contexto de intensas transformações sociais e culturais reacende uma pergunta que se transformou numa obsessão da nossa literatura: “Afinal de contas, o que é o Brasil?” A busca pela real e verdadeira identidade nacional, a constituição de uma verdadeira cultura “brasileira” retornam com toda a força possível no Movimento Armorial. Com tantos conflitos, tanta transformação e tanta Coca-Cola, a verdadeira “alma” do Brasil estaria ameaçada? Essa foi a inquietação que moveu Ariano Suassuna a escrever A Pedra do Reino, que, sem sombra de dúvidas, é a obra que faz a síntese dos pressupostos armoriais. Podemos dizer

romanceiro popular nordestino e aproximar essa criação à heráldica, à cultura dos emblemas, dos estandartes e das alegorias. No caso do romanceiro popular, os escritores deveriam retomar personagens, formas fixas e imagens poéticas da poesia popular, bem como se aproximar de uma certa atmosfera mágica, encantada, épica e barroca, que seriam típicas desse popular. Na proximidade com a heráldica, reside, possivelmente, o grande achado do armorial: os emblemas, os glifos, as alegorias e os esmaltes fazem parte de uma vertente importante da cultura nordestina, seja nos estandartes das procissões e penitências, nos campos de futebol, ou nas estripulias carnavalescas das ladeiras de Olinda, e conferem uma visualidade muito marcante às obras dessa estética. O armorial foi, em nossa literatura, o último projeto de matriz regionalista.

Não porque aderisse a uma concepção neonaturalista de linguagem, mas, sim, porque vinculava a uma região específica, o nordeste sertanejo, o cerne da constituição de uma identidade nacional e de uma cultura “verdadeiramente” brasileira. Outra não é a tese de Sônia Lúcia Ramalho de Farias, professora do Departamento de Letras da UFPE, que publicou o livro O sertão de José Lins do Rego e Ariano Suassuna, no qual traça paralelos e afinidades entre o movimento, em especial A Pedra do Reino, e as ideias regionalistas de Gilberto Freyre. Aproximar o romance de Suassuna do regionalismo significa inseri-lo numa tradição literária que pode ser traçada a partir do Romantismo brasileiro, passando pela Escola do Recife, pelo Manifesto Regionalista de 1926 e alcançando o seu último momento nos poemas e na prosa armoriais. O projeto literário do armorial também é o nosso último projeto “humanista” e “moderno” por excelência: nas décadas seguintes, a literatura contemporânea seria mais fragmentada e proporia projetos mais fluidos e/ou corrosivos. Foi a última tentativa da criação de um mundo coeso, com certa unidade e que pudesse dar conta de uma série de inquietações simultaneamente. Essa energia de agregação em torno de um projeto de país e de cultura não se repetiu em nossa literatura. Se o primeiro romance do autor, A história do amor de Fernando e Isaura, ainda constitui um exercício, e o seu último romance publicado, o esgotado O rei degolado ao sol da onça caetana, perde-se na vontade de tomar um partido político e cultural, A Pedra do Reino consegue, em vários momentos, um excelente equilíbrio. Quando impera o humor, o mágico, o imagético, a ambiguidade, as visagens e a jurema, o romance faz jus à condição de uma das obras mais importantes da ficção brasileira nas últimas décadas. Há também, nas suas entrelinhas, um senso trágico e uma certa melancolia que lhe acrescentam ótimos sabores (vejam, por exemplo, o capítulo A aventura dos cachorros amaldiçoados). No entanto, quando é preciso explicar em excesso o Brasil, expor e sintetizar os pressupostos do armorial, o romance se desgasta.

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con especial ti nen te divulgação

arquivo cepe

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reprodução

2 MARcUS AccioLy livro Nordestinados, publicado pelo autor em 1971, traz elementos armoriais

3 DeBoRAh BRennAnD poeta esteve entre os autores que se agregaram inicialmente ao movimento

PoetAS e PRoSADoReS

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Segundo Idellete Muzart Fonseca dos Santos, no livro Em demanda da poética popular, uma série de poetas e prosadores se aproximou de alguma maneira do Movimento Armorial. Os nomes de maior destaque foram Ângelo Monteiro, Deborah Brennand, Janice Japiassu, Marcus Accioly, Raimundo Carrero e Maximiano Campos. Eles foram escritores armoriais? Da leitura da obra desses escritores, percebe-se que a adesão ao armorial foi muito mais em relação ao seu contexto de produção do que à profunda incorporação dos seus elementos estéticos. Dessa forma, sugere-se a hipótese de que a literatura

4 iLUMinogRAvURA várias das obras de suassuna são ilustradas por ele mesmo

armorial por excelência continua a ser a prosa, a poesia e a dramaturgia de Ariano Suassuna. Isso não impede que os chamemos de armoriais; contudo, há evidência de que, em diversos casos, a estética armorial teve uma influência secundária na constituição das suas obras. Aquele que seria o livroadesão de Ângelo Monteiro, Armorial caçador de nuvens, apesar da presença de reinos, caçadas, brasões e de formas poéticas populares, sofre muito mais a influência do hermetismo, do Surrealismo, dos problemas propostos pela filosofia (elemento marcante da poética de Monteiro, que já se revela aqui) e, principalmente, de Jorge de Lima. Algo

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5 RAiMUnDo cARReRo romance de estreia do autor, A história de Bernarda Soledade – A Tigre do Sertão, aproxima-se do movimento pela imagística

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semelhante ocorre com Marcus Accioly. Seu livro Nordestinados, de 1971, é geralmente associado ao armorial. Se aqui a sua poesia e o Movimento Armorial compartilham o interesse em retomar, no erudito, as formas populares (mas esse interesse não parece suficiente para classificar por si só uma obra de armorial), estão ausentes o mágico, o heráldico e a atmosfera de encantamento que também seriam as marcas dessa literatura. Pelo contrário, faz-se presente, do início ao fim do livro, a influência de João Cabral de Melo Neto, assim como o compromisso de mapear, poeticamente, todos os aspectos da cultura nordestina, das pedras às habitações. Com a obra de Raimundo Carrero, acontece um caminho oposto à de Accioly. Se, neste, a aproximação com o armorial ocorre pelo interesse em construir uma cultura e uma identidade do Nordeste, em Carrero a aproximação se dá na pura imagem. No seu romance de estreia, associado por Ariano ao armorial, A história de Bernarda Soledade – A Tigre do Sertão, somos levados a acompanhar uma história de

emblemas, cavalos-fantasmas, visagens. Embora a história se passe em uma fazenda, não há nenhum compromisso em pensar o Sertão, problematizar questões sociológicas e políticas do Nordeste, ou criar uma cultura brasileira. Muito pelo contrário: como aconteceria também com Sombra severa, publicado mais de uma década depois, a história de Bernarda Soledade acontece no mundo rural mais intensamente porque nesse espaço Carrero pode desenvolver alguns dos temas que são recorrentes no seu trabalho: a violência, a questão do mal, a sexualidade vivida em seus extremos, a corrosão da própria identidade, o império sobre o Outro. Longe está, já nesse primeiro livro, o compromisso de pensar o nacional.

conteMPoRAneiDADe

De que maneira o Movimento Armorial ecoa na nossa literatura, hoje? Um nome de destaque é Carlos Newton Júnior, que tem retomado a estética e os pressupostos do movimento em seus ensaios e na sua poesia. Há pouco tempo, o poeta e dramaturgo pernambucano, radicado

na Paraíba, Astier Basílio, escreveu a peça Ariano, que reconta a biografia do criador de Quaderna através de elementos estéticos do armorial. Em seu livro de poemas Searas do sol, uma série de versos possui afinidade com a poética armorial. A partir da década de 1990, no Ceará, o poeta Virgílio Maia também se aproxima do movimento. Em Pernambuco, dos anos 1980 para cá, vê-se pouca presença da literatura armorial, principalmente no caso da poesia. Nomes surgidos no contexto da poesia independente (também chamada de marginal), como Cida Pedrosa, Luiz Carlos Monteiro e Miró, não têm especial proximidade com o movimento. Da mesma forma, jovens escritores surgidos a partir do final dos anos 1990 e início do 2000, publicados nas duas antologias Invenção Recife, ou nas revistas literárias Crispim, Vacatussa, Entretanto, Interpoética e nos títulos da editora independente Livrinho de Papel Finíssimo, não dão continuidade à estética. Isso também parece ser verdade para grupos como Nós Pós & Freeporto. É digno de nota, contudo, que no romance O grau Graumann (2002), de Fernando Monteiro, e em Galileia (2008), de Ronaldo Correia de Brito, existam algumas críticas ao armorial. No caso do primeiro livro, o discurso de Ariano Suassuna é parodiado; já no romance de Ronaldo, há uma evidente crítica às matrizes regionalistas com as quais o movimento possui afinidades. E o que as novas gerações de escritores podem aprender com o armorial? Se a constituição do Brasil e de uma cultura nacional já não são preocupações das gerações recentes de criadores, nem dos teóricos atuais, outros aspectos do movimento, como o diálogo com o popular, o exercício da imaginação, das visagens e da sedução dos olhos, a valorização das tradições literárias e o sempre bemvindo humor, podem se tornar um caminho fecundo de inspiração. São os principais motivos, aliás, para que continuemos a ler o “tijolão”, vulgo de A Pedra do Reino, e que confirmam a relevância da literatura armorial.

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con especial ti nen te priscila buhr/divulgação

continente Todos beberam no romanceiro popular? Incluindo a poesia de Deborah Brennand? ARiAno SUASSUnA Não, Deborah pertenceu ao Movimento Armorial, mas a semelhança é mais através da imagística, que é muito rica e muito forte. A poesia dela é mais aristocrática e de forma mais livre, enquanto que eu, Janice, Accioly, no Nordestinados, e Ângelo Monteiro, éramos mais ligados às formas da poesia popular.

Entrevista

ariano sUassUna “o Auto dA CompAdeCidA Era Uma bandEira do armorial” continente Como foi a sua relação com Osman Lins? Houve influência recíproca, chegaram a ler originais um do outro? ARiAno SUASSUnA O meu relacionamento com Osman se deu no tempo anterior à Avalovara. Quando ele morava aqui, eu li os originais de O visitante. Em 1960 ou 1961, fundou-se na UFPE o primeiro curso de teatro e fui professor nele. Eu dava aula de Teoria do Teatro. Tinha dois departamentos nesse curso: um de Formação de Ator e outro de Dramaturgia. E Osman se matriculou e foi meu aluno no curso de Teoria do Teatro e no curso de Dramaturgia. Como meu aluno, acho que era mesmo uma exigência regimental, ele escreveu Lisbela e o prisioneiro como trabalho de conclusão. Tanto que você nota até uma certa influência, uma certa ligação com o tipo de teatro que eu fazia. continente E com relação a Alberto da Cunha Melo? ARiAno SUASSUnA Relação pessoal muito boa! Mas, em relação à estética, eu acho que Alberto era mais da linha

de João Cabral do que da minha. E fui amigo dos dois. Mas a minha poesia é bastante diferente da deles. A poesia de Cabral era muito diversa e não houve influência nenhuma do Movimento Armorial. Agora eu disse para ele uma coisa de que ele gostou muito, uma revelação da minha infância. Quando eu era menino, se você encontrava um morto, então tinha obrigação religiosa de promover o transporte do pessoal para um local sagrado. As pessoas que faziam o transporte do corpo ficavam gritando: “Chega, irmão das almas,/ Não fui eu que matei, não”. Quando contei isso para João, ele ficou doido e se você ler Morte e vida severina tem essa frase. Se ler o meu Uma mulher vestida de sol, tem lá igualzinho. continente O que os poetas participantes do Movimento Armorial possuem em comum? Eles parecem ser muito diferentes entre si... ARiAno SUASSUnA Se você ler com atenção, não são tão diferentes. Se ler a poesia de Janice Japiassu nessa época, ler O armorial caçador de nuvens, de Ângelo Monteiro, pelo próprio título já faz essa relação, e se ler Nordestinados... eu escrevi um pequeno ensaio e nele chamo a atenção para um poema no qual Janice segue um processo enumerativo. Accioly faz um muito parecido, enquanto Ângelo Monteiro tem poemas em forma de sextilha, que é uma forma usada pelos cantadores e pelos folhetos de cordel, e isso é um traço que coloca todos os três em harmonia com o Movimento Armorial.

continente Como foi a aproximação de Raimundo Carrero no Armorial? ARiAno SUASSUnA Ele começou a frequentar minha casa muito cedo. Era muito novo. Levou-me uma novela que tinha escrito, que me impressionou muito pela linguagem; eu não gostei muito da narrativa, mas vi que ele poderia ser um escritor. Havia essa diferença de idade, então passou a frequentar minha casa. Ele dizia, brincando, que chegava lá de nove da manhã e saía de nove da noite! Quando o Movimento Armorial estava em plena atuação, Carrero publicou Bernarda Soledade, que tem uma ligação muito forte com o movimento. No armorial, fazíamos muito isso: Maximiano Campos escreveu um romance chamado Sem lei, nem rei, e Capiba compôs uma música com o mesmo título para homenagear o romance. E eu escrevi um soneto a partir de Capiba e Maximiano. Então, na época do movimento, eu peguei um conto de Carrero, um conto muito forte e muito bonito, e fiz uma versificação dele. Hoje, seu romance vai por outro caminho, é mais urbano, experimental. continente Como foi a recepção do armorial pelos críticos? ARiAno SUASSUnA A recepção foi boa. Do ponto de vista da relação da obra com a crítica, a arte armorial precedeu o Movimento Armorial. Então, o Auto da Compadecida pegou uma fortuna crítica ótima, logo que foi lançado no Rio e em São Paulo. O Auto da Compadecida era uma bandeira do armorial. Aqui em Pernambuco houve mais oposição em relação à Pedra do Reino e ao Movimento Armorial. Normalmente, para ter a aprovação aqui é preciso ter sucesso em outros estados.

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mÚsiCa ritmos de um rico simbolismo instrumental

roberta guimarães

Repertório concebido para a formação da Orquestra e do Quinteto Armorial delineou toda a estética sonora do movimento tExto Carlos Eduardo Amaral

o Movimento

Armorial pode não ser mais organizado e ativo como nos anos 1970, quando surgiu, como uma celebrada proposta de releitura das artes populares rurais nordestinas pelas artes eruditas, mas perdurou, pelo menos na música, como uma influente corrente estética em Pernambuco até a eclosão do Manguebeat nos anos 1990. E mesmo quando esse ambiente musical efervescia e dava novo rumo à música popular, grupos como Comadre Fulozinha e Mestre Ambrósio desenvolviam seus estilos inspirados pelo legado iniciado por dois antológicos grupos eruditos: a Orquestra Armorial e o Quinteto Armorial. Ambos, nascidos pelo beneplácito de Ariano Suassuna, serviram de parâmetro daquilo que conhecemos como música armorial. No entanto, as composições sob essa estética, à primeira vista, nada mais seriam do que uma contribuição anacrônica, porque vinda de músicos de orientação nacionalista, quando essa vertente havia perdido força na década de 1960, e compositores como Camargo Guarnieri (1907-1993) e Francisco Mignone (1897-1986) já haviam “universalizado” suas linguagens. A chave para a compreensão do diferencial da música armorial encontra-se no texto de apresentação de um dos discos da Orquestra Armorial, que expõe o simbolismo norteador da sua formação instrumental, aplicado por extensão e a posteriori ao Quinteto Armorial. Tudo está explicado em letras miúdas, embora até hoje pouco percebido, na contracapa

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6 AntÔnio noBRegA ex-integrante do quinteto armorial que se consagrou em carreira solo

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con especial ti nen te álbum de Família

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de Chamada (1975), pelo maestro e violinista Cussy de Almeida. Os duelos de rabequeiros, reproduzidos na antiga casa de Ariano Suassuna, em Casa Forte, por Cussy ao violino e Jarbas Maciel à viola (molde que pode ser observado mais notadamente no primeiro movimento da suíte Sem lei nem rei, de Capiba) deram origem à ideia de expandir os desafios, cavalos-marinhos e xaxados para um conjunto maior e fomentá-lo com repertório original. Para tanto, contrabaixos e violoncelos teriam de se somar a violinos e violas por imperativos de harmonia e timbre. Como a Orquestra Armorial haveria de executar peças inspiradas em outras manifestações, a exemplo das bandas de pífanos e repentes, ela incorporou um duo de flautas transversais (em equivalência às flautas de taboca), um cravo (pelo parentesco sonoro com a viola caipira, embora essa fosse eventualmente requisitada) e percussão básica: triângulo, zabumba, pratos e caixa (um mínimo múltiplo comum da percussão de trio pé-de-serra com a de terno de pífanos). As flautas de taboca

tanto a orquestra quanto o Quinteto fundamentam aquilo que ficou conhecido como música armorial e a rabeca foram rejeitadas após algum tempo em virtude da instabilidade de afinação ante os instrumentos eruditos. Fundada a orquestra em 1970, tomou corpo em seguida o Quinteto Armorial, que decidiu reaplicar esse princípio simbólico em um conjunto de câmara aos moldes de um que existiu em 1969 e do qual faziam parte Cussy e Jarbas Maciel. Curiosamente, o Quinteto Armorial, que reintegrou os instrumentos populares sem espaço na orquestra, tomou como ponto de partida a música barroca e renascentista, para aos poucos gerar peças baseadas na música folclórica. Do grupo faziam parte: violino (ora substituído pela rabeca), violão (para dar base harmônica), viola caipira (não mais

trocada pelo cravo), flauta ou pífano, e o inédito marimbau, na percussão.

evoLUÇÃo

A adoção, por parte de compositores eruditos, de ritmos folclóricos e escalas modais (de intervalos característicos entre as notas) presentes na música rural nordestina era recorrente nos anos 1930-1950, mas César Guerra Peixe (1914-1993) ressaltou em maior escala a aproximação de timbres entre instrumentos populares e eruditos – vide Inúbia do cabocolinho, para flauta e piano, e De viola e de rabeca (depois reescrita por Clóvis Pereira e rebatizada de Mourão), para violão e violino. Não por acaso, Guerra Peixe foi professor de Capiba, Clóvis Pereira e Jarbas Maciel (e também de Sivuca), por volta de 1950. Se o Movimento Armorial construiu todo um imaginário com base nas artes populares rurais nordestinas e enfatizou as raízes ibéricas dessas artes, com o tempo, foi preciso que algumas de suas premissas se revisassem ou evoluíssem, de modo que a natureza regionalista do movimento não o associasse somente às fontes artísticas

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FuNdação quiNteto violado

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QUinteto ARMoRiAL

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heRDeiRoS

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oRQUeStRA ARMoRiAL

ariano suassuna, à frente do grupo que tomou como ponto de partida a música barroca e renascentista o quinteto armorial abriu caminho para grupos como o quinteto violado

Na contracapa do disco Chamada, de 1975, há um texto que explica a música

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da região Nordeste – por mais que essas ainda sejam as fontes seminais das obras armoriais. Na música armorial, essas premissas de fato foram depuradas. Primeiro, um dualismo aparente logo se converteu em um frutífero caminho de mão dupla. Não apenas as matrizes da música folclórica foram adotadas pela música erudita, no que trabalhava a Orquestra Armorial (e depois o Quinteto Itacoatiara e o Grupo Orange), como também o inverso ocorreu: os instrumentos e formas da música erudita puderam ser incorporados pela popular, tendo o Quinteto Armorial, mesmo sendo um grupo formado por músicos eruditos, aberto caminho para o Quinteto Violado, a Orquestra Popular do Recife, o Quarteto Romançal e a Banda de Pau e Corda. Segundo, a condição de movimento artístico oficial do Estado de Pernambuco expirou e alguns conjuntos ligados aos projetos de divulgação da música armorial cessaram as atividades, mas a estética musical armorial já estava consolidada. Paralelamente, o não estímulo aos artistas folclóricos, posto que somente artistas de formação

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musical acadêmica se projetaram durante a ascensão do armorial, também foi superado e, hoje, pode-se ver rabequeiros como Seu Luiz Paixão dividir o palco com violinistas e afins. O regionalismo centrado no Nordeste igualmente se expandiu e o ideário armorial influenciou músicos de outras regiões, como o maestro Leandro Carvalho, que criou a Orquestra do Estado de Mato Grosso, o violinista José Eduardo Gramani, pesquisador de repertório e luteria de rabeca no Paraná e em São Paulo, e o violeiro Roberto Correa, em Minas Gerais. Da mesma forma, o frevo, inicialmente preterido pela Orquestra Armorial e pelo Quinteto Armorial, por se tratar de um gênero popular urbano e não modal, passou a ser valorizado. Desfez-se, sobretudo, o desequilíbrio entre as matrizes musicais negras, as ibéricas e as indígenas: mal se encontravam nas “obras clássicas” da música armorial referências a manifestações do porte do maracatu nação, da congada e do banzo. Cussy de Almeida, pessoalmente, reviu essa lacuna

ao incluir esses três gêneros em sua Missa do Descobrimento (2001). Assim, a música armorial poderia fazer, com propriedade, apologia à mestiçagem cultural – mesmo porque a cultura ibérica, ancestral direta da cultura sertaneja nordestina, era exaltada por Ariano Suassuna pela sua hibridização judaico-árabecristã, refletida na música modal. Já a premissa mais polêmica da música armorial, a rejeição à música popular massiva norte-americana “em defesa da autêntica música brasileira” (misto de proscrição à la Adorno e elogio marioandradiano), é a que encontra mais respaldo no senso comum – basta lembrarmos as críticas à atual música sertaneja, que se converteu num country sem nenhuma identificação com a cultura caipira –, ainda que o Manguebeat tenha achado uma inteligente solução para esse falso dilema em Pernambuco. Mas o encanto que a música armorial desperta transcende essas discussões estéticas, já que reside em ritmos e modos revestidos sob um rico simbolismo instrumental.

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arTEs CÊniCas Um modo brasileiro de representar

Desejo de criar peças que usassem a música, a dança e as roupagens imaginosas dos espetáculos populares nordestinos moveu o teatro armorial tExto Carlos Newton Júnior

Quando lançou

oficialmente o Movimento Armorial, em 1970, Ariano Suassuna já era um dramaturgo consagrado, reconhecido pela crítica e pelo público, tanto no Brasil quanto no Exterior. Desde a estreia no Rio de Janeiro, em 1957, a sua peça mais famosa, o Auto da Compadecida, corria o mundo, traduzida, montada e editada em diversos países; outras comédias de sua autoria, a

exemplo de O casamento suspeitoso, O santo e a porca, A pena e a lei e Farsa da boa preguiça, escritas entre 1957 e 1960 e montadas pelas melhores companhias do país, já haviam sido consideradas, pela crítica especializada, obrasprimas da dramaturgia nacional, juízo que a história do teatro, nos anos seguintes, só fez ratificar; livros, ensaios e artigos acadêmicos sobre a sua dramaturgia já haviam sido publicados, e não faltavam propostas para a realização de adaptações de suas obras para a televisão, sempre

recusadas pelo autor até o início da década de 1990. Assim, quando começou a expor, sistematicamente, sobretudo em artigos de jornal, os princípios estéticos que norteavam o seu movimento, ainda no início da década de 1970, tais princípios, no que importa ao teatro, não eram outros senão aqueles que já haviam confirmado a sua própria dramaturgia e vinham sendo debuxados por Suassuna desde a segunda metade da década de 1940, sobretudo durante a participação do autor em dois importantes movimentos teatrais surgidos no Recife: o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) – que foi, na verdade, muito mais do que um movimento teatral – e o Teatro Popular do Nordeste (TPN). A rigor, portanto, o teatro armorial antecede o movimento que lhe dá nome, e deve vincular-se, ainda, ao trabalho de Hermilo Borba Filho, escritor sob cuja liderança formou-se o TEP, em 1946, e que foi, juntamente com Suassuna, fundador do TPN, em 1960. Em um depoimento escrito em 1964, Suassuna ressaltava a importância fundamental de Hermilo, sobretudo através do trabalho desenvolvido à frente do TEP, na gestão de ideais que seriam, em um futuro próximo, aprofundados e concretizados pelo Movimento Armorial: “No que se refere à nossa geração, não há ninguém

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10 Auto dA ComPAdeCidA a partir de sua estreia no rio, em 1957, a peça de suassuna foi traduzida para vários idiomas 11 FigURino desenho de romero de andrade lima para peça As conchambranças de Quaderna

que se possa comparar a Hermilo Borba Filho como abridor de veredas e apontador de caminhos. De fato, foi com sua lição, mais do que com a de qualquer outro, que todos nós nos encontramos, quando, aí por 1946, procurávamos uma poesia, uma pintura, um romance, uma música e, sobretudo, um teatro, que, ligando-se à tradição do romanceiro popular nordestino, não nos deixassem presos aos limites, para nós por demais estreitos, do regionalismo”. Foi com enorme estranhamento, portanto, que li, certa vez, um artigo de Hermilo, datado de 1975, em que fazia quase uma cobrança a Suassuna por não ter conseguido “injetar no teatro nordestino de agora a seiva do armorial”. Depois, refletindo melhor, percebi que a intenção de Hermilo, com o artigo, era tão somente incitar Suassuna a retornar ao teatro, talvez inconformado com o fato de o amigo ter abandonado a literatura dramática, após a Farsa da boa preguiça (1960), para dedicar-se exclusivamente ao romance. Infelizmente, o destino não concedeu a Hermilo tempo de vida suficiente para ver Suassuna escrever uma nova peça, algo que só ocorreria em 1987, com As conchambranças de Quaderna, cuja primeira montagem, no Recife, contou com cenários e figurinos assinados pelo artista plástico armorial Romero de Andrade Lima.

maior e antigo – a secular disputa entre os limites criadores dos autores e dos diretores teatrais –, é preciso reconhecer que Suassuna é um escritor com amplo domínio dos recursos expressivos do teatro, e que possui, além disso, considerável Segundo Suassuna, os princípios do experiência no campo da direção. teatro armorial expressam “o desejo Suas peças não foram escritas para de um espetáculo total brasileiro, se moldarem a devaneios teatrais no qual se usassem as máscaras, o estranhos ao seu universo criador canto, a música, a dança, as roupagens e inteiramente alheios às suas imaginosas dos espetáculos populares preocupações de natureza estética nordestinos”; o desejo de um teatro e também moral. A dramaturgia que, partindo do nosso romanceiro armorial, mais do que qualquer outra, popular (universo de poemas e canções requer ensaiadores que pensem de que inclui desde a literatura de cordel modo semelhante a Roger Blin, ator até a de tradição oral decorada), bem e diretor de vanguarda francês, que como dos espetáculos populares a afirmou certa vez: “A atitude do esse mesmo romanceiro relacionados, diretor em relação ao autor deve ser, procurasse “um modo brasileiro de se na minha opinião, de humildade, vestir, de representar e atuar no palco”. mas de uma humildade ativa”. Trata-se, como se vê, de um teatro É preciso ressaltar que Suassuna que se impõe como verdadeira arte de estabeleceu princípios, isto é, postulados de ordem geral, e não uma receita síntese, cujos espetáculos resultassem para se fazer teatro; a receita deve ser não apenas da junção de elementos a de cada diretor, que poderá, a partir díspares, mas de uma verdadeira desses princípios, estabelecer o seu fusão, somente possível mediante o ritmo, as suas marcações, a sua visão respeito absoluto a seus postulados de conjunto particular e inconfundível, estéticos, ou, melhor dizendo, à como ocorre, aliás, na admirável unidade da poética armorial. O teatro compreendido como um espetáculo total, montagem de As conchambranças de Quaderna, encenada no Rio, sob a em que cenários, figurinos, música direção de Inez Viana, e que deverá e tudo mais que o compusessem vir ao Recife no mês de novembro, no estivessem em profunda sintonia com âmbito do Festival Recife do Teatro Nacional. um texto que evita o regionalismo Indiscutivelmente, os princípios do de matiz naturalista para se filiar Movimento Armorial influenciaram ao espírito mágico e poético dos e continuam influenciando o que de espetáculos populares nordestinos. O não entendimento dessas melhor tem sido feito, até hoje, em considerações básicas tem gerado, prol de uma dramaturgia nordestina, ainda hoje, por mais incrível que possa mesmo que muitos dramaturgos parecer, um enorme mal-estar entre não tenham uma clara consciência certos diretores que teimam em não disso. Penso, por exemplo, nos aceitar a vinculação do espetáculo textos de Ronaldo Correia de Brito, teatral à unidade de uma poética Adriano Marcena, Altimar Pimentel pré-estabelecida pelo autor da peça, (recentemente encantado), Lourdes acusando o dramaturgo Ariano Suassuna Ramalho ou Oswald Barroso, que de dificultar ou até mesmo boicotar o escrevem para teatro em Pernambuco, trabalho dos diretores. Ariano, assim, na Paraíba e no Ceará. E se tal passa a ser considerado intransigente e afirmação pode parecer preconceito tolhedor da liberdade de criação alheia, de minha parte, concluo essas breves sobretudo ao proibir, sistematicamente, considerações lembrando aqui o as representações de suas peças, quando que disse certa vez o genial Ortega y deturpavam o espírito e a linha do Gasset: “O profano se coloca diante de espetáculo por ele imaginados. uma obra de arte sem preconceitos, Sem querer aprofundar uma mas esta também é a postura de discussão que nada mais é do que um orangotango. Sem preconceitos reflexo localizado de um problema não se podem formar juízos”.

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DANÇA Movimentos corporais a partir dos brincantes

Premissas que motivaram a criação do Balé Popular do Recife reverberam nas coreografias de expoentes como o Grupo Grial e o multiartista Antônio Carlos Nóbrega TEXTO Liana Gesteira

Na dança, o

Hoje, o armorial conta com dois representantes sólidos no cenário nacional: o Grupo Grial e o artista Antônio Carlos Nóbrega. Mais conhecido por sua atuação em música, Nóbrega tem reconhecida contribuição para o corpo da dança, a partir dos espetáculos Figural (1990) e Passo (2008). Além disso, tem se dedicado a disseminar as danças populares, a partir da série de documentários intitulada Danças brasileiras, veiculada pela TV Brasil, e das aulas ministradas no seu espaço, o Instituto Brincante, em São Paulo. A presença da dança no armorial ocorre desde os primórdios de sua fundação. Em 1975, quando estava à frente da Secretaria de Educação e Cultura do Recife, Ariano Suassuna fez

DIVULGAÇÃO

IMAGENS: REPRODUÇÃO

Movimento Armorial também tem sua participação significativa na ampliação do olhar da sociedade para as práticas corporais dos brincantes e dos artistas populares. Historicamente, Ariano Suassuna sempre buscou estimular as iniciativas de dança que utilizassem símbolos das manifestações populares para a construção de uma arte erudita brasileira. Fazse necessário refletir sobre quais questões a perspectiva armorial da cultura popular trouxe para o corpo da dança, e como os criadores da área articulam essas informações.

sua primeira investida na criação de uma vertente de dança para o movimento, ao fundar o Balé Armorial do Nordeste. Tal iniciativa representou um marco na profissionalização da cena de dança recifense, pois esse foi o primeiro grupo financiado por um órgão público, que pagava salários mensais aos integrantes. O Balé Armorial do Nordeste teve seu apogeu na montagem Iniciação armorial aos mistérios do Boi de Afogados, que cumpriu temporada em junho de 1976, no Teatro de Santa Isabel. Nele, deu-se a inserção de bailarinos populares num espaço ocupado predominante pela “arte erudita”, ao levar à cena os brincantes do Boi Misterioso de Afogados, do Mestre Capitão Antônio Pereira. Em 1977, Ariano investiu na criação do Balé Popular do Recife, que durante três anos também foi subsidiado pela Secretaria para pesquisar as danças populares e realizar espetáculos. Posteriormente, o Balé Popular desvinculou-se do Movimento Armorial, e iniciou trajetória autônoma, criando uma metodologia própria de catalogação das danças brasileiras, o método Brasílica. O grupo é responsável por disseminá-lo pelas escolas do Recife. A experiência profissional desses dois grupos, juntamente com outros fatores, contribuiu para que a trajetória de dança em Pernambuco tivesse a

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cultura popular como uma de suas principais fontes de criação. Hoje, a dança produzida no Estado é reconhecida nacionalmente, também, por essa vertente. Assim, o Movimento Armorial pode ser considerado como uma importante influência para a constituição profissional da dança local, bem como da difusão das danças populares como matéria investigativa para criação. A reflexão atual que se faz dessa contribuição, entretanto, é sobre a visão épica da cultura popular proposta pela estética armorial, reconhecida apenas pelas referências ibéricas e mouras na sua constituição. Essa perspectiva insinua uma cultura de raiz única, original, estanque, negando o processo dinâmico de qualquer cultura, ao se relacionar com outras influências ao longo do tempo. No discurso de Ariano Suassuna, fica evidente a negação da inclusão de elementos culturais de outras nações no corpo da arte brasileira. .

ReeLABoRAÇÃo

Um olhar mais atento sobre a produção dos atuais representantes da dança armorial aponta para um corpo que reelabora o discurso da cultura popular. Tanto Maria Paula Costa Rêgo, diretora do Grupo Grial, como Antônio Carlos Nóbrega, trazem em suas práticas recentes um olhar mais dinâmico sobre o

fazer do artista popular. Essa perspectiva, provavelmente, é decorrente do contato frequente desses criadores com as manifestações e seus ambientes. Na criação do espetáculo Iniciação aos mistérios do Boi de Afogados, em 1976, o elenco do Balé Armorial do Nordeste, formado por bailarinos clássicos e estudantes de Educação Física, tiveram aulas de caboclinho, pastoril e bumba meu boi. Mas, para isso, os mestres da cultura popular se deslocaram para as salas de ensaio do grupo, sem que o elenco tivesse contato com o ambiente das manifestações que aprenderam. Esse caminho de criação influenciou a cultura popular para que entrasse em cena por seus símbolos e não tanto por sua poética. As criações de Maria Paula e de Antônio Nóbrega incidem em um contato maior com os brincantes populares em suas comunidades, em seus ambientes de manifestações. Dessa forma, apreendem as práticas corporais desses artistas de modo mais coerente com suas poéticas e absorvem também todas as mudanças que esses folguedos vêm realizando. Bem como influenciam para que essas mudanças aconteçam, como é o caso da inserção da presença feminina no ambiente do maracatu de baque solto, decorrente do contato direto de Maria Paula com o Maracatu Leão de Ouro do Condado.

12 gRiAL criações da companhia refletem a pesquisa com os brincantes populares em suas comunidades 13 BALé ARMoRiAL Do noRDeSte grupo foi criado, em 1975, por ariano suassuna, então secretário de educação e cultura do recife 14 cARtAz o balé armorial do Nordeste teve apogeu com Iniciação armorial aos mistérios do Boi de Afogados, de 1976

Em sua tese de doutorado, a professora Roberta Ramos, do curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco, aprofunda a discussão sobre a relação da dança com a estética armorial. Na conclusão, ela traz uma reflexão interessante para as comemorações de quatro décadas do Armorial: “Um movimento estético só pode perdurar por tanto tempo se, assim como o corpo, for pensado em sua condição viva, na qual é impensável concebê-lo sem movimento, ou seja, sem deslocamentos, mudanças ou pontos de instabilidade”. Ao que parece, o corpo da dança tem contribuído para que o Movimento Armorial chegue aos 40 anos com um novo fôlego. O grupo Grial e Antônio Carlos Nóbrega conseguiram reelaborar, em suas práticas, o discurso estético desse movimento e, assim, permitem que novos caminhos sejam trilhados pelo corpo armorial.

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visUais Um território entre o delineado e o indefinido

Poucos artistas podem ser apontados hoje como evidentemente armoriais, embora o legado do movimento esteja presente na produção pernambucana atual

15 DAntAS SUASSUnA detalhe de Azougue, tela de técnica mista 16 RoMeRo De

AnDRADe LiMA

obra do artista aponta influências da arte indígena, ibérica e africana

17 SAMico imagética do gravurista funde elementos da cultura popular nordestina

tExto Diana Moura Barbosa

As gravuras

bem-talhadas de Samico, as telas que misturam uma profusão de tons terrosos de Dantas Suassuna, o universo mágico percorrido por Romero de Andrade Lima. O Movimento Armorial é um fio delicado a unir artistas plásticos de tendências tão diferentes entre si quanto singulares em si mesmos. Quem quiser se arriscar, procure uma só imagem capaz de sintetizar o armorial dentro das artes plásticas e tente explicar por que um deles seria mais representativo que o outro. Talvez o artista armorial mais conhecido seja Samico, o homem capaz de dar formas fantásticas a uma imensidade de histórias que vagavam soltas no nordeste brasileiro. Monstros, narrativas bíblicas recontadas em cordéis, autos populares, mitologias indígenas vieram se encontrar na cultura popular nordestina e serviram de base ao pensamento pictórico de Gilvan Samico. Considerado o maior gravurista brasileiro da atualidade, não foi com nenhum artista local que Samico aprendeu o rigor e a beleza de sua talha. Foi aluno de dois grandes mestres da xilo, Osvaldo Goeldi e Lívio Abramo, quando residiu no Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente. Para Samico, a face armorial de seu trabalho não está, como muitos pensam, na transformação das capas dos folhetos de cordel em uma composição

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reprodução

erudita. O artista explica que já era um xilogravurista quando, numa conversa com Ariano Suassuna, se apercebeu da beleza das histórias populares e decidiu recriá-las a seu modo, numa reinvenção desse imaginário. Desta forma, Samico também ajudou a refundar a xilogravura nordestina, transportando-a do campo rústico (mas não precário) e do funcional (capa do folheto) para dar-lhe uma visibilidade altamente formal, erudita e sofisticada. Ou seja, o artista cumpriu, ponta a ponta, todas as etapas preconizadas pelos armoriais.

FAMÍLiA ARMoRiAL

Outros dois importantes artistas do movimento são Manuel Dantas Suassuna e Romero de Andrade Lima. Filho

do escritor Ariano Suassuna, Dantas é um dos incontornáveis nomes da atual pintura pernambucana, mas seu trabalho tem se destacado em outras áreas. Desde os anos 1990, ele tem se dedicado também à cerâmica, ao vídeo, à criação de figurinos e cenários. Em 2007, por exemplo, foi um dos principais responsáveis pelo visual da minissérie A Pedra do Reino, da Rede Globo. A cenografia, em tudo, traduzia a reunião de influências culturais que caracteriza o Movimento Armorial e o Romance d’A Pedra do Reino. Romero de Andrade Lima, sobrinho de Ariano, também voltou boa parte de sua obra à pesquisa e construção de uma imagem que retratasse a poética das diversas influências que compõem, inicialmente, a base central da formação cultural brasileira: arte indígena, ibérica e africana. Embora o trabalho de Romero, atualmente, esteja passando por outra fase, o artista ficou muito conhecido, dos anos 1990 até o princípio dos 2000, pela criação de trabalhos que reuniam texto, música ao vivo, iluminação, figurinos, cenários, maquiagem dos atores – compondo com todos os elementos uma obra de arte complexa, que não poderia ser resumida puramente a teatro ou artes plásticas. O que lhe interessava em seus espetáculos, como ele dizia na época, era proporcionar experiências novas na apreensão da obra de arte. Essa proposta de aproximação e contaminação das artes sempre esteve presente no pensamento armorial. O

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próprio Ariano Suassuna é ilustrador de seus livros. Depois, criou vários álbuns de iluminogravuras – que, baseadas nas iluminuras medievais, reúnem, numa só lâmina, poesia, desenho e pintura.

DeSDoBRAMentoS

Um dos desafios da contemporaneidade, em inscrição local, é investigar quais os desdobramentos do Movimento Armorial na arte pernambucana. É verdade que a arte – não só no Estado, mas de uma forma universal – vive de ciclos de aproximação e afastamento das raízes populares. É igualmente verdadeiro afirmar que, em Pernambuco, a assimilação de matrizes populares passa por fases duradouras e profundas, que se apresentam de formas variadas, em vertentes distintas. Esse, talvez, seja um dos reflexos mais importantes do armorial na arte do Estado: a aceitação dessa estética – que não é formal nem acadêmica – pelos artistas, criando-se assim uma situação de convivência pacífica, mesmo para aqueles “não armoriais”. E se o armorial não sugere práticas artísticas fechadas – sendo permeável a

Quem quiser se arriscar, procure uma só imagem capaz de sintetizar o armorial dentro das artes plásticas criações que se proponham mergulhar no universo pictórico das influências primitivas da arte brasileira –, o movimento pode ecoar tanto num trabalho urbano, como o do grafiteiro Derlon, ou na obra de Marcelo Silveira – que atua numa eficiente reelaboração de signos populares. Outros artistas remetem à estética armorial também pelo uso de materiais. Inicialmente associada à arte primeva, a cerâmica ocupa lugar de destaque na produção contemporânea, notadamente a partir dos anos 1990. O seu uso mais sofisticado, no Estado, começa nos anos 1970, com Francisco Brennand, que influenciou gerações posteriores. Artistas como o citado Dantas Suassuna, José Paulo, Christina

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Machado, Maurício Silva (hoje radicado na França), Flávio Emanuel, entre outros, utilizaram-se das técnicas de modelagem e cozimento do barro. Alguns deles seguiram essa trajetória, descobrindo formas diferentes de trabalhar com o material. Não se deve, de forma simplista, alinhar os artistas aqui citados ao Movimento Armorial. Mas, a partir da observação de suas obras e de outros artistas não mencionados aqui, é possível afirmar que existe, em Pernambuco, uma relação complexa entre a produção artística considerada erudita – a que frequenta galerias, museus e bienais de arte – e as criações populares. Isto se dá de diversas maneiras: da simples escolha de um material até a referência a artistas assumidamente ligados ao movimento. É possível que seja esta a principal demanda do armorial, no tocante às artes plásticas: uma presença que não indica uma maneira única de ver e representar o mundo, que não exige semelhanças estéticas, mas que assevera a relevância da arte popular na expressão erudita.

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CinEma marcos de uma tradução imagética

Adaptações para as telas do Auto da Compadecida e A Pedra do Reino mantêm a peculiar fusão entre o barroco ibérico e o romanceiro popular tExto Alexandre Figueirôa

A rigor, não

existe um cinema armorial. O movimento, criado por Ariano Suassuna, tem representantes e seguidores nas artes plásticas, literatura, teatro, dança e, sobretudo, na música. Na sétima arte, o máximo que poderíamos elencar seriam incursões e aproximações em seu universo estético, quando obras do próprio Suassuna foram levadas à tela. A primeira delas foi a adaptação

do Auto da Compadecida, realizada em 1969 por George Jonas, cujo título era A Compadecida. O figurino, desenhado por Francisco Brennand, apresentava traços dos elementos estéticos propostos pelo movimento, e o fato de o filme seguir o texto teatral vincula-o a uma concepção narrativa que, mesmo de forma superficial, estaria na base dos preceitos defendidos por Suassuna. No entanto, uma visualidade realmente próxima e inspirada por uma iconografia presente no imaginário da cultura popular nordestina e dos

traços “neomedievais” do ideário armorial, só alcançaram melhor representação em obras mais recentes. Entre elas, destacam-se as minisséries O auto da Compadecida, de Guel Arraes, e A Pedra do Reino, de Luiz Fernando Carvalho. Elas ganharam versões para serem mostradas no cinema e foram lançadas em DVD, embora tenham sido concebidas inicialmente para serem exibidas na televisão. Apesar da boa recepção de público e crítica para essas adaptações televisivas, podemos identificar a existência de uma lacuna entre o armorial e o audiovisual pela desconfiança que o criador do movimento sempre teve em relação aos meios de comunicação de massa. Para Suassuna, a televisão seria uma inimiga da cultura popular e o fato de ele aceitar ver suas obras numa emissora comercial como a TV Globo deveu-se, no caso de Guel Arraes, à relação de afeto com o filho do ex-governador Miguel Arraes e também por Guel ser uma referência de qualidade na televisão brasileira. Essa distância entre o armorial e as câmeras foi parcialmente superada pelo estrondoso êxito tanto da versão do

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divulgação

18 o Auto dA

ComPAdeCidA

a distância entre o armorial e as câmeras foi parcialmente superada pelo êxito da versão da peça para tv e cinema

no interior do Nordeste, bem como nas pinturas dos artistas armoriais. As cores em tom de terra do vestuário e as gravuras que ilustram os folhetos de cordel são elementos usados por Guel na criação da plasticidade da sua obra audiovisual. A mise-en-scène de O auto busca tirar o máximo proveito do uso da paisagem e dos tipos humanos, estabelecendo uma representação cara ao espectador brasileiro e que povoa o seu imaginário, realçando nela seus aspectos pitorescos e dando-lhe, ao mesmo tempo, um verniz de erudição e de valorização da cultura popular.

AFiniDADeS

Auto na televisão quanto no cinema, embora Guel, ao realizar a adaptação, não tivesse em vista necessariamente ser um difusor do movimento armorial. Ele estava muito mais interessado em trabalhar com a ideia de um cinema popular brasileiro e ao mesmo tempo dessacralizar os limites entre a televisão e o cinema. No depoimento prestado no livro Guel Arraes, um inventor no audiovisual brasileiro (Cepe, 2008), Guel afirma ter buscado o texto de Suassuna pela facilidade de comunicação que a obra teria com o público. De qualquer modo, o diretor reconhece que, na adaptação da mais famosa peça teatral de Suassuna, ele utilizou o que chama de “método armorial”, ou seja, na obra há piadas e cenas inteiras tiradas do teatro, de histórias e autores medievais, já que esse repertório retrabalhado por Suassuna no Auto da Compadecida está muito próximo da cultura popular nordestina. Visualmente, O auto de Guel Arraes segue, apesar da leitura pessoal do diretor, a estética preconizada por Suassuna, uma vez que ele mergulhou no universo apontado no texto, cujos traços ainda hoje podem ser encontrados

Porém, para Ariano Suassuna, seria Luiz Fernando Carvalho quem melhor traduziria o armorial para o audiovisual. Não podemos ignorar, nesse contexto, ter sido Carvalho o precursor das adaptações dos textos de Suassuna para o meio televisivo, com os programas especiais Uma mulher vestida de sol, levado ao ar em 1994, e O santo e a porca, em 1995. Também a minissérie Hoje é dia de Maria, realizada por ele em 2005 para a Globo, embora não seja um texto de Suassuna – pela forma como dialoga com os espetáculos populares, sobretudo no cenário, iluminação e figurino, revela afinidade com o movimento armorial. Apesar das diferenças de sua criação com relação ao Núcleo Guel Arraes, Carvalho segue o modelo de qualidade proposto pela Globo no estabelecimento de uma teledramaturgia diferenciada e em oposição a uma televisão popularesca. Em A Pedra do Reino, ele recriou o Romance d’A Pedra do Reino e levou sua experimentação estética a um patamar realmente surpreendente, mesmo estando na televisão. A adaptação da obra de Suassuna integrava o Projeto Quadrante, cujo objetivo seria transpor para a teledramaturgia obras clássicas da literatura brasileira. Os cinco episódios da minissérie têm a duração total de 4 horas e 36 minutos e foram exibidos em 2007 por cinco dias consecutivos. Posteriormente, foi lançado em DVD e algumas salas de cinema também arriscaram mostrá-la na íntegra. Comparado a O auto, o sucesso de público foi bem menor, contudo não podemos negar o êxito da empreitada de Carvalho. A minissérie foi rodada em Taperoá, na Paraíba, cidade natal

de Suassuna, e utilizou apenas atores nordestinos. Todo o material – roupas e adereços – foi feito por artesãos da região e usou produtos como palha de milho e serragem para obter um efeito de rusticidade cênica. A ousadia do diretor na adaptação, porém, não se limitou a transpor o cenário e o figurino descritos no livro, mas compôs uma mise-en-scène audiovisual em que os personagens e acontecimentos narrados emergem da tela como quadros barrocos, num fluxo imagético em que predomina o estabelecimento de um pacto sensorial com o espectador. A saga do herói sertanejo Quaderna, criada por Suassuna, foi apropriada por Carvalho para revelar uma imagem de brasilidade

Uma visualidade próxima do armorial teve boa representação com as minisséries o auto da Compadecida e A Pedra do reino cuja raiz seria a diversidade cultural do país. O diretor não seguiu a lógica tradicional do formato minissérie, preferindo ao invés disto estruturar os episódios de A Pedra do Reino em narrativas autônomas. Do conjunto, emerge uma unidade que faz sentido no universo labiríntico pensado por Suassuna. Se, ao final deste pequeno levantamento, desejássemos apontar um caminho para um audiovisual de base armorial, não resta dúvida de que seriam esses dois trabalhos – O auto da Compadecida e A Pedra do Reino – os marcos de uma possível tradução para imagens em movimento daquilo que Ariano Suassuna por 40 anos vem afirmando como linguagem nacional, a partir da fusão entre o barroco ibérico e o romanceiro popular. Mas, para integrar seu ideário numa linguagem contemporânea, teria de abrir mão dos preceitos que reafirma e incorporar ao armorial a mistura de popular e erudito com elementos da cultura pós-massiva, transitando entre o artesanal e a tecnologia. Algo que talvez os seus herdeiros tenham a coragem de empreender.

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HALLINA BELTRÃO sOBRE fOTO dE dIvuLgAçÃO

cOn Ti nen Te#44

Peleja

Premiações atestam o valor de um artista?

Recentemente, as cerimônias de premiação dos canais de televisão Multishow e MTV consolidaram o fenômeno teen Restart, o Menudo da geração 2.0. Detentores de vários prêmios por votação do público via web, os adolescentes superaram artistas mais experientes da música pop, como Otto e Cidadão Instigado. O jornalista Jarmeson de Lima defende a importância de tais consagrações, mas lhes faz ressalvas, enquanto o músico Anderson Foca define eventos com esse fim como “programas de auditório”

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Anderson Foca

Há 43 anos, o Brasil via, no Festival da

Record, o jovem Edu Lobo ser consagrado com a música Ponteio. Em meio a uma plateia ruidosa, sobressair-se dessa forma não era uma tarefa fácil. Ainda mais se a gente considerar que entre os concorrentes estavam Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque, tornados posteriormente e Jornalista, radialista até hoje os maiores nomes da música e produtor do Coquetel Molotov brasileira, acima do bem e do mal, e de qualquer premiação. Possivelmente, muita gente não teria conhecido Ponteio se não fosse aquele festival. Não podemos ignorar o fato de que o evento – assim como os da Globo e os Prêmios Shell – revelou diversos talentos para o país. Talvez nós demorássemos mais a descobri-los, se não fosse o atalho oferecido por eles. Sendo assim, é ainda por conta disso que esses eventos merecem um pouco de crédito. Lembremos que a Orquestra Contemporânea de Olinda foi indicada numa das categorias do Grammy Latino e soube usufruir dessa exposição e alcançar novos degraus. O que há de errado não são exatamente as premiações, mas, sim, a distinção que podemos fazer entre uma cerimônia séria e outra de brincadeira, em que até uma votação de Rainha do Milho é menos constrangedora. Salvo alguns deslizes e sua tendência mais “conservadora”, a única premiação que pode ser considerada séria no Brasil, atualmente, é o Prêmio da Música Brasileira, o herdeiro do Prêmio Sharp, mas que peca por focar apenas a produção recente de medalhões. É bom ver que Erasmo Carlos e Ney Matogrosso ganharam prêmios por seus discos mais novos, mas sempre que um desses ganha, um novo talento perde espaço nas FMs, ainda pautadas por esses mecanismos de validação artística. Um reconhecimento como esse pode não significar muita coisa hoje para Gal Costa, mas pode render a uma cantora como Karina Buhr o destaque merecido. Também pode ser só mais um troféu na estante de Chico Buarque, mas pode significar muito para Rômulo Fróes. É por isso que devem existir premiações, não para celebrar o passado, mas reconhecer em vida e no auge de sua criatividade os novos Edus, Gils e Chicos. Porém, se virem por aí alguma cerimônia que não contemple essa nova produção, então tenham certeza de que seu corpo de jurados precisa urgentemente parar de ouvir a “Nova” Brasil FM.

não podemos ignorar o fato de que os festivais revelaram diversos talentos para o país, como edu Lobo

NIcOLAs gOMEs

dIvuLgAçÃO

Jarmeson de Lima

nos anos 1980, do meio para o final de cada ano, não tinha coisa mais legal nas revistas de música do que a edição que vinha com os prêmios de melhores do ano. Era uma delícia saber os vencedores, poder ler a opinião da crítica especializada e, ao mesmo tempo, fazer a própria lista de destaques. Também eram um orgulho para gravaMúsico, produtor doras e artistas tais “comendas”. Sinal e coordenador do Festival DoSol de que o trabalho havia sido bem-feito, tinha relevância artística e, de alguma forma, representava uma visão crítica sobre as obras, excluindo o conceito de que, se o álbum é popular, merece estar entre os melhores. A verdade dura dos fatos é que quase nunca público e crítica concordam com o assunto “o melhor”. Existem exceções, claro, mas só justificam a regra geral. Com o passar de duas décadas e a revolução digital, não só batendo em nossa porta, mas tomando conta de tudo (com a internet sendo protagonista), o que vemos no mercado da música, hoje? O que torna um trabalho relevante? Como conseguir dar conta de ouvir tanta oferta? Sim, ao mesmo tempo em que as chamadas majors entraram em falência, digo com todas as letras: nunca se ouviu ou produziu tanta música como agora. No meio desse turbilhão de informações, em que se converteram os prêmios de música? A revolução para essa turma está, sim, sendo televisionada. Quase todos os prêmios ditos como importantes pelo mercado musical são organizados por canais de entretenimento. Para piorar – e porque não são (ou não querem ser) especialistas –, eles passam toda a responsabilidade de escolha dos melhores para a audiência, como se todo mundo que vê televisão tivesse tempo de ficar votando nos seus ídolos na frente do computador. Não há como querer chamar esses programas de auditório de “musicais”, assim como não dá para aceitar que eles estejam outorgando “prêmios de música”. Talvez os blogs sejam, hoje, os mais cotados para assumir tal ação. Então, fica minha sugestão: um pool de blogs promove um verdadeiro prêmio de música e as televisões passam a premiar o entretenimento popular, que, na realidade, é o foco de trabalho delas. Cada um ficaria no seu devido lugar. Do jeito que vai, prêmios musicais na TV não valem absolutamente nada para amantes de música.

talvez os blogs sejam, hoje, os mais cotados para assumir a responsabilidade de conceder prêmios

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PORTA E JANELA Residências de um tempo no passado Casas geminadas são resquícios de outra fisionomia urbana, característica de uma arquitetura feita para configuração social e econômica diversa TEXTo Raquel Monteath FoTos Maíra Gamarra

“Se há um paraíso na terra, é aqui.” Foi essa a frase, citada por Gilberto Freyre em Apipucos: que há num nome?, que o embaixador britânico Leslie Fry utilizou, em 1962, para descrever seu encanto diante da arborizada vila açucareira de Apipucos. Mirando o açude, a igreja matriz e a pracinha, elementos marcantes do atual bairro de classe média alta, a admiração do Sir Fry se estendeu à linha contínua de casas que colorem e sugerem uma atmosfera bucólica ao local, situado na Zona Norte do Recife. Onde quer que se encontrem, as casas conjugadas, de porta e janela, geminadas ou de meia-morada conferem um ar provinciano à paisagem, sendo tipologias predominantes na constituição das cidades brasileiras nos séculos 17 e 18. Centros históricos – como a mineira Ouro Preto, São Luís do Maranhão e Olinda, em Pernambuco – abrigam quarteirões repletos delas, que facilmente se tornam cartõespostais em registros turísticos. Caracterizada basicamente por ter uma de suas paredes em comum, a construção dessas casas sofre declínio a partir do século 19, e a razão para esse fato não se limita

A estrutura interna das casas apresentava aposentos pequenos – ambientes insalubres, favoráveis à alta umidade apenas à inserção das tendências arquitetônicas modernas, como o ecletismo ou a art nouveau, mas envolve aspectos da lógica socialurbana vivenciada no período. “Quando as demandas modernas começam a surgir, tais como a proliferação dos direitos individuais na sociedade e novas dinâmicas no núcleo familiar, as casas sofrem uma série de alterações, criando-se na construção civil a necessidade de espaçamento entre residências, que passam a ser construídas isoladamente umas das outras”, afirma o arquiteto Luiz Amorim, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE. Devido à superproteção do núcleo familiar, a estrutura interna das casas de porta e janela apresentava aposentos pequenos, as chamadas alcovas, ambientes insalubres que não possuíam janelas e eram favoráveis à

alta umidade. Aos poucos, recursos arquitetônicos como as gelosias e os muxarabis – painéis de herança árabe constituídos por treliças de madeira – foram sendo utilizados com o objetivo de permitir a discreta iluminação e ventilação dos cômodos, recurso bastante utilizado na arquitetura colonial como forma de proteger as moças de família do olhar externo. Além do aspecto de proteção familiar, havia o medo de doenças, que proliferavam no espaço urbano devido ao precário sistema de saneamento; além de práticas indevidas, como o enterro de pessoas em igrejas e o fato de os dejetos humanos serem jogados nos rios e mangues da cidade. “O pensamento sanitarista que irá se desenvolver no século 19 passa a ser apropriado pela arquitetura e pelo urbanismo, e isso vai repercutir tanto na mudança de práticas quanto na disposição interna e externa das casas. O uso de estruturas que permitam a circulação do ar e a entrada dos raios solares passa a funcionar, inclusive, como efeito bactericida contra a umidade”, pontua Amorim. No entanto, ao longo dos anos, não houve a completa extinção desse tipo de morada, e, sim, adaptações,

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Antigo trecho de engenho, a rua de Apipucos apresenta uma subida com casas que saltam à paisagem verde e desembocam na igreja matriz do bairro

Nestas páginas 2-3 toRRe

O bairro possui exemplares de casas conjugadas que lhe conferem um ar provinciano

4-5 ZonA noRte Os bairros do Poço da Panela e de Apipucos preservam as moradas de porta e janela

como a busca por condições de salubridade e terrenos mais largos. Na legislação do Recife, no início do século 20, exigências foram feitas para minimizar os efeitos da alta umidade: a elevação do piso das casas – gerando o porão alto –, o afastamento do terreno lateral e, posteriormente, o da frente, criando

o quintal e o jardim. “Os terrenos das casas contínuas passam a aumentar de, aproximadamente, três a sete metros, levando em consideração a condição econômica da família”, afirma o arquiteto. O artista plástico Abelardo da Hora é um dos que se mantiveram como moradores de casas de meiamorada. Situada na rua do Sossego, no bairro central da Boa Vista, no Recife, sua casa é uma das únicas que permanecem como residências, uma vez que a maioria das vizinhas é atualmente ocupada por clínicas, sindicatos e comércio. “Não é mais aquela coisa maravilhosa de antes. Tive sete filhos, e minha casa era cheia de meninos o tempo todo. Era uma convivência mais saudável que nos apartamentos de hoje em dia. A família se estendia pelas outras casas, tenho saudades daquele tempo”, afirma o artista, que mora

ali há 50 anos.“É um mal para as cidades não preservar essas obras arquitetônicas, porque elas contam a história do Estado. A sede e a loucura das construtoras são uma coisa fora do comum”, comenta ele.

noVoS USoS

Dadas as transformações ocorridas com a modernização, as casas de porta e janela passaram a ser encaradas como soluções arquitetônicas aliadas às políticas públicas, tendo relevância aspectos econômicos, como o menor gasto de materiais e maior aproveitamento dos terrenos. Alguns conjuntos de casas foram construídos ainda no governo de Agamenon Magalhães, através da iniciativa da Liga Social Contra o Mocambo, em 1939, cujo objetivo era combater esse tipo de construção precária, estimulando a produção de conjuntos habitacionais populares. Foram comuns projetos de vilas destinadas a profissões “não organizadas”, como a dos operários, no bairro da Torre, a dos comerciários, em Casa Amarela,

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e das lavadeiras, em Areias, localizadas na Zona Norte do Recife. Dos anos 1950 para cá, arquitetos como Delfim Amorim, Armando de Holanda e Glauco Campelo também planejaram conjuntos que mantinham a lógica de proximidade, utilizada mais uma vez nos anos 1970, no Brasil, pelas Companhias Habitacionais (Cohabs). “Viver em casas exíguas, de porta e janela, exige do morador contemporâneo uma série de adaptações. Existe certa incompatibilidade entre a organização espacial original dessas casas e a praticidade exigida pela maioria dos moradores atuais”, pontua Luiz Amorim. Ao mesmo tempo em que se projeta o desenvolvimento das cidades, há certa dificuldade da sociedade em adaptar-se à lógica de metrópole: “A verticalização das cidades é uma realidade mundial. Em algumas tipologias de conjuntos populares, como os constituídos por prédios, percebe-se a busca pelo modelo de lar, de casa; por essa

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razão, muitos moradores procuram modificar os espaços oferecidos, na tentativa de maior contato com a rua. Fica evidente que não se pode colocar famílias numa tipologia de morada incompatível com o estilo de vida anterior”, afirma a engenheira civil Edinéia Alcântara. Moradora do bairro de Apipucos, a engenheira ressalta a importância de se viver num local privilegiado da cidade: “É um lugar que tem história, é bucólico, tem poesia. Nos edifícios em que morei, custava para ter plantas na varanda. Agora, cultivo um jardim, e abri uma parte no teto para que as plantas sejam aguadas diretamente pela chuva”. Uma série de modificações foi feita na sua casa, de aproximadamente 100m2: uma varanda no quarto superior, o jardim, a troca do telhado por laje e um banco na frente de casa: “Tem quem goste de apartamento alto, marmorizado, mas muita gente quer voltar para as casas propriamente ditas. Uma das vantagens é ter essa plasticidade, você praticamente molda seu hábitat”, opina.

“Viver em casas exíguas, de porta e janela, exige do morador uma série de adaptações”, pontua Luiz Amorim RiBeiRinHo

Outro lugar que transmite uma atmosfera bucólica como a descrita por Edinéia Alcântara é o Poço da Panela, também situado na Zona Norte do Recife. Próximo ao bairro de Casa Forte, ele marca parte da história pernambucana, tendo seu vilarejo pertencido ao antigo Engenho de Ana Paes, local de batalhas do período holandês, como a de 17 de agosto de 1645, que renomeou o Engenho e o bairro de Casa Forte. Sua via principal de acesso, a Estrada Real do Poço, tombada pelo Patrimônio Histórico, abriga o conjunto residencial da Inabi, construído em meados dos anos 1960. Algumas das casas desse

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A solução arquitetônica foi geminar e sobrepor residências, permitindo que cada uma tivesse acesso à rua por entradas independentes 7-8 cASA-AteLiÊ O artista plástico Abelardo da Hora dispõe suas esculturas e gravuras no corredor extenso de sua residência

conjunto, que são duplex e conjugadas, apresentam um oitão livre para a garagem, fornecendo um arranjo de conjunto residencial à sequência de casas. Apesar de apresentar esse modelo contemporâneo de habitações conjugadas, o bairro reúne um importante acervo de casarões, sobrados e casas de porta e janela datados do período colonial, que vem sendo

ao longo da história habitado por classes sociais distintas. Quando era povoado por lavadeiras e famílias ribeirinhas, que tinham nas travessias de barco pelo Rio Capibaribe seu principal meio de locomoção, o Poço da Panela apresentava complexos arranjos conjugados e sobrepostos de mocambos próximos à Igreja Nossa Senhora da Saúde, também tombada pelo Patrimônio Histórico. O poeta recifense Olegário Mariano escreveu, em uma de suas liras, sobre a sensação que o bairro passaria aos visitantes: “Num remanso bucólico e sombrio/ Onde atenua a marcha o grande rio,/ Batem roupa, cantando, as lavadeiras./ Trago ainda nos olhos: é bem ela,/ A paisagem do Poço da Panela”.

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TROTSKI Incendiário, sim, mas também intelectual

Setenta anos após seu assassinato, o “profeta da revolução” ainda influencia setores da esquerda em várias partes do mundo – e seus textos sobre cultura permanecem atuais TEXTO Marcelo Abreu

História

KARINA FREITAS

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nove décadas após a Revolução de

Outubro, que instituiu o socialismo na Rússia, muitos dos personagens daquele acontecimento foram varridos da história com o fim da União Soviética, em 1991. Um deles, porém, persiste como inspiração para grupos esquerdistas pelo mundo afora. É Trotski, o antigo chefe do Exército Vermelho que consolidou o poder soviético depois da revolução e foi cotado para substituir Lênin nos anos 1920, mas acabou banido do país e assassinado a mando de Josef Stalin, em 1940, há 70 anos, quando se encontrava exilado no México. Intelectual brilhante, agitador político incendiário, líder militar implacável, profeta da revolução, Trotski despertava ódio e paixão, e reunia qualidades que o consagraram e o mantêm como um dos mitos do século passado. É um desses personagens que superam a condição de líder político e passam a ter status de guru cultural. Atualmente, pequenos grupos trotskistas sobrevivem em várias partes do mundo como filiados à chamada Quarta Internacional, associação de partidos e grupos esquerdistas instituída em 1938 pelo próprio Trotski, como oposição à Terceira Internacional, ou Comintern, dominada por Stalin. Na verdade, mais frequentemente os trotskistas representam dissidências da Quarta Internacional, já que seguem militando em agrupamentos de esquerda em meio a infindáveis rachas, formação de novos grupos, coalizões, dissensões, reagrupamentos e discordâncias sobre estratégias políticas. Conseguem fazer, ocasionalmente, diferença nas eleições francesas e agitam dentro de alguns partidos brasileiros e em mais de 60 países, divididos em tendências como mandelismo, morenismo, posadismo, lambertismo, pablismo,

cada uma denominada a partir de um líder trotskista que rachou com algum setor do movimento. Mas Trotski, o inspirador de tudo isso, foi muito mais do que um político. Foi um pensador e intelectual que escreveu longamente sobre cultura e teoria marxista e mereceu um dos mais colossais trabalhos

Ao fugir da Sibéria, o jovem Lev Davidovich Bronstein adotou o nome de um de seus ex-carcereiros de odessa: trotski biográficos do século 20: os três livros preparados pelo historiador anglopolonês Isaac Deutscher, intitulados de O profeta armado 1879-1921, O profeta desarmado 1921-1929 e O profeta banido 1929-1940, publicados no Brasil pela Civilização Brasileira.

eM teMPo inteGRAL

Trotski, cujo nome verdadeiro era Lev Davidovich Bronstein, nasceu em 1879, numa fazenda na província de Kerson, no sul do Império Russo, hoje território da Ucrânia. Era proveniente de uma família judia de fazendeiros de classe média alta. Aos 18 anos, conheceu as ideias marxistas e rapidamente se tornou um revolucionário em tempo integral. Aos 20 anos, já estava preso por agitação. Na prisão, lia vorazmente e escrevia sobretudo a respeito das obras de autores como Nietzsche, Zola e Ibsen. Foi banido para a Sibéria, mas conseguiu fugir de forma espetacular, guiando um trenó puxado por cachorros sobre a neve, através da tundra. Em Londres, em 1902, conheceu Vladimir Lênin, com quem

teria, nos 20 anos seguintes, uma série de concordâncias e divergências. Participou da revolução frustrada de 1905. Viveu 12 anos exilado em várias capitais europeias e até em Nova York. No primeiro volume da biografia, Deutscher conta como o jovem Lev Bronstein, ao fugir da Sibéria, escolheu um novo nome: “Seus camaradas de Irkutsk deram-lhe um passaporte falso. Teve de colocar nele o nome que iria adotar e escolheu o de um de seus excarcereiros de Odessa. Nessa viagem perigosa, essa identificação com o carcereiro talvez satisfizesse no fugitivo um desejo inconsciente de segurança? Talvez. Sem dúvida, o nome do obscuro guarda viria a destacar-se, e muito, nos anais da revolução. Era Trotski”. Fiel ao seu espírito internacionalista, (e ao antigo hábito de traduzir nomes próprios), o russo Lev Bronstein acabou virando Léon, em francês, Leo ou Lew em alemão, Leão em algumas traduções portuguesas e León em espanhol. Em todas as línguas, mais conhecido como Trotski. Tinha uma capacidade descomunal para o estudo e para o trabalho. Além do russo, sua língua natal, e do alemão, que aprendera quando criança, falava e escrevia em francês e inglês. Trabalhou como jornalista e cobriu para a imprensa alemã a Primeira Guerra Mundial, percorrendo as frentes de batalha nos Bálcãs. Voltou à Rússia em 1917, reconciliou-se com Lênin e liderou a Revolução de Outubro que estabeleceu o poder dos sovietes. Como pensador marxista, Trotski formulou a teoria da revolução permanente na qual preconizava que o socialismo soviético só poderia sobreviver e florescer se houvesse revoluções semelhantes em outros países. A teoria, discutida desde os primeiros anos do século 20, foi sistematizada em livro em 1930. Sua briga com Stalin, que defendia

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REpRodução

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1 LíDeR Em 1917, Lênin reconcilia-se com Trotski e, juntos, lideram a segunda fase da Revolução Russa

História 1

a posição do socialismo num só país, ainda hoje divide os marxistas e serve de guia para as antipatias que existem na esquerda em relação aos dois lados: “trotskista” e “stalinista” são adjetivos às vezes usados como insultos, dependendo de quem fala e de quem escuta.

no BRASiL

O trotskismo chegou ao Brasil ainda no final dos anos 1920, com Mário Pedrosa e Lívio Xavier, militantes comunistas que, após tomarem conhecimento dos confrontos de Trotski com o regime soviético, ficaram do lado dele e iniciaram os primeiros rachas no recém-fundado Partido Comunista do Brasil. Nos anos 1960, entre os grupos que enfrentaram a Ditadura Militar, estava o Partido Operário Revolucionário (trotskista), conhecido como POR, e a Fração Bolchevique Trotskista (FBT). Atualmente, o trotskismo está presente no Partido da Causa Operária (PCO), e de forma intensa no PSTU, que é filiado à Liga Internacional dos Trabalhadores da Quarta Internacional (LIT–QI). Está também em setores do PSOL, dentro do PT, na tendência conhecida como Democracia Socialista, e na corrente O Trabalho, que se denomina Seção Brasileira da Quarta Internacional.

Na Europa, a França tem uma longa tradição de apoio às ideias de Trotski. No primeiro turno das eleições presidenciais de 2002, por exemplo, três partidos trotskistas tiveram, somados, mais de 10% dos votos, dividindo o eleitorado de esquerda e impedindo que Lionel Jospin, do Partido Socialista, disputasse o segundo turno. Arlette Laguiller, da Luta Operária, obteve 5,72% dos votos no primeiro turno e Olivier Besancenot, da Liga Comunista Revolucionária, teve 4,25%. A liga, que desde 2009 se chama Novo Partido Anticapitalista, foi fundada e comandada durante muitos anos por Alain Krivine, um dos líderes do Maio de 68, que rompeu com o PC francês nos anos 1960. Em Portugal, o partido Bloco de Esquerda, união de três antigos pequenos partidos, é majoritariamente dominado pelos trotskistas.

DeUtScHeR, o BiÓGRAFo

A trajetória do biógrafo de Trotski, Isaac Deutscher, guardadas as devidas proporções, tem semelhanças com a de seu biografado. Nasceu em 1907, na Polônia, em uma família judia, foi militante comunista e expulso do partido, justamente por apoiar as ideias de Trotski; imigrou para a Inglaterra, onde se tornou um jornalista de destaque e atuou muitos anos na revista The Economist.

Pensando em realizar uma trilogia sobre os principais líderes da revolução bolchevique, lançou, em 1949, Stalin, uma biografia política. Em 1952, terminou o primeiro volume da biografia de Trotski, O profeta armado 1879-1921. Mas, ao morrer, em 1967, deixou inconcluso o trabalho sobre Lênin. Nesse ínterim, Trotski ganhou mais dois volumes biográficos: O profeta desarmado 1921-1929 (publicado em 1959) e O profeta banido 1929-1940 (publicado em 1963). Nos três volumes, Deutscher evita os clichês da literatura marxista, não usa um tom laudatório e é crítico em vários momentos. Ao todo, porém, esboça um panorama épico da vida de Trotski. Está atento à produção intelectual que dominou a vida do revolucionário e aos registros históricos, sobretudo os Arquivos de Trotski, coleção de documentos reunidos na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, consultados pela primeira vez justamente na preparação da biografia. Nos engajados anos 1960, Isaac Deutscher fez sucesso no circuito de palestras nas universidades norte-americanas e europeias.

LiBeRDADe inteLectUAL

Um dos textos mais interessantes, entre os deixados por Trotski, é o livro Literatura e revolução, escrito em 1923, no qual faz críticas ao realismo socialista. Defende de forma enfática a herança cultural da Rússia pré-revolucionária, argumentando que, apesar de oriunda de uma sociedade feudal e injusta, a tradição cultural deveria, ao invés de ser eliminada, como defendiam alguns, ser usada como alicerce para a nova cultura proletária que surgiria a partir de então. Foram argumentos que ajudaram o regime comunista, ao longo dos seus 74 anos de existência, a dar importância e preservar e divulgar obras de arte, como as sinfonias e balés de Piotr Tchaikovski e Rimsky-Korsakov, a obra literária de nomes como Alexander Pushkin, Ivan Turgenev e Lev Tolstói e as pinturas de Ilya Repin.

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TURQUIA Sobre as águas de Istambul Com mais de 2,5 mil anos de história, cidade que liga a Ásia à Europa atrai visitantes em busca de um lugar que seja familiar, mas diferente texto e fotos Ana Lira

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istambul, à primeira vista, deixa o visitante com a impressão de estar num lugar conhecido. A diversidade cultural, arquitetônica e os jeitos variados de vestir e de comportamento não a diferem de qualquer outra metrópole do planeta. Essa sensação gera a primeira inquietação da viagem: será que ela esconde os seus segredos por meio de códigos? Essa desconfiança impele o visitante a sair do roteiro tradicional e buscar referências que traduzam melhor a complexidade da única cidade situada entre dois continentes. A trajetória de Istambul é marcada por ocupações em mais de 2,5 mil anos

de história. Foi batizada de Bizâncio pelos gregos, quando fundada no século 8 a.C. Nove séculos depois, nas mãos de Constantino I, tornouse sede do Império Bizantino sob o nome de Constantinopla. Em seguida, com a divisão do império em oriental e ocidental, manteve-se como capital no Oriente até ser conquistada pelos turcos otomanos em 1453. Nesse período, a população já se referia à Constantinopla como istim´bolin ou istam´bolin que significa “na cidade” ou ir “à cidade”. O local era o espaço de comércio, urbanização e cultura. A cidade por excelência.

Com a queda do Império Bizantino, e a chegada do Império TurcoOtomano, a cidade passou a ser um dos principais redutos muçulmanos do mundo. A tradição religiosa foi mantida, mesmo com o fim do domínio turco-otomano e a instauração da República, em 1923. Constantinopla, no entanto, só foi batizada de Istambul, definitivamente, em 1930. Essa trajetória histórica tem um impacto no cotidiano da cidade e no papel central que ela ainda ocupa nas relações entre o Oriente e o Ocidente. É tanto que, em junho deste ano, as ruas da cidade se dividiam entre protestos contra a resposta de Israel aos ativistas que

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As mesquitas contam com áreas exclusivas para mulheres

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Localizado no lado asiático, é um dos portos que compõem a paisagem da cidade

levavam ajuda humanitária para a Faixa de Gaza e os eventos do circuito cultural que celebravam a escolha de Istambul como Capital Europeia da Cultura. A melhor forma de olhar a cidade talvez seja não pela perspectiva de “caldeirão cultural” e, sim, como um

lugar de conexões. É uma metrópole construída entre a Ásia e a Europa, dividida pelo Estreito de Bósforo, que une o Mar Negro (ao norte) ao Mar de Mármara (ao sul), interligada por duas pontes intercontinentais e à espera da finalização do Túnel Ferroviário de Marmaray, que passará por baixo das águas do Bósforo e será mais uma ligação entre os lados europeu e asiático da cidade. Tudo nela remete a escolhas e qualquer roteiro, por maior que seja, sempre traz a sensação de que é impossível conhecê-la por completo. Istambul é uma cidade-labirinto. Por onde entrar e como sair? O que se quer que a cidade revele? Pensar nisso ajuda a traçar rotas. O segundo passo é conhecer o sistema de transportes para saber como se locomover. Afinal,numa região metropolitana – ocupada por cerca de 12 milhões de pessoas, parte delas falando parcialmente o inglês, a viagem pode virar um eterno pedido de informação – e, em Istambul, isso pode significar horas até chegar ao destino escolhido.

SoBRe AS ÁGUAS

A vantagem, contudo, é que a cidade tem um sistema de transporte fluvial eficiente. Por meio das embarcações que circulam pelo Estreito de Bósforo, Mar de Mármara e pelo Chifre de Ouro, é possível chegar a vários pontos. O roteiro mais comum é feito entre Haydarpasa, Kadiköy e Usküdar, no lado asiático, para os portos de Eminönü e Karaköy, do lado europeu, mas há ferrys que circulam de norte a sul no Estreito de Bósforo durante o dia e boa parte da noite. Haydarpasa abriga ainda uma das mais bonitas e centenárias estações de trem da cidade, desenhada pelos arquitetos alemães Otto Ritter e Helmut Cuno. Ela é roteiro de viajantes, tanto pela beleza quanto por levá-los para outras regiões da Turquia – como a Capadócia – e do Oriente Médio, a exemplo do trem noturno que segue para Teerã, no Irã. Saindo da estação, é possível encontrar, nas margens do Bósforo, restaurantes, cafés e quiosques que vendem pratos da culinária da região, muitos deles baseados em carne de carneiro e variados pães e peixes, além dos deliciosos doces turcos.

É comum beber chás, cafés e sucos, tanto na espera pela embarcação quanto durante a travessia. Os barcos possuem lanchonetes e garçons que circulam vendendo çay (chá preto), su (água) e lanches leves e rápidos. É com os garçons que se aprende boa parte do vocabulário gastronômico usado nas ruas de Istambul, e vê-los trabalhar é um capítulo à parte da experiência na cidade. As viagens de barco podem durar de 20 minutos à 1h30, dependendo da rota, e são ideais para aprender mais sobre a cultura local. Observar como as mulheres compõem o visual, por exemplo, é encontrar elos entre a história da cultura têxtil oriental e da ocidental. A variedade de padrões e estampas e as referências à

o transporte fluvial da cidade é eficiente, com percursos rápidos, e ideais para conhecer mais a cultura local produção artesanal de tecidos estão nos sobretudos, calças boca de sino, blusas de manga comprida, botas e tênis All Star. A indústria da padronização também é forte em Istambul, mas uma cidade que é rota de comércio de estampas de tecidos há vários séculos conhece outras fontes e sabe bem como deliciar os olhos dos visitantes.

AnZoL ALUGADo

Basta descer em Eminönü e circular pelas ruas atrás do Mercado das Especiarias para ver um pouco do que é oferecido nesse setor. Se o visitante for exclusivamente para comprar tecidos, pode pesquisar antes por distritos especializados. Quem não estiver com esse foco, pode comprar na rua ou nos mercados, mas é fundamental pesquisar preços, porque Istambul é sinônimo de negociação e o mesmo item pode custar bem menos algumas lojas depois. Os principais mercados, como o Grand Bazaar, e outros pontos atrativos da cidade funcionam no horário turístico, sem deixar margem para uma pesquisa mais sossegada, por exemplo, no comecinho da manhã, como ocorre

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nos mercados brasileiros, que abrem às seis da matina. O jeito é buscar outros circuitos da cidade, como as alamedas de Beyoğlu e Taksim e os arredores de Gálata, onde fica a famosa ponte que liga as regiões leste e oeste do lado europeu. A Ponte de Gálata foi construída sobre um estuário situado entre o Bósforo e o Mar de Mármara, conhecido como Chifre de Ouro. Além de cartão-postal da cidade, ela é famosa por receber todos os dias profissionais e amantes da pesca – além de visitantes que alugam anzóis para se divertirem um pouco com a família. A tradição é tão forte, que, ao seu redor, fez surgir um circuito de gastronomia baseado na venda de peixes. O público observa da pesca à degustação apenas atravessando a ponte.

Enquanto comem, as pessoas percebem o intenso movimento dos portos de Eminönü e Karaköy, e ouvem as chamadas para as orações, que ocorrem cinco vezes ao dia, nas mesquitas dos arredores. Uma das mais visitadas é a Yeni Camii, que foi construída à beira do Chifre de Ouro. Não é famosa e adorada como as mesquitas Azul e Santa Sofia, que ficam em Sulthanamet, mas foi privilegiada pela localização e por ter sido a última mesquita construída durante o Império Turco-Otomano, o que lhe trouxe também o nome de Mesquita Nova. A Yeni Camii faz parte do mesmo complexo de construções que hoje agrega o Mercado das Especiarias. Era comum as mesquitas abrigarem

serviços para a comunidade religiosa, de modo que, junto com o templo, foram construídas duas fontes públicas, casa de banhos, hospital, escola, mercado e o mausoléu, que guarda as tumbas de seis sultões do Império Turco-Otomano e de Turhan Hadice, o qual terminou de erguer a mesquita, durante o império de seu filho Mehmet IV. As mesquitas podem ser visitadas durante o dia, mas nos horários sagrados de oração apenas muçulmanos têm acesso permitido. No entorno da Yeni Camii, os visitantes costumam ainda degustar sorvetes, roscas, doces e milho cozido. Vendem-se bacias com grãos crus para atrair as dezenas de pombos que rodeiam a mesquita. Fazer fotos dos filhos correndo entre os animais é rotina

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3 Yeni cAMii Fachada da última mesquita que foi construída durante o Império Otomano, à beira do Chifre de Ouro 4 MoViMento As mesquitas no centro de Eminönü atraem visitantes que atendem às chamadas para as orações, marcadas cinco vezes ao dia 5 BÓSFoRo Com um sistema de transporte fluvial eficiente, embarcações fazem a travessia entre o lado asiático e o europeu de Istambul

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das famílias que visitam o local. Elas também apreciam a arquitetura da mesquita, os detalhes das fontes e do grande arco de pedra. Este, construído sobre os dormitórios existentes numa viela que leva ao centro de Eminönü e à estação de trem de Sirkëci, ponto de partida de quem deseja visitar as Muralhas de Constantinopla. As muralhas podem ser vistas tanto por via terrestre quanto marítima, uma vez que foram erguidas ao longo da costa de Mármara como estrutura de defesa da cidade. A primeira construção remonta ao período Bizantino, mas terremotos e intempéries que, de vez em quando, assolam a Turquia já foram responsáveis pelo desabamento de algumas de suas partes, embora cerca de seis quilômetros de sua extensão ainda estejam preservados. Visitando o acervo do museu situado na Fortaleza de Yedicule, percebe-se com mais clareza o poder que as muralhas representavam para a cidade, bem como a crueldade com que eram tratados os inimigos dos impérios: as câmaras de tortura e

execução continuam intactas. De cima da edificação, ironicamente, tem-se uma das mais incríveis vistas de Istambul. Olhando para baixo, contudo, vê-se o abandono das áreas ocupadas pelos imigrantes que ainda vivem na cidade.

BAnHo De MAR

Se, na costa oeste do Mármara, as muralhas convidam à reflexão, o lado leste oferece o deleite da beira-mar da região de Adalar, onde estão localizadas as Ilhas dos Príncipes. O distrito tem sete ilhas e é usado para veraneio. O melhor local de banhos fica a uma hora de ferry. Em terra, é preciso caminhar ou alugar charretes porque as leis de preservação não permitem o uso de veículos motorizados. O lugar remete a um vilarejo bucólico e as casinhas em nada lembram os milhares de edifícios e o caos que dominam as áreas mais populosas de Istambul. Além dos banhos nas Ilhas dos Príncipes, os visitantes também apreciam o cruzeiro pelo Bósforo, que leva a áreas da cidade com edificações suntuosas, outras abandonadas e algumas que foram restauradas para

abrigar centros culturais, como o Museu de Arte Moderna, em atividade desde 2004. Este ano, entre as ações da Capital Europeia da Cultura para as Artes Visuais, havia uma exposição coletiva que debatia possíveis soluções para o desequilíbrio econômico e social – um tema que tem sido bem-discutido em Istambul. A experiência com crises de moradia, abastecimento de água e transporte público, que debilitaram Istambul no passado, ajudaram a metrópole a perceber seus limites. Embora seja segura para a quantidade de pessoas que nela circula diariamente e tenha estrutura para receber muito bem os visitantes, a cidade-labirinto não pretende ver seu crescimento transformar-se num Minotauro, devorando quem não estiver preparado para enfrentá-lo. Por seus aspectos mais evidentes – e outros tantos a se descobrir –, Istambul se torna um dos destinos mais instigantes do mundo. Visitá-la leva o viajante do prazer à reflexão: nas travessias de barco, nas performances de músicos em praça pública, nas acaloradas conversas nos cafés ou nas cerimônias religiosas.

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6 BANHO DE MAR O lado leste, onde estão localizadas as Ilhas dos Príncipes, é usado para veraneio 7-8 pesca A Ponte de Gálata é famosa por receber todos os dias profissionais e amantes da pesca, além de visitantes que alugam anzóis para se divertirem

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MÚSICA Das orações às rodas de ciganos

Um dos aspectos admiráveis de Istambul é sua diversidade sonora, resultado das trocas entre os vários povos que nela habitam texto e foto Fernando Lara

Todos os sons me interessavam em Istambul. A língua, os convites diários para as orações muçulmanas e, claro, sua música. Cheguei à cidade consciente de que ouvi-la com atenção talvez fosse uma boa maneira de conhecê-la e, também, uma chance de registrar um pouco do interesse que havia sobre ela. Ainda no Brasil, fui apresentado ao documentário Atravessando a ponte – O som de Istambul, do diretor alemão, filho de pais turcos, Fatih Akin. No filme, Alexander Hacke, integrante

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9 NAS RUAS A região de Taksim destaca-se pela diversidade de músicos e estilos musicais

música em uma amplitude de estilos admirável. As influências ocidentais, a presença da população cigana, os conflitos com a comunidade curda, a proximidade com a Grécia e inúmeras outras variáveis que participam da construção de um contexto musical exuberante. Ao andar pela região de Taksim – considerada o coração do lado ocidental e famosa por suas opções de compras e diversões –, fui atraído pela diversidade de estilos musicais presentes nas ruas. Distantes entre si por menos de 20m, produziam uma trilha sonora ora conflitante – uma vez que em alguns locais se escutava mais de um som ao mesmo tempo –, ora solitária, mas sempre agradável.

As influências ocidentais, os ciganos e os conflitos com os curdos constroem um contexto musical exuberante

da banda alemã Einstürzende Neubauten, investiga a 5ª cidade mais populosa do mundo em busca da diversidade de sua música. Mais do que uma seleção dos sons produzidos em Istambul, o documentário tem a capacidade de reforçar o interesse por uma cidade complexa, que se apresenta de diferentes e aparentemente contraditórias maneiras. O documentário de Akin encanta ao retratar a maneira como Istambul produz e consome

Os sons atraem os ouvidos por sua peculiaridade e, no caso de boa parte dos turistas, por sua estranheza ao padrão ocidental. Cítaras, alaúdes, clarinetes e instrumentos de percussão são os mais frequentemente utilizados, numa tentativa de referenciar os diferentes estilos da sonoridade turca e árabe e refletir um amplo espectro de culturas. Pairava uma forte impressão de que a existência de tais artistas era relativamente estranha à cidade. Nesse ponto, optei por investigar os músicos de rua em seus diferentes estilos, composições, uso de instrumentos e respostas do público. Os espectadores, diferentemente do que esperava, eram em sua maior parte os próprios moradores de Istambul, que se detinham diante das pequenas aglomerações e seus sons. Não raro, filmavam e

fotografavam com seus celulares, gesto repetido por turistas. Os músicos se apresentavam por dinheiro, mas evidenciavam interesse pelo contato com o público e pelos aplausos. A performance, com duas horas de duração, de dois ingleses e um turco, que viajavam pelo Oriente Médio de bicicleta, rendeu ao trio o equivalente a R$ 420. Aqueles que atraíam menor atenção precisavam trabalhar por mais tempo. Depois da apresentação do trio, fui convidado por eles para assistir ao show de um dos artistas registrados no documentário de Fatih Akin. Acompanhado por outros quatro músicos ciganos, o clarinetista Selim Sezler se apresentava no sétimo e último andar de um prédio, enquanto era filmado por dois cinegrafistas australianos. Minha presença em Istambul se justificava no desenvolvimento de um ensaio fotográfico sobre os músicos locais, mas, em alguns momentos, a tarefa de fotografar esses personagens se mostrava frustrante: o que ouvia era muito maior do que aquilo que conseguia registrar visualmente. A sensação se repetiu, até que percebi que o registro seria mais eloquente quanto mais singelo – ou sincero – fosse. Istambul é uma cidade capaz de mobilizar seus visitantes por todo o tempo que estiverem dispostos a conhecê-la. Parte dessa atração vem de sua exuberância musical, seja nas ruas ou em espaços fechados. Reservar-lhe menos de cinco dias oferece o risco de não se ir além de uma percepção superficial, colocando-a no mesmo patamar de muitas outras cidades com forte apelo turístico. É com mais tempo que se desvelam as questões que fazem da antiga Constantinopla uma cidade singular. Mais do que sua arquitetura, seu perfil cravejado de mesquitas e minaretes ou seus mercados, é o efeito que a história da cidade tem em seus habitantes que constrói o eixo de sua personalidade. É preciso andar para além das ruas principais, explorando os pequenos becos, os bairros residenciais, a rotina de seus moradores e deixar-se conduzir por seus peculiares sons.

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Hallina beltrĂŁo Sobre foto do blog da pga

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MÍDia imagem risível do Outro Crescimento do acesso à internet pelas camadas mais pobres da população brasileira traz à tona um embate velado dos contrastes entre as classes sociais TEXTO Fabiana Moraes

“Somos fãs do blog, todas as

noites acessamos para fecharmos o dia com chave de ouro!!! Pedimos encarecidamente que seja atualizado diariamente para garantia dos nossos risos.” Tio & Tia, que escreveram o comentário no Blog da PGA (Profiles de Gente que se Acha) no dia 8 de setembro de 2010 às 12h35, não devem ser muito diferentes de nós. Pelo nome que usam para se identificar no terreno virtual, provavelmente são adultos, dado que ser “tio” hoje corresponde a ter pouco mais de 30, no mesmo mundo no qual o Viagra informa ao senhor de 65 que ele ainda é um “garoto de 20”. Tio & Tia devem trabalhar o dia inteiro e querem relaxar um pouco antes de ir para a cama, uma prática comum e correta na medida em que o riso continua como inimigo mortal do tédio de ser gente nessa ordem mundial. Tio & Tia podem ser eu, você, seu parceiro ou parceira, seu pai, irmão, melhor amigo, colega de trabalho ou de mesa de bar. Acham, todos eles, todos nós, muito engraçadas aquelas pessoas certamente feias, certamente pobres, certamente ridículas, que têm a ousadia de surgirem publicamente de biquíni, ou posando como se fossem modelos de beleza, como se devessem ser vistas, gente que merece nosso riso porque cometeram um erro mortal: elas se acham. Se

acham o quê, exatamente? Algo digno de surgir publicamente, de competir conosco, com nosso padrão. São, na verdade, Profiles de Gente que nos Afronta. No terreno em que circulam, coexistem aqueles que não se colocam tão claramente no posto de admiráveis, mas que, também munidos de câmeras e computadores (em casa, na lan house), resolvem compartilhar seus momentos pessoais em locais como o You Tube. Ali, dançam, cantam, dublam os cantores preferidos, celebram o aniversário de um ano do filho, mostram a festa de casamento, o 20º encontro da turma do 3º ano. Tudo isso, vestidos com roupas de poucos dígitos e estilos não respeitados entre os conhecedores da moda (às vezes, os poucos dígitos são aceitáveis, desde que se mostre “bom senso”); tudo isso, comendo alimentos de muitas calorias; tudo isso, ouvindo músicas que denotam a falta de determinado cultivo cultural. São todas essas faltas, aliás, que estabelecem a linha entre “eles” e “nós”; entre quem vê e quem é visto, entre quem aparece e quem ri daquele que quer aparecer. Aí mora o que a gente chama de fenômeno: aparecer, ser visto, chegar aos olhos, fazer-se visível, o nó da questão. Antes, os certamente pobres apareciam apenas nos programas vespertinos que mostram a tentativa

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con comportamento ti nen te reprodução do blog da pga/com manipulação da imagem

de reconciliação entre vizinhos, nos televisivos dominicais em que a candidata A diz que não vai namorar o candidato B porque ele “mora longe.” Apareciam apenas nos programas policiais que mostram o homem bêbado afirmando que “levou gaia” da mulher, mas que “ama ela”, as travestis que tentam encobrir o rosto enquanto o repórter pergunta por que ela brigou com o cliente. São engraçados, ao que parece, tanto que a crônica policial deu lugar a uma gozação aberta dirigida àqueles que surgem encarcerados, com direito a risos pré-gravados e intervenções pretensamente bemhumoradas dos jornalistas. Eles satirizam os bêbados e as travestis, aqueles que, segundo a lógica a eles reservada, não têm capacidade de sentir dor. Mas podem nos aliviar.

MAIS ACESSOS

Agora, o negócio se expandiu e os risíveis extrapolaram as barreiras: também estão na internet. A grande diferença é que não é determinada rede de TV ou rádio, de alcance massivo, que organiza as aparições. Nesse caso, são eles próprios, os objetos de escárnio, quem se fotografa, se filma e se disponibiliza em algum blog ou rede social. Fazem parte de uma multidão que, depois de passar no software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), chega enumerada em pesquisas como a divulgada em setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nela, sabemos que o uso da internet no país mais do que dobrou em apenas quatro anos (um aumento de 112%). A presença dos jovens, como poderia ser prevista, é dominante: entre as pessoas de 10 a 14 anos de idade, o percentual de usuários subiu de 51,1%, em 2008, para 58,8%, no ano passado. Entre os adolescentes de 15 a 17 anos, o pulo foi de 62,9% para 71,1%, enquanto entre jovens de 18 a 19 anos, a mudança foi de 59,7% para 68,7%. Já as lan houses representam, segundo apurou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em 2008, o 2º lugar no Brasil em que mais se acessa a internet. Naquele ano, 47,5% das 56 milhões de pessoas que se conectaram à web disseram ter acessado a rede em mais de um local: 57,1% em casa, 35,2% nas lan houses e 31% no trabalho. Em 2005, a ordem

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“Tem gente que gosta de espalhar na rede a terrível frase ‘É nisso o que dá a inclusão digital’, sobre a presença da classe C” era outra: ambiente doméstico, local de trabalho e lan houses. No Norte e Nordeste do país, as lan figuravam como primeiras na lista: no Norte, 56,3% dos usuários foram às lojas de acesso à internet, enquanto no Nordeste foram 52,9%. Essa popularização e esse acesso são traduzidos de várias maneiras para o nosso cotidiano, formado por julgamentos e brigas para manter “puros” grupos diversos (os cool, os informados, os low profile, os fashionistas, os intelectuais, os modernos, os que não ligam para os outros, os que gostam de “brega das antigas”, os que teorizam Joelma enquanto Joelma dança e fica mais rica). Tem gente que celebra e chama o fenômeno de “democratização”. Tem gente que acha absurdo acreditar

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que democratização seja igual a ter acesso a um computador, quando na verdade esse novo usuário não consegue entender o que lê. Tem gente que gosta de espalhar na rede a terrível frase “É nisso o que dá a inclusão digital”, referindo-se à presença maciça daqueles que o mercado chama de “classe C”. Entre os espalhadores da frase estão incluídos o Tio e a Tia lá do início do texto, o casal que acha engraçadíssimo a mulher pobre de biquíni que a gente vê no PGA (o blog se apropria de fotos – perfis de redes sociais, como o Orkut). Também acham engraçadíssimo o hoje realmente famoso Lucas Celebridade, rapaz que acrescenta à vontade férrea de ser conhecido uma, às vezes, comovente ingenuidade. Em seu site, posta fotografias nas quais vemos sua casa localizada na pequena Luzilândia, no interior no Piauí. As paredes descascadas e os móveis tubulares roxos entregam sua condição modesta. Lucas, ao contrário da maioria daqueles que o detratam (foi para ele o comentário “É nisso o que dá a inclusão digital”), não se envergonha de sua pobreza, não se corrige nem se aplica filtros

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reprodução/diariodafama.interbarney.com

1 pga O blog posta fotos retiradas de redes sociais e as comenta com escárnio

mais recorrentes entre a classe média. Proferindo um “E daí?” interno, ele se fotografa quase nu, mostra a barriga gordinha e se autointitula: “Lindo para a mulesta”. Escreve a partir de uma lan house. Do outro lado, na internet de casa ou do trabalho, a galera repassa o link e se acaba de rir.

VISÍVEIS?

É possível sumarizar tudo o que foi exposto até aqui: o fato é que a pobreza (um conceito difícil de ser estabelecido, como lemos no texto a seguir) está mais visível do que nunca, e essa visibilidade se dá várias vezes pelas mãos dessa própria pobreza. Novamente, há a chance de uma leitura múltipla: excelente, até mesmo revolucionário, esse tempo no qual outros rostos, corpos e condições podem circular publicamente num movimento criado por aqueles mesmos que querem se fazer visíveis. É um racha na hegemonia do claro + magro + jovem+ photoshopado. Mas, há ressalvas. A filósofa Hannah Arendt é uma das teóricas que nos oferecem material para iniciarmos uma investigação sobre

as implicações da (in)visibilidade, o olhar sobre o Outro (não custa lembrar que o Outro somos nós). No livro A condição humana, ela fala sobre o espaço da aparência, “no qual eu apareço aos outros e os outros a mim; em que os homens assumem uma aparência explícita, ao invés de se contentar em existir meramente como coisas vivas e inanimadas”. A ação humana precisa, segundo ela, da palavra para se fazer visível, precisa comunicar-se. Dito isso, é hora de voltar à casa pobre e modestamente mobiliada de Lucas. Também podemos visitar uma vaquejada no Povoado Poço, também no Piauí; uma farra vivida por mulheres e homens – a maioria feliz, divertindo-se – que recebeu no You Tube o título de Forró dos feios (e mais de 2 mil acessos em um único dia). Eles todos aparecem para o mundo, não se contentam em ser coisas vivas e inanimadas, especialmente Lucas, que se faz presente de maneira pensada e marcada. Às vezes, falam e amplificam as suas ações, mostram o que consomem e o que pensam. Porém, lidas pelo viés do preconceito, do usuário que quer banir de sua região “aquele

2 fama Lucas Celebridade, em ensaio fotográfico disponibilizado por ele na web

bando de cearense de cabeça chata”, as vozes ouvidas por streaming são recebidas não como mais uma informação no meio da Babilônia, mas como uma piada que logo se transformará na delícia do dia daqueles que Se Acham Melhores. Andrea Brighenti, da University of Trento, sintetiza bem esse panorama ao dizer que visibilidade é igual a reconhecimento (trazendo aqui o pensamento de Charles Taylor, que coloca o reconhecimento como uma categoria básica da identidade humana). Se você me vê, se eu posso ser visto, significa que existo. Para as minorias, ser invisível significa ser privado justamente desse reconhecimento. Por outro lado, continua o sociólogo italiano, a visibilidade classifica. É aí que podemos iniciar uma segunda leitura dessa publicização da “classe C”, hoje, no país: como, afinal, se dá esse reconhecimento gerado pela significativa ocupação virtual desse novo público? A resposta, você sabe, veio antes da pergunta. Ela se dá – é só ver a reação de Tio & Tia – através do exemplo negativo, do riso que coloca o Outro em posição inferior pelo simples fato de ele ostentar uma pouco respeitada pobreza. Estão, para continuarmos a seguir Brighenti, inseridos, na verdade, em uma supravisibilidade, que chega distorcida e que produz danos nesse tal reconhecimento. É simples exemplificar, é só lembrar os grupos de imigrantes, sempre malvados e criminosos, vistos em filmes hollywoodianos pouco inspirados. Ou na loura “burra” que costuma ser representada nos programas humorísticos. Nos gorduchos e meio atrapalhados dos “filmes de adolescente”. A todos é dada a “oportunidade” de serem vistos, mas ela não os faz, na verdade, visíveis. Esconde-os sob estereótipos, também os denigre, também os reduz. É o mesmo, enfim, que se passa com Lucas, com os dançarinos do Povoado Poço, com a travesti que briga para ser paga enquanto é ridicularizada na TV. O mesmo que se passa com aquela Gente que se Acha.

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pesquisa O que faz pobre um indivíduo ? “Por que vocês são pobres?”,

perguntou o jornalista Wiliam T. Vollmann a dezenas de pessoas moradoras nas ruas, favelas e nos aglomerados do Iemên, Tailândia, Rússia, China, Colômbia, Paquistão, México, Quênia, EUA. “Eu acho que sou rica”, responde uma mendiga de barriga e olhos vazios, pele manchada e corpo esquálido. Como é que pode? – você pensa – ela tem apenas uma sacola plástica na mão, além da aparência de 60 anos, quando o corpo – de fato – só tem 23. A pergunta de Vollman

e a resposta da mendiga revelam a enorme complexidade do conceito de pobreza – a pobreza vivida, a pobreza experimentada, não a do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, a pobreza-manchete que lemos no jornal do café da manhã. Uma mãe alcoólatra, uma desempregada russa, uma prostituta jovem, todas pobres, reagem de maneira diferente aos questionamentos do escritor no livro (Poor people, no original), lançado no Brasil pela Conrad. Um exemplo de miséria, particularmente

repugnante, é trazido pelo próprio autor. Fala de grupos que viviam sobre barcos numa pobre região asiática: recolhiam o lixo que embarcações maiores jogavam no mar; nesse “material”, encontravam e coletavam até animais mortos e putrefatos. “Seriam menos pobres, se recolhessem os animais recém-mortos?”, pergunta. Pobreza pode ser também uma questão de percepção, diz o jornalista. O trabalho de Vollmann é de um fôlego imenso: ele passa, geralmente, uma semana com os entrevistados, vai até as suas casas, conversa com as famílias. Descreve bem: o fungado de uma assalariada, a confusão mental de uma epilética, os desenhos de uma garotinha. Utiliza esses marcadores para revelar mais sobre a personalidade daqueles que procura. Revela quanto paga aos entrevistados para que eles percam seu tempo refletindo acerca de algo que talvez não fariam nunca (é

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1 personagens Mendigos de Peshawar, no Paquistão, em registro fotográfico do livro Por que vocês são pobres?

vida: se é destino e sorte, só posso me resignar e esperar que, numa próxima vida, tenha mais ventura. Se a culpa é do governo e dos ricos, há algo que provavelmente possa fazer, seja votar em determinada proposta política, seja jogar um coquetel molotov no causador da minha dor. A escrita fragmentada, entrecortada por várias histórias e impressões pessoais, às vezes provoca um certo “afastamento” daquilo que o livro trata. Tem-se a impressão de que estamos com um romance nas mãos, não relatos reais. É claro que aí funciona também nossa aproximação com a produção literária contemporânea, na qual gêneros e estilos mesclam-se de maneiras várias. Para fincar o pé na “realidade” (lembrar: aqui, da realidade contada sob a ótica de um senhor norte-americano visitando a pobreza mundial), nada melhor do que as fotografias que aparecem, em bloco, quase no fim do livro. As histórias ganham rostos e, é óbvio, doem um pouco mais.

LIBERDADE DE MERCADO

interessante, logo no início do livro, a tabela que nos informa sobre os ganhos de cada um deles, inclusive o do próprio autor) e, melhor, entende o fosso que sua condição privilegiada cria em relação aos demais. Não tenta “viver como eles”, pois nunca viverá. Não comete o engano de se infiltrar uma semana na pobreza para acreditar que se tornou um especialista no assunto. Vollmann também não realiza suas investidas com o objetivo de “denunciar e fazer o bem”. Assume: “Como poderia ser tolo a ponto de pretender ‘fazer a diferença’? Não me resta nada, senão a tentativa honrosa de mostrar e comparar melhor que posso” (itálicos do autor). O destino, a sorte, o governo, os ricos: são vários os motivos apresentados pelos entrevistados para explicar a própria situação de pobreza. Cada um tem significado diferente sobre as ações de quem sofre a precariedade de condições de

Dentre os conceitos de pobreza mais difundidos no século 20, a noção de subsistência é a mais recente desenvolvida no mundo, justamente a partir dos anos 1980, e pode fornecer os melhores instrumentos para analisar tanto os posicionamentos dos atores das comunidades virtuais sobre os pobres midiatizados quanto a ideia de pobreza que tem o indivíduo classificado como pobre. Também a noção de subsistência e a ideia de necessidades básicas, que definem a pobreza apenas em termos de renda ou de alimentação, vestuário, água potável, transporte e cultura, mostram-se insuficientes. Nesse sentido, a ideia da privação relativa engloba os processos de pobreza de acordo com as mudanças pelas quais passa a sociedade, não podendo tais processos serem determinados em um período histórico. Assim, a pobreza é entendida como “situação daqueles cujos recursos não permitem satisfazer as refinadas exigências e normas sociais impostas aos cidadãos dessa sociedade”, como coloca Peter Townsend, um dos teóricos que refletem sobre o problema. Precursor deste enfoque, no qual a pobreza é entendida como fenômeno multidimensional, o economista indiano

Amartya Sen, Nobel de Economia em 1998, enfatizou o aspecto social na análise do fenômeno. De acordo com ele, sair da linha de pobreza significa obter um regime alimentar adequado, um certo nível de conforto e o desenvolvimento de papéis e de comportamentos socialmente aceitáveis. Sen deu atenção ao fato de que as pessoas podem sofrer privações em diversas esferas da vida, ou seja, vivenciar a pobreza não implica somente privação material. “A pobreza deve ser entendida como a privação da vida que as pessoas realmente podem levar e das liberdades que elas realmente têm.” O economista indiano escreve levando em conta que a palavra liberdade é mais relacionada ao uso do cartão de crédito do que ao direito de ir, vir e viver. Para ele, pobreza não está, como comumente é pensado, apenas ligada à falta de renda: pobre, na verdade, é aquele que tem suas potencialidades privadas, aquele que não pode se mover no ambiente social por limitações que impedem a sua felicidade. Essas privações passam pela idade (qual o papel dos mais velhos no mercado de trabalho?), condições de moradia e de saúde e mesmo questões de gênero e raça. Podemos pensar: numa família em que os recursos são dirigidos prioritariamente para o filho mais velho, enquanto outro filho tem menores condições de estudos, há alguém mais rico e outro mais pobre, como exemplifica o autor de Por que vocês são pobres?. No entanto, essa mesma família pode configurar-se na “classe B” de um instituto, sem que seus indivíduos sejam observados. As análises de Amartya Sen e Peter Townsend fazem falta no país, num momento em que tanto se comemora o nascimento de uma nova classe média: quem são aqueles que figuram nas estatísticas portando celulares, TVs a cabo e carros na garagem? Sem dúvida, gente que se beneficiou com o aumento real do salário mínimo e de outros programas governamentais. Mas também, gente que tem celular pré-pago e só pode ligar a cobrar, que tem TV a cabo clandestina (caso comum nos bairros recifenses) e um carro que fica parado em casa por falta de dinheiro para a gasolina. FABIANA MORAES

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FOTOS: CLÁUDIA SILVEIRA/cortesia

Cardápio 1

NOVA YORK Uma Grande Maçã muito bem-servida

Mais de 18 mil estabelecimentos, que vão de restaurantes de culinária internacional a bodegas, tornam a cidade um destino para gourmets exigentes TEXTO Daniel Buarque

O chef francês Alain Ducasse

costuma comparar a população de Nova York a crianças mimadas. Há tanta diversidade e qualidade, que as pessoas nunca ficam satisfeitas, e o público é o mais difícil de agradar do mundo. O fato de haver demanda por comida de qualidade gera uma oferta igualmente excepcional. Andar por Nova York

é sentir um dilema existencialistagastronômico. São tantas opções e o volume de informações é tão grande, que a escolha de um restaurante, ou prato, significa abrir mão de centenas de outras opções igualmente atraentes. A liberdade se torna um fardo – e a seleção é um dilema e um lazer cotidiano das pessoas.

A cidade tem mais de 18 mil estabelecimentos voltados à venda de comida – do melhor restaurante à bodega que vende sanduíches. Seriam necessários 17 anos para poder conhecer todos eles, isso, em se fazendo três refeições por dia nos restaurantes da cidade. Essa proposta tem sua viabilidade mais improvável quando se percebe a enorme rotatividade desses lugares, com mais de uma dezena de casas novas toda semana. O que faz da cidade um dos polos mais interessantes da gastronomia mundial, entretanto, não é só a qualidade da comida, mas a variedade de estilos. William Grimes, ex-editor da seção de gastronomia de The New York Times, diz que a qualidade da comida em Nova York não está só na excelência de seus melhores endereços. “Paris tem restaurantes franceses melhores, Madri tem restaurantes espanhóis melhores, e Tóquio tem restaurantes

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japoneses melhores. Contudo, nenhuma cidade oferece tantos estilos culinários internacionais a qualquer faixa de preço como Nova York”, diz. Grimes é autor do livro Appetite city, sobre a história culinária da cidade. Ele conta que esse perfil começou a surgir nos anos 1850, com a intensificação dos fluxos de imigração internacional no Nordeste dos EUA. Desde o princípio, Nova York se consolidou mais como uma capital do mundo do que como uma cidade tipicamente americana, explica Arthur Schwartz, pesquisador que escreveu uma compilação histórica e gastronômica da cidade, que nasceu mais como entreposto comercial.

PRIMEIRAS GARFADAS

Antes da chegada de europeus, Nova York era uma área habitada pelos índios lenape, que caçavam e cultivavam pequenos vegetais. Foram os índios que deram o nome de Manhattan à ilha

central e que a “venderam por US$ 24” aos holandeses, que chegaram à região em 1624, mesma época em que invadiram o Nordeste do Brasil. Os holandeses fundaram a então chamada Nova Amsterdam, e a cultura alimentar dessa cidade era baseada em artigos que se mantiveram populares, como batatas, panquecas, waffles e carnes. Além das refeições caseiras, havia tavernas, nas quais era servida uma comida rudimentar, mas que se consolidavam como centros sociais, com bebidas e tabaco em grande quantidade. Eles ficariam mais de quatro décadas na região, que foi repassada em seguida aos ingleses, e marcariam a cultura da cidade para sempre. Até os anos 1820, a cidade era um “deserto culinário”, sem nenhum bom restaurante. Nova York já se desenvolvia em torno da ponta sul da ilha de Manhattan, enquanto as pessoas moravam de verdade em outras regiões,

o que fazia com que ela fosse a única cidade dos Estados Unidos em que todos almoçavam na rua, próximos do trabalho, mas longe de casa. Isso gerava demanda por comida vendida em lugares públicos, que proliferavam pela região, hoje conhecida como Downtown. Em 1835, a cidade havia se transformado – ela tinha uma população de cerca de 270 mil pessoas – e consolidado como entreposto internacional, atraindo 60 mil visitantes por ano, o que intensificava a abertura de restaurantes. O problema, diz Grimes, é que quase todos tinham uma coisa em comum: comida sem qualidade. O primeiro nome respeitável da cena gastronômica de Nova York surgiu em 1827, quando dois irmãos suíços abriram o Delmonico’s, um restaurante francês que foi o primeiro lugar a servir comida decente, francesa e em formato à la carte, com menu de dezenas de

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DANIEL BUARQUE

Cardápio

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comidas com a cara da cidade Encontra-se de tudo para comer em Nova York. Essa variedade é uma das suas principais características. Construída como entreposto comercial, ela permanece sendo uma mistura de culturas e oferece cardápios étnicos diferentes. Mesmo assim, desenvolveu perfil próprio, e esses são os pratos mais identificados com sua personalidade. GRANDE OSTRA O seu primeiro símbolo gastronômico foi a ostra, encontrada em abundância no estuário dos rios East e Hudson. Não existem mais tantos moluscos bivalves na região, mas alguns restaurantes os mantêm em seus cardápios. O Oyster Bar, na Grand Central Station, se tornou um ponto turístico por manter essa tradição viva. NA RUA A comida encontrada em todas as partes da cidade e que é reconhecida como uma imagem-símbolo da alimentação local está nas carrocinhas de cachorros-quentes, com seus minissanduíches preparados com salsichas especiais e servidos apenas com mostarda. Há carrinhos vendendo culinárias diferentes, sempre inovando no cardápio. É a comida itinerante, especializada e atraente.

EM RETALHOS A pizza está enraizada na gastronomia local. Vendida em fatias triangulares, em balcões encontrados em todo quarteirão, tem tempero e textura únicos, atribuídos à qualidade da água da cidade que é utilizada em seu preparo. É uma iguaria clássica, com coberturas diferentes, mas sem o queijo e o orégano, ingredientes da pizza no Brasil. Champagne de torneira O líquido que sai das torneiras novaiorquinas é tão puro, que muitos americanos chamam de “o champanhe das águas”. Não precisa filtrar e nem comprar água mineral nas ruas. Pequeno almoço Nos finais de semana, o que simboliza a alimentação em NY é o brunch, refeição que mistura café da manhã e almoço, servido longamente e sem pressa. São pratos com ovos e carnes, panquecas e batatas, acompanhados por suco e mimosa (coquetel com espumante e suco de laranja). Superespecialização A cozinha de prato único é costume novo, com a proliferação de restaurantes especializados em fazer só uma coisa. Um

serve só almôndegas (Meatball Shop), outro é especializado em macarrão com queijo (S’Mac), e mais outro serve diferentes preparos de arroz-doce (Rice to Riches). Donut de cimento O equivalente nova-iorquino do croissant é o bagel, pãozinho redondo com um furo no meio, apelidado de “donut de cimento”, de tão densa e pesada que é a massa. Os bagels são o maior símbolo do café da manhã e toda esquina tem pequenas lanchonetes, barracas e bodegas em que esses pãezinhos aparecem, sendo partidos ao meio, torrados e recheados com queijos cremosos e frios. Eles têm uma cobertura levemente crocante, resistente e dourada. pastrami Um dos principais clichês do turismo é uma das coisas mais gostosas da cidade. O sanduíche de pastrami em pão de centeio vendido na Katz Delicatessen é delicioso, suculento, com recheio de carne que se desfaz na boca. A Katz é a mais famosa das delis, a casa comum da comunidade judaica. Ela se tornou um fenômeno global depois que apareceu no filme Harry e Sally, com a personagem interpretada pela atriz Meg Ryan fingindo um orgasmo em público.

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CLÁUDIA SILVEIRA/cortesia

Páginas anteriores 1 nathan´s

Onde é servido o cachorro-quente mais antigo de NY 2 clichê O sanduíche de pastrami com pão centeio está no cardápio da Katz Delicatessen Nestas Páginas 3 na rua

Os nova-iorquinos costumam fazer fila nas barracas espalhadas pela cidade em busca de um almoço rápido 4 BALTHAZAR O restaurante é um dos mais procurados por servir o brunch, uma mistura de almoço com café da manhã

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opções. O Delmonico’s foi o nome da alta cozinha nova-iorquina por anos, antecipando tendências de mercado e de gastronomia. O estabelecimento original foi fechado em 1923, mas, até hoje, um restaurante funciona com o mesmo nome em Manhattan. Depois dele, a contínua imigração estrangeira que afluía à cidade ia fomentando a criação de restaurantes típicos de seus países. A população crescente e o fluxo de visitantes faziam com que a cidade se consolidasse como um dos principais centros gastronômicos do mundo: italianos, chineses, japoneses, mexicanos, coreanos, ucranianos, gente do mundo todo que ajudava a moldar o perfil cultural e a alimentar da cidade.

SEM ESPAÇO

Hoje, Nova York é a maior cidade dos EUA, com uma população de mais de oito milhões de pessoas. O aperto e a densidade demográfica tornam comum a vida em apartamentos pequenos, muitos sem espaço real para preparo de alimentos. Esse é um dos motivos pelos quais a cultura da cidade valoriza tanto os restaurantes. O nova-iorquino tradicional é acostumado a fazer todas as refeições na rua. Ele toma café da manhã a caminho do trabalho, se o clima permitir; almoça

A elevada densidade demográfica tornou comum a vida em microapartamentos, sem espaço para preparo de refeições um prato rápido em alguma praça (um sanduíche ou uma salada comprada em supermercados como o Whole Foods) e se encontra com amigos à noite para jantar em um restaurante cuidadosamente selecionado. Para ele, comer fora é uma ciência e uma forma de arte, explica o guia local Not for tourists. A cada ano, cerca de 46 milhões de visitantes passam por Nova York. Nesse fluxo, há mais de 350 mil brasileiros. Quem chega à cidade agora encontra comida de qualidade por toda a parte. Alguns dos chefs mais premiados do mundo têm restaurantes por lá, e a busca por um prato perfeito é uma obsessão de quem mora ali, transmitida com facilidade para cada visitante. A cidade tem 71 estrelas do guia Michelin, uma das mais respeitadas referências internacionais em gastronomia. Já a revista Restaurant inclui seis dos 50 melhores restaurantes do mundo na Grande Maçã. Os mais

aclamados por esses guias são o Daniel, Le Bernardin, Per Se, Jean-Georges, Masa, Momofuku Ko e Ssäm Bar, WD-50 e Eleven Madison Park. Um jantar nesses lugares pode facilmente custar mais de US$ 150 por pessoa, e conseguir uma mesa para gastar essa fortuna em lugares como o Per Se pode ser improvável. Mas há formas de experimentar parte desses cardápios tão valorizados sem gastar tanto dinheiro nem disputar reservas. Uma delas é conhecer casas menos badaladas dos chefs mais premiados. Daniel Bouloud, do Daniel, por exemplo, tem o restaurante DBGB, opção barata e ainda muito boa. A outra forma de baratear a refeição excepcional é dar preferência ao almoço, que pode custar menos de um quinto do valor do jantar em locais como o Le Bernardin, o Jean Georges e o Eleven Madison Park. Mas, na cidade dos mimados, toda a badalação muda com frequência. O ideal, então, é ignorar o que dizem os guias de turismo e fazer como os nova-iorquinos: comprar a edição mais recente do guia Zagat (chamado de Bíblia da gastronomia local), procurar o que há de mais atual na revista Time Out, dar uma olhada no site de referências Yelp.com e seguir o instinto. O melhor de Nova York pode não ter sido descoberto até agora.

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ROTEIROS Por que há filmes que teimam em não acabar?

Embora não seja um fenômeno exclusivamente contemporâneo, o recurso do final aberto tem sido recorrente na cinematografia atual texto Rodrigo Carreiro

Você está no cinema, mas nem se dá conta disso. Com as luzes apagadas, mergulhou tão profundamente no universo ficcional, que abstraiu a realidade à sua volta. Como parte da plateia, está absorto na história que está sendo contada. O personagem principal despertou sua empatia; você se importa com ele, sofre junto, torce para que ele alcance seus objetivos. No entanto, antes que isso aconteça, as luzes se acendem. O filme terminou. Suas expectativas não foram saciadas. Naturalmente, você se aborrece e amaldiçoa o que lhe parece apenas um capricho do diretor, ou uma moda narrativa inconsequente: os finais abertos, em que o destino do protagonista ou o desfecho do enredo não são conhecidos por completo. Mas será que se trata somente de um capricho? Será apenas uma moda que roteiristas e cineastas vão acabar deixando de lado num futuro próximo? Ou os finais abertos, que parecem cada vez mais populares, têm uma razão de ser e vieram para ficar? O filme mais discutido de 2010, A origem (Christopher Nolan), disparou um debate a respeito da onda de finais abertos no cinema contemporâneo. Se você assistiu ao longa-metragem, sabe que a imagem que o encerra, um pião girando em cima de uma mesa, focalizado em close-up, foi pensada estrategicamente pelo diretor e roteirista para plantar uma dúvida a respeito da natureza da realidade daquele momento, para Cobb,

personagem de Leonardo DiCaprio. (Aliás, o ato de inserir uma ideia no público espelha a própria encenação ao longo das 2h30 de projeção.) Desde o lançamento do filme, Nolan vem sistematicamente se negando a tirar essa dúvida e a responder se Cobb estava sonhando ou não. Para o criador do filme, a possibilidade de que cada espectador reflita e tire suas próprias conclusões sobre o final enigmático é muito mais rica e interessante do que seria proporcionado por uma conclusão fechada.

RECURSO ANTIGO

Embora possa parecer novidade para muita gente, a técnica do final inconclusivo é antiga. No entanto, por muitas décadas, ela foi relativamente pouco utilizada – sobretudo no cinema, uma mídia de massa – porque o grau de rejeição por parte do público sempre foi historicamente alto. Os finais abertos, aliás, já tiveram um precedente histórico que vale a pena mencionar. Do ponto de vista narrativo, a literatura romântica do século 19 adotou essa técnica de maneira bem mais enfática do que ocorria anteriormente. Romances bem diferentes, como o inglês A volta do parafuso (Henry James, publicado em 1898) e mesmo o nacional Dom Casmurro (Machado de Assis, publicado em 1899), utilizaram essa técnica, em que o autor deixa a cargo da imaginação de cada leitor uma decisão narrativa crucial que a conclusão da obra não encerra.

No cinema, finais abertos foram evitados dentro da estrutura narrativa clássica, que, segundo a pesquisadora norte-americana Janet Steiger, foi consolidada por volta de 1917. Steiger, que sintetizou os principais recursos dessa estrutura narrativa em livro escrito a seis mãos com Kristin Thompson e David Bordwell, afirma que a causalidade – grau de relação de causa e efeito estabelecida entre dois ou mais eventos de uma trama – sempre foi um elemento extremamente importante na dramaturgia cinematográfica. Mais importante até do que na literatura, por causa do caráter mais compacto da narrativa audiovisual, em que os elos que compõem o enredo precisam ser comprimidos em apenas duas horas. É por isso, diz ela, que os filmes com finais ambíguos são bastante raros até a década de 1960, quando uma variação dessa técnica passou a ser praticada na Europa, sobretudo pelos diretores ligados ao movimento da Nouvelle Vague, entre os quais Jean-Luc Godard (Weekend à francesa, Viver a vida) e François Truffaut (o encerramento de Os incompreendidos, com um frame congelado do rosto do ator Jean-Pierre Léaud, permanece até hoje como um dos exemplos mais simples, intrigantes e discutidos de finais abertos). Outro importante teórico do cinema, David Bordwell, aponta a nova onda francesa como marco histórico que impulsionou a poética cinematográfica para um novo patamar narrativo, em que as relações de causa e efeito entre

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divulgação

Página anterior 1 truffaut

O ator JeanPierre Léaud no encerramento de Os incompreendidos (1959). O diretor deixou seu público intrigado com a cena final do longa Nestas Páginas

2 a origem Recentemente, o filme provocou debate sobre a onda de finais abertos no cinema

Claquete os eventos que compõem a trama são mais frágeis, mais ambíguas, e interpelam constantemente o espectador para que participe de modo mais ativo da resolução das peripécias dramatúrgicas propostas pelos roteiros. A partir daí, os finais ambíguos passaram a se tornar mais comuns, nas mais diversas cinematografias: europeia (os já citados filmes de Godard e Truffaut), norte-americana (2001 – Uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick; O tiro certo, de Monte Hellman; Manhattan, de Woody Allen; Operação França, de William Friedkin; Faces, de John Cassavetes) e em países periféricos como a Austrália (Piquenique na montanha misteriosa, de Peter Weir) e a Polônia (Não amarás, de Krzysztof Kieslowski).

OBJETO DE ESTUDO

Reconhecido como uma técnica narrativa proeminente e sofisticada, o final inconclusivo passou a ser objeto de estudo acadêmico a partir da década de 1990. O primeiro pesquisador a estudar os usos cinematográficos dessa técnica e agrupá-la em categorias foi o professor Richard Neupert, da Universidade da Georgia (EUA), que escreveu um livro sobre o tema. Tomando como base os trabalhos de Truffaut e Godard, ele

dividiu os filmes com finais abertos em duas categorias. Da primeira, mais numerosa, fariam parte obras que não oferecem uma resolução satisfatória para a trama, mas procuram fechar o discurso narrativo, apontando com clareza ao espectador o encerramento da fase da vida do personagem principal focalizada no filme. Esse discurso narrativo fechado seria reconhecível para a plateia, ainda que inconscientemente, através do uso de ferramentas como a música e a montagem. A segunda categoria, mais rara, englobaria filmes em que tanto a trama quanto o discurso narrativo permaneceriam abertos a múltiplas interpretações. É o caso de obras como A fita branca e Caché (ambos de Michael Haneke), de alguns episódios do Decálogo (Kieslowski) e do oscarizado Onde os fracos não têm vez (Joel e Ethan Coen). Um filme que exemplifica perfeitamente a primeira categoria é o já citado A origem. Outros filmes recentes que também geraram debates a partir de finais inconclusivos, e cujo discurso narrativo é claramente fechado, são O profeta (Jacques Audiard), os dramas românticos Antes do amanhecer e Antes do pôr do sol (Richard Linklater), O lutador (Darren Aronofski), Perdido na

escuridão (Alejandro Amenábar) e a sua refilmagem americana Vanilla sky (Cameron Crowe). A maior parte dessas obras propõe duas leituras possíveis do final, mais ou menos como fazia o antigo programa da TV Globo Você decide: há duas possibilidades de interpretação das cenas de encerramento, e o espectador pode optar por uma delas. De novo, A origem é um exemplo paradigmático: o pião girando permite ao espectador pensar que Cobb está sonhando ou não. O filme não esclarece esse ponto. Fãs integrantes de fóruns e blogs de cinema espalhados pela internet esquadrinharam minuciosamente o longa-metragem, buscando pistas que pudessem oferecer uma resposta definitiva à questão, mas tal resposta não foi encontrada, porque o diretor, Christopher Nolan, esperava que esse boca a boca pós-sessão pudesse alimentar o marketing viral a respeito da obra, aguçando a curiosidade das pessoas e levando mais gente a ver o filme. Em outras palavras, o final aberto também pode funcionar, atualmente, como uma peça de marketing agregada à própria narrativa do filme, algo que nem Truffaut e nem Godard imaginavam há quatro décadas. Coisas do século 21.

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INDICAÇÕES DRAMA

DIREITO DE AMAR

Direção de Tom Ford Com Colin Firth, Julianne Moore, Nicholas Hoult, Matteew Goode, Jon Kortajarena The Weinstein Company/ Paris Filmes

O estilista Tom Ford fez de Direito de amar (A single man) um filme calculado e detalhista. Entre figurinos elegantes e belos atores, apresenta a história de um professor universitário homossexual que tenta conviver com a perda do seu companheiro. O nostálgico George (Colin Firth, indicado ao Oscar de Melhor Ator) planeja o seu suicídio e, ao mesmo tempo, percebe que a vida ainda pode ser interessante.

COMÉDIA

DRAMA

Direção de Anna Muylaert Com Glória Pires, Paulo Miklos, Alessandra Colasanti, Dani Nefussi, Marisa Orth, Lourenço Mutarelli, Antonio Edson PlayArte

Direção de Oren Moverman Com Ben Foster, Jena Malone, Eamonn Walker, Woody Harrelson, Yaya DaCosta Paris Filmes

INVESTIGAÇÃO SOBRE UM CIDADÃO ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA

Oren Moverman apresenta um ponto de vista diferenciado sobre a guerra, ao mostrar a fúnebre realidade dos “mensageiros da morte”, soldados que têm a missão de informar, aos familiares, o falecimento dos combatentes. Ben Foster foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Ator Coadjuvante, mas ainda é Woody Harrelson, no papel do capitão Stone, quem mais se destaca pela frieza de suas ações.

Um dos clássicos do cinema político italiano, revela as manobras de quem está acima da lei. O drama conta a história de um chefe de polícia que assassina sua amante e tenta incriminar um jovem esquerdista. Um ponto curioso é a presença da atriz brasileira Florinda Bolkan.

É PROIBIDO FUMAR

Depois do estranho e divertido Durval Discos (2002), a diretora Anna Muylaert acertou em mais uma produção. Após conhecer Max, um músico de restaurante (vivido pelo titã Paulo Miklos), Baby, uma dona de casa solteira (Glória Pires), tem a chance de transformar sua vida. Em tom de comédia, É proibido fumar foi um dos destaques de 2009 e colecionou prêmios e elogios.

O MENSAGEIRO

DRAMA

Direção de Elia Petri Com Gian Maria Volonté, Florinda Bolkan, Gianni Santuccio Versátil/ Columbia Pictures

Memória

PARA REENCONTRAR CLAUDE CHABROL divulgação

O cinema francês perde mais um dos remanescentes da Nouvelle Vague. O cineasta Claude Chabrol (1930-2010) faleceu em plena atividade: havia lançado seu último filme, Bellamy, em 2009. Na sua vasta produção – são mais de 80 filmes –, o polêmico diretor fez críticas à burguesia, apoiado numa estética inovadora. Mas diversos dos seus filmes ainda são desconhecidos pelo público brasileiro. Para popularizá-los, a Lume Filmes já havia relançado o suspense Alice (ou A última fuga) e planejava dar continuidade ao projeto, antes mesmo de sua morte, em setembro, com mais duas obras: Nas garras do vício (1958) e Os primos (1959), que devem entrar no mercado em novembro. As produções foram as primeiras da

carreira de Chabrol e investigam as contradições e conflitos da burguesia interiorana francesa, segmento social que foi objeto de estudo do diretor em toda sua filmografia. Acusado de realizar filmes essencialmente comerciais e se afastar do circuito alternativo e cult do cinema europeu, principalmente na metade da década de 1960, com títulos como A espiã de olhos de ouro contra o Dr. Chantal, Chabrol teve a carreira mais irregular entre os companheiros da Nouvelle Vague. Admirador de Hitchocock, ele assimilou do cineasta o interesse pelos thrillers, gosto evidente em obras como A besta deve morrer (1969) e O açougueiro (1970), sendo esta última considerada, por muitos críticos, a sua melhor produção. (Dora Amorim)

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Vovó

matéria corrida José Cláudio

artista plástico

A gente não chamava ela de

vovó (com perdão do português Ir. Eugênio, meu professor de português no Marista, pelo atentado à gramática mas, vamos e venhamos, “a chamava” não dá mais). Para todos os netos espalhados por Sirinhaém, Camela e Ipojuca o nome dela era Mãe Joquinha. (Tenho uma sobrinha-neta afim nascida e criada na Espanha, embora os quatro avós brasileiros, lusófona desde criança, não consegue dizer, nem distingue, “vovô” de “vovó”; seu aparelho auditivo só registra “ô”; limitações da língua de Dom Quixote.) No meu livrinho, livrinho mesmo, sob todos os aspectos, mais um registro de fatos diversos, Ipojuca de Santo Cristo, não butei nada sobre meus avós (depois que vi num ex-voto antigo, aqui mesmo nesta revista, numa bela caligrafia de letras caudatas, butou, resolvi adotar este nosso patrimônio, mesmo porque, sempre que vou escrever, fico em dúvida se é com o ou com u). Hoje mesmo me lembrei de Mãe Joquinha. Acho que, por forçá-la muito na pintura, no fim da tarde estava sentindo a vista escurecida. Mãe Joquinha vivia dizendo que estava com a vista escurecida. Lembro ela tentando enfiar a linha na agulha, seus polegares parecidos com os meus. Vejo seus dedos ágeis no jogar dos bilros,

às vezes com uma mão só (por que não se usa mais “ũa”, como Altamiro Cunha, o último a fazê-lo?) enquanto a outra trocava, com rapidez incrível, os alfinetes em cima da almofada (como é, Cacilda Matias, encontrou na internet o soneto: “...Nena chora/ fazendo sua renda de almofada”?). Eram meus avós maternos Cândido Miguel Teixeira Pinto, mesmo sobrenome do nosso primeiro poeta Bento mas sem as mesmas prendas, nem as boas nem as más (será que sou descendente?), Vovô Cãido, e Joana Graciana de Albuquerque Pinto, Mãe Joquinha, belos nomes, em ambos os casos e que meu pai resumiu num modesto Silva, apesar de nome do nosso atual presidente e do ilustre pintor Dom Diego Rodríguez da Silva y Velázquez, por conta de sua mãe galega. Mas eu poderia me chamar José Cláudio de Albuquerque Teixeira Pinto da Silva, pintor ainda por cima se merecesse o apodo, mesmo que fosse pintorzinho, como o do italiano Pinturicchio ou o espanhol Ribera conhecido na Itália como Spagnoletto, ou Masaccio, Tomasão em italiano, todos maravilhosos artistas: mas quem sou eu, em vez de estrela pobre vagalume. Vovô Cândido, inda alcancei com uma vendinha mínima na rua

Página ao lado 1-2 duas gerações

Pai Cândido e Ramira, em 1929. Mãe Joquinha não deixou foto

de Camela e uma casa respeitável, frontão bonito ao que me lembre, porta e duas ou três janelas, lá no alto da calçada junto da Igreja de Sto. Antônio, onde o poeta Domingos de Albuquerque, de Ipojuca, viu o dente do demônio na boca de Cazuzinha (“Meu Deus que sorte essa minha/ na festa de Santo Antônio/ver o dente do demônio/na boca de Cazuzinha”), senhor do Engenho São Paulo. Ele sentava de noite na calçada e ficava olhando as moças que passavam no leito da rua, como se andava antigamente quando não havia, ou quase não havia, carro. Flagrado por Mãe Joquinha, fez que não estava enxergando direito e perguntou: “Joquinha, quem é que vai ali que não estou enxergando direito?” Mãe Joquinha sabia que ele sabia, até demais, de quem se tratava... Tinha a voz cava, quase afônico, no que lembrava a de um de seus filhos, Zezé, de quem herdei o apelido. Como se chamaria esse meu tio, se havia outro filho chamado José, José de Albuquerque Pinto, de apelido Zé Pequeno? Quem poderia me dizer, se todos já se foram? Perguntei a minha prima Nelma, que mora em Camela. Ela foi ao cartório de Camela e descobriu: José de Albuquerque Pinto Irmão.

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FOTOS: Álbum de Família

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É porque todo menino que nascia laçado tinha que se chamar José. Tiveram seis filhos e seis filhas. Zezé, tocador de violão, que morreu solteiro ainda moço, de tuberculose, em Camela; Manoel, que vim a conhecer em São Paulo, trabalhando ele como servente de estação na Sorocabana até aposentar-se, casado com uma “italiana gorda” como na fantasia de um samba que Paulo Vanzolini gostava de cantar: “Vou marcar meu casamento/é por esses dias/é com uma italiana gorda/mas não sei se ela queria/se a gorda não quiser/caso com a magra mesmo/ casar com italiana gorda/isso é fantasia”; Filó (Philogônio) que também morreu moço relativamente, casado com Rubenita, ainda hoje professora em Camela; Zé Pequeno, que trabalhou na loja do meu pai Amaro Silva em Ipojuca, casado com Zezé, filha do Sargento Aguiar, delegado de Rio Formoso; Agostinho, o mais velho, que nunca saiu de Camela, casado com Linda, tendo sido barraqueiro do Engenho Aratanji (uma vez, há dez anos ou mais, eu ia com Joca Souza Leão não sei bem para onde, passamos por Camela, vi Tio Agostinho e, como fazia anos que não nos víamos, pedi a Joca para parar o carro, descemos, fomos até

ele, cheguei bem junto e, olhando para ele, disse: “Olha, Joca, ele não está me conhecendo”, pensando de fato que ele não me reconhecera, e ele, por resposta, disse o dia do meu nascimento, tanto de tanto de 1932); e Raphael, por obra de quem torci pelo único time até hoje, o Tramways Futebol Clube, camisa verde e preta,

Lembro-me dela como uma mulher comprida,bem morena, cara amulatada, cabelos de escadinha longos ouvi dizer, que não me lembro mais: condutor de bonde, aquele que se pendurava no estribo cobrando as passagens, passando depois a caixa da mesma companhia, falecido aqui no Recife, morando na nossa casa na Rua de Santa Cruz, Boa Vista, até morrer andava cambaleando, “andar de marinheiro” diziam, fazendo um gesto como a querer segurar-se nos balaústres do bonde; e as filhas: Luizinha, a mais velha, casada com Manoel Caixeiro, como era mais conhecido Manoel Amâncio,

comerciante em Porto de Pedras, na beira do Rio Sirinhaém; Gasparina, casada com Antônio Lourenço em segundas núpcias dele, comerciante em Camela; Edith, casada com José Dias, fiscal do Engenho São Paulo quando eu ia passar férias em casa dele, depois no Engenho Burarema, em Cucaú, que me serviu de inspiração para o conto Novamente um galope, publicado então na revista A Cigarra quando eu tinha uns 18 anos; Ramira, minha mãe; Otília, casada com Neto (pai de Nelma) filho do primeiro casamento de Antônio Lourenço de Tia Gasparina; e Maria José, a caçula, casada com o dentista Antônio Bandeira. Vovô Cândido era bem moreno, da pele fina e cabelo bom, afilado, podendo ser confundido com um indiano, estatura mediana, mais para magro. Morreu idoso assim como Mãe Joquinha, esta de boa estampa, mais para alta para ser mulher, perna grossa, sem ser gorda: lembro-me dela como uma mulher comprida, talvez porque usasse saia quase arrastando, bem morena, cara amulatada, cabelos de escadinha que usava longos. Atribuo a ela meu gosto pela arte, e também a minha mãe que bordava a mão. Lembro umas rosas art déco num lençol branco feitas com linha meteoro mesclada, como as que ornam a capa do folheto Discrição do beijo, aliás “descrição”, como na primeira estrofe: “Leitor eu peço desculpas/ se a si não agradar/mas quero sua atenção/para poder relatar/porque este é meu desejo/dar a descrição do beijo/para quem apreciar”. O nome da mãe de Mãe Joquinha, minha bisavó pois, era Mãe Dona, casada com Manoel Rubina, que tomava conta da Detenção e morava lá dentro, no local, aqui no Recife. Informação de Nelma. Mãe Joquinha deve ter sido o primeiro ser humano que vi. Assim que acabei de nascer, às cinco da tarde, em Ipojuca, pegado pela parteira Mãe Vigu, que me entregou a Mãe Joquinha ao seu lado, a luz do motor acendeu e eu tomei um grande susto, concluindo Mãe Joquinha que minha vista era boa.

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Fotos: reprodução

Visuais 1

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PINTURA O Brasil de Bob Dylan

Exposição na Dinamarca mostra como o cantor enxerga as contradições do nosso país texto Dora Amorim

Bob Dylan afirmou, mais de uma vez, admirar o Brasil. Além de palavras, sua empatia ganhou formas figurativas numa

série de pinturas, que está sendo apresentada agora aos dinamarqueses, na exposição The Brazil series. Nela, o compositor e

cantor norte-americano retrata o Brasil que é considerado “exótico” aos olhos estrangeiros. Hoje, com 69 anos, Dylan não se acomoda à fama de ter sido o incendiário a revolucionar a cena musical norte-americana nos anos 1960. Ele continua a compor e a se apresentar em shows regulares, sobretudo em Nova York, onde mora, enquanto se dedica também à pintura, como atesta essa exposição. The Brazil series foi realizada por um convite feito ao cantor pela National

Gallery of Denmark, tendo sido aberta em setembro e permanecendo em cartaz até 30 de janeiro de 2011. Bob Dylan produz desenhos e gravuras há décadas e teve seu trabalho exposto, pela primeira vez, em 2007, no Museu de Chemnitz, na Alemanha, com a série The drawn blank series. Ele esteve no Brasil em 1990, 1991 e1998, para apresentações no Rio de Janeiro e em São Paulo. Em seu programa de rádio (Theme time radio hour), tentou fazer uma

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1 O INCIDENTE A cena é de um crime em favela carioca, mas o clima evocado é de filme noir 2 BAHIA Bob Dylan retrata a rua e seus personagens nas primeiras horas da noite

homenagem à música brasileira que conheceu, mas acabou dando uma declaração simplória, ainda que tenha ressalvado ser este um “país lindo”. O Brasil, para ele, é “o gigante da América Latina, onde não se fala espanhol e, sim, português”. A troca dos idiomas entre alguns estrangeiros reafirma a imagem estereotipada do país, na qual são colocados no mesmo nível – carnaval, futebol, samba, mulatas, corrupção pública e privada, turismo sexual, e, mais recentemente,

turismo em favelas. Aqueles que conseguem transcender esses primeros passos encontram mais uma “coisinha” ou outra por aqui. E quanto a Dylan, que imagem do Brasil ele leva à Dinamarca? Como qualquer estrangeiro, impressionado com a arquitetura dos morros, Dylan pintou as favelas cariocas em cores vivas, assim como belas mulheres com vestidos curtos e grandes decotes. Retratou a cena de um crime, numa atmosfera retrô e sombria de filme noir, a fachada de uma igreja da Bahia, um recorte de quarto de hotel, uma plantação de uvas. São as impressões de olhos atentos, embora essa visão não tenha ido além das bordas. Poucos questionam a genialidade de Dylan na música, entretanto seu trabalho como pintor vem recebendo críticas severas. Até agora, a exposição foi bastante questionada pela imprensa dinamarquesa especializada. Independentemente das possíves qualidades dessa série, o que parece interessante do ponto de vista local é: por que o Brasil? The Brazil series foi produzida em 15 meses e resultou em 40 pinturas em acrílico sobre tela e oito desenhos. Até agora, nenhuma instituição nacional mostrou interesse em trazer a individual ao Brasil.

Exposição

AS ALTURAS DE FLEMMING Um ano depois, Alex Flemming volta a expor no Recife. Desta vez, a série Alturas, em cartaz na Galeria Amparo 60 (fone: 81.3033.6060), até o dia 6 de novembro. Embora tenha usado modelos “vivos” na realização das pinturas, como a cantora Elba Ramalho e o escritor Eduardo Galeano, as obras não são figurativas, mas abstratas. Os “retratados” ficaram descalços diante das telas, enquanto Flemming os media, demarcando linhas que iam dos pés à cabeça de cada um deles. O artista posicionou mais de um colaborador diante do mesmo suporte, e o resultado obtido são pinturas em que fundos texturizados destacam linhas e variadas intervenções gráficas. A busca da uma abordagem conceitual e crítica marca a trajetória de Flemming. Em vários momentos, o artista lançou questionamentos de teor político e religioso usando o corpo humano como matéria-prima ou referência. Um exemplo disso é a série Body builders, de 2002, em que abdômens definidos representam mapas de regiões mundiais em conflito. Em Tapetes voadores, estampou aviões com pedaços de tapetes orientais, associando o poder tecnológico bélico ocidental a uma matéria plástica que evoca um dos mais emblemáticos itens da cultura oriental (aqui podemos ressalvar que se trata do ponto de vista de um ocidental). Alturas não persegue a densidade política desses trabalhos anteriores, mas o artista afirma, com ele, discutir a transitoriedade da vida. (Thiago Lins)

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maíra gamarra e rafa medeiros

Leitura

gêneros A poesia está morta? Viva a poesia!

Hoje, o Brasil não apresenta poetas em listas de vendagens de nenhum tipo. Segundo os editores, poemas não vendem TEXto Fernando Monteiro

São mais de 10 mil os poetas brasileiros em atividade neste momento. O número exato vai sendo atualizado pela carioca Leila Míccolis, numa espécie de censo, digamos, “poeternético”, no portal de literatura e cultura Blocos on Line. “É muuuito poeta”, diria o desprezo intenso de nossa perplexidade. Apesar disso, as editoras do Brasil fogem de poesia como o diabo foge da cruz. Para elas, “livro de poesia” é algo indigesto, azarento e – numa

palavra – maldito, porque “poesia não vende”, segundo a sentença unânime dos editores (mesmo que alguns nunca tenham experimentado incluir poetas nos seus catálogos de autores). Falsamente pesarosos, eles costumam balançar a cabeça, como se estivessem de fato lamentando: “Poemas, amigo, não vendem m-e-s-m-o”. Sequer para a metade da metade (dois mil, quinhentos e trinta e poucos) dos poetas recenseados pela paciente Míccolis?...

A lista, algo telefônica, de Leila com certeza não esgota o universo da população lírica e/ou épica deste país de Lula. Devem existir ainda mais bardos do que a moça até agora conseguiu diligentemente pesquisar (com direito às respectivas siglas dos Estados, no caso de homônimos), a partir dos poemas – publicados – que chegaram ao seu conhecimento. Suponhamos, então, que seria de boa dedução estatística estimar que um bom número de bardos fique de fora da surpreendente listagem. Seja como for, pelo menos maracanamente falando, os 10 mil poetas juntos não decepcionariam em qualquer estádio de futebol – a paixão, maiúscula por excelência, dos brasileiros aparentemente desapaixonados da poesia escrita para além das pernas tortas dos Garrinchas de hoje. Versos tortos ou certos, metrificados ou “livres”, longos ou curtos, nada disso – dá-se como certo – nem minimamente parece ser do interesse atual da minoria que compra livros, cá em Pindorama. Então, é chegada a hora

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entre nós, com a primeira edição de uma antologia da sua poesia metafísica esgotada no primeiro mês do lançamento (o que a fez entrar para a lista dos “mais vendidos” da revista Veja de 12 de agosto daquele ano). Quase 30 anos depois, o Brasil literário pós-Paulo Coelho não apresenta poetas em listas de vendagens de nenhum tipo. Há um mistério qualquer aí. Vamos, então, voar um pouquinho para fora da “taba”, a fim de ver se dá para entender por que a poesia tornou-se a gata borralheira entre todos os gêneros de consumo menos ou mais imediatos, nas megalivrarias rendidas ao novo deus Moloch: o Mercado supremo sobre todas as coisas.

ISOLAMENTO DA POESIA?

de perguntar: aconteceu alguma coisa com a poesia? Ela perdeu importância? Alguma vez já a teve? O bonde da história literária teria atropelado os vates gauches na vida? Na contramão disso, sabemos que versos como os do paraibano Augusto dos Anjos seguem ressoando na memória popular, através de estrofes que são quase “mantras” decorados pelos bairros do vício lírico do Brasil profundo. E o nosso amor pelos Castros Alves dos navios negreiros – e outros barcos bêbados – de quando em vez emerge do mar que não estaria para peixe, na praia da poesia. Até bem pouco tempo, um velho senhor com copo de uísque na mão (Vinicius de Moraes, plural até no nome), era chamado de Poetinha, carinhosamente, e vivia cercado de belas mulheres, além da admiração de todos iguais a você (que-maravilha-viver), quando ainda não havíamos penetrado neste áspero país que agora despejou os coleguinhas de Vinicius das estantes e gôndolas das megastores da vida. É claro que continuamos a encontrar poetas em todas as esquinas

Já em 1978, o Los Angeles Times anunciava que iria deixar de apresentar resenhas de livros de poemas (sem falar dos repentistas, que estão noutro patamar de recepção). O problema não é encontrá-los “ao vivo”, mas achar – agulha no palheiro – quem os edite, regular e teimosamente, para leitores alegadamente interessados noutros gêneros de literatura. A poesia estaria morrendo, antes do livro (vir a) morrer? Ou nós é que estamos assassinando algo associado aos versos, dentro do peito capaz de pulsar ao ritmo deles, até há pouco tempo? Poeta requintado – se não algo hermético nas metáforas –, o americano naturalizado inglês T. S. Eliot, no segundo semestre de 1981, estava sendo lido amplamente

Num ensaio de 1941 (O isolamento da poesia moderna), Delmor & Schwartz debruçavam-se sobre o desprestígio dos poetas nos EUA, e diziam ser dos próprios poetas a parcela maior de culpa: “Não se trata da simples questão de não ter o poeta uma plateia, pois isso é um efeito, e não uma causa, da natureza da poesia moderna”. Trocando em miúdos: para a dupla de ensaístas, a obscuridade da “nova poesia” havia afastado os leitores. Matizando a questão, o respeitado Randall Jarrell, numa conferência pronunciada em Harvard, preferia culpar a cultura pós-moderna: “O poeta do nosso tempo vive num mundo cujos jornais e revistas, livros e filmes, estações de rádio e estações de televisão destroem em inúmeras pessoas até mesmo a capacidade de entender poesia real, arte real de todo tipo”. A essa altura, é preciso lembrar ao leitor que, com o desenvolvimento da teoria romântica nos séculos 18 e 19, nós veríamos avançar pela 20ª centúria a tendência – bem-examinada pelo crítico Yvor Winters – de “suprimir o racional na poesia e, tanto quanto possível, neutralizar igualmente o emocional”. Grande poeta inglês, Philip Larkin radicalizou tal ponto de vista, ao acusar a “aberração do Modernismo”, que teria “envenenado – nas suas palavras – todas as artes”. Para mim, a questão excede as práticas literárias modernas, e

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1 À Procura da poesia No poema, Carlos Drummond de Andrade distingue os verdadeiros poetas dos amadores

poderia ser pressentida já ao tempo em que um poeta-mestre venerável como Walt Whitman ressaltava, no final do século 19, que “para se ter (grandes) poetas há que se ter também grandes públicos”. Tudo bem, porém seria possível ver tal impasse pela lente invertida, conforme o fez Karl Shapiro, preocupado com a perda de excelência: “Talento poético verdadeiro é muito raro, mesmo nas melhores épocas, e as plateias não costumam reconhecê-lo de imediato”. Onde estariam, hoje, esses talentos verdadeiros e/ou raros, entre os poetas? Paradoxalmente, há tal abundância de (má) poesia na internet, por exemplo, que a rarefeita “superioridade”, aqui, desaparece sob a maré da banalidade a sugerir o efeito perverso da contrafação: leitores se afastam do que abunda na cara deles. Mesmo na área da poesia impressa, talvez fosse oportuno recordar que, já em 1978, um jornal importante como o Los Angeles Times anunciava que iria deixar de apresentar resenhas de livros de poemas, simplesmente pelo fato de ser impossível dizer quais eram os importantes. Duas décadas antes, a voz – sempre altissonante – de Edmund Wilson trazia a questão para o centro do ensaio É o verso uma técnica agonizante?. Wilson olhava em torno, na América pós-Poe, e lamentava não divisar “nenhum portento realizando o melhor de sua obra em versos”, embora ressaltasse que Robert Frost havia caminhado para escrever poemas que, em sua essência, “eram quase tão narrativos como os romances preferidos pelo leitor norte-americano médio”.

divulgação

Leitura

CONTEÚDO NOVELESCO

Não só os americanos se preocuparam, criticamente, com o declínio da audiência para a forma poética. Entre os italianos, Pier Paolo Pasolini

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apontou diretamente para os efeitos do que ele chamava de ditadura do “fascismo da cultura de massa”, sem apresentar soluções outras senão a do desespero que chegou, no seu cinema, ao sem-saída de Salò – os 100 dias da Sodoma, enfiada na Gomorra da gangorra do tempo: quantidade violentando a qualidade encurralada na vulgaridade brutal de nossa época. Em termos estritamente de poesia, coube ao espanhol Dámaso Alonso acenar com uma nesga de “solucionática” (para citar o poeta “Dadá Maravilha”): seria a de retornarmos ao poema narrativo. Nesse tipo de poema – necessariamente longo – haveria, ou teria que haver, uma espécie de

“contenido novelesco”, nos termos colocados por Alonso: “Tal contenido é o que atrai o hoje hegemônico leitor de romances, reforçado pela força também narrativa do cinema”. Alonso sugeria pelo menos a tentativa de conquistar esse leitor, para a poesia, pelo retorno ao fio narrativo através do qual se “desnovelara”, no tricô inicial da literatura, uma Ilíada, uma Divina comédia, um Paraíso perdido e outras obras magnas, todas de conteúdo “novelesco”. Como poeta, eu próprio optei por tal caminho no livro Vi uma foto de Anna Akhmátova (Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2009). Nele, um banal acontecimento desencadeia a longa narrativa em versos: alguém

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INDICAÇÕES descobre, numa antologia da moderna poesia russa, uma foto da Akhmátova, investigada como se estivesse no centro de algum mistério, exigindo a decifração transformada em weltanschauung ou visão de mundo. Com ou sem uma possível volta à narratividade, o poeta laureado Donald Hall nos elucida mais cinicamente sobre a rejeição de poesia, pelo menos na sua geração americana: “Depois do curso superior, muitas pessoas deixam de ler poesia contemporânea. Por quê? Envolvem-se em suas atividades profissionais e se afastam gradualmente do Templo do Verso. Anos depois, olhando com atraso para o cenário poético, dizem-nos que a poesia está morta. Elas é que abandonaram a poesia, porém acusam-na de havê-las abandonado. Na verdade, elas lamentam o seu próprio envelhecimento. Não o fazemos todos? Só que alguns de nós não culpam os poetas”. Era um recado direto para o eminente crítico Joseph Epstein, que havia acabado de publicar o polêmico ensaio Who killed poetry?. E Hall concluía, em clima otimista: “Enquanto a maioria dos leitores e dos poetas concorda que ‘ninguém lê poesia’ (e todos nos aquecemos com o fogo gregário de nossa arte solitária), uma multidão de ninguéns começa a reunir o grande público que Walt Whitman procurava”. No começo da década de 1990, isso referia o resto da “maioria silenciosa” – hoje nem tão silenciosa assim, no “semfronteiras” da internet. Provavelmente, virá a

ser dessa a última palavra sobre a sobrevivência da poesia no mundo inteiro, pois é no nicho virtual que o verso está entrincheirado atualmente, embora na massa informe dessa terra de ninguém em que afundam poetas verdadeiros confundidos com poetastros amadores esquecidos da sábia advertência de Carlos Drummond de Andrade (no poema Procura da poesia): “Não faças versos sobre acontecimentos./ Não há criação nem morte perante a poesia./ Diante dela, a vida é um sol estático,/ não aquece nem ilumina./ As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam./ Não faças poesia com o corpo,/ esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica./ Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro/ são indiferentes./ Nem me reveles teus sentimentos,/ que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem./ O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”. O grifo é nosso. E os versos de CDA prosseguem, o poeta de Itabira a dizer o que precisa ser dito para que possamos ainda dar o “viva” à poesia (como na resposta ao grito “O rei está morto! Viva o rei!”), velha arte subsistindo, apesar de tudo, não só como fundamento das outras, mas talvez se preparando para assistir, quem sabe, às exéquias de todos que, nesta hora, voltam-lhe as costas como leitores, ou apresentam-lhe as deformadas corcundas de editores dobrados sob o peso do Mercado, a esfinge que nos devora enquanto a deciframos (Ó, bravo e saudoso Editor Massao Ohno!, a quem este texto é dedicado).

ENSAIO

POESIA

Cosac Naify

Record

NICOLAU SEVCENKO A Revolta da Vacina

BRUNO TOLENTINO As horas de Katharina

Uma história de injustiças sociais é pontuada por revoltas populares. É sobre uma delas, ocorrida no início do século 20, no Rio de Janeiro, que trata o ensaio, escrito no início dos anos 1980 e, agora, relançado com revisão do autor. Quando surgiu, o texto trazia o tom de desagravo oportuno àqueles anos de reabertura. Hoje, incita nos leitores a necessidade de politização.

A mais conhecida obra do poeta, falecido em 2007, encontra reedição em que se destacam apresentação, comentários e notas; além da inclusão da peça inédita A andorinha, ou: A cilada de Deus. Bem afirma Alcir Pécora que não há motivos para desconhecer a obra desse poeta maior, seja por motivos frívolos, teológicos, ou por lhe parecer anacrônica a poesia metrificada.

ENSAIO

ROMANCE

JERUSA PIRES FERREIRA Cultura das bordas Ateliê Editorial

A professora de Jornalismo da ECA/ USP tem investido na pesquisa de publicações populares para encontrar o que ela denomina de “cultura das bordas”. Nelas, estariam em contato as tradições orais e a indústria cultural, em produtos voltados para as periferias urbanas. É disso que tratam os artigos reunidos neste volume.

JOSÉ CASTELLO Ribamar Bertrand Brasil

Exercício deleitante para o autor, e para o leitor que aprecia experimentações, a mistura de gêneros reincide na literatura contemporânea. Neste Ribamar, o ensaísta e ficcionista exercita o mélange, em que o romance ora se assemelha à biografia do pai, a um livro de viagens, ou a um ensaio. Há ainda uma marcação musical no ritmo dos capítulos.

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divulgação

Sonoras 1

instrumental Herança de Nova Orleans no Nordeste do Brasil Recife Jazz Festival consolida-se como propulsor de intercâmbio entre músicos internacionais e apresenta novas ações, como concurso e palestra texto Thiago Lins

Depois de três anos na Torre de

Malakoff, e outros três no Pátio de São Pedro, o Recife Jazz Festival ocorre, pela primeira vez, no Teatro de Santa Isabel (cujos 160 anos serão celebrados na ocasião). Trata-se de “um ambiente mais propício para o evento”, afirma Alex Corezzi, idealizador e produtor do RJF, para quem “os ruídos externos

e até conversas paralelas” dos outros locais interferiram na qualidade dos espetáculos. Ao contrário da gratuidade das edições anteriores, agora, o evento terá entrada paga. Nesta edição, também, o festival contará com um concurso de bandas, o Tremplin Recife Jazz, que ocorre até novembro. O grupo vencedor ganhará

24 horas de gravação em estúdio no Recife, mixagem e masterização na Argentina, e prensagem de mil cópias em SMD (Semi Metallic Disc, alternativa ao CD, barata e eficiente). O Tremplin (trampolim) ratifica a importância do RJF como vitrine para bandas menos experientes. A “rodada de negócios” do festival vai ser a palestra do argentino Jorge Sadí, vice-presidente do portal de música latina Farolatino, sobre a possível criação do acesso pago ao You Tube, um assunto cujo interesse transcende a apreciação do jazz. A sétima edição do RJF continua apostando no intercâmbio entre o Brasil e a França, trazendo atrações do país, como Paris Jazz Underground e X’Tet Bruno Regnier. O primeiro é um coletivo que, apesar de formado recentemente, reúne seis músicos experientes. São eles: David Prez, Robin Nicaise e Amy Galen

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INDICAÇÕES 011 paris jazz

underground

Todos os membros do coletivo têm carreira solo

(saxofones), Romain Pilon e Sandro Zerafa (guitarras) e Karl Jannuzka (bateria). Antes da formação do Paris Jazz Underground, seus integrantes já somavam 10 títulos em discografias individuais, e foi pensando na expansão desse público disperso que os músicos criaram o novo grupo, conforme atestam no MySpace. Já o X’Tet Bruno Regnier é uma big band, capitaneada pelo maestro que empresta o nome ao grupo. Regnier foi premiado em 1999 no concurso de composições de La Defense, o maior “trampolim” do jazz naquele país, segundo o saxofonista Alex Corezzi. Ele lembra que, entre os nove membros, do X’Tet, “há um espaço grande para a individualidade”; cada um dos integrantes, que também são detentores de carreiras-solo, possui um momento reservado no show. Além de Regnier, o grupo é completado por Sébastien Texier e Rémi Dumoulin (saxofones e clarinetes), Olivier Themines (clarinetes), Alain Vankenhove (trompete), Matthias Mahler e Jean-Louis Pemmier (trombones), Alexis Therain (viola), Frédéric Chiffoleuau (baixo) e Guillaume Dommartin (bateria). Os franceses formam o grupo de frente do festival, que ainda conta com atrações da Argentina (o saxofonista Ricardo Cavalli, considerado o melhor do seu país), Cuba (o pianista Alejandro Vargas) e Chile (o guitarrista

Raimundo Santander, também premiado em sua terra natal), além das atrações locais, como o próprio Corezzi. Ele conta que o embrião do festival foi o Quintas da Boa Música, o extinto evento que começou a coordenar em 2000, reunindo bandas de jazz com ingressos a preços populares no Teatro da UFPE (Zona Oeste do Recife). Dois anos depois, o produtor partiu para a França, onde se especializou em jazz na American School, em Paris. Foi lá que ele conheceu o Paris Jazz Festival (que no ano passado reuniu 140 mil pessoas). A França detém o segundo maior mercado do gênero no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos (o polo, Nova Orleans, ainda se recupera do furacão Katrina, que arrasou a cidade em 2005). “Os franceses tem rádio-jazz 24 horas por dia, tanto para os contemporâneos quanto para os tradicionais”, afirma Corezzi. A França também publica, exclusivamente, a maior revista dedicada ao estilo no mundo, a Jazz Magazine, que enviou correspondente ao Recife no ano passado, para cobrir o RJF. O produtor sublinha que o simples fato de “existir” constitui uma das realizações do RJF, que, já na primeira edição, em 2003, lotou o Pátio de São Pedro, no centro do Recife. Corezzi sustenta que o festival ainda é jovem, com muito para crescer. Ele adianta que pretende estender o calendário para as edições posteriores, com mais shows (a programação deste ano conta com oito atrações) e palestras.

ROCK ERUDITO

CAMERATA BRASIL Ernesto Nazareth Biscoito Fino

A BANDA DE JOSEPH TOURTON A Banda de Joseph Tourton Coquetel Molotov

Com o objetivo de homenagear o compositor Ernesto Nazareth, a Camerata Brasil lança um CD com algumas de suas obras. A orquestra, surgida de um projeto social, demonstra profissionalismo e excelência ao executar um conjunto de valsas, polcas, tangos e choros do compositor. O disco, idealizado e dirigido pelo regente Marcelo Bratke, evidencia a pluralidade de um músico que percorria o popular e o erudito com a mesma destreza.

O grupo é uma das gratas novidades da cena cultural pernambucana. Seu rock instrumental, inicialmente comparado à sonoridade da banda Mombojó, atinge identidade própria, que pode ser conferida neste primeiro álbum, com 10 faixas autorais. Merece destaque a participação dos integrantes da banda Móveis Coloniais de Acaju e do pianista Vitor Araújo, nas faixas A festa de Isaac e 100 metros, respectivamente.

SAMBA

TANGO

ROBERTA SÁ E TRIO MADEIRA BRASIL Quando o canto é reza Universal

Os sambas do compositor Roque Ferreira foram gravados pela intérprete Roberta Sá, acompanhada dos instrumentistas Marcello Gonçalves, Zé Paulo Becker e Ronaldo do Bandolim, integrantes do refinado Trio Madeira Brasil. O projeto é composto, em sua maioria, por músicas inéditas. As regravadas ganharam arranjos novos, como é o caso da canção Água da minha sede, hit de Zeca Pagodinho. O CD parece confirmar a asserção do Poetinha de que o bom samba é mesmo uma forma de oração.

VICTOR BIGLIONE Tangos tropicais Biscoito Fino

O CD Tangos tropicais, do argentino Victor Biglione, reúne 11 músicas consagradas do cancioneiro brasileiro, mas propõe experimentação nos arranjos. Nas mãos do talentoso guitarrista, composições famosas de Chico Buarque, Tom Jobim e Roberto Carlos ganham versão instrumental de tango. O ritmo intensifica a carga dramática de músicas como Tatuagem e Retrato em branco e preto, num trabalho que indica a rica possibilidade de reinvenção da música brasileira.

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teatro infantil Coisa de criança, coisa de adulto

Elevação da qualidade das encenações questiona os limites da compreensão do mundo equivalentes à faixa etária, aproximando os públicos TEXto Rafael Teixeira

Palco Um menino vive, desde que nasceu,

com a mãe, numa casa isolada na floresta – até que chega a idade de ir à escola. Agora, em contato com outras pessoas, ele começa a se comportar de forma estranha. Entre os sintomas, uma inexplicável euforia diante do vermelho do vestido da professora e um apreço sem igual por carne crua – que pode ser da amiguinha da classe. A mãe se desespera, embora já previsse o fato. O pai do garoto, que ele nunca conheceu, era um ogro – o que faz de seu filho também um ogro, com os seus comportamentos típicos. Com toques de drama familiar e suspense psicológico, este não é Shrek. É Ogroleto, protagonista da peça da canadense Suzanne Lebeau, cuja montagem brasileira, dirigida pela dramaturga Karen Acioly, cumpriu temporada de oito meses de sucesso (novembro de 2009 a julho deste ano), no Rio de Janeiro. Ambos, pais e filhos, saíam encantados com o espetáculo e, quanto a isso, a autora não se surpreendia. “O que eu aprendi, em todos esses anos trabalhando com crianças, é que não são elas que impõem os limites do que pode ou não ser dito. São os adultos”, diz a dramaturga, que viu a versão brasileira de sua peça vencer, no início do ano, em quatro categorias do Prêmio Zilka Salaberry, o mais importante do teatro infantil no país: melhor peça, direção, ator (Maurício Grecco) e atriz (Carolina Kasting). Suzanne Lebeau é hoje considerada uma das agentes de um movimento

na cena teatral carioca pela elevação do nível de qualidade da dramaturgia infantil. Diretora artística da companhia de teatro Le Carrousel, ela já recebeu diversos prêmios por sua contribuição ao teatro para crianças. Uma contribuição na qual são apagados os limites entre o que se destina aos pequenos e o que, aparentemente, só serviria para os mais velhos. No Brasil, esses frágeis limites também são objeto de debate e estudo entre profissionais da área. E não faltam iniciativas no sentido de fundi-los. É o caso de João Falcão, diretor de peças adultas como A máquina, Clandestinos e Ensina-me a viver, emprestando seu olhar cheio de melancolia adulta a produções infantis como O pequenino grão de areia e A ver estrelas. Ou do grupo Atores de Laura, que já encenou dramaturgos como Molière, conferindo humor inteligente a O barbeiro de ervilha, adaptação para crianças da ópera O barbeiro de Sevilha, de Rossini, que também leva adultos a gargalhadas. Ou da companhia Teatro de Anônimo, cujo mais recente espetáculo, In conserto, com três palhaços no palco, tem piadas voltadas para adultos (e só compreendidas por eles), mas diverte também as crianças. Na direção do prestigiado Festival Intercâmbio de Linguagens (FIL), que teve sua última ediçao em julho na capital carioca, e reunindo companhias de todo o mundo, Karen Acioly se empenha a cada ano na fusão desses dois mundos. E enfrenta reações curiosas. “Sempre que realizamos o FIL

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ou quando nos esforçamos para criar um bonito espetáculo, muitos pais nos perguntam: ‘Mas isso é para crianças ou é para mim?’. Acho interessante tal questão, de muitos adultos separarem interesses. Por que separar, se podemos unir?”, indaga Karen.

Primeiras Experiências

Um dos pioneiros desse debate, Ilo Krugli, fundador do grupo Ventoforte, lembra-se de um episódio ocorrido durante a apresentação de uma de suas peças, que revelou como a mente da criança pode estar além do que um adulto possa imaginar: “Em uma cena, um rei enviava os guardas para rasgar os poemas que os atorespoetas inventavam com o público. Os

guardas, terríveis e repressores, fuzilam os poetas. Foi quando uma criança discutiu com um ator que fazia um guarda:‘Vocês não vão matar todos os poetas, porque não podem matar os poetas que ainda não nasceram!’ ” Com base nessa muito particular sabedoria infantil, Karen Acioly rejeita a ideia de que o teatro para crianças deva ser obrigatoriamente mais raso do que o para adultos, como se houvesse um código para se fazer entendido por indivíduos ainda em formação. “As crianças são bem mais dotadas que nós, adultos, em suas percepções e sabedoria. Para fazer teatro infantil, são necessários ingredientes que as crianças têm de forma abundante e generosa: inteligência, sensibilidade, bom gosto,

abertura, sinceridade, curiosidade, profundidade e, sobretudo, potência de vida”, diz Karen, levando em conta as perguntas que uma criança faz a si mesma quando se vê diante de um mundo hostil e injusto como o dos adultos. “De que maneira podemos contribuir para que suas curiosidades apontem caminhos mais abertos?”, indaga-se. O teatro que estimula a curiosidades, que apura o senso crítico e estético e que atinge as emoções íntimas é para todos. Suzanne Lebeau tem opinião semelhante: “Toda vez que conseguimos quebrar o silêncio em torno da criação para crianças temos uma importante vitória. O silêncio é tão denso, tão pesado, e os adultos responsáveis pelas crianças, motivados por boas intenções,

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1 A ver estrelas Os atores Arlindo Lopes e Fernanda de Freitas, em cena no premiado espetáculo musical infantil, que tem texto e direção de João Falcão Nesta página 2 Ogroleto

Montagem brasileira da peça da canadense Suzanne Lebeau, dirigida por Karen Acioly, conquistou quatro categorias do Prêmio Zilka Salaberry

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3 In Conserto O mais recente espetáculo da companhia Teatro de Anônimo tem piadas voltadas para adultos, mas diverte também as crianças 4 O barbeiro de ervilha

Adaptação para público infantil da ópera O barbeiro de Sevilha, de Rossini, feita pelo grupo Atores de Laura, que já encenou dramaturgos como Molière

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têm tantos preconceitos com relação ao que podemos ou não dizer a elas... Temos que analisar o teatro enquanto adultos, falando sobre os personagens, as imagens, a coerência, a linguagem”, aponta. “Se a peça não é boa para adultos, não será para crianças. E não podemos negar que nós, adultos e crianças, vivemos no mesmo mundo e carregamos as mesmas questões existenciais durante toda a vida.”

Temas a tratar

Apesar dessas defesas, há concordância entre os agentes da cena teatral quanto a certos assuntos não caberem no teatro infantil, sobretudo temas que estimulem a erotização precoce. “Não dá para sexualizar o universo da criança

como se ela tivesse o mesmo enfoque de um adolescente ou adulto. Só vai conturbar os signos de seu universo em formação”, diz o jurado do Prêmio Zilka Salaberry, Caique Botkay, que toma Ogroleto como exemplo de que o teatro infantil não precisa ser ingênuo: “É uma fábula sobre a infinita inadequação da formação interna do jovem, o tumulto do crescimento, com as revelações dos impulsos e desejos mais primitivos que habitam o Ogroleto de todos nós – é a grande discussão. E aqui podemos incluir morte, canibalismo, ódio, vingança, cobiça, inveja e todos os sentimentos ditos proibidos e negativos, velhos conhecidos desde a Grécia Antiga”. Diretora teatral e dramaturga, Lucia Coelho é outra profissional

que há anos se vê nesse debate. Seu primeiro espetáculo infantil, Tá na hora, tá na hora, é de 1978. E, como Botkay, ela aposta em um teatro infantil corajoso frente a temas adultos. “Nos primeiros anos de vida, já tivemos contato com o amor, a dor, o prazer, o medo, a alegria, a rejeição. O teatro é uma fantasia da vida, em doses equivalentes às idades e às experiências. É preciso tratar as emoções com verdade. A dor dói, não adianta disfarçar. Mas a dose é temperada de acordo com os limites da idade e da compreensão. A realidade e a fantasia se equilibram e se complementam porque elas têm o mesmo grau de importância no fazer teatral e na vida”, observa Lucia.

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Fabiano Sobreira A ARQUITETURA e a ONDA VERDE

O discurso em torno de práticas ambientais, verdes, ecológicas ou

Fabiano Sobreira

é arquiteto e urbanista

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sustentáveis (termo que varia conforme a “linha retórica” – e não necessariamente “teórica” – escolhida) definitivamente já entrou no universo da Arquitetura. Podemos atribuir uma parcela dessa “onda verde” a uma preocupação coletiva crescente com o meio ambiente, motivada e estimulada pela crise ambiental e energética, ou a preocupações mais racionais e objetivas, como a economia de recursos. Mas outra relevante parcela – e talvez a mais forte – está relacionada ao interesse mercadológico e publicitário pelos “ecoprodutos”, e a Arquitetura tem sido inserida como mais uma linha na prateleira. Os empreendedores – e também os arquitetos – descobriram que o marketing em torno do “consumo sustentável” poderia ser aplicado também à Arquitetura, e que os “selos verdes” seriam uma forma de orientar o “consumidor”. Como consequência, tem-se observado nesse campo artístico o início de um processo que nasceu no marketing em meados dos anos 1980: o greenwash. O termo se refere à estratégia de marketing com o objetivo de aumentar a venda e a visibilidade de um produto, baseadas em uma falsa imagem ecológica do mesmo. Uma prática questionável, portanto, que tem conduzido os arquitetos por caminhos pouco éticos, em que a propaganda ou imagem publicitária associada ao aspecto “verde” do projeto oculta problemas intrínsecos de qualidade arquitetônica. Seriam os “selos ecológicos”, por exemplo, mais uma forma de greenwash na Arquitetura? A grande referência internacional, no que diz respeito à certificação ambiental de edificações e empreendimentos, é o Leed (Leadership in Energy and Environmental Design). Os críticos acusam-no de greenwash, por se fundamentar prioritariamente na utilização de novas tecnologias e produtos, pela orientação ao consumo e ao mercado, pela pouca ênfase no projeto e pela ausência de uma contextualização local. Se seguirmos a “cartilha da certificação”, proposta pelo Leed, projetos que simplesmente seguem os princípios lançados por Armando de Holanda, em seu Roteiro para construir no Nordeste (que já ensinava a construir de maneira sustentável antes mesmo da onda verde), não obteriam as classificações máximas propostas pelo selo. O mesmo ocorreria com boa parte da arquitetura moderna brasileira, como é o caso das obras dos arquitetos Luís Nunes, Delfim Amorim, Acácio Gil Borsoi, entre outros. Da mesma forma, não teria lugar, na classificação do selo, a “arquitetura do povo”, como “as casas sobre palafitas do Amazonas”, descritas por Joaquim Cardozo, em 1955, como “uma arte de construir que, atendendo às contingências de acidentes topográficos diversos e às dificuldades econômicas das populações mais humildes, é quase sempre realizada com espontaneidade singular, caracterizando-se, sobretudo, pelo emprego de materiais de fácil aquisição e mais adequados à aplicação local”. Enfim, os projetos podem até se utilizar da certificação ambiental como instrumento de referência, mas nunca devem se limitar a ela. Caso contrário, a Arquitetura – como no greenwash – será apenas um instrumento para a promoção de empreendimentos e iniciativas que já nascem insustentáveis, camuflados pela retórica da onda verde.

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