Continente #048 - Feminismo

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EDITORIAL

Bettmann/Corbis

Manifestação multirracial de mulheres contra discriminação, no Texas, EUA, 1977

Senhoras dos seus destinos

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a edição de outubro passado, publicamos uma carta que comovera a Redação: “Meu nome é Rebecca, tenho 14 anos. Gostaria de parabenizá-los pela ótima Revista, levando em consideração tamanha surpresa ao deparar-me com a edição nº 43 (Julho 2004), que trazia na capa a Olga Benario (corrijo-me, a atriz Camila Morgado, em seu papel). Por inúmeras vezes, li coisas sobre a mesma em uma das minhas tantas pesquisas na Internet, mas nada que supere esta matéria já citada. Aproveito para pedir maior presença feminina nesta Revista; vocês bem que podiam fazer uma matéria sobre feminismo, não é mesmo? E sem deixar de lado seus grandes nomes: Simone de Beauvoir, Rocío Fernandez. Mulheres históricas: Hipátia de Alexandria, Joana D’Arc. Mulheres literárias: Cecília Meireles, Clarice Lispector... Há uma infinidade de mulheres que fizeram da própria vida um ‘eterno campo de batalha pela paz’, e não apenas travaram lutas contra a TPM ou com o próprio corpo. Rebecca Carvalho, Recife – PE”. Não obstante vir dedicando amplo espaço a escritoras, artistas plásticas, historiadoras, atrizes, ensaístas, cantoras, poetisas, antropólogas, arquitetas – como personagens ou autoras de artigos –, resolvemos levar em conta as sugestões da jovem leitora, a começar pela matéria de capa desta edição: o feminismo. Decorridas

décadas desde que as mulheres do mundo, tendo as norte-americanas como força motriz, além de avançarem nas conquistas que se acumulam em lutas imemoriais, construíram uma fala feminina, que balanço pode se fazer do movimento? O jornalista Daniel Piza alerta para o fato de que a palavra feminismo ter saído de moda pode ser um sinal positivo e, sem omitir os equívocos do movimento e o contingente de mulheres ainda hoje discriminadas, indica o saldo positivo da luta feminina. Ao mesmo tempo, nos EUA, a jornalista Gail Collins lança um livro – America’s Women – 400 Years of Dolls, Drudges, Helpmates and Heroines (Mulheres dos Estados Unidos – 400 anos de Bonequinhas, Burras de Carga, Domésticas e Heroínas) – em que analisa a trajetória das compatriotas na luta pelos seus direitos, concluindo, com serena isenção, que “a liberdade das mulheres é um fato consumado”. Todos concordam em que, por aqui e outras partes, muito resta a ser feito. Mas o caminho da emancipação está sendo traçado pelas próprias mulheres no seu caminhar. E como a Revista está comemorando, este mês, quatro anos de existência, a equipe pegou o mote de Rebecca e dedica integralmente esta edição às mulheres, realçando a sua contribuição, em todas as manifestações da arte e da cultura, para a elevação não do seu gênero, mas da espécie humana. • Continente dezembro 2004

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CONTEÚDO Reprodução

Bettmann/Corbis

37 A arte reconhecida de Camille Claudel

12 Mulheres protestam em favor do aborto, em Roma, 1977

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CONVERSA

CINEMA

08 Maria Rita Kehl: “A repressão ao gozo foi

48 Os filmes poderosos da argentina Lucrecia Martel

substituída pela obrigação de gozar”

CAPA 12 A saga libertária das mulheres norte-americanas

PERFIL 54 Marlene Dietrich: a vida de uma das maiores divas do cinema

Conquistas e equívocos do movimento feminista

LITERATURA 24 Ao escrever, a mulher atinge a liberdade Escrita feminina ganhou corpo e forma na Literatura Antologia reúne 25 mulheres escritoras NARRATIVA 34 Adriana Falcão conta as aflições de uma mãe e sua filha adolescente

POESIA 35 Jussara Salazar fala do verão e do mar

ARTES 37 A vida trágica da escultora Camille Claudel

MÚSICA 66 As agruras de Elis Regina nos anos cinzentos da História brasileira As Chicas: vozes novas na Música Popular Brasileira CÊNICAS 78 A primeira-dama do Teatro Pernambucano, Geninha da Rosa Borges TRADIÇÕES 84 Festival de Bonecos reúne 30 grupos nacionais e internacionais HISTÓRIA 92 Nísia Floresta: coragem e ineditismo de idéias Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br

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CONTEÚDO

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Reprodução Toinho Belmot/Divulgação

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A invasão dos bonecos

O mito Marlene Dietrich

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Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 07 A sociedade americana entre o ódio e o medo

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 20 As distâncias entre o Teatro e o povo

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 46 Envolver os objetos de aura é uma necessidade do ser humano

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 62 Os alimentos do povo de Deus

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 65 Um tiro no Palácio do Catete, há meio século

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 Macujê: O lugar onde compreendi o significado da palavra arrogância

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96

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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Altino Cadena

Diretor Industrial Rui Loepert

Continente

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Revisão Maria Helena Pôrto Secretária Tereza Veras Gerente da Gráfica e Editora Samuel Mudo Gestor Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Daniel Sigal, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 3217–2524; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

Dezembro Ano 04 | 2004 Foto: Dennis Scott/Corbis/Stock Photos

Colaboradores desta edição: ADRIANA FALCÃO é escritora e roteirista de televisão e cinema, autora, entre outras obras, de A Máquina e A Comédia dos Anjos. ARTHUR AGUIAR é jornalista. CONSTÂNCIA LIMA DUARTE é professora, doutora em Literatura Brasileira na UFMG e especialista em literatura de autoria feminina. DANIEL PIZA é editor-executivo e colunista de O Estado de S.Paulo e autor, entre outros, de Jornalismo Cultural e Paulo Francis. EDUARDO GRAÇA é jornalista, foi repórter do Jornal do Brasil, O Dia e colaborador de O Estado de S. Paulo e Valor Econômico. Desde julho vive e trabalha em Nova York. FÁBIO ARAÚJO é jornalista. FERNANDO MONTEIRO é escritor, poeta e cineasta. KLEBER MENDONÇA FILHO é crítico de cinema do Jornal do Commercio (Recife) e videasta. Fez o filme Enjaulado e criou o site www.cinemascopio.com.br. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Poemas e Vigílias. LUIZ AUGUSTO REIS é jornalista e professor de Teatro, mestre em Comunicação Social e doutorando em Teoria da Literatura. LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA é romancista, pesquisadora de Literatura Feminina, presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. MAURO ROSSO é ensaísta, pesquisador e professor de Literatura Brasileira. Prepara uma edição comentada de Contos Femininos de Machado de Assis. PAULO POLZONOFF JR. é jornalista. Trabalhou nos jornais Rascunho e Jornal do Estado, ambos de Curitiba. SÉRGIO LUZ é jornalista e radialista. WEYDSON BARROS LEAL é poeta, crítico de arte e autor, entre outros, de O Aedo.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta e crítico de arte. Autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes, Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar. Ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “a víbora”. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Marco Maciel – Uma História de Poder. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias e Faca.

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CARTAS Descoberta Há muito, um amigo aqui de Campo Grande indicara-me a Revista. Da última vez, deu-me o canhoto para assinatura. Foi a oportunidade de conhecer e constatar que existem publicações sérias fora do eixo Rio/São Paulo, sensibilizando-me para a dimensão cultural de nosso país e a integração das idéias. Pelo que consta, este é o quarto ano e o número quarenta e seis da Continente, mas, para mim, que guardo a novidade da descoberta, é o primeiro. Por se tratar de um trabalho cujo perfil merece respeito por sua abrangência e profundidade nas diferentes manifestações culturais, fica a certeza de que estarei divulgando a Revista entre meus amigos. Samuel Xavier Medeiros, Campo Grande – MS

A catraca roda Meu Deus! Sim, foi Ele quem escreveu pelas mãos do professor Fernandes (Coluna “Contraponto” / Edição nº 47). Conscientização, juventude! Amor às suas vidas, isso é a única coisa de valor que realmente temos! Qualquer dúvida, perguntem ao professor, ele tem uma linha direta com o Divino. Valeu, “professor cabra macho”. Marcus Vinicius, Recife – PE A volta da pintura Sou artista plástica, assinante da Revista Continente, e quero parabenizá-los pelas excelentes matérias: “A confiança no poder da estética”, de Alessandra Simões, e “O mérito de não ser estridente”, de Daniel Piza. Edineusa Bezerril, Rio de Janeiro-RJ

A inquietação Vital 1 Simplesmente espetacular! Parabenizo a Revista pela reportagem “A Inquietação Vital” (Nº46), que ressalta o grande artista Vital Santos, mostrando aos leitores o potencial do nordestino, que antes de tudo é um forte! Vital Santos é um gênio do teatro brasileiro e ainda precisa ser reconhecido. Marilia de Dirceu Rosal, via e-mail A inquietação Vital 2 Parabéns, Luís Reis, pela matéria!!! Ficou muito boa. O ótimo fotógrafo Hans Manteuffel também fez bonito. Parabéns pela competência de todos que fazem a Continente. Cleyton Cabral, Olinda – PE A inquietação Vital 3 Parabenizo a redação pela feliz reportagem referente ao caruaruense Vital Santos. Acompanhei sua trajetória nos bons tempos da Feira de Caruaru e conheço seu potencial artístico. Maria Dorotea, Caruaru – PE Riqueza Sempre que posso, pego a Revista de “arrego” na escola de um amigo que tem uma assinatura, o que às vezes é difícil porque não tenho muito tempo... Gostaria de dizer algo que já sabem: vocês colaboram para o enriquecimento da nossa cultura, inclusive já dei aulas com algumas matérias da Continente. Parabéns! Joseilson Marcelino de Lima, Goiana – PE Excelente Caros amigos, sou professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Parabenizo-lhes pela excelente Revista Continente, está excelente o material que vocês publicam. José Romero Araújo Cardoso, Natal – RN

Os observadores da lama e do caos 1 Escrevo daqui de Campinas – SP, local onde os tambores do inicial e do atual manguebeat (Mombojó, Bonsucesso, Ed, Monjolo etc.) ecoam com força. Gostei muito da matéria, está muito bem escrita e argumentada, vocês estão de parabéns! Porém, ainda penso que falta comentar trabalhos científicos realizados no Brasil; por exemplo, no ano de 2001 foi defendida uma tese de doutorado na PUC-SP sobre sincretismos da cultura popular, por Carlos Benedito Rodrigues da Silva, professor de antropologia da UFMA. Esta pesquisa não é específica sobre o movimento manguebeat, mas pode-se fazer uma boa relação. Danilo Balthazar Silva, Campinas – SP Os observadores da lama e do caos 2 Finalmente, uma matéria jornalística deu o aval aos mangueboys, pois, em 1993, os jornais do Recife não davam um pio sobre este movimento. Depois que outras capitais deram a vez a Chico Science é que os pernambucanos começaram a prestar a atenção no mangue. Bela reportagem! Fernanda Raposo, Recife – PE

redacao@continentemulticultural.com.br Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife-PE CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax

Culturas nacionais Acredito que faltam ao médico e escritor alguns conhecimentos antropológicos (Coluna “Entremez”/ outubro2002). Fazer tais citações de Carpentier, que invalidam muito de sua obra, que traz muito nacionalismo e que inclusive nos remete a características ímpares latino-americanas. Acredito que a cultura é intrínseca a nós e que não a praticamos somente para que atinja um nível mundial. Pode ser, sim, que não tenhamos uma cultura nacional, mas possuímos inúmeras culturas n a c i o n ai s . Discordo inclusive de Carpentier em sua afirmação de que São Paulo é igual a outras capitais mundiais. Pelo visto, jamais se deu conta das inúmeras culturas paulistas que existem em cada pedaço dessa cidade. Fernanda Paupério, via e-mail Som do mundo Mesmo postos pela mídia de massa como extremos inalcançáveis, qualidade e quantidade estão adentrando os mui extensos dicionários da Veneza brasileira. Digo isso, após ter a oportunidade de ver o novo trabalho da Nação Zumbi: o DVD Propagando. Quando cito o paradigma qualidade/quantidade, não me refiro diretamente à venda e comercialização de discos; falo da aceitação, da queda dos preconceitos, da desmistificação do que é verdadeiramente música. Noel Rosa já dizia: “O bom samba não é da cidade nem do morro. O bom samba é do coração”. Precisamos desse amplo conceito para entendermos que não há mais espaço para isolacionismo, bairrismo ou qualquer “ismo” que traga atraso e retrocesso. Não fazemos somente “o som de Pernambuco”. Fazemos som do e para o mundo, sem barreiras nem limitações. João Guilherme de Melo, Recife – PE Continente dezembro 2004

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CONTRAPONTO

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Carlos Alberto Fernandes

A vitória do terror O terror contribui para a violação psíquica da sociedade e transforma-se num negócio que movimenta a economia

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té o dia 10 de setembro de 2001, os Estados Unidos tinham um Presidente sem carisma e legitimidade, resultado de um pleito contestado pelos incidentes eleitorais da Flórida. O atentado de 11 de setembro colocou, na vitrine do mundo, Bin Laden – como o mal a ser extirpado. E George Bush como o grande líder de uma nação ferida e amedrontada. Daí em diante, toda a sociedade americana passou a viver o seu transe de ódio e de medo. Legitimado pela comoção mundial e pela mistificação da propaganda, Bush concentrou todas as ações estratégicas de seu governo no combate ao terrorismo. Nas vezes em que a avaliação da opinião pública sobre suas ações bélicas declinava, Bin Laden aparecia em todos os vídeos e renovava suas ameaças aos judeus e ao povo americano. Nos últimos dias de campanha, quando o senador John Kerry avançava nas pesquisas de opinião, Bin Laden reapareceu nos vídeos do mundo, fazendo novas ameaças. Era a mão providencial do fantasma do terror que os republicanos precisavam para consolidar a acachapante vitória do conservadorismo americano. Afinal, é a mistificação da propaganda política que mantém os segmentos conservadores da sociedade americana aflitos e reféns de si próprios. Embora os contextos e as raízes históricas das causas sejam diferentes e o tipo de violência seja o do terrorismo de Estado, as raízes da violência no mundo, mesmo com relação ao conflito palestino, têm uma só identidade: discriminação étnica, pobreza e desigualdade social. No Brasil, e em quase toda a América Latina, não é diferente. Quando se conta o número de mortos da nossa tragédia social, a sociedade brasileira mantém-se igualmente ferida e amedrontada. A discriminação contra a pobreza e a desigualdade social atinge níveis dramáticos e se transforma em espaço fértil para o crescimento descontrolado da criminalidade. Tratase de uma nova modalidade de terror. Do terror sem Estado. Do terror sem causa. De um terror que se alimenta da impunidade, da corrupção dos sistemas de justiça e segurança e do oportunismo político. Todavia, é bom lembrar que o clima de instabilidade social gerado pela insegurança, contraditoriamente, gera oportunidades de negócios e potencializa investimentos. Gera poder. E

isso não é a melhor conseqüência para nossa sociedade que cada dia mais exalta os negócios e os resultados materiais que o modelo neoliberal conservador proporciona. A exemplo dos Estados Unidos, onde a ação contra o terror beneficia setores estratégicos da economia (indústria bélica e petrolífera) e amplia espaços geopolíticos de dominação, o combate à violência no Brasil movimenta setores ligados à indústria da segurança e atrai para o mesmo espaço dos negócios policiais ligados a esse mercado, empresários e políticos. Desmond Boylan/Reuters

Manifestação antiterrorista e a favor da reeleição do presidente americano, em Nova Deli

O terror que contribui para a violação psíquica da sociedade transforma-se num negócio que movimenta a economia e se incorpora, de vez, aos discursos dos governos e dos políticos de todos os matizes. Com o andar da carruagem, cada vez mais fica visível que a sociedade aflita vai sendo vítima dos seus próprios fantasmas. A percepção da insegurança gera uma realidade que aterroriza. E nada indica que nós também não sejamos vítimas da vitória do terror e, como ocorre nas favelas, não capitulemos aos caprichos da criminalidade e nos submetamos à mistificação da propaganda, elegendo homens comuns, sem carisma, ligados a grupos empresariais que apóiem a luta contra a violência como pilar fundamental de suas campanhas políticas. • Continente dezembro 2004


Monalisa Lins/AE

MARIA RITA KEHL

A sociedade no divã A psicanalista Maria Rita Kehl analisa o discurso feminista, a espetacularização da notícia e a obrigação do gozo Arthur Aguiar


CONVERSA

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acientes adultos da psicanalista paulista não são os únicos a terem analisadas suas mentes, suas motivações, sua forma de pensar e agir. Com uma área de estudo muito mais ampla, Maria Rita Kehl também é poeta e ensaísta, e se torna uma analista social, tentando compreender fenômenos, explicações intrínsecas, motivações, manipulações e ações coletivas dos brasileiros. Doutora em psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Kehl já escreveu sobre feminismo, mídia, sexualidade, além, naturalmente, da psicanálise. É autora de Sobre Ética e Psicanálise, A Mínima Diferença – O Masculino e o Feminino na Cultura, Videologias, entre outros. Nesta entrevista, feita via e-mail a pedido da psicanalista, que diz divagar e fugir ao ponto em entrevistas feitas pelo telefone, ela fala sobre a importância dos movimentos feministas para a diminuição de diferenças entre os gêneros, a influência da mídia sobre a sociedade, sexualidade, e a alienação política dos jovens. Segundo ela, a repressão ao gozo, imposta pela ditadura militar, foi substituída, a partir dos anos 90, por uma pressão do mercado de consumo, que exige que todos sintam prazer permanentemente, mas a obrigação pode tornar o sexo uma atividade “sem graça”. Ela defende o fim dos estereótipos, diz que hoje a mulher já conquistou seu direito à fala e alega que os homens também sofrem com preconceitos sexistas. Qual a importância dos movimentos feministas para a diminuição da diferença entre homens e mulheres no último século? O efeito mais importante da interferência dos movimentos feministas na cena pública, desde o século 19, foi uma mudança discursiva. Mais do que as reivindicações sufragistas, os movimentos por equiparação salarial, as denúncias de violências contra a mulher etc., o que afetou o Ocidente pós-feminista foi a inclusão das falas das mulheres na vida social. As mulheres passaram a falar publicamente de si mesmas; com isso, deixaram de ser simples “objetos do discurso masculino”. Tornaram-se sujeitos, responsáveis por suas palavras. Não importa muito se o que disseram as principais líderes feministas nesses dois séculos estava certo ou errado. Quem se arrisca a falar sempre se arrisca a errar, tanto faz se é homem ou mulher. Mas quem fala em público passa a existir em público. Os movimentos feministas abriram lugar para a existência pública da mulher, além de terem criado um espaço de transmissão de saberes, de anseios, de sofrimentos e frustrações

femininos que permitiu que outras mulheres se reconhecessem, se identificassem, rompessem com o isolamento doméstico, identificassem as fontes de seu sofrimento e sua insatisfação. A culpa das mulheres que não se satisfaziam apenas com os papéis de esposa e mãe diminuiu muito, na medida em que cada mulher que sofria isoladamente ficou sabendo de milhares de outras que enfrentavam o mesmo problema. Que mudanças passam a ser a prioridade, neste início de século, para uma maior igualdade entre os gêneros? Hoje ficou mais claro que a única igualdade que interessa às mulheres, em relação aos homens, é a igualdade de direitos. Ainda há conquistas importantes nesse campo; há profissões em que as mulheres ganham menos que os homens, ainda existem áreas tradicionalmente masculinas em que as mulheres são discriminadas ou vistas com desconfiança. Mas os preconceitos sexistas atingem os homens também. Um garoto que pretenda se tornar bailarino, ou estilista, logo será considerado homossexual, porque essas profissões são tradicionalmente associadas às representações da feminilidade. De resto, o que importa não é tanto a igualdade, mas o respeito (mútuo) pelas diferenças. Isto diz respeito não apenas à diferença entre os gêneros, mas entre as pessoas, contadas uma a uma. Parece que, nesse começo do século 21, vivemos um retrocesso em relação a algumas conquistas dos anos 1960/70. Os padrões de “identidade sexual”, por exemplo, pelo menos nos meios de comunicação de massas, estão novamente mais uniformes, mais estereotipados. Mulheres que não se identificam com as imagens da feminilidade, homens que não se encaixam nos estereótipos masculinos, sentem-se inseguros, deslocados. Penso que o que seria realmente progressista, nesse aspecto, seria o desaparecimento dos estereótipos. Há uma diferença entre homens e mulheres que não deve ser desprezada; ela se refere às conseqüências psíquicas da diferença anatômica. Mas há centenas de maneiras pelas quais os homens e as mulheres, individualmente, podem construir seus estilos a partir dessa diferença. De que forma a mídia age sobre o comportamento sexual das pessoas? A televisão, e principalmente a publicidade, desde a década de 80, com o fim da censura e da ditadura militar, Continente dezembro 2004

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CONVERSA

Reprodução/AE

“Os padrões de ‘identidade sexual’ , pelo menos nos meios de comunicação de massas, estão novamente mais uniformes, mais estereotipados”

Cena do filme Billy Eliot, que mostra o preconceito sofrido por um garoto apaixonado pelo balé

substituíram a repressão ao gozo (típica de nossa tradição católica e provinciana) pela obrigação de gozar. A sociedade brasileira passou, muito rapidamente, de uma era repressiva (em todos os sentidos) para a era do consumo, da liberação dos costumes, marcada pela entrada no país de uma forte indústria do entretenimento, toda voltada para o público jovem. Ou melhor, para o “mercado” jovem. Parece-me que tudo o que, no início, foi vivido como uma liberação, hoje se transformou em um outro tipo de dever. O dever de se divertir sem limites, de ter muito prazer, muita sensualidade, muita sedução, muito gozo. Isso pesa sobre os adultos, mas principalmente sobre os adolescentes e jovens. Se o sexo se torna um dever, perde a graça. Fica compulsivo, em alguns casos, ou inibidor, em outros. É espantoso ver meninos de 18, 20 anos querendo tomar Viagra para “se garantir” junto às meninas. Nessa nova era de mercado, mídia e espetáculo, pode-sse dizer que a idéia do “penso, logo existo” passa a ser substituída pelo “apareço (na mídia), logo existo” ou “compro, logo existo” ? Essa pode ser uma boa formulação. Mas é importante lembrar que a afirmação da existência através da imagem – ou da esperança de um dia aparecer na TV – ou do consumo, são sintomas da falta de prestígio da política entre os jovens. A melhor maneira de se existir, no espaço público, é participando dele, interferindo na Continente dezembro 2004

vida da comunidade (ou do país), fazendo-se representar na disputa de interesses que caracteriza a ação política. A outra forma de “existir” publicamente é o desempenho profissional, que nos dá um lugar em sociedade, reconhecimento, respeito. A escassez de perspectivas profissionais para os jovens, assim como o esvaziamento do espaço público depois de muitos anos de políticas neoliberais, fizeram com que a “existência” dependa da imagem ou do afeto (familiar, conjugal etc.). As pessoas ficam muito desamparadas, desse jeito. Qual o lugar do jornalismo (impresso, especialmente) na sociedade do espetáculo? Temo que o jornalismo, para sobreviver, tenha que se render à lógica do espetáculo. Ou o que é pior: da publicidade. Cito um aforismo de um poeta espanhol/ carioca que conheço, Adolfo Montejo Navas, que escreveu um livro chamado Pedras Pensadas: “Já assistimos às notícias como se fossem publicidade”. Esta já é uma tendência do jornalismo escrito, em que as manchetes têm que chamar a atenção de um público pouco acostumado à leitura – por isso as notícias de capa dos grandes jornais e revistas brasileiros são escolhidas não por sua importância política, mas por sua carga de sensacionalismo. Mas o mais escandaloso acontece no telejornalismo, que tem que disputar espaço, a cada minuto, com a programação das outras emissoras. As notícias têm que ser espetaculares, sensacionalistas, e


sobretudo curtas. O tempo de atenção do telespectador é de menos de um minuto para cada assunto. Há muito pouco lugar, no horário comercial, para uma análise política mais detalhada, um debate sobre um fato polêmico, uma notícia que precise dar conta da complexidade de um acontecimento. Em 30 segundos noticia-se um golpe de Estado, para em seguida se mostrar um terremoto, o nascimento de Jovens no Brasília Music Festival Electronic: o dever de se divertir e a obrigação de buscar o prazer um panda no zoológico, terminando o “bloco” com um seqüestro espetacular ditadura militar, e ela foi desastrosa. A censura infanque, este sim, pode ser explorado mais longamente, tiliza a sociedade, ao tentar decidir, de cima para baiporque a violência e o medo são fortes recursos para xo, o que é bom para ela. prender o telespectador. O que é complicado com a qualidade da programação é que a sociedade vai se acostumando É possível ser objetivo numa análise da qualidade com o baixo nível da televisão, e já não sabe mais o da TV? O que é um programa de qualidade? Quem que reivindicar. A luta pela qualidade da televisão vai exigir muita discussão, muito debate público, define o que é baixaria? Não entendo bem o que você quer dizer com envolvendo inclusive a própria televisão – pelo me“objetividade”. Talvez você se refira à possibilidade de nos os canais públicos e estatais podem fazer isso, já se impor um padrão único de qualidade a toda a que as TVs comerciais não têm interesse. É preciso programação, atendendo a critérios “objetivos” sobre o que os diversos grupos de interesse que compõem a que é bom para a sociedade brasileira. Não é assim que sociedade civil se percebam não como meros “conpenso a questão da qualidade da programação. Os cri- sumidores”, nem mesmo apenas “telespectadores”, térios não são objetivos – são éticos, e também estéticos, mas agentes de mudança social. Os programadores ou seja: têm muito mais a ver com a subjetividade, com das emissoras argumentam que, se os programas de baixo nível têm audiência, é sinal de os anseios da sociedade, com o que consique isto é o que o público quer ver. Não “A censura deramos bom para nós. Não há como medir tenho tanta certeza. A televisão, no infantiliza a essas coisas objetivamente. Brasil, “educou” seu público de acordo sociedade, ao A sociedade é que deveria definir o que com os padrões que ela mesma criou. É tentar decidir, é qualidade e o que é baixaria, na televisão. preciso romper com este círculo viciode cima para Essa escolha jamais poderia passar por so, que vem embotando a capacidade baixo, o que é instâncias governamentais de controle; já de escolha da sociedade brasileira. • bom para ela” tivemos a experiência da censura, durante a Continente dezembro 2004

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Dida Sampaio/AE

CONVERSA


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CAPA

Poderosas mulheres A trajetória das mulheres americanas, cuja liberdade é um fato consumado e espelho para movimentos mundiais, é narrada como autêntica saga em livro de jornalista Eduardo Graça, de Nova York

G

ail Collins, 57 anos, tem um dos empregos mais invejados do jornalismo norte-americano. Depois de publicar sua coluna política nos mais importantes jornais de Nova York, ela se tornou a primeira mulher a exercer o cargo de Editora de Opinião do The New York Times, sendo responsável pelos editoriais mais influentes do planeta. Neste semestre ela voltou às páginas dos jornais ao lançar seu terceiro livro – America's Women - 400 Years of Dolls, Drudges, Helpmates and Heroines (Mulheres dos Estados Unidos - 400 anos de Bonequinhas, Burras de Carga, Domésticas e Heroínas), em que conta a história dos Estados Unidos através das mulheres. Em 556 páginas, Collins oferece uma visão mais celebratória do que raivosa das conquistas e tropeços da mulher norteamericana nestes quatro séculos de aventuras em terras de Tio Sam. America's Women começa com a imagem de uma mulher observando a vastidão do Novo Mundo da borda de um navio. Ela é Eleanor Dare, que, em um dia de verão de 1587, 33 anos antes da chegada do Mayflower e da primeira leva formal de colonizadores ingleses, dá a luz ao primeiro bebê inglês nascido nos Estados Unidos, a pequena Virgínia, na Carolina do Norte. Já em seu primeiro ato Collins mostra a que veio – a história das Dare acaba com o fracasso da colônia e o desaparecimento das duas primeiras mulheres norte-americanas. Collins conta menos uma história de como as mulheres se adaptaram a esta nova terra e mais de como os Estados Unidos vão se moldando a partir do caráter, da força, da ação e dos desejos destas mulheres. “Elas viveram o paradoxo de precisarem desesperadamente criar um lar e, ao mesmo tempo, encontrar uma maneira de desvencilhar-se dele para ganhar dinheiro e sobreviver economicamente” , disse a autora, em entrevista recente.

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Bettmann/CORBIS

Manifestação pela igualdade de direitos, Nova York, agosto de 1970

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CAPA O inimigo, aqui, não é exatamente o outro lado da humanidade e, sim, as próprias contradições da mulher ocidental – suas relações de amor e ódio com os afazeres de casa e a vida profissional, a educação dos filhos e a satisfação pessoal. A idéia de que o lugar da mulher é em casa foi incutido no imaginário americano com uma boa dose de hipocrisia, já que a maioria das mulheres, em todos os períodos históricos analisados por Collins, tiveram de trabalhar fora. “Sempre se dava a desculpa de que havia uma emergência nacional e as mulheres teriam de ajudar. Mas, aparentemente, vivemos em um estado de emergência permanente. Todas as vezes em que se precisou de um trabalhador alfabetizado ganhando um salário ínfimo, seja como professora, enfermeira, secretária, lá estavam as mulheres aparecendo como a resposta ideal”, lembra Collins. A autora apresenta um cenário diametralmente oposto para as negras americanas. Inicialmente escravas, mesmo depois do fim da Guerra Civil, elas travaram uma luta feroz para não entrarem no mercado de trabalho formal. Elas brigaram pelo direito de ficar em casa e criar seus filhos, para profundo desgosto dos brancos, ávidos por aquela mão-de-obra mais em conta. As índias, lembra Collins, deixaram pouca documentação, mas uma de suas personagens mais famosas, Pocahontas, ganha uma versão menos romantizada no livro de Collins. Para a jornalista, não há como negar que a necessidade foi o motor da emancipação lenta e gradual das mulheres. No século 17, a malária gerou hordas de ricas viúvas, que tiveram de tocar o negócio da família por conta própria. Para deleite do leitor, Collins constantemente leva sua narrativa para a vida cotidiana e familiar das mulheres norte-americanas. Assim, descobrimos que uma parte das sufragistas queriam o direito de voto para proibir o consumo de álcool e manter seus homens em casa, ao mesmo tempo em que brigavam para poder trabalhar fora. No primeiro ano do século 20, Carry Nation, que sofrera horrores nas mãos de um marido alcóolatra, ficou conhecida como a quebra-saloons, por invadir bares e destruir seu estoque de bebidas. Uma de Batismo de Virginia Dare, primeiro bebê a nascer em solo americano, em 1587

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Divulgação

CAPA

Gail Collins, autora de Mulheres da América: liberdade feminina é fato consumado

suas acólitas, May Sheriff, criou o grupo “O Esquadrão Voador de Jesus”, formado por cerca de 50 mulheres que se dedicaram a invadir bares por todo Oklahoma. E ensinaram, para suas filhas, um ditado ainda hoje popular na América Profunda – “Lábios que tocarem álcool jamais tocarão os meus”. As mulheres de Collins falam por si próprias. As irmãs Grimke, por exemplo, eram filhas de um senhor de escravos da Carolina do Sul e dedicaram suas vidas à causa abolicionista. Sarah e Angelina deixaram a fazenda dos pais e foram viver sozinhas no norte. Em 1834 elas lançaram o “Apelo às Mulheres Cristãs dos Estados Sulistas”, implorando às esposas que convencessem seus maridos de que a escravidão era um crime contra Deus, e pedindo a libertação incondicional dos escravos. O resultado foi a proibição de voltarem para sua Charleston natal. As Grimke davam uma média de cinco conferências por semana nas cidades do norte, sempre condenando a situação degradante dos negros no sul do país. Angelina ainda encontrou tempo para se casar, gerar três filhos e adotar os meninos que seu irmão mais novo tivera em um caso secreto com uma escrava. Archibald Henry e Francis James, que eram criados como escravos no sul, antes da adoção, foram dos primeiros mestiços a se formarem em Harvard e Princeton. Mas há muito mais. Há toda uma parte dedicada à tragédia de Salem, com as mulheres acusadas de bruxaria e brutalmente executadas. Há as incansáveis sufragistas Susan B.Anthony e Elizabeth Stanton. Há Deborah Gannett, que assume uma identidade masculina para lutar ao lado de seu marido na Guerra de Independência. Há Sarah Josepha Hale, editora das mais influentes revistas nos idos de 1830 e as reportagens sociais da lendária Jane Addams, uma das maiores jornalistas de seu tempo, na virada do século 19 para o 20. Collins fala também das divas românticas de uma certa América retratada por Hollywood que inspirou – mais pelo comContinente dezembro 2004

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CAPA O inimigo, aqui, não é exatamente o outro lado da humanidade e, sim, as próprias contradições da mulher ocidental – suas relações de amor e ódio com os afazeres de casa e a vida profissional

portamento de ícones como Ava Gardner e Marylin Monroe do que por suas posições políticas – gerações de mulheres nos Estados Unidos e mundo afora. Collins diz que a liberdade das mulheres no país é fato consumado, não há como voltar atrás. “Escrevi pensando em minha mãe, uma dona-de-casa que, durante a Segunda Guerra, trabalhou como operária em uma indústria armamentista. Tudo o que eu queria era não denegrir as conquistas das donas-de-casa e mostrar que também havia uma lógica para as mulheres que lutaram para não trabalharem fora – a casa era, afinal, o lugar em que elas teriam maior controle e exerceriam sem contestação o seu poder”, declarou Collins. Em 2000, as mulheres norte-americanas representaram 55% dos graduados em universidades em todo o país. Elas agora são executivas no comando de grandes empresas, ocupam lugares de destaque no Judiciário e vislumbram, na figura de uma ex-primeira-dama (a senadora por Nova York, Hillary Clinton, comparada pela própria Gail Collins, em sua coluna política, à sabe-tudo Hermione, da série Harry Potter), a possibilidade de em breve chegarem à presidência. America's Women tem seu suspiro final no exato momento em que o prefeito John Lindsay, de Nova York, anuncia a proibição do protesto feminista convocado por Betty Friedan. Exatos 383 anos depois do nascimento de Virginia Dare, a primeira norte-americana, o leitor é conduzido à Quinta Avenida. Milhares de mulheres se espremem nas calçadas dos dois lados da rua. Logo, elas começam a receber o apoio de avós, de pais com seus filhos e de muitos, muitos carrinhos de bebês. Estamos em 26 de agosto de 1970 e a juíza Dorothy Keaton, 80 anos, uma sufragista histórica, de braços dados com uma feminista radical usando o jeans da moda, é a primeira a desrespeitar a ordem do prefeito Lindsay e atravessar a rua. O resto é história e muito bem contada no livro de Gail Collins. Mais precisamente, no depoimento de Friedan: “Vi então que éramos muitas. Não havia jeito de a Polícia nos impedir de marchar pela cidade. Eu então fiz o sinal com minhas mãos por cima da minha cabeça e gritei com toda a força – TOMEM AS RUAS! Foi um momento incrível”. •

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Cena emblemática: jovem retira o sutiã em protesto, São Francisco, agosto de 1969


O feminismo saiu de moda. Viva o feminismo Mesmo tendo perdido força como ideologia, movimento conquistou avanços, apesar dos radicalismos e do fato de muitas mulheres não terem alcançado ainda um mínimo de cidadania Daniel Piza Continente dezembro 2004


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CAPA

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ma prova de que o feminismo saiu de moda é o simples fato de que hoje ouvimos e lemos bem menos essa palavra. Pode ser um sinal positivo: se falamos menos em feminismo, talvez seja porque a luta feminista já deu muitos resultados e tenha entrado em fase mais estável. Mas também um sinal perigoso: como ainda há bastante o que avançar em termos de igualdade entre homem e mulher, talvez fosse melhor que o tema estivesse mais em pauta. No entanto, com razoável freqüência vemos reportagens e opiniões na mídia a esse respeito, e há um acompanhamento quase sistemático de estatísticas como a que compara o salário deles e o delas. O que parece ter perdido força é o termo propriamente dito, o “ismo” – o feminismo como ideologia. A primeira ênfase, claro, é nos problemas que ainda restam. Além de as mulheres ainda ganharem menos e serem discriminadas em algumas profissões, muitos homens continuam a vêlas em segundo plano, quando se trata de grandes decisões. Qualquer um de nós já ouviu de algum amigo ou parente um desprezo incrível pelas qualidades de sua mulher; aquela frase de H.L. Mencken, de que os homens ficam irritados quando alguém diz que sua esposa é feia e não se incomodam caso ele diga que é burra, continua a valer. O estereótipo da O feminismo radical foi “loira burra”, para a maioria dos homens, não é um estereótipo, é um ideal. uma grande bobagem. Se a mulher está a contento nesse quesito, ele tolera tudo o mais. Se não Você querer devolver está, ele procura sexo em outra parte. "na mesma moeda" a Tal realidade é ainda mais grave para classes sociais mais baixas. Não é discriminação que as mulheres sofreram durante preciso rodar o Brasil para ver a quantidade de mulheres que criam filhos séculos nada produziu sozinhas. Em geral, engravidaram cedo, e os “maridos” as abandonaram logo nos primeiros anos – em alguns casos, para tentar a vida em um grande centro, mas na maioria por pura falta de caráter mesmo. Para essa gente, feminismo é utopia. Num país onde o presidente usa expressões como “pernambucano não nega fogo”, como elas podem chamar seus maridos ao juízo? Não se trata de moralismo. Casamentos acabam, traições acontecem de ambos os lados etc. Mas criar filhos é uma atividade a dois por definição. Sim, é possível ser um pai presente, participante, sem dividir a mesma casa. E participar, claro, implica dar dinheiro. Mas quantas brasileiras não pagam tudo sozinhas? Assim, muitas mulheres ainda não chegaram a esse mínimo de cidadania que o feminismo sempre exigiu. Essas, coitadas, não têm culpa, pois além de tudo o Estado é omisso em sua obrigação social de ensinar métodos para prevenir a gravidez. Mas muitas outras ainda são tratadas como objetos sexuais, o que qualquer passeio pelos canais de TV endossa. Algumas destas, porém, têm culpa, já que se submetem a esse tratamento. O que vemos de mulheres lindas com homens feios, ricos e famosos não está escrito. Elas arranjam – e se arranjam – a desculpa de que eles são “interessantes” e/ou “charmosos”, mas custa crer. Abra qualquer revista de celebridade e esse padrão de comportamento estará lá, dominante, um baita mau exemplo. Além disso, é sempre bom lembrar que muitas mulheres também são machistas. Por isso, também, é importante apontar os erros do outro lado. O feminismo radical, em primeiro lugar, foi uma grande bobagem. Você querer devolver “na mesma moeda” a discriminação que as mulheres sofreram durante séculos – etc., etc. – nada produziu. Pintar os homens de selvagens exploradores é exagero, reducionismo, ressentimento. Daí o clichê, tantas vezes real, da feminista como uma mulher feia, raivosa e travada. Mesmo pessoas inteligentes como Gloria Steinem, uma das mais famosas intelectuais feministas, caíram nessa. Simone de Beauvoir, por sua Continente dezembro 2004


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Mulheres alemãs protestam fumando e vestidas como homens, num café em Berlim, 1927

vez, acabou revelando um côté Amélia em cartas com o escritor americano Nelson Algren, que lhe deu uma atenção sexual que Sartre não estava interessado em dar. Por esse tipo de coisa é que o feminismo dos anos 60, politizado como era, hoje adquiriu ares até folclóricos. Em segundo lugar, há ainda muitos equívocos e excessos. Naomi Wolf, por exemplo, acusou recentemente o crítico americano Harold Bloom de assédio sexual. Só que de um fato que teria ocorrido há mais de 20 anos! Wolf é conhecida por sua tese de que a beleza é uma espécie de conspiração masculina para subjugar as mulheres, não um dado de atração sexual. Quem garante que se ela fosse burra Bloom a teria paquerado, se é que paquerou? A prefeita paulista Marta Suplicy é outra que andou reclamando do preconceito machista. É fato que muitas pessoas não gostaram de seu comportamento ao se separar de Eduardo Suplicy e se casar com Luis Favre, sem nada ter a ver com isso. Mas muitas dessas pessoas eram mulheres e, mais importante, foi ela, Marta, a primeira a misturar vida íntima e política, ao esperar taticamente o término das eleições de 2000. Logo, às vezes a discriminação não está em toda parte como as feministas parecem até querer que esteja. E quem sabe a “objetividade” masculina não tenha vantagens. Muitos homens, hoje, estão diferentes de seus pais e avós: ajudam em casa, partilham o cuidado com as crianças, têm mais sensibilidade e são compreensivos. Essas são conquistas das mulheres, sobretudo, o que não implica que elas também não tenham o que aprender, especialmente a brilhar em áreas de alta abstração como as ciências e a música. Mas, felizmente, a fase bélica já passou, a fase do confronto entre “O único movimento feminino que interessa é o dos quadris” (Millôr Fernandes) e “Os homens são todos iguais, só mudam de endereço” (provérbio popular entre elas) também. Diferenças bioculturais entre eles existem; por isso mesmo chegou, agora, a fase da soma. • Continente dezembro 2004


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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

– Meu coche, Abel. Vou ao teatro

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osto daquela história, fantasiosa ou não, sobre os primórdios do teatro grego, no século 7 a. C. , quando num dos espetáculos dedicados a Dionísio, a poetisa Safo declamou seus poemas para o povo, o povo, vírgula, para os cidadãos, porque era uma democracia da minoria (e já estou ouvindo um gaiato dizer: “como até hoje”). Meu corporativismo poético em destacar Safo vai mais longe, porque o que me agradaria mesmo seria o Teatro, quando se firmou no Ocidente em grandes salas de espetáculo, promover, aqui e ali, grandes festivais poéticos, e não limitar-se a representar as enormes peças em versos. Nada comparável aos festivais gregos do séc. 6 a. C., onde brilhavam Simônides e Anacreonte, por exemplo, mas apenas uma hoContinente dezembro 2004

"Não há nada mais fútil, mais falso, mais vão, nada mais necessário que o Teatro." (Louis Jouvet – 1887-1951)


MARCO ZERO

menagem, de vez em quando, a uma arte mais antiga do que a velha arte dramática das grandes civilizações. Meus milhões de leitores podem ficar descansados que não vou entrar de sola na esburacada história do Teatro, uma arte que foi tão perseguida no Ocidente que o Cristianismo chegou a proibi-la do séc. 6 ao 10, na Europa. Vou ficar por aqui mesmo, no Brasil, do séc. 19 para cá, engatinhando numa sociologiazinha de botequim sobre o hábito de ir ao teatro. Bom mesmo seria discutir a tese de Earl Miner, em sua Poética Comparada, segundo a qual apenas o Ocidente teve a sua poética originária no Drama, enquanto no resto do mundo ela originou-se na Lírica. Mas isso é briga de gato grande, e eu sou apenas um camundongo de bastidores. Esta crônica descosturada nasceu, quando me lembrei, de repente, não ter jamais pisado num teatro, em minha infância e adolescência. Só depois dos 20, quando já metido a intelectual, mesmo liso, conheci o Teatro de Santa Isabel. Embora meu pai fosse o poeta decano de Jaboatão, minha terra Natal, e lecionasse, em casa, admissão ao ginásio aos filhos dos ferroviários, nosso padrão de vida não diferia, em nada, daquele povão. E este só conhece teatro de bonecos, e olhe lá... O Cinema, sim, enquanto os marginais não o encurralaram nos shoppings centers, elitizando seu público, desenvolveu-se como uma arte para todas as classes. Mas a distância de anos-luz entre o Teatro e povo, aqui no Brasil, não foi criada pelo Teatro em si, por mais complexas que sejam as óperas e as peças representadas, porque o povo entende até o Apocalipse. O culpado foi o gorducho do D. João VI, que chegou aqui esbaforido, fugindo dos tiros de Napoleão, em 1808. Quis ver no Brasil a suntuosidade dos teatros europeus e, em seu decreto de 1810, previu a construção de “teatros decentes”. Isto é, os edifícios monumentais, projetados por grandes arquitetos, desses de que o povão passa por longe, com medo dos guardas e dos cachorrões. Mesmo sem estas ameaças, a monumentalidade intimida os humildes. Isso fora o preço do ingresso, o traje adequado, tudo feito para a aristocracia e a burguesia incipiente. Coches e carruagens despejavam, à noite, à porta dos grandes teatros, homens e mulheres servidos por criados de librés. Ir ao teatro era o programa noturno das elites, vigiado de longe pela população, que depois se enfurnava nas tabernas, vigiadas pela polícia. As capitais de cada província fizeram questão de edificar suas belas casas de espe-

táculo. Esses “teatros decentes”, previstos por D. João VI, tornam-se, também, os espaços onde ocorrem as grandes cerimônias do poder. Mas a população cresce, a sociedade brasileira vai-se tornando mais e mais complexa, e as coisas começam a mudar. Da segunda metade do século 20 para cá, os espaços teatrais vão-se diversificando, em tamanho e funções, agora sem as improvisações didáticas dos jesuítas, e um público diferente do mundo aristocrático e da alta burguesia começa a fazer do teatro uma diversão alternativa. Esse público geralmente é composto de estudantes, intelectuais e até famílias dotadas de um relativo grau de instrução. As pequenas salas de espetáculo se multiplicam nos centros das grandes metrópoles, nos bairros populosos e em cidades de porte médio. Em certa medida, é possível até que venham futuramente a substituir os cinemas do centro e os de subúrbio que desapareceram do cenário urbano. Essa auspiciosa expansão, no entanto, creio eu, está ameaçada de interromper-se, porque já soube de pequeno teatro que foi saqueado nas fuças da polícia. É profundamente lamentável que essa progressiva diversificação do público de teatro, tão importante para o desenvolvimento da sensibilidade artística dos brasileiros, seja cortada por uma violência onipresente, que nos mata de bala ou de vergonha. Assim como o Estado foi responsável pelo desaparecimento dos cinemas populares, será igualmente responsável pelo retrocesso no campo das artes cênicas, pela reelitização de seu público, como acaba de acontecer com as salas de exibição. As nuvens de helicópteros que levam os banqueiros, nos fins de semana, para seus palácios em Angra dos Reis, continuam tranqüilas, enquanto o resto da nação mergulha na barbárie. Esta é a primeira vez na história deste país em que estamos realmente mergulhados numa quebra da segurança nacional, em que cada dia que passa perdemos mais o direito de ir e vir. E que faz o Estado? Depois que vocês lerem esta crônica, têm todo direito de dizer que o povão não está precisando de teatro, mas de emprego e comida. Bem, o governo atual se pavoneia de ter chegado a um superavit primário de R$70 bilhões. Ele já disse que é para pagar o serviço da dívida pública que os próprios governantes contraíram, ao longo do tempo. Metade desse dinheiro deveria ser aplicada em segurança pública e a outra metade no fiasco que é o Fome Zero. Cadê coragem? • Continente dezembro 2004

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LITERATURA Imagens: Reprodução

Mulher Escrevendo , Pablo Picasso, 1934

Escrita feminina Continente dezembro 2004

Há uma Literatura feminina? Existe um eu que se investe no texto, um eu que se sabe mulher, se sente mulher, se relaciona com os outros como uma mulher, é vista pelos outros como mulher Luzilá Gonçalves Ferreira


LITERATURA

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e vez em quando, em palestras, encontros, congressos, voltam A leitura inteligente e aos nossos ouvidos as mesmas perguntas: existe uma Lite- atenta de um texto escrito ratura feminina? Mulher que escreve, escreve diferente de por uma mulher homem? Existem traços, num texto literário, que evidenciam possibilitará, pois, a leitura de algum modo o sexo do autor? do contexto social, Antes de tentar responder a esses questionamentos, talvez fosse neces- historicamente datado sário lembrar que a literatura é um dos meios de investigação e de cons- e determinado por fatores trução do real. Meio de conhecimento que difere do discurso científico, exteriores em que se porque se articula sobre experiências e não sobre conceitos. Essas expe- desenrola a existência riências são particulares, pessoais, oscilando entre o coração, o intelecto e a desse ser humano mulher vivência social. Somos seres únicos, efêmeros, “os mais efêmeros”, como o queria o grande Rainer-Maria Rilke nas Elegias de Duíno: “Uma vez e nunca mais. (...) uma vez, jamais outra. Porém este ter sido uma vez, ainda que apenas uma vez, ter sido terrestre, não parece revocável.” Quem escreve, escreve um pouco por isso: por se sentir transitório, passageiro, e pela urgência de dizer, de se dizer, de deixar, talvez, suas cicatrizes sobre a terra, como escreveu André Malraux. Escrevemos para dar um testemunho de que, algum dia, existimos. Esse testemunho, mesmo quando se mostra simples, modesto, aparentemente impessoal, é movido pelo desejo, pela paixão. No texto literário é a paixão que fala e se organiza, de modo que a própria estrutura do discurso, o modo como são ditas as coisas, as maneiras de dizê-las, tornam-se significativos. “Tudo o que implicam as palavras, vontade, desejo, concentração”. A Lingüística está aí para nos lembrar que as condições de enunciação sob as quais uma obra foi escrita deixam suas marcas no enunciado, indicam a relação íntima, intuitiva, do seu produtor consigo mesmo e com sua própria cultura, com a organização social em que está inscrito. A leitura inteligente e atenta de um texto escrito por uma mulher possibilitará, pois, a leitura do contexto social, historicamente datado e determinado por fatores exteriores em que se desenrola a existência desse ser humano mulher. Que, um dia em meio da vida, decidiu tomar uma caneta ou sentar diante de um computador e tentar transmitir a um possível leitor um pouco do que vivencia no confronto com os demais indivíduos, os que a rodeiam, ou os mais afastados. Os que a olham como sendo uma mulher, indivíduo fisicamente diferente de um homem. Os que a julgam, consideram seu estar no mundo. Esse texto diz o modo como um ser humano-mulher reagiu a esse contexto social, colocou no papel, através de uma linguagem Detalhe do quadro Mulher Escrevendo uma Carta com sua Ama, Jan Vermeer, 1670 Continente dezembro 2004

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LITERATURA

Imagem de Christine de Pisan, uma das primeiras escritoras profissionais, na França, entre 1365 e 1430

Ilustração indiana com data e autor desconhecidos

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escolhida, seu modo pessoal de acolher o que lhe acontece, de falar de suas experiências, de sentir e de entregar ao leitor sua visão de mundo. Mas a leitura do texto literário sempre será a leitura de uma consciência – no caso, uma consciência feminina. O sujeito que fala, como o sujeito que escreve, sempre busca, através do seu modo de se expressar, a construção de sua subjetividade. Ele se coloca diante de nós como um discurso outro, o discurso do outro. Ele expressa posicionamentos, julgamentos. Ao falar conosco, ele se fala, numa relação que é dupla: apresenta-nos uma carga emocional, subjetiva portanto, e uma dimensão intelectual, sendo então um referente histórico. Analisando o que poderiam ser as raízes profundas da escrita artística, o poeta, pensador e crítico mexicano Octavio Paz diz que escrevemos para ser tudo o que podemos vir a ser. A escrita seria, desse modo, um trabalho de auto-construção, de auto-reconhecimento e de conhecimento do mundo. Uma extraordinária, séria, bela e profunda aventura. Aventura: um conjunto de atividades, de experiências que comportam o risco, o imprevisto, a novidade e às quais se atribui um valor humano – é o que afirma o dicionário. Aventura: empreendimento com um final que não se conhece, mas de qualquer modo, um ato de coragem, de mergulho no aleatório. Essa aventura, que é um salto no desconhecido, é sempre uma luta e aquele que escreve o sabe e sente. Tudo já foi dito. Mas se é assim, por que tentar escrever? Que enorme e obscura tentação será essa, que nos leva a desejar a Literatura, a buscar a Literatura, a se trancar no seu quarto, voltar as costas ao esplendor da vida lá fora, à fascinante realidade que nos cerca, a enfrentar o desafio da página branca que aguarda, silenciosa? E quanto ao leitor: o que o leva a voltar as costas ao mundo palpável e mergulhar num tempo e espaço que não são forçosamente seus conhecidos, ou que ele pode reconhecer vagamente? Desejaria ele, pelo menos no tempo de uma leitura, escapar ao que limita a existência humana – e que vislumbramos levemente, quando uma obra de arte nos comove profundamente? Por uma espécie de encontro súbito que nos aparece como oposto a nós e entretanto perigosamente próximo e íntimo? Este encontro evoca a possibilidade de ultrapassar o mundo que nos condiciona a um aqui e agora, que conhecemos, e aceder a um lugar de trocas – lugar que, antes de falar dele mesmo, diz aquilo que é a experiência da criação. O escritor, como o leitor, deseja, de certo modo, mudar de condição, autocriar-se. Viver um outro estado, que lhe proporcionam as palavras. Que dizem as coisas, mas sobretudo dizem


LITERATURA

Ilustração com data e autor desconhecidos

Divulgação

seu autor. E, nesse caso, o mais importante nem é tanto o que se diz, mas a atividade criadora. Autocriação pelo discurso, a possibilidade de conjugar solidão e comunhão. A Literatura serve, pois, a um indivíduo, para se dizer. A escrita é um momento de busca, de reflexão, de revelação de mundos variáveis e vários, espécies de atalhos para redescoberta das coisas que estão em nós, no mais profundo, misterioso e desconhecido espaço de que só às vezes temos notícia, ou fora de nós. Uma apropriação do que não pode ser dominado de outro modo. A escrita literária é, desse modo, uma iniciação. Por ela o indivíduo escapa às determinações da condição humana, a fim de atingir a liberdade absoluta, torna-se ao mesmo tempo começo, meio e fim. E se isso é válido para o criador, com mais forte razão se esse criador é uma mulher. E não vamos insistir aqui no fato de que a história da mulher é uma história de apagamento, de silêncio, ou de voz embargada, para usar a expressão de Márcia Wanderley. De reclusão no espaço confinado dos lares, uma vez que o espaço público lhe era proibido e que publicar – tornar-se público, conhecido, – era coisa só permitida aos homens, e isso durante séculos de história. Embora aqui e ali, de repente, mulheres se levantassem, conseguissem se fazer ouvir, quando, através de uma canção de ninar, enquanto teciam, enquanto encomendavam um corpo entre lágrimas – ocupações femininas – pareciam dizer com suas vozes aparentes, uma outra voz subterrânea que afirmava eu falo, logo existo. E quando isso lhe era permitido: escrevo, logo existo. Desse modo, a escrita literária é, ao mesmo tempo, uma aventura individual e política. Partindo de um indivíduo, busca a comunidade, diz a comunidade. Assim, todas as vozes femininas que se constroem, contribuem para uma melhor compreensão dos conhecimentos essenciais que concernem às mulheres. Um eu se investe no texto, um eu que se sabe mulher, se sente mulher, se relaciona com os outros como uma mulher, é vista pelos outros como mulher. Para concluir, gostaria de citar um trecho de palestra que Marina Colassanti pronunciou no 6o Seminário Mulher e Literatura, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em setembro, de 1995: “O escritor, como Proteu, é criatura cambiante. Mas Proteu mudava de aparência para iludir os outros e esconder-se, enquanto o escritor busca na metamorfose a essência, para entregar-se. E o que sinto em mim, quando diante do computador busco a essência do homem, a essência profunda do animal e da pedra, que me permitirá escrevê-los, o que sinto, vívido, é o que procuro dentro de mim, através de mim, através da minha própria, mais profunda essência. E que essa essência é, antes de mais nada, uma essência de mulher.” •

Marina Colassanti: criatura cambiante, essência de mulher Continente dezembro 2004

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Roberta Mariz

Quem tem medo da literatura feminina/ feminista? A peculiaridade da escrita feminina seria “uma espécie de respiração, de sopro vital, de silêncios densos, algo meio mágico que diferenciaria a voz da mulher” Mauro Rosso


LITERATURA

Reprodução

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reconizada por Virginia Woolf, na década de 1930 (Virginia, irônica e realista, em conferência para jovens universitárias inglesas no Giron College, estabelecia as condições mínimas para que as mulheres atravessassem a fronteira física e psíquica da criação literária, ao declarar: “tendo um quarto para si e renda própria” – ditames abrigados no livro A Room of One’s Own (Um Quarto Todo Seu), defendida pelas feministas européias de 1970, uma “escrita feminina” ganhou corpo (e forma) na Literatura, não paira a menor dúvida a respeito. Mulheres escritoras (ficcionais e não-ficcionais) têm voz própria, estilo próprio, linguagem própria, temática própria, de uma subjetividade marcada por um estilo mais sensorial e sensível, mais poético, lírico, uma escritura “com o corpo e a alma”, e muito maior “liberdade” de escrita. Apesar das dificuldades (segundo muitos, incontornáveis) para definição precisa do que seja uma escrita feminina, eu particularmente entendo existir uma “literatura feminina” com elementos, valores e vetores próprios – que só fazem acrescentar e enriquecer a Literatura (e a cultura, em geral). Fácil identificar entre escritoras brasileiras e estrangeiras contemporâneas uma escrita nitidamente feminina – com suas obras carregadas de suas carac- Virginia Woolf: um quarto para si e renda própria terísticas específicas. Existe uma voz especificamente feminina? – “Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos”. Na afirmação de uma personagem de As Meninas (1975), de Lygia Fagundes Teles, parece estar a raiz do fenômeno de transformação vivenciado pela mulher desde o século passado. Qual seria afinal uma “linguagem feminina” na arte e como é um discurso essencialmente “feminino”? Nelly Novaes Coelho – uma das pesquisadoras mais produtivas do país, autora do Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, meticuloso registro da produção literária feminina brasileira de ontem e de hoje, e de A Literatura Feminina no Brasil Contemporâneo – alerta para o fato de que toda criação literária está condicionada à cultura na qual se encontra imersa, e nessa perspectiva pode-se então falar em “literatura feminina” a partir do conceito A “dominação” masculina não de écriture féminine, “que estabelece a diferença feminina na língua impediu a formação de uma e no texto”, formalizado por Hélène Cixous. linhagem de mulheres Nelly, ao abordar a questão de haver ou não uma “escrita femi- militantes dentro da literatura nina” distinta da “escrita masculina”, chama a atenção para a pe- (como personagens ou como culiaridade de escrita feminina como “uma espécie de respiração, autoras) e da sociedade Continente dezembro 2004

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LITERATURA JJ. LEISTER /AE

Nelly Novaes Coelho: questão de magia vocabular

de sopro vital, de silêncios densos, algo meio mágico que diferenciaria a voz da mulher. Realmente isso existe, um tipo de magia vocabular, inerente às grandes criações, a magia da palavra poética autêntica, mesmo quando escrita em prosa”. Sem dúvida alguma, a literatura de autoria feminina já criou o seu espaço próprio dentro do amplo universo literário mundial. Desde fins do século 19 e principalmente no século 20, a principal transformação pela qual passou a literatura de autoria feminina é a conscientização da escritora quanto à sua liberdade e autonomia e à possibilidade de trabalhar e criar sua independência financeira. “Ocorreu, assim, a mudança da condição ‘feminina’ para a condição ‘feminista’”, sustenta a ensaísta Níncia Borges Teixeira. Segundo Luiza Lobo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, em “A literatura feminina na América Latina”, publicado na Revista Brasil de Literatura (on-line), 1999, “(...) se o termo ‘feminino’ vem sendo associado a um ponto de vista e a uma temática retrógrados, o termo ‘feminista’, de cunho político mais amplo, em geral é visto de forma reducionista, só no plano das ciências sociais. Entretanto, deveria ser aplicado a uma perspectiva de mudança no campo da Literatura. A acepção de literatura ‘feminista’ vem carregada de conotações políticas e sociológicas, sendo em geral associada à luta pelo trabalho, pelo direito de agremiação, às conquistas de uma legislação igualitária ao homem no que diz respeito a direitos, deveres, trabalho, casamento, filhos etc.” Uma escrita brasileira, sim – No Brasil, o surgimento de mulheres escritoras ocorre principalmente a partir do século 19, no contexto da crescente importância da Imprensa e do início de movimentos em prol dos direitos das mulheres. Quando as questões relativas à emancipação feminina começaram a aparecer na Imprensa, as mulheres se organizaram associativamente e passaram a reivindicar maior participação na sociedade em mudança. Ocorreram então os primeiros movimentos organizados tendo como principal objetivo a melhoria das condições de vida da mulher — desde que orientada pela ótica masculina. A “dominação” masculina não impediu a formação de uma linhagem de mulheres militantes dentro da literatura (como personagens ou como autoras) e da sociedade (na militância política por meio, sobretudo, do veículo jornalístico) que desenvolveram trabalho emancipatório preparador das condições que propiciariam, no século 20, a implementação e solidificação de um movimento que se poderia chamar de estética feminista. Na Literatura Brasileira, considera-se o romance Úrsula (1859), da maranhense Maria Firmina

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LITERATURA

Clarice Lispector

Toni Morrison

Simone de Beauvoir

Susan Sontag

Victoria Ocampo

Virginia Woolf

Cecília Meireles

dos Reis, a primeira narrativa de autoria feminina — um exemplo quase isolado, no entanto: a escrita desenvolvida por mulheres esteve praticamente ausente dos anos decisivos para a formação da Literatura Brasileira durante o século 19, na vigência do Romantismo, restrita a colaborações em periódicos de vida curta ou de público definido pela circulação no espaço doméstico (o que, de resto, significa em meados dos 1800 uma confirmação antecessora à interpretação de Virginia Woolf, da década de 1930). As primeiras manifestações de escrita feminina, levadas oficial e intensamente ao público externo, vieram no final do século 19, já na “vigência” do Realismo na Literatura Brasileira — o que poderia, em leitura apressada e equivocada, soar algo paradoxal: não seria o Romantismo “mais apropriado” para a expressão da écriture féminine? Resposta: não! Taxativamente corrobora a edificação de uma escrita feminina, desde seus primórdios brasileiros, alicerçada num sentido reflexivo e consciente do próprio processo de valorização da mulher. Na verdade, as grandes mudanças que o século 20 trouxe para a vida da mulher foram fator determinante para o surgimento e expansão de uma Literatura feminina — reflexo e manifestação dos novos papéis da mulher na sociedade e no mundo. Ao longo do tempo, a gestação dessa “nova mulher” deu-se pelo amadurecimento crescente de sua consciência crítica, que determinou uma transformação radical da escrita feminina: de uma literatura lírica-sentimental, de “contemplação emotiva”, para uma Literatura ético-existencial, de “ação ético-passional”— um caminho hoje integralmente sedimentado, e nitidamente percebido Divulgação no meio exterior (por críticos, leitores, editores, agentes, mídia etc.), na área da prosa ficcional, da poesia e do teatro. Na nova ficção feminina, o amor — condimentado pelo erotismo, por vezes exacerbado — deixa de ser o tema absoluto, para ceder espaço a sondagens existenciais, ao ludismo e ao feérico na invenção literária, ao questionamento político e filosófico. Tudo isso traduzido e materializado em experiências formais e estilísticas: fragmentação narrativa, intertextualidade, o foco narrativo múltiplo, o intenso fluxo-deconsciência, o registro labiríntico no lugar da estrutura linear, a exploração dos mitos, do esotérico, a clara opção pela “linguagem do corpo”, “a procura do sentido das coisas”: esta, por certo, a expressão-chave da Lygia Fagundes Teles: vamos dizer o que somos escrita feminina contemporânea. • Continente dezembro 2004

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LITERATURA

Contistas brasileiras

Antologia reúne vozes femininas numa polifonia em que se instaura uma espécie de confessionalismo passionalizado Luiz Carlos Monteiro

Divulgação/Record

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As autoras: a fala feminina em vários tons

A

antologia de contos 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira deixa patente a diversidade verbal que a caracteriza logo a uma leitura inicial e de reconhecimento. À medida que se adentra nos textos, vão sendo realçados temas, dicções, estruturas formais e contextos sócio-históricos que se apresentam também diversos e diferenciados. O único elo que parece associar tais histórias é a identificação da autoria feminina, na realização textual que confere individualidade poética a cada escritora. Em várias narrativas, quando algumas destas autoras assumem fala tipicamente masculina, o que não é raro no livro, pode emergir-se uma figuração do caricatural ou do grotesco – embora nem sempre elas manifestem sentimentos negativistas para com os homens. Outras passagens de textos, no entanto, sugerem ironicamente uma dosagem maior Continente dezembro 2004

de ressentimento ou vingança surda contra a opressão secular e patriarcal, mesmo que o atingido se posicione, em muitos instantes da narrativa, ao lado delas. O conto “O sétimo mês”, de Cecília Costa, deve ser destacado não só por essas posições assumidas no triângulo amoroso que o configura. Ele se destaca também por proporcionar um clima denso e instigante, que se desdobra paradoxalmente num rito insistente, tedioso e monotônico, produzindo seus efeitos de alerta, comoção ou perplexidade sobre o leitor. Organizada pelo escritor mineiro Luiz Ruffato, a coletânea contempla prosadoras de algumas capitais e cidades do interior brasileiro, amplia faixas etárias e comporta dimensões variadas de textos. No prefácio, Ruffato deixa entrever como critérios de publicação a estréia nos anos 90 e o ineditismo de cada texto. A heterodoxia assim adotada levanta a questão do que


LITERATURA

pode ser avaliado como conto ou como texto em prosa de outra origem ou gênero, salientando-se aqui aquelas narrativas que se aproximam à novela pela extensão e andamento, à carta e ao diário pelo formato inconfundível e obrigatoriamente cronológico destes. Esse caldeamento literário algo confuso faz com que muitas narrativas, não por coincidência, se fragilizem e não resistam a uma segunda leitura. Ou que não atendam ao que se propõe minimamente para a confecção de um conto. A exigência de qualidade para um texto não deixa margem a engodos existenciais e confessionais exacerbados e exagerados. A oralidade excessiva, acentuada mais ainda pela fala em primeira pessoa, transforma textos que poderiam vir a ser aceitáveis do ponto de vista estético-literário em conversa íntima e ao pé do ouvido, reforçando injunções diccionais limitadoras como a facilidade narrativa e o derramamento, sendo exemplo disto “Psycho”, de Clarah Averbuck, mesmo que tenha sido ambientado em lugares de boemia, resistência e marginalidade. A tentativa de aproximação à realidade pode resultar em retratos com retoques neonaturalistas, em esboços literais e antiliterários, onde às vezes não são estabelecidas diferenças entre o visto e o escrito, o pensado e o registrado. Na utilização da gíria ou dos dialetos localistas, a busca de novidade a todo custo invalida algo dessa produção pela relevância que se dá, não a uma linguagem de algum modo reconhecível e comum à literatura, mas ao seu desvio circunstancial regionalista e lingüístico de gueto, subúrbio ou centro urbano (o que já fez com que muito mestre do conto pagasse um preço determinado por esse circunstancialismo – João Antonio ou Roberto Drumond, por exemplo). A ramificação diccional, ao contemplar mais de uma pessoa ou sujeito, mantém estas vozes na convergência quíntupla eu-tu-ele-elaautora. Ou na incerteza retórica, expondo a problemática de não se saber exatamente quem está a falar no instante preciso em que se empreende a leitura. Neste compasso se situa a referência nominativa aos objetos tecnológicos e práticas computadorizadas aplicados aos relacionamentos humanos e amorosos no ritmo acelerado da vida presente – com o impacto de sua presença metálica, plástica e cibernética que já não se ousa dispensar. Não se pode, contudo, deixar

de reconhecer em alguns destes contos e suas autoras objetivo literário definido e definidor com relação ao gênero, que deve intentar dizer muito em espaço pouco e modesto. É o caso do relativamente longo “Uma alegria”, de Cláudia Lage, de assunto atraente, como é quase sempre o erotismo extremado. Funciona tão bem como o curtíssimo, delicado e subterrâneo “Um oco e um vazio”, de Cíntia Moscovich. Ou “Silver tape”, de Mara Coradello, que traz como temática central o envolvimento amoroso consumado através da Internet. Ou ainda os efeitos de metalinguagem e a construção do personagem que representam a tônica de “No céu, com diamantes”, de Luci Collin. Quem se arrisca a organizar antologias deve saber bem o que isso pode vir a implicar. Haverá sempre algum descontente à espreita do outro lado da esquina ou da rua. No caso deste volume, mesmo com 25 Mulheres que oito estados brasileiros repre- Estão Fazendo a Nova sentados, a metade das escri- Literatura Brasileira, toras nasceu ou mora no Rio org. Luiz Ruffato, de Janeiro, ou ambas as coi- Editora Record, 350 sas. O que demonstra que o páginas, R$ 39,90. método de escolha das contistas foi um tanto obscuro e enviesado. Pela quantidade de autoras participantes, o critério mais adequado seria o da publicação por estado, o que daria uma representatividade mais equilibrada e transparente à antologia. Assim, o título do livro exprime uma contradição latente, ou seja, boa parte das “mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira”, de acordo com dados da própria coletânea, encontra-se no Rio, quando se sabe que elas estão espalhadas por todo o país. Basta que outros esforços se somem para descobri-las e publicá-las. • Continente dezembro 2004

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NARRATIVA

Clarice Adriana Falcão

A filha adolescente tem cabelos cor de laranja. Fala gíria. Toca em banda. Quer colocar um piercing. Ouve umas músicas estranhas. A mãe acha lindo, se chateia, se comove, se preocupa, briga, faz as pazes, diverge em vários pontos, ensina, aprende, perde o sono. Sente um orgulho da menina como nunca sentiu dela própria. Mãe é assim mesmo, se conforma, e lá vai arrumar o quarto bagunçado, a parede cheia de posters. A filha chora baixinho. O que foi? Acabei o namoro. Primeiro namorado. Quatro meses juntos. Cento e vinte e dois dias de primeiro isso, primeiro aquilo, surpresa, agonia, arrebatamento, não sei quantas batidas de coração disparatadas, descontroladas, intensas, não sei quantos beijos eternos, e agora tudo acabado, chora a menina. "Isso passa", a mãe pensa lá com ela, mas não revela esse segredo. Sabe muito bem que todo caminho de gente tem que ter sofrimento no meio. Então põe a cabeça da menina no colo. Silêncio. Cada lágrima de Clarice é uma lança. Cada

pontada de amor, uma doidice. Um tiro de fuzil, cada suspiro. Cada expectativa, uma lembrança. Cada fio laranja de cabelo é uma trama, bisavó, avó, mãe, filha, neta, bisneta, muitos cabelos, coloridos, brancos, poucos, fartos, se misturando num tempo que não tem data e num espaço que não tem tempo, todos eles. Não fosse desejo impossível, deixaria para Clarice somente todas as alegrias, e sofreria as desventuras que acaso possam estar à sua espreita. Domaria mil futuros por ela. Por ela, morreria de medo. Levaria na cara. Viveria no duro. Passaria por muitas. Tiraria da frente. Adentraria túneis, labirintos. Suportaria cada desilusão para que Clarice nunca mais chorasse, e, caso não suportasse, esmurraria portas, aos prantos. O que fosse engano, tropeção, solidão, mal de saudade, hospedaria por ela. Faria inimizades. Sentiria dores no ventre. Viraria novas noites, velhas marcas, o mundo inteiro, voltaria tudo ao começo. Para Clarice jamais haver chorado, saquearia as tristezas já passadas. Teria ficado em recuperação em matemática. Teria caído da bicicleta. Teria quebrado o dedo. Teria perdido o sapatinho da boneca. Teria abrigado, em seus pulmões, aquela pneumonia dupla. Teria tomado com sua boca o remédio amargo. Teria feito caretas. Teria gritado o primeiro choro, num dia 23 de outubro, dia mais esquisito aquele em que ela passou a ser as duas, uma parindo e a outra nascendo, pois assim são as mães, sabe-se lá quantas. •


POESIA

Poemas de Jussara Salazar Quando nasci haviam árvores brancas em forma de lua papéis co m vestidos desenhados vesti dos cor de chuva. Uma lua em forma de lua. Dios es flotando ao vento sussur rando palavras mágicas em su a diminuta língua. Com assombro o bosque cobria a terra escura d o jardim. Las cravinas brancas, púrpuras, lises e ninguém e tudo como um mar infinito. Ayf, a ceifa. mãe do verão, rés o vegetal descanta o tempo. Colher peixes bíblicos na superfície da água ¾ o milagre e ouvir o som do cravo atrás do portão de ferro quando a hora da sesta guarda o silêncio do poço. Naquele tempo eu me chamava Flora Marinha.

Flora Marinha por que o mar tanto chora? Flórula. E o amor? Flos Santório, lia-se sobre a porta de entrada, ¾ era a insígnia de aqueronte ¾ inférus rivu, orco e as ramas descendo da árula branquíssima orbe com pézinhos de ouro, sfumato na nébula esmaiada, e o céu da noite se derretia em chuvas fazendo chorar o açaí desfeito em meio ao nenúfar. O tempo que limava a chão da arvoragem espessa deitava açaflores naquele sonho sonhado na noite passada e voava na algaravia dos pássaros, na língua do dia que começava no alguidar entre os grãos derramados, aura passarinhagem ao sol. Amarílis, diziam-me, já são horas, e o céu derretia se cremore nau. O espelho os dedos que brancos abrem um a um os vidrinhos diante do espelho ou uma caixinha de veludo, verbenas lilases, um batom e algumas ametistas brilhando ilumineiras sob as frestas do sol que derrama preguiça. Como ousar descobrir todos esses segredos? Vou te dar umas pedrinhas para que faças uns brincos. E um pente de madrepérola para que te vejas assim nesses rituais, hermosa nesse êxtase ao tocar os mimos com deditos de açúcar, o que a faz fugir da tristeza acariciando os cachos, frisas e alcinhas. Deixa-te ver assim através da alma, como se visse um lagarto. Jussara Salazar é poeta e artista plástica. É autora de Natália (Travessa dos Editores, 2004), entre outros. Continente dezembro 2004

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AGENDA

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LIVROS

Tratado cultural

Encontro saboroso Quem mora ou já morou numa cidade grande como São Paulo ou Rio de Janeiro sabe que uma boa distração é observar a fauna humana que a habita. Se o sujeito é homem (e gosta de mulheres), certamente se especializou em observar as fêmeas desta fauna. E se além de homem que gosta de mulher o fulano é imaginativo, fatalmente vai especular sobre qual o nome, a profissão, o cotidiano, o passado, as preferências, por exemplo, daquela moça mignon, muito alva e de cabelo muito preto, que acaba de atravessar a rua em passinhos rápidos e miúdos, ondulando suavemente as ancas e deixando atrás um discreto rastro de perfume francês. Levando esse exercício para um livro e atingindo um resultado de refinado erotismo, o cartunista Caco Galhardo e o escritor Marcelo Mirisola são responsáveis por um dos melhores lançamentos do ano, este Banquete de finíssimas iguarias, e que marca, também, o surgimento de uma nova editora, a Barracuda. O traço limpo e expressivo de Caco e a surpreendente elegância do normalmente desbocado Mirisola garantem a qualidade. No final, fiéis aos tempos contemporâneos em que tudo pede alguma interatividade, os dois convidam o leitor a também participar deste exercício lúdico-erótico-existencial. E resistir, amigos, quem há de? (Marco Polo)

O mestre Luís da Câmara Cascudo, apesar de montado sobre vastíssima erudição, gostava de assumir ares antiintelectuais, combatendo o pedantismo e assumindo certas idiossincrasias. No recém-relançado Civilização e Cultura, o pesquisador potiguar produziu um verdadeiro tratado de etnografia, percorrendo a trajetória humana sob o foco cultural, numa obra de claras intenções didáticas. O calhamaço, entretanto, ao abordar as origens da civilização e da cultura, da pré-História aos nossos dias, revela-se leitura saborosa não apenas para estudantes, mas para todos os interessados no que é humano. Em linguagem às vezes pitoresca, desfila um rol de conhecimentos de grande interesse para nosso autoconhecimento como espécie. Como quando, abordando a questão da miscigenação, depois de afirmar que nenhuma raça contemporânea está isenta da mistura, sublinha: “o Homem de Neandertal não tinha o direito de bater no largo peito e proclamar-se ‘raça pura’”. Assumindo o ecletismo como método, Cascudo passeia com segurança por temas que vão das discussões doutrinárias a aspectos como manifestações religiosas e artísticas, o surgimento da fala e de instituições como leis e governo.

O Banquete, Caco Galhardo e Marcelo Mirisola, Editora Barracuda, 80 páginas, R$ 29,00.

Civilização e Cultura, Luís da Câmara Cascudo, Global Editora, 731 páginas, R$ 89,00.

Experimental

Riqueza literária

O polemista

Conhecida na França também por seus poemas visuais, a jovem autora explora o poema em prosa um pouco na linha de Francis Ponge, embora com autonomia. O livro começa com a enunciação e análise de algumas anomalias anatômicas, que servem para dar o tom de estranheza – e, ao mesmo tempo, de um certo distanciamento – que perpassa todo o livro. Na seqüência, a poeta utiliza lembranças da infância, da escola, dos embates familiares e do trabalho, aí já adulta. Alguns recursos tipográficos são utilizados, mas contidamente. É na própria maneira de relatar o mundo que a autora cria o seu experimentalismo. No todo, um livro instigante, desses que pedem releitura.

Este livro reúne o melhor da produção de contista do autor – que também foi poeta e romancista. Dando continuidade à tradição nordestina da narrativa, não se prende, contudo, ao mero regionalismo, transcendendo na representação das dores e revoltas do ser humano. Seus personagens são fortes e rebelados, com ações contadas em pinceladas rápidas e definidas, sempre com uma intensidade emotiva que contamina até a natureza ao redor. Raimundo Carrero, no prefácio, diz que a obra do contista está contida em quatro palavras-chaves: Mundo, Realidade, Sonho e Solidariedade. Palavras que mostram também a riqueza do seu universo literário.

O jornalista Paulo Francis (1930-1997) foi uma daquelas personalidades diante das quais é impossível serse indiferente. Corajoso, culto, provocador, agressivo, passional, preconceituoso, exerceu a polêmica com uma contundência rara em nossos dias. Ex-trotskista, neo-liberal no fim da vida, Francis teve atuação destacada, inicialmente, como crítico de teatro e, depois, como comentarista político. Participou de algumas das mais importantes experiências jornalísticas, como a revista Senhor e o semanário Pasquim, em que, entre outras contribuições, ajudou a inovar a linguagem da imprensa. Neste livro, Daniel Piza traça o seu perfil, em vigorosas pinceladas, sem negar sua admiração por ele e sem esconder-lhe os defeitos.

Começo (Autobiografia), Nathalie Quintane, 7 Letras/Cosacnaify, 112 páginas, R$ 22,00.

Na Estrada, Maximiano Campos, Iluminuras, 250 páginas, R$ 39,00.

Paulo Francis, Coleção Perfis do Rio, Daniel Piza, Relume Dumará, 117 páginas, R$26,00.

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Fotos: Reprodução

Camille A fascinante e trágica vida de Camille Claudel que, de início, vista apenas como discípula de Rodin, cada vez mais vai sendo valorizada como um talento autêntico e autônomo Weydson Barros Leal


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ARTES

T

rês homens encabeçam o elenco da impressionante história da escultora francesa Camille Claudel (1864-1943). Talvez por isso, sua vida pode ser lida como a mais infeliz das tragédias que envolvem arte e paixão. Ao lado da protagonista, os personagens são: o pai, um funcionário público preocupado com os gastos da família; o irmão mais novo, o poeta, dramaturgo e diplomata Paul Claudel; e o escultor Auguste Rodin, que ela conhece ao mudar-se para Paris, e de quem se torna colaboradora e amante. Outros nomes ainda podem ser convocados para esta lista masculina, como seu editor e amigo Eugène Blot ou o músico Claude Debussy. Segundo todas as evidências, Debussy nutriu uma paixão criativa pela artista que, tudo indica, durante mais de três anos foi inspiração para algumas de suas mais importantes composições. Quanto às mulheres, Camille não se relacionava bem com a mãe nem com a única irmã. A primeira não aceitava a idéia de ter uma filha em ofício tão pouco feminino para os padrões da época – segunda metade do século 19 –, e a segunda sentia o incômodo pelo talento e o reconhecimento público da irmã. Até hoje, na cultura da França, o sobrenome Continente dezembro 2004


ARTES

A Espuma, 1901, mármore e ônix, 23,5 x 40 x 15 cm Na página anterior, Camille Claudel, aos 20 anos

Claudel divide sua importância entre a artista genial e o irmão Paul. Ainda assim, passados 61 anos da morte da escultora, muitos preferem classificar o poeta como indiferente aos infortúnios da irmã, que viveu os últimos 30 anos de vida internada como louca. Não se pode falar de Camille Claudel sem a citação exaustiva do nome de Rodin. Mas na biografia do autor d’O Pensador, não obstante a presença de nomes como o do poeta Rilke, seu assistente por uns tempos, e de escultores importantes como Brancusi e Bourdelle, será de Camille Claudel o posto mais polêmico, constante e controverso. Seu talento e um espírito também inovador confirmam o peso de sua colaboração na obra do mestre. Em muitos casos, esta “colaboração” pode ser invisível, ou percebida apenas por especialistas, naqueles “gestos” e “movimentos” próprios da escultura de Camille. Por outro lado, em peças importantes, alguns críticos apontam a apropriação explícita de idéias da artista por parte de Rodin. Isto, na história da arte, é comum nos grandes ateliês de escultura, onde ajudantes e aprendizes agregam valor à criação de um mestre. A prática não se restringe, até hoje, ao Continente dezembro 2004

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ARTES

universo dessa arte, mas estende-se à pintura de murais e afrescos, à literatura e ao próprio pensamento dos que não se dão conta da apropriação. No fim, o que fica é o divertimento para críticos, historiadores e biógrafos. Camille Claudel nasceu no dia 8 de dezembro de 1864, em Villeneuve-sur-Fère, na região de Ardennes. Cresceu entre um pai culto e austero – que tinha uma boa biblioteca, sempre visitada pela filha – e uma mãe descrita como distante e fria, que jamais beijava os filhos. Os talentos de Camille e Paul sempre foram incentivados pelo pai, frustrado por não ser, ele mesmo, um artista. Camille começou a esculpir cedo, como autodidata, e por volta dos quinze anos suas esculturas eram admiradas por amigos e familiares. Alfred Boucher, escultor conhecido na época, logo a aconselhou a estudar num grande centro. Em 1881, sendo transferido para uma cidade perto da capital, o pai instala a família em Paris. Com 17 anos, Camille matricula-se na Academia Colarossi, e no ano seguinte aluga seu primeiro ateliê, com três amigas inglesas. Logo conhecem Paul Dubois, diretor da Escola Nacional de Belas-Artes e escultor consagrado. Dubois impressiona-se com a criação de Camille e pergunta-lhe se já havia trabalhado com Rodin, de quem Camille nem ouvira falar. Nessa época, Rodin ainda era pouco conhecido, e sua obra provocava admiradores e críticos severos. Também amigo de Rodin, Boucher, de mudança para a Itália, pede ao artista que

Dois ângulos de A Mão, 1885, bronze, 10 x 4 x 7 cm

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ARTES

passe a orientar as jovens colegas, chamando sua atenção para Camille. Aos 43 anos, em pleno vigor criativo e dono de um importante ateliê, Rodin aceita a proposta, e, logo, se decide a ter seu primeiro e único discípulo do sexo feminino: Camille Claudel. Além de ser a única mulher a trabalhar com Rodin, destacando-sse entre seus ajudantes, Camille, com 19 anos, também posava para o artista, e o impressionava com sua beleza, habilidade técnica e entendimento crítico da arte. Isto atraía Rodin, que ignorava ou considerava medíocres os escultores em atividade. Camille era exímia no trabalho com o mármore, e sua capacidade para realizar pés e mãos garantia-llhe a confiança de Rodin como colaboradora em obras importantes. Tanta admiração e uma intimidade crescente resultaram num relacionamento amoroso que durou 15 anos. Tal relação, entretanto, prejudicava a afirmação individual da jovem artista, inspirando desconfianças e distanciando-aa do meio profissional. Não se pode negar que, durante alguns anos, sua obra obteve importante reconhecimento público, sendo vista e admirada em salões e exposições de relativa repercussão. Mas entre encontros amorosos, viagens secretas, brigas, um aborto e todo o ciúme de Camille contra a esposa do amante, sua moral e sua reputação, também diante da família, foram abaladas, e iniciou-sse um processo de isolamento, o que a fez perder, gradativamente, sua segurança emocional. Devido a uma fusão inextricável de participações de Camille em obras de Rodin, torna-sse quase fundamental o conhecimento prévio dessas obras para se entender a importância da colaboradora. Após a separação definitiva dos dois artistas, Camille manteve em seu ateliê e na casa dos pais inúmeros gessos e terracotas que havia criado enquanto trabalharam juntos. Quando essas peças foram recuperadas, pôde-sse constatar, anos depois, uma dezena de obras criadas por ela que se identificam com personagens da Porta do Inferno e com alguns Burgueses de Callais (obras importantes de Rodin).

Perseu e a Medusa, 1898/1901, mármore, 196 x 111 x 99 cm

Além de ser a única mulher a trabalhar com Rodin, destacandose entre os seus ajudantes, Camille, com 19 anos, também o impressionava com sua beleza, habilidade técnica e entendimento da arte

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Há ainda exemplos mais contundentes: a escultura Jovem com Feixe de Trigo, terracota assinada por Camille e oferecida como presente a um amigo, é sósia da Galatéia em mármore assinada por Rodin. Uma foto do ateliê de Camille em 1887, onde se vê essa terracota, prova que sua obra é dois anos anterior ao mármore que Rodin atribuíra a si. Casos como esses formam uma lista razoável de influências e coincidências. Contudo, havia um único ponto em que ambos discordavam de forma prática e teórica: para Camille, o “movimento” tinha função essencial na construção da escultura, enquanto para Rodin, era o “modelado” que deveria ser privilegiado. Para Camille, o “movimento” enriquecia a anatomia ao alongá-la ou encolhê-la, e recriava, então, o equilíbrio. As desproporções criadas por esse movimento habitam permanentemente sua obra: braços longos demais, pernas igualmente além do normal e corpos desproporcionais causam uma acentuação dos gestos que, de outra maneira, pareceriam inexpressivos. As figuras, sutilmente deformadas, têm suas emoções sublinhadas à maneira das máscaras ou dos gestos do teatro, ou mesmo reinventadas, como ocorre, num exemplo distante, com A Banhista de Valpinçon (1808), de Ingres, com sua coluna acrescida em pelo menos cinco vértebras. Não se pode garantir, em arte e literatura, uma obra imune às influências da vida de seu criador. Nem toda criação é estéril ao fato cotidiano, à paixão de hoje, à queda de amanhã. Como retratos interiores, na obra de Camille Claudel seus personagens jamais encaram o espectador nem o seu par. Seus casais não trocam olhares. São cegos para o outro, fechados numa dor que perscruta a eterna solidão. O que os reúne ou acumplicia, como na vida da própria Camille, é um segredo de amantes, de irmãos, uma culpa que não permite que suas figuras sejam flagradas ao olhar-se, pois não resistiriam, como a própria Camille, à verdade ou à mentira do outro: o espelho, ou seu horror, não pode ser encarado pela Medusa. Por outro lado, em inúmeros aspectos, a obra de Camille Claudel revela um gênio renovador para a história da escultura. São dela os cinco primeiros nus masculinos criados por uma mulher, e a importância dessas obras não se restringe ao seu pioneirismo, mas, principalmente, à força que essas cinco esculturas exprimem como obras de sublime realização. Anos depois de sua internação – primeiro no hospital Continente dezembro 2004

Busto de Rodin, 1892, bronze, 40 x 25 x 28 cm Abaixo, A Onda, 1897, bronze e ônix, 62 x 56 x 50 cm


ARTES

A artista vivia em extrema pobreza, numa casa cheia de gatos de rua, sempre vestindo uma camisola branca, com os cabelos desgrenhados, maldizendo aos gritos o “canalha do Rodin”

psiquiátrico de Ville-Evrard, em 1913, e a partir do ano seguinte em Montdevergues (Vaucluse), onde fica até morrer – o filho do médico que assinou o primeiro laudo relembra fatos relacionados à artista. No andar térreo do prédio onde morava, ele lembra a artista vivendo em extrema pobreza, numa casa cheia de gatos de rua, sempre vestindo uma camisola branca, com os cabelos desgrenhados, maldizendo aos gritos o “canalha do Rodin”. Até ser internada à força, uma semana após a morte do pai, foi assim que viveu seus últimos anos de liberdade, num apartamento de persianas cerradas, sob desordem e privação, e sempre bebendo muito. Até 1905, ano em que produziu sua última escultura, Camille Claudel desfrutou tanto do reconhecimento como do preconceito do público e da crítica. Às vezes elogiada em artigos de jornais, também havia uma corrente – como há até hoje – que não a considerava mais que uma discípula de Rodin. A partir do verão de 1906, ela passou a destruir sistematicamente as obras realizadas durante o ano, e assim transformou seu ateliê num depósito de destruições. Pedaços e cacos de bustos e esculturas eram mandados a um carroceiro para serem enterrados. Começava aí, persistindo durante todo o período da internação, sua psicose (como mania de perseguição) que culminaria na permanente desconfiança de que alguém queria envenená-la, e este alguém, ela dizia, era Rodin. Nos 30 anos em que esteve presa, Camille recebeu poucas visitas do irmão, nenhuma

A Suplicante, 1899, bronze, 62 x 65 x 37 cm

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ARTES

Nos 30 anos em que esteve presa, Camille recebeu poucas visitas do irmão, nenhuma da mãe ou da irmã, e sua única janela para o mundo foi a farta correspondência que manteve com amigos

A Valsa, 1895, bronze, 42 x 36 x 20 cm

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da mãe ou da irmã, e sua única janela para o mundo foi a farta correspondência que manteve com amigos e a própria família. Em quase todas, afirmava estar pronta para voltar à vida, e pedia para ser liberada. Numa análise biográfica da relação de Rodin e Camille Claudel, pode-se acusá-los de pecados que nada têm a ver com a arte, mas com o embate humano entre homem e mulher. No entanto, há entre os observadores de suas obras quem pretenda, ao misturar vida e arte, destituir Rodin do lugar que ocupa na escultura moderna. Mas o fato é: quem não enxerga na obra monumental do criador d’A Porta do Inferno – como a própria Camille enxergava – a altura de sua grandeza, é porque não a alcança ou não a tem. Rodin – é preciso deixar claro – permanece senhor de um legado fundamental para a escultura moderna, e até por antítese, os que vieram depois devem muito à sua obra. Camille Claudel teve, independentemente de sua relação amorosa com Rodin, a força de reconhecer esta grandeza, conviver com ela e continuar realizando uma obra autônoma e igualmente importante. Sua obra é um testemunho, também, da alta isenção de seu espírito criador. •


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Fotos: Divulgação

Ausência poética Fotógrafo Xirumba expõe visão complexa da pobreza Dor e alegria, tristeza e leveza, solidão e comunhão. Celebrando a vida e o povo nas suas diversas formas, o fotógrafo Arlindo de Souza Amorim, mais conhecido como Xirumba, enxerga poesia onde a maioria só vê miséria. E enxerga miséria onde ela realmente existe, mas que só há pouco foi detectada. “Qual a velocidade real da globalização nas periferias do Nordeste?” Empenhado na sua aventura sócio-ppoética, o fotógrafo passou 30 anos buscando respostas com suas próprias lentes e documentando o dia-aa-ddia da periferia de Olinda e das cidades do interior do Nordeste, registrando imagens sobre as quais o tempo parece não fazer efeito: o homem em seus ofícios artesanais, as crianças descalças brincando pelas ruas, a violência sutil travestida de ausência; ensaio que flagra momentos de falta e de plenitude e que estará exposto na Torre Malakoff, com o apoio da Fundarpe. Parafraseando o fotógrafo Fred Jordão, “seu olhar humano passa longe do denuncismo social. É uma visão complexa, que une idealização romântica da vida humilde com o naturalismo chocante da pobreza”. 2 de Miopia e 8 de Astigmatismo. Torre Malakoff (Praça do Arsenal, Bairro do Recife). De 14/12 até 23/01/2005. Informações: 81.31343000.

Inventividade singular Alexandre Nóbrega, Carlos Melo, José Patrício, Gil Vicente, Martinho Patrício, Marcelo Silveira e Laura Vinci – criadores que se encontram, segundo Moacir dos Anjos, no fato de pertencerem a uma mesma geração e possuírem obras reconhecidamente maduras – estão expondo na mais nova galeria do Recife: Galeria Mariana Moura, que chega para adensar o ambiente artístico dinâmico e em expansão. Alexandre Nóbrega apresenta desenhos recentes em tons de preto, branco e cinza; Carlos Melo mostra fotografias; Gil Vicente, pinturas feitas em guache sobre papel; José Patrício justapõe inúmeras peças de dominó; Marcelo Silveira exibe trabalho inédito que deixa mais tênue, em sua obra, a linha que separa

Coleção

escultura da instalação; Martinho Patrício usa quase somente tecidos; já Laura Vinci expõe escultura feita em mármore.

Galeria Mariana Moura. (Av. Rui Barbosa, 735, Graças, Recife-PE. Tel: 81.3421.3725). Visitação de segunda à sexta, das 11h às 20h, e sábado, das 11h às 16h, até 18/12. Informações: www.marianamoura.com.br

O Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM – expõe 110 obras que foram doadas nos últimos quatro anos ao seu acervo. Doações 20012004 inclui obras de 44 dos mais expressivos artistas contemporâneos brasileiros. Entre as obras, telas, esculturas, fotografias, vídeos e instalações de artistas como Paulo Bruscky, Cildo Meireles, Alex Flemming, Alice Vinagre, Gil Vicente, Ernesto Neto, Vik Muniz, Nazareno, Jeanine Toledo, Guita Charifker, Marcelo Silveira e Alexandre Nóbrega. Doações 2001-2004. MAMAM (rua da Aurora, 265, Recife-PE. Tel 81.34233007). Visitação de terça a domingo, das 12h às 18h, até 30/01/2005. Continente dezembro 2004

AGENDA

ARTES


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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Reprodução

A aura e a obra Parece lógico admitir que envolver os objetos de aura é uma necessidade do ser humano

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invenção da fotografia assinala uma revolução no âmbito das linguagens figurativas, não apenas por ela mesma, como modo de expressão, mas também pelas conseqüências dela, derivadas para o processo de reprodução da obra de arte. Este é o tema do célebre ensaio de Walter Benjamin A Obra de Arte na Época da Reprodutibilidade Técnica. Antes da invenção da fotografia, a reprodução de uma obra de arte – a Mona Lisa, por exemplo – só podia ser feita, artesanalmente, ou seja, por alguém que a reproduzisse tão fielmente quanto possível sobre uma outra tela. Pondo-se de lado o fato de que seria praticamente impossível fazê-la em tudo igual ao original, resta o fato de que, mesmo que o conseguissem, esta reprodução seria considerada uma falsificação, pela simples raContinente dezembro 2004

A Mona Lisa, de Da Vinci

zão de que o valor e a autencidade da Mona Lisa, residem em seu caráter de objeto único, insubstituível, nascido das mãos de Da Vinci. A reprodução fotográfica supera esses óbices porque não é uma imitação da obra e, sim, a reprodução de sua imagem real – é a obra mesma captada pela objetiva da máquina fotográfica e impressa numa folha de papel. Noutras palavras, a autencidade do original se transfere para a cópia que assim se torna um novo modo de existência dele. Foi a observação deste fato que levou Walter Benjamin a elaborar a teoria da aura e seu desaparecimento com a possibilidade de reprodução técnica, ou seja, fotográfica. Com razão, o filósofo alemão constata que a obra de arte, em sua origem, é expressão mágica, depois religiosa, de modo a fundir-se nela o artístico e o mágico ou místico. Essa aura teológica, que acompanhou a obra de


TRADUZIR-SE

arte em quase toda a sua história, transformou-se em aura estética, na medida em que a sociedade foi se tornado menos religiosa e mais laica, com o desenvolvimento do capitalismo e da concepção burguesa dos valores sociais. A essa vinculação com o mágico e o místico, somou-se o caráter da obra como objeto único, assim definido no espaço e no tempo. A possibilidade de reproduzi-lo mecanicamente em milhares de cópias que são a imagem fiel do original eliminou, segundo a teoria de Benjamin, a aura que mantinha a obra de arte como raridade, fora do alcance da vasta maioria dos homens. Na sua visão de marxista, ele exulta com o fim da aura, cuja declínio “deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas à difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas ficarem ‘mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade. A cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução”. E acrescenta: “Retirar o objeto de seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção, cuja capacidade de captar ‘o semelhante no mundo’ é tão aguda que, graças à reprodução, ela consegue captá-lo até no fenômeno único”. Como conseqüência última deste processo, ele considera que, “no momento em que o critério de autenticidade deixa de aplicar-se à reprodução artística, toda a função social da arte se transforma. Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política”. Por isso mesmo, conclui dizendo que, no futuro, talvez a função artística da obra se torne secundária. Se a análise que faz Walter Benjamin das novas relações surgidas, no campo da expressão visual com as novas técnicas de reprodução, é penetrante e inovadora, algumas de suas conclusões foram negadas pelo futuro. A previsão de que a reprodução fotográfica e gráfica das obras de arte as despiria de toda e qualquer aura não se confirmou; pelo

contrário, a multiplicação da imagem da Mona Lisa em milhões de cópias fiéis ao original, ao invés de desmistificála, fez com que um número crescente de pessoas no mundo inteiro desejem ver-lhe o original. Basta ir ao Museu do Louvre para constatá-lo. Aliás, o que ocorreu foi o contrário do que previra o pensador: a multidão que, atraída pela aura daquela obra, invade diariamente o museu para contemplá-la, não consegue manter-se diante dela mais que dois minutos e a uma distância de cinco metros. Como o quadro se encontra, numa espécie de nicho e dentro de uma caixa de vidro, mais que nunca lembra uma santa relíquia a que a multidão vai prestar reverência. A aura que a envolvia, em vez de apagar-se, aumentou. Mas a Mona Lisa, bem ou mal, é uma obra de arte do século 16 pintada por um gênio. O que dizer, porém, de objetos industriais do século 20, produzidos em série, que não se podem classificar de obra de arte, como automóveis de passeios, carros de corridas? No entanto, alguns exemplares desses veículos, saídos de linha há muitos anos, são conservados como preciosas raridades, isto é, ganharam aura, embora não tenham origem nem mágica nem religiosa. Parece lógico admitir que, ao contrário do que Walter Benjamin pensava, envolver os objetos de aura é uma necessidade do ser humano. E o que ocorre com os chamados clássicos do cinema? Vejam bem: o cinema foi citado por Benjamin como o exemplo da arte sem aura, uma vez que não possui original. O “original” do filme é um negativo, que não é de fato o filme, uma vez que, lá, as imagens estão ao revés do que são quando projetadas. O filme é uma obra sem corpo, mera ilusão criada pela projeção luminosa na sala escura. Por isso mesmo já houve quem comparasse uma seção de cinema a um sonho, que acaba quando a luz de serviço da sala se acende e o espectador “acorda”. Não obstante, esta obra sem corpo também ganhou aura, pois é com indisfarçável reverência que o cinemaníaco se põe como espectador para ver (ou mesmo rever) obras-primas como O Encouraçado Potenkim ou Cidadão Kane. • Continente dezembro 2004

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Fotos: Divulgação

Delicadamente animalesco A diretora argentina Lucrecia Martel consegue construir um filme sedento de sexo, mas sem que isso salte aos olhos Kleber Mendonça Filho


CINEMA

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A atriz Maria Alché, no papel de uma adolescente que oscila entre o desejo e a religião

té agora com dois filmes – La Ciénaga (2001) e La Niña Santa (2004) – a cineasta argentina Lucrecia Martel, 37 anos, apresenta um olhar peculiar, voltado para o aparentemente “infilmável”. Ela põe a câmera na classe média, nas peles suadas de adultos e adolescentes, filma o calor e a umidade, capta detalhes de um mal-estar humano que vem da rotina e da tensão sexual, mesclando a possível inocência dos jovens e a experiência de vida que, de fato, pouco serve para os mais velhos. No geral, seus filmes, compostos por pequenos pedaços da vida orgânica e mundana, formam-se na consciência e tendem a ficar lá, vivos, um bom tempo, depois de os termos visto. Seus dois longas tornaram-se objetos de admiração da crítica brasileira, que nutre atualmente uma clara paixão pela atual produção argentina, superior em qualidade ao que vem sendo feito no Brasil. Dos diretores desse novo cine argentino (Pablo Trapero e Daniel Burman são outros nomes de destaque), Martel pode ser considerada a mais importante. Ela esteve este ano na competição do Festival de Cannes com La Niña Santa e foi capa da revista Cahiers du Cinéma, em setembro. La Ciénaga (O Pântano, lançado no Brasil com uma única cópia, já vista por mais de 35 mil pessoas) foi premiado em Berlim 2001. O filme foi visto por Pedro Almodóvar, que declarou ser um dos dois melhores filmes que ele tinha visto ao longo do ano (o outro, A Professora de Piano, de Michael Haneke), “um filme que sugere sem mostrar. Essa diretora já está na minha lista de favoritos”. Numa narrativa hipnótica e francamente desagradável sobre a classe-média argentina, Martel nos dá em O Pântano uma família, suas crianças, o álcool e o cigarro à beira de uma piscina podre de musgo. Ela organiza uma combinação de imagens que desafiam o sujo com cores fortes, da coreografia de mesas trôpegas arrastadas, ao tédio pessimista do final. É também um desses filmes que parecem exalar mau cheiro. É um retrato político da classe média na Argentina, provavelmente, mas funciona como um panorama humano intimista. El Deseo, empresa de Almodóvar (junto ao seu irmão Agustin), terminou por co-produzir o segundo filme de Martel, La Niña Santa. Esse seu segundo filme é uma obra que pode ser descrita como “fêmea” por defensores e detratores. Investiga os caminhos hormonais (ou animais) que nos levam a executar, ou a controlar, atos que a religião e regras de comportamento em sociedade “deveriam” cortar. Há três mulheres importantes no filme, duas são adolescentes, Amália (Maria Alché) e Josefina (Julieta Zylberberg), ainda jovens o suficiente para dar ouvidos às discussões escolares do catolicismo (“O que Deus quer de mim?” ou “Como distinguir entre a tentação do Diabo e o chamado de Deus?”), pensando na manutenção de uma virgindade, mesmo que essa manutenção seja relacionada apenas à vagina. A terceira mulher, Helena (Mercedes Morán), é divorciada e mãe de Amália. Ela administra um hotel, onde ocorre uma convenção de otorrinolaringologistas. O evento traz Continente dezembro 2004

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CINEMA

"Eu acho que os filmes mais interessantes são os que têm uma narrativa baseada no detalhe, pois levam o espectador a uma sensibilização, a algo que ele seja mais capaz de perceber sozinho"

homens para o prédio, cada um deles instalado em quarto individual, gerador individual de tensão. O talento de Martel, ao estabelecer esse ambiente, e, aos poucos, atacar o espectador com momentos delicadamente animalescos (um leve toque, um beijo, masturbação), constrói a base do filme.

Martel é diretora de pulso firme e interesse constante no rosto dos seus personagens. Seus enquadramentos são precisos, sem que isso trave a imagem ou a expressividade dos atores (todos impecáveis). Ela consegue construir um filme sedento de sexo, mas sem que isso salte aos olhos de maneira convencional. “Eu acho que os filmes mais interessantes têm uma narrativa baseada no detalhe”, disse Martel numa entrevista especial concedida à Continente.

Fotos: Divulgação

Com apenas dois filmes, Lucrecia Martel já se firmou como cineasta importante


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As adolescentes Josefina (Julieta Zylberberg) e Amália (Maria Alché), em cena de La Niña Santa

Existe um ar sensorial, de toque, de cheiro, nos seus filmes. Para mim, o aspecto sensorial de um filme é muito mais importante do que a trama. Algumas pessoas fazem uma diferença entre filmes de trama e filmes de clima. Eu acho que os filmes mais interessantes são os que têm uma narrativa baseada no detalhe, pois levam o espectador a uma sensibilização, a algo que ele seja mais capaz de perceber sozinho. Como o espectador não pode seguir uma trama, ele se entrega de maneira muito mais generosa ao filme. Mesmo resistindo, ele acaba se entregando. Dessa forma, o filme torna-se uma experiência de percepção. La Niña Santa parece alternar uma pontuação incomum, planos calmos e outros que mais parecem pancadas na cabeça, onde a sexualidade se destaca como tema central. Você pensou isso de maneira racional? Não, quando eu escrevo, o que importa é que eu mesma sinta prazer em cada cena. A situação, o desempenho dos atores, o som. Mas eu não fico pensando no ritmo dessa forma, tão drasticamente.

O filme é extremamente bem "Eu fico com muita composto em termos de câmera, mas eu me perguntei se os atores, vergonha, filmando particularmente as meninas, não se cenas de sexo, e não sentiram um pouco presas ao rigor. gosto de pedir para Teria sido o caso, se a atuação alguém fazer uma coisa tivesse sido muito improvisada. que lhe incomode. Mas estava tudo bastante or- Portanto, é claro que ganizado, então, o enquadramento conversamos muito, eu não complicou muito. O filme todo e as jovens atrizes" é muito preciso em váios pontos. Se o tom da atuação tivesse sido mais naturalista, provavelmente teria incomodado mais os atores. Seu estilo é um pouco anormal, no sentido de que você faz uma mistura de naturalismo com rigor. É o efeito produzido, mas, na verdade, não foi pensado de maneira tão sofisticada. A idéia era deixar a câmera quieta e que os atores se mexessem. Eu não gosto muito de usar travelling e steadicam, nem grua. Para o meu caso, as opções são reduzidas: câmera parada ou na mão. No entanto, em La Niña Santa, não usei os movimentos de câmera que usei muito em O Pântano.

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Mercedes Morán, no papel de Helena, mãe de Amália, contracenando com o ator Carlos Belloso

"Eu acho que da mesma forma que os golpes de Estado e as sanções econômicas são originados nos Estados Unidos, a ruptura cultural da América Latina também vem da intervenção dos EUA"

Muito da ação acontece nos rostos dos atores, com uma pequena expressão de diferencial. Nesse filme, o enquadramento é a parte mais ligada à intenção e visão médica do corpo, de muita proximidade. Às vezes, é paradoxal porque a proximidade não revela nada.

Você conversou abertamente com as garotas sobre o tema sexualidade? Eu fico com muita vergonha, filmando cenas de sexo, e não gosto de pedir para alguém fazer uma coisa que lhe incomode. Portanto, é claro que conversamos muito. Acho que elas ficaram protegidas no sentido de que, embora a ação seja bastante perturbadora, o que dá pra ver é muito pouco. Eu não tentei traí-las com a câmera, e isso lhes deu confiança.

interior da Argentina. Eu acho que a literatura já tratou esse tema muito mais do que o cinema. Chama-me a atenção que alguém possa ter uma vida sexual sem sentir que está confrontando a sua religião. É como uma estratégia humana para continuar vivendo. Parece exisitir uma barreira entre o cinema argentino e o brasileiro, em termos do que vocês vêem do Brasil e do que nós vemos da Argentina. O Pântano foi lançado no Brasil, há pouco, com uma única cópia para todo o território nacional. Geralmente, filmes argentinos no Brasil foram comprados por estúdios hollywoodianos para distribuição internacional. Eu acho que da mesma forma que os golpes de Estado e as sanções econômicas são originados nos Estados Unidos, a ruptura cultural da América Latina também vem da intervenção dos Estados Unidos. O cinema latino-americano não tem uma distribuição entre os países do continente por causa deles. É muito triste que países tão próximos não tenham intercâmbio.

Qual a sua relação com a crítica ? Fale um pouco sobre o conceito de uma virgindade A crítica raramente tenta dizer o pessoal, daí que ela vaginal, mas não anal. não me revela muita coisa, exatamente por ter sempre essa Essa idéia ainda existe em algumas classes sociais no capa da objetividade. Quando as críticas são ruins, eu Continente dezembro 2004


CINEMA sofro, mas esqueço rápido, e acontece a mesma coisa crítica péssima de La Niña Santa, achei divertido, porque quando elas são boas. Sinto-me lisonjeada, mas não dura. era radical, na minha opinião, preferível a uma reação apenas “mais ou menos” ao filme. Felizmente, meus A religião é muito presente no filme. Você é religiosa ? filmes deixam as pessoas divididas, gostam muito ou Eu tive uma educação muito católica e participei odeiam (muito). de maneira ativa no modus operandi católico. Por outro Qual seria um tema específico da Argentina que lado, afastei-me com a mesma paixão! Para nós, argentinos, o Brasil sempre foi um país de liberdade muito lhe interessa? Eu me interesso pela tensão entre o orgânico e a física muito grande. Talvez tenha a ver com a mistura de raças. A Argentina é muito espanhola, e bem mais moral, o físico e o pensamento, e como isso tudo se imcatólica nesse sentido. Mas também existem igrejas põe ao físico. Esses conflitos me atraem, e eu acho que brasileiras como a Igreja Universal e a Conferência eles são muito mais presentes na Argentina do que num Empresarial, que é como uma religião baseada na país como o Brasil. É estranho que não existam atualmente mais narrativas orgânicas no Brasil, porque é um superação econômica. país muito físico e sensorial. Qual sua visão do circo de cinema que é o Festival Sua observação me parece correta. Qual o seu ponto de Cannes? Eu acho que Cannes tem história como espaço de de vista sobre isso? Eu acho um perigo para a cinematografia brasileira a discussão muito forte entre cineastas e crítica, mas que se tornou uma coisa muito comercial. Os produtores, por enorme sedução que exercem os Estados Unidos, narraexemplo, pediram-me para não brigar com a imprensa, e tivamente falando. Na Argentina, parece-me que há mais tentar ser agradável, porque eles precisam da crítica den- diretores opostos a essa narrativa, esse estilo importado. tro de um ponto de vista comercial. Acho que Cannes Eu vi em Cannes vários diretores brasileiros preocupaperdeu essa irreverência e atitude de luta intelectual. Era dos com o domínio de mercado da Globo, na produção muito mais divertido antes, imagino. Acho que não foi o cinematográfica, algo que tanto estimula quanto enterra festival que se transformou, é mais uma questão de essa produção. Ao mesmo tempo, o Brasil é um país mercado. Fico muito irritada, às vezes, nas coletivas de muito rico culturalmente, não vai ser fácil submetê-lo a isso. Acredito que nós, argenimprensa, mas tento me continos, descobrimos que gostatrolar, por temer que o filme mos de ser argentinos, o que não se venda por causa de era um problema antes. Ser uma imprensa negativa. Isso é argentino é como ser um antium condicionamento estúpido herói, um fracasso, o que se que não serve para nada, tornou uma coisa simpática. intelectualmente, mas tem Há uma atração, um carinho outras funções. Todo mundo e, ao mesmo tempo, uma refica influenciado por esse jeição por esse personagem terror comercial. Quando a fracassado. • Hollywood Reporter fez uma

Cartaz do filme La Niña Santa Continente dezembro 2004

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54 禄 54 PERFIL

Retrato de Marlene Dietrich, pelo fot贸grafo E. R. Richee, em meados dos anos 30


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Um mito chamado Marlene Ao lado de Greta Garbo e Marilyn Monroe, Marlene Dietrich compõe, provavelmente, o trio das maiores divas do cinema. Sua vida, que virará novo filme em 2005, teve ingredientes profissionais, pessoais e políticos que a tornaram um mito feminino do século 20 Fernando Monteiro

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ara o diretor Josef von Sternberg, o cinema seria “a arte do Rosto”. Vivesse hoje e ainda alimentasse tal crença, estaria mal o lendário cineasta de origem austríaca, nesta época onde sobram caras e faltam faces na tela, há abundância de modelos e uma grande carência de atores e atrizes, cujas “máscaras” eram um dos meios expressivos mais caros a Josef Sternberg (o “von” parece que foi acrescentado, em 1919, para dar prestígio ao nome do novato no cinema americano). Foi ele quem descobriu Marlene Dietrich – prestígio maior do que qualquer “von” da nobreza de cartas de baralho. No naipe feminino, o naturalmente aristocrático Sternberg (não confundir com o pedestre Spielberg) já havia descoberto Phillis Haver, Evelyn Brent e Georgia Hale, divas do cinema mudo – o qual teria pouco a fazer com as Julias Roberts e as Catherines Zeta-JJones do faladíssimo cinema atual. Enfrentemos a verdade: se o vazio de expressão da bela Catherine é quase constrangedor, com Julia (e outras) podemos até acreditar que seus personagens tiveram uma ou outra crise histérica... mas não um passado – um verdadeiro passado – que é coisa de rostos com pathos. Diretor de O Anjo Azul (1930), o vienense sabia escolher, iluminar e Continente agosto 2003


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PERFIL A autobiografia da cultivada Marlene não foi escrita por outros: a alemã bem-nascida e educada dispensou qualquer ajuda para escrever “sem festa e sem foguetes” (sang und klanglos), expondo a ossatura de um mito duro como diamante dirigir elencos dignos de uma câmera capaz de captar a personalidade. Quando ele foi convidado, em 1929, para dirigir Der Blaue Engel, em Berlim, o célebre realizador sabia perfeitamente o tipo de personagem que deveria tornar vivo – imortalmente vivo – na produção da poderosa UFA (Universum Film Aktiengeselleschaft, sociedade produtora e distribuidora que dominava o cinema alemão desde 1917). Sua única concessão aos chefões havia sido aceitar Emil Jannings – um “ator psicopata”, na opinião de Marlene Dietrich – no papel do professor que se apaixona pela vulgar Lola-Lola. Quanto a esta, Sternberg estava livre para escolher dentro ou fora do estúdio lotado de “protegidas” de uns e outros, entre os quais o próprio Jannings “forçava a barra” em favor de Lucie Mannheim, jovem atriz com o nome sublinhado na lista dos testes que incluíam uma quase desconhecida chamada apenas de Marlene D., na relação das candidatas ao papel da cantora de cabaré. O diretor Josef von Sternberg, com câmara descomunal, nos anos 30 Assim que a viu, o diretor de The Docks of New York perguntou: “E esse ‘D’, é de quê?” A moça respondeu “Dietrich”, e o “pigmaleão” de Viena, olhando para além dos louros cabelos encaracolados, logo notou a carga de erotismo do olhar falsamente ensonado debaixo das sobrancelhas altas, num rosto também marcado pelos lábios fartos e bem desenhados da Lola do livro de Heinrich Mann (irmão de Thomas). “É o ingrediente de que eu preciso” – teria sido o comentário de Sternberg, antes mesmo do teste de câmera com a jovem de 28 anos, ainda fazendo o tipo “ingênua”, próprio de Maria Magdalene Dietrich von Losch, menina rica de Berlim, nascida para representar a alma do Anjo Azul, segundo o diretor. “Ele me criou” – Na autobiografia Marlène D., a atriz e cantora considera que seu mito foi criado pelo “maior diretor de cinema que existiu”. Em bom francês – a língua amada da sua adolescência de paixão pela professora Mademoiselle Breguand –, ela não deixa dúvida sobre a sua dívida para com Von Sternberg: “Ele me criou. Um milagre que só se repetiu quando Luchino Visconti dirigiu Helmut Berger, com o mesmo olhar revelador por detrás da câmera, aquele olho que ama a criatura cuja imagem impressiona a película e é a origem do efeito prodigioso que a dita criatura produz, provocando a adulação e a paixão dos espectadores de todo o mundo”. Marlene se descreve como “uma mulher comum” que o gênio teria dotado de mistérios incomuns, a partir do primeiro filme sonoro europeu de amplo sucesso, nas versões em alemão e inglês, feitas paralelamente (ainda estava longe o recurso das dublagens). O Anjo Azul é o nome Continente dezembro 2004


As famosas pernas de Marlene em O Anjo Azul, ícone da história do cinema

do cabaré e não de Lola, “garota de má-vida”, cantando com voz de chuva e falando com leve sotaque da Alemanha do Sul. “Era um papel difícil para mim – avaliou, mais tarde, a ‘mulher comum –, insolente e terno ao mesmo tempo, e fora da minha experiência de menina superprotegida. Lola-Lola exigia uma atriz natural, liberta. O que me valeu foi que Sternberg tinha uma imagem muito precisa dela, sabia como deviam ser a sua voz, os seus gestos, o seu andar. Ajudou-me a escolher uns vestidos e até a desenhar e criar outros...” Naquele estúdio da UFA, estava sendo formada uma “aura” que seria aperfeiçoada em Hollywood – para onde Marlene logo emigrou. Ainda sob as ordens de Sternberg, seria a estrela de Marocco (1930), com Gary Cooper, Desonrada (1931), Blonde Vênus e O Expresso de Shangai, ambos de 1932. No Expresso, ao lado do inacreditável Clive Brook – talvez o maior canastrão de todos os tempos –, ela sobrevive aos diálogos com ele, num trem em marcha pela China revoltosa de papelão que se impregna da presença cênica de Marlene vestida, maquilada e dirigida para criar aquele “impacto na memória de fumaça e celulóide” do “ingrediente” Dietrich. Os filmes não são mais de celulóide, porém o rosto da estrela permanece como uma visão conradiana, na “nuvem do seu mistério” difícil de definir: feminino, fatal, angelical? Andrógino, real – irreal? Continente dezembro 2004


Marlene fotografada por Don English, no camarim: pop star


PERFIL

Marlene canta para os soldados aliados, na Segunda Guerra Mundial: “traidora e prostituta”

O que havia, não nas pernas (“as mais belas do cinema”, sim), mas no rosto da atriz – não muita boa, por sinal –, naquelas faces encovadas e iluminadas de cima, capazes de conferir uma persona e um passado aos vagos fantasmas focados pelas câmeras? A alquima se faz mesmo em alguns filmes pífios, nos quais subsistem sua personalidade e sua voz de areia monazítica, enluvando canções entremeadas de cigarro, quando ainda se podia fumar e adensar atmosferas, com alguns gestos sutis. É que ela faz em títulos menores como O Jardim de Allah (1936), Kismet (1944) e Martin Roumagnac (1946). Para este último – dirigido pelo inexpressivo Georges Lacombe –, o compositor Jacques Prévert compôs a maravilhosa Folhas Mortas, que Marlene não quis cantar, mal-aconselhada por seu partner (e amante) Jean Gabin. Indestrutível, a berlinense resistiu a tais conselhos e a diretores ainda piores do que Lacombe, depois de se ver “abandonada” por Von Sternberg (conforme lamenta) desde The Devil is a Woman, filme de 1935 – intitulado Mulher Satânica, no Brasil – que foi o último da carreira da criatura com o seu criador nada entusiasmado com a cor e outros avanços técnicos no caminho de “um realismo cada vez mais impróprio para abordagens artísticas” – na opinião do diretor considerado “o Leonardo da Vinci do cinema”. Hoje, talvez seja difícil compreender o primado estético que fez Sternberg filmar cada vez menos, a partir dos anos 40, e encerrar sua carreira, afinal, dirigindo a recém-falecida Janet Leigh no banal Jet Pilot (1957), dominado pela massa corpórea de John Wayne. Nada mais afastado da fatal Lola e do patético professor Rath, como aparições da decadência de toda uma época expressada nas ricas nuances do preto-e-branco. Sem festa e sem foguetes – A autobiografia da cultivada Marlene não foi escrita por outros: a alemã bem-nascida e educada dispensou qualquer ajuda para escrever “sem festa e sem foguetes” (sang und klanglos), expondo a ossatura de um mito duro como diamante. A ducha fria começa pela advertência: “Não dedico este livro a ninguém em particular... escrevi-o para aquelas pessoas que me apreciaram, tanto no écran quanto no palco, para aqueles que me permitiram trabalhar, ganhar dinheiro, pagar os meus impostos e gozar os prazeres fúteis que a vida pode oferecer”. Sternberg recebe os mais derramados elogios, Fritz Lang – outro mestre do cinema teutônico, que trabalhou em Hollywood e dirigiu Dietrich no festejado Rancho Notorius (1952) – é chamado de arrogante, sádico e fascista: “Foi o diretor que eu mais detestei, e teria gostado de estrangulá-lo ali mesmo, no estúdio dominado por aquele Dr. Mabuse de carne e osso”, confessa a compatriota do cineasta genial de Metropolis (que ela ousa chamar de “amador”). Continente dezembro 2004

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PERFIL É também uma autobiografia que se debruça amplamente sobre a iluminação, o vestuário e outros itens do drama e da comédia cinematográficas, tanto quanto sobre ternas amizades com celebridades como Jean Gabin, Ernest Hemingway, Erich Maria Remarque, Nöel Coward, Orson Welles, Billy Wilder, Edith Piaf, Burt Bacharach e Sir Alexander Fleming (o cientista fã da Dietrich o suficiente para presenteá-la, no primeiro jantar na casa da atriz, com um pequeno objeto pouco atraente, recoberto de vidro: a primeira cultura de penicilina feita no mundo)... Mas não havia remédio contra a melancolia da Marlene, depois de abandonar o cinema – em 1961 – para se dedicar à carreira de cantora. Durante a Segunda Guerra Mundial, havia se tornado a “favorita” dos soldados, fazendo mais de 500 apresentações perto da linha de frente. Seu último filme – Julgamento em Nuremberg, de Stanley Kramer – foi sobre o tema dos crimes dos nazistas, e o túmulo da atriz, em Berlim, até hoje não escapa das pichações de neo-nazistas que chamam de “traidora e prostituta” a mulher que fez vender milhares de bônus pró-aliados, vestiu a farda do exército norte-americano (ela gostava do uniforme tanto quanto de um vestido de Balenciaga) e que recusara o cheque em branco do embaixador de Hitler em Paris, quando o Führer fizera o possível para trazê-la de volta aos estúdios da UFA, em 1938.

Cartaz americano de O Anjo Azul, com Marlene menos destacada que Emil Jannings

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Deserto – Os temas da guerra e da amizade (mais do que o amor) são, aliás, os que rendem os melhores momentos de Marlène D. Ela evoca suas experiências na confusão da ofensiva das Ardenas - onde conheceu generais (alguns, no sentido bíblico) como Patton e Bradley - com toques narrativos dignos do escritor que foi também o homem que ela diz ter amado “mais do que todos”: Ernest Hemingway. No “deserto de mortos que torna insuportável a velhice”, o autor de Adeus às Armas é a ausência mais lamentada pela amiga que o chama de “a minha Rocha de Gibraltar", com as palavras de uma mulher ainda apaixonada: “Ernest foi a âncora, o sábio, a pessoa que resolvia os problemas, o melhor de todos os meus conselheiros, o chefe da minha igreja privada; como pude sobreviver depois do seu desaparecimento? Pergunto-o, porque o amor que Hemingway e eu sentimos um pelo outro foi um amor excepcional no mundo em que vivíamos, um amor puro, absoluto, jamais obstruído pelas dúvidas e para além da morte". Marlene Dietrich viveu os últimos 15 anos da sua vida num apartamento parisiense de três quartos, deitada na cama. Quase sempre alcoolizada, tudo que lhe restava eram as muitas lembranças de um mundo que ela conhecera bem, em meia dúzia de línguas e mil oportunidades de ver seu lado bom e mau. Estava muito cansada, no fim. Aqui e ali, Maria Riva, a sua única filha, era encarregada de vender objetos preciosos, para garantir a subsistência do mito recluso. Marlene continuava sustentando ser “o sofrimento um sentimento privado”, e jamais falava das suas perdas para os “odiados” jornalistas que ainda a procuravam à cata de inconfidências da mulher que havia se convertido, segundo ela própria, “numa pessoa que não revela nunca as emoções mais profundas, uma mulher distante e solitária, prisioneira do santuário das suas crenças e lembranças”. Em 1984, o ator Maximillian Schell dirigiu um documentário – Marlene – onde ela se mostrava exatamente assim, sem disfarces. Oito anos depois, “Marlene D.” morreria dormindo, aos 90 anos de idade. Em 1993, o seu vasto acervo – constituído de 300 mil documentos, 15 mil fotografias, 80 malas, 440 pares de sapatos, 150 pares de luvas e mais de 2.500 gravações de músicas – veio a ser adquirido, por cinco milhões de dólares, pelo Senado de Berlim, onde está arquivado no Museu do Cinema local. •


PERFIL

Marlene em datas Marlene Dietrich, cujo nome de batismo era Maria Magdalene von Losch, nasceu no dia 27 de dezembro de 1901, em Berlim, e morreu no dia 6 de maio de 1992, em Paris, aos 90 anos.

Calçada da Fama Um “Passeio da Fama” vai ser inaugurado em 2006 no centro de Berlim para homenagear personalidades do cinema germânico, anuncia o Museu do Cinema da Alemanha. Marlene Dietrich deverá ser a primeira estrela a brilhar neste Boulevard der Stars. Cinebiografia A vida da atriz será transformada em filme, em 2005. A norte-americana Gwyneth Paltrow interpretará a diva, também assinando a coprodução do filme. O longa é baseado na biografia Marlene Dietrich, de Maria Riva, e está sendo produzido pela Dream Works. DATAS 27 de dezembro de 1901: Nascimento de Maria Magdalena von Losch, em Berlim. 1912: Maria Magdalena cria seu pseudônimo Marlene a partir da junção de seus dois prenomes. 1922/1923: Marlene faz curso de três meses na escola de Arte Dramática e estréia nos palcos e no cinema. 17 de maio de 1923: Casamento com Rudolf Sieber. 13 de dezembro de 1924: Nascimento de sua filha Maria. 1927: Protagoniza o filme Wenn ein Weib den Weg verliert. 1929: Assina contrato para filmar O Anjo Azul, sob direção de Josef von Sternberg. 1º de abril de 1930: estréia de O Anjo Azul, em Berlim. No dia seguinte, Marlene embarca de navio para os Estados Unidos, onde fixa residência em Beverly Hills. 14 de novembro de 1930: Estréia de Marrocos, do diretor Josef von Sternberg, primeira produção americana de Dietrich. 1935: Após sete longas-metragens, a diva deixa de filmar com o diretor alemão. 9 de junho de 1939: Dietrich recebe a cidadania americana. 1944/1945: Marlene realiza shows para as tropas americanas estacionadas na Europa. 1953: Primeiro show solo em Las Vegas.

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1960: Marlene volta a se apresentar na Alemanha e sofre repúdio de grande parte da população, que a considera uma “traidora da pátria”, por ter se aliado aos americanos durante a 2ª Guerra Mundial. 14 de dezembro de 1961: Estréia mundial do filme Julgamento em Nurembergue. 1975: Última turnê de Dietrich. 1976: Marlene se recolhe em seu apartamento parisiense e anuncia que escreverá suas memórias. 1978: Última aparição no cinema, ao lado de David Bowie, no filme Apenas um Gigolô. 1979: Lançamento de sua autobiografia. 1984: Maximilian Schell lança o documentário sobre a vida da diva, com participação da voz da atriz e imagens de arquivo. 6 de maio de 1992: Morte de Marlene Dietrich, aos 90 anos, em Paris. 16 de maio de 1992: Sepultamento de Marlene Dietrich em Berlim.

O Anjo Azul, Heinrich Mann A história se passa no início do século passado e nela um professor, chamado por todos de “lixo”, se apaixona por uma cantora de cabaré e acaba na ruína. Neste romance escrito em 1905 e best-seller durante décadas na Alemanha, o autor se propõe a desmascarar a mentalidade estreita e tirânica da pequenaburguesia que iria, anos mais tarde, engrossar as fileiras do movimento nazista. Fonte: www.dw-world.de

Marlene, já um mito, agradece aplausos da platéia (s/d)


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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Leo Caldas/Titular

"Comer, beber e gozar do fruto do seu trabalho é um dom de Deus." (Eclesiastes 3,13)

A

religião nasceu com o homem. Todas as civilizações tiveram deuses feitos à sua imagem e semelhança. Os deuses gregos não sabiam perdoar. Os egípcios se vingavam de quem não lhes obedecia. Eram deuses “monstruosos e satânicos, de um panteísmo de sangue”, palavras de Fernando Pessoa. Aos poucos tudo foi mudando. Os muitos deuses acabaram em um só – onipotente e criador do universo. Sendo a violência dos primeiros tempos convertida em misericórdia, compaixão e perdão. A Bíblia dá testemunho dessa devoção pelo Deus que hoje professamos. Bíblia vem do grego “livros” (biblion). São 73 deles. Do Antigo Testamento (46), escritos em hebraico e aramaico, anteriores ao nascimento de Cristo; e do Novo (27), em grego, posteriores à morte daquele que veio ao mundo para nos salvar. A versão definitiva em latim, denominada Vulgata, foi traduzida por São Jerônimo (séc 4). A Bíblia se ocupa de quase tudo. Da origem do universo e do homem, de Noé e dos patriarcas (Gênese), da fuga dos hebreus (Êxodo), de como vagaram no deserto (Números), da fidelidade aos mandamentos (Deuteronômio), da organização dos cultos (Levítico) e sobretudo da vida de Jesus (Evangelhos). Em cada passagem se revelando hábitos do povo de Deus. Inclusive alimentares. O Eclesiastes (3,2) ensina que “há tempo para plantar e tempo para arrancar o que foi plantado”. Alimentos estão ali por toda parte. Separados os proibidos dos permitidos. Os destinados aos rituais de sacrifício daqueles usados só como remédio. Sendo até indicada a serventia dos utensílios, na cozinha e na mesa. “Eis Continente dezembro 2004

que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente para que vos sirvam de alimento” (Gênese 1, 29). “Semeia a tua semente desde a manhã, e não deixes tuas mãos ociosas até a noite” (Eclesiastes 11, 6). “Deus fez brotar da terra toda sorte de árvores de aspecto agradável, e de frutos bons para comer; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal... disse podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente”. (Gênese 2, 9-17). Eva (em hebraico, “costela”) não resiste “ao fruto da árvore que era bom para comer, de agradável aspecto e muito apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido que comeu igualmente” (Gênese 3, 6). E sofrem, ela e Adão (em hebraico, “aquele que veio da terra”), severo castigo: “Tirarás da terra com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de tornar”. (Gênese 3, 17-19). Dos alimentos do povo de Deus, o mais importante, sem dúvida, é o pão. Belém (Bet’lehem), cidade da Palestina em que nasceu Jesus, significa precisamente “casa do pão”. “O principal para a vida do homem é a água, o pão, o vestuário e uma casa para ocultar a sua nudez” (Eclesiastes 29, 28). Esse pão, nos primeiros tempos, era preparado com farinha de trigo (ou de cevada) e legu-


SABORES PERNAMBUCANOS mes secos. Fermento não – a novidade só foi descoberta mais tarde, pelos egípcios. Pão era componente obrigatório de todas as refeições. Servia também para levar comida à boca. “Jacó deu a Esaú pão e prato de lentilhas. Esaú comeu, bebeu, depois se levantou e partiu. Foi assim que Esaú desprezou o seu direito de primogênito” (Gênese 25, 34). É que, por essa época, os primeiros filhos eram considerados sagrados, porque deles dependia a descendência das famílias. O velho patriarca – do grego patria (família) e arche (governante) – Abraão, desejando servir refeição majestosa a três anjos, disse a Sara: “Depressa, disse ele, amassa três medidas de farinha e coze pães”. Como recompensa, Deus concedeu a Sara e a Abraão, “velhos, de idade avançada” (Gênese 18, 6-11), o prêmio de um filho. Esse pão era servido puro ou molhado no vinagre: “Vem, come tua parte do pão, e molha o teu bocado no vinagre” (Rute 2, 14). Depois de escapar do cativeiro egípcio, os hebreus vagaram pelo deserto por 40 anos, distância que, normalmente, demoraria um mês a pé, ou duas semanas em camelo. Cansados e famintos se lamentavam – “Oxalá tivéssemos sido mortos pela mão do Senhor no Egito, quando nos assentávamos diante de panelas de carne e tínhamos pão em abundância! Vós nos conduzistes a este deserto para matardes de fome toda esta multidão” (Êxodo 16, 3). A queixa foi ouvida pelo Senhor, que disse a Moisés: “Vou fazer chover pão do alto do céu” (Êxodo 16, 4). E lhes mandou, dos céus do deserto, codornas e maná (“man-hu – substância leve e quebradiça como pequenos flocos de gelo”). Valendo lembrar que um dos milagres de Jesus foi o da multiplicação do pão – eram “cinco pães e dois peixes....e foram cinco mil os homens que haviam comido aquele pão” (Marcos 6, 41-44). Ao lado do pão, desde os primeiros tempos, esteve sempre o vinho. “Vinho novo, amigo novo; é quando envelhece que o beberás com gosto” (Eclesiastes 9, 15). “Faz-se festa para se divertir; o vinho alegra a vida...” (Eclesiastes, 10, 19). Noé “era agricultor, e plantou uma vinha. Tendo bebido vinho, embriagou-se, e apareceu nu no meio de sua tenda” (Gênese 9, 20). Por isso era recomendado cuidado com o vinho “que morde como uma serpente e pica como um basilisco (lagarto). Teus olhos verão coisas estranhas. Teu coração pronunciará coisas incoerentes” (Provérbios 23, 3233). “O vinho e as mulheres fazem sucumbir até mesmo os sábios, e tornam culpados os homens sensatos” (Eclesiastes 19, 2). Ao vinho destinou Jesus outro dos seus milagres. Em bodas realizadas na cidade galiléia de Canaã, a pedido de sua Mãe. Assim disse “enchei as talhas de água... quando os serventes provaram da água tornada vinho, se surpreenderam” (João 2, 7-9). Sem esquecer da Santa Ceia – “Jesus tomou o pão, benzeu-o, partiu-o e deu a seus discípulos dizendo: Tomai e comei, isto é o meu corpo. Tomou depois o cálice, rendeu graças e deu a eles, dizendo: Bebei dele todos, porque isto é o meu sangue, o sangue da Nova Aliança,

derramado por muitos homens em remissão dos pecados” (Mateus 26,26-28). Em se tratando de carne, propriamente dita, a preferência era o cordeiro. Deus chegou a ditar, a Moisés, o ritual do cordeiro da Páscoa: “Este mês será para vós o primeiro dos meses do ano. Falai a todo o ajuntamento dos filhos de Israel e dize-lhe que ao décimo dia desse mês, cada um deverá tomar um cordeiro por família, um cordeiro por casa... Este cordeiro será sem defeito, macho, de um ano; poderás tomar tanto um cordeiro como um cabrito. E o guardareis até o décimo quarto dia, desse mês; então todos os filhos de Israel o imolarão no crepúsculo. Tomarão do seu sangue e pô-loão sobre as vergas da porta das casas em que o comerem. Nessa mesma noite comerão a perna do cordeiro ou do cabrito assado no fogo com pães sem fermento e ervas amargas” (Êxodo 12, 1-8). Depois vinham boi e vitelo. O velho patriarca Abraão “correu em seguida ao rebanho, escolheu um novilho tenro e bom, e deu-o a um criado que o preparou logo. Tomou manteiga e leite e serviu aos peregrinos juntamente com novilho preparado, conservandose de pé junto deles, sob a árvore, enquanto comiam” (Gênese 18, 7-8). A volta para casa do filho pródigo foi comemorada assim: “O Pai falou aos servos ...trazei um novilho gordo e matai-o; comamos e façamos uma festa. Este meu filho estava morto, e reviveu; tinha se perdido, e foi achado. E começaram a festa”. (Lucas 15, 23-24). Por fim, orientou o Senhor, aos filhos de Israel, quais as outras carnes que poderiam comer. “Entre todos os animais da terra eis o que podereis comer: podereis comer todo animal que tem a unha fendida e o casco dividido, e que rumina. Mas não comereis aqueles que só ruminam ou só têm a unha fendida. A estes, tê-los-eis por impuros: tal como o camelo, que rumina, mas não tem o casco fendido. E como o coelho igualmente que rumina mas não tem a unha fendida; tê-los-eis por impuros. E como a lebre também, que rumina, mas não tem a unha fendida; tê-la-eis por impura. E enfim, como o porco, que tem a unha fendida e o pé dividido, mas não rumina; tê-lo-eis por impuro. Não comereis da sua carne e não tocareis nos seus cadáveres” (Levítico 11, 2-8). Aves também estão presentes nas escrituras sagradas – pombo, codorna, perdiz, ganso, pato e galinha. Elas e seus ovos. Outras aves eram proibidas – “a águia, o falcão, o abutre, o milhafre... e toda espécie de corvo, avestruz, andorinha, gaivota, gavião, mocho, coruja, íbis, cisne, pelicano, alcatraz, cegonha, garça, poupa e morcego” (Levítico 11, 14-19). Insetos, apenas “aqueles que, além de seus quatro pés, têm pernas para saltar em cima da terra. Eis pois os que podereis comer: toda espécie de gafanhotos, assim como as variedades de solam, de hargol e de hagab” (Levítico 11, 21). Peixes sim, mas só para os que moravam nas margens do mar Mediterrâneo, do rio Jordão ou dos lagos do Norte. Provavelmente porque, sem as técnicas modernas de conservação dos alimentos, Continente dezembro 2004

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SABORES PERNAMBUCANOS não era àquela época possível transportar peixes por longas distâncias. Mas só poderiam comer peixes “que têm barbatanas e escamas” (Levítico 11, 9). A cozinha da Bíblia se fazia com grande quantidade de ervas – hissopo, coentro, cominho, endro, hortelã, mostarda, anis, chicória, tomilho, salvia, aipo. Trazidas em caravanas da Índia e da Península Arábica. Legumes, sobretudo secos, por serem mais fáceis de conservar. E arroz – que, além de acompanhar pratos, era também usado na fabricação de vinho, cerveja e vinagre. Usavam azeite de oliva. Do leite de cabra, ovelha e vaca faziam queijos frescos e secos (conservados no sal), e do mel de abelha faziam uma espécie de torta – “era branco e tinha o sabor de uma torta de mel” (Êxodo 16, 31). Festas de casamento, circuncisão e assinatura de tratados eram comemoradas com banquetes. A rigor, naquele tempo, motivo para festa importava pouco. “Seis dias antes da Páscoa, Marta ofereceu, em Betânia, uma ceia em honra de Jesus” por Ele ter ressuscitado seu irmão Lázaro”( João 12, 1-2). Depois, Marta tornouse, por conta desse banquete, padroeira universal de cozinheiros, hoteleiros, donas-de-casa e empregados domésticos. A data é comemorada em 29 de julho. Nas imagens está quase sempre representada com utensílios ao pé – concha de cozinha, vassoura, chave de casa. Só recentemente começou a ser venerada, no Brasil. Mas essa devoção não pegou na Bahia – onde o santo de prestígio, nessa matéria, continua sendo São Benedito (4 de Abril) – “São Benedito na cozinha garante fartura”, diz a crença popular. Os banquetes da Bíblia obedeciam a regras determinadas em capítulo especial do Eclesiastes (31, 12-42). “Não sejas o primeiro a estender a mão para o prato, nem sejas o primeiro a pedir de beber” (Eclesiastes 31, 21). “Se tiveres sido obrigado a comer demais, levanta-te e vomita; isso te aliviará” (Eclesiastes 31, 25). Os banquetes palestinos se inspiram nos gregos e romanos. Todos sentavam reclinados, em volta de mesas baixas. “Samuel levou Saul para a sala de festim e deu-lhe o primeiro lugar entre os convidados, que eram em número de aproximadamente trinta pessoas. Samuel disse ao cozinheiro: Serve a porção que te dei e que te mandei pôr à parte. Tomou pois o cozinheiro à espádua com o que nela havia e a serviu a Saul” (Primeiro Livro de Samuel 9, 22-24). Tudo começava com a lavagem dos pés “Vou buscar um pouco de água para vos lavar os pés”(Gênese 18, 4). “Maria tomou uma libra de bálsamo...ungiu os pés de Jesus e enxugou-os com seus cabelos” (João 12, 3). Os exageros nas refeições eram sempre condenados – “Não comas demasiadamente num banquete” (Eclesiastes 31, 17). “O excesso na bebida causa irritação, cólera e numerosas catástrofes (Eclesiastes 31, 38). “Feliz do país, cujo rei é de família nobre. E cujos príncipes comem à hora conveniente, não por devassidão, mas para sua própria refeição”. (Eclesiastes 10, 17). Continente dezembro 2004

O Senhor também ensinou a Moisés o ritual dos sacrifícios. Esses sacrifícios se dividem em holocaustos ou oblações. Nos holocaustos se imolavam animais – boi, cabra, carneiro, pombo, aves. “Imolar-se-á o novilho diante do Senhor, e os sacerdotes oferecerão o sangue e o derramarão ao redor sobre o altar que está à entrada da tenda de reunião. Tirar-se-á a pele da vítima e esta será cortada em pedaços. Os filhos do sacerdote Aarão porão fogo no altar e empilharão a lenha sobre ele, dispondo, em seguida, por cima da lenha, os pedaços, a cabeça e a gordura. Lavarse-ão com água as entranhas e as pernas, e o sacerdote queimará tudo sobre o altar” (Levítico 1, 5-9). Enquanto nas oblações “será uma flor de farinha; derramará sobre ela azeite, ajuntando também incenso... E o sacerdote a queimará no altar” (Levítico 2, 1-2). Mas essas oblações poderiam ser também cozidas no forno “farás bolos de flor de farinha sem fermento, amassados com azeite, e bolachas sem fermento, untadas com azeite” (Levítico 2, 4). O sal estava presente em todas as oferendas, como sinal de aliança com Deus. Mel e fermento, não. Para completar, faltaria ainda aqui falar na gula, elevada à categoria de pecado capital. Mas essa é outra história. •

RECEITA CORDEIRO AO MEL INGREDIENTES 2 kg de carré de cordeiro cortado em pedaços, sal, pimenta, 6 colheres de sopa de azeite de oliva, 1 cebola picada, 1 pimentão verde picado, 1 colher de chá de páprica doce, 1 copo de vinho branco seco, 4 colheres de sopa de mel, folhas de hortelã. PREPARO Tempere o cordeiro com sal e pimenta. Aqueça o azeite na panela de pressão e refogue o cordeiro até dourar. Junte cebola e pimentão. Refogue por 5 minutos. Junte também páprica e vinho. Tampe a panela e cozinhe por 30 minutos. Retire a panela do fogo, espere perder a pressão, abra e retire o cordeiro. Ao molho que ficou na panela, adicione mel e cozinhe por 3 minutos. Passe esse molho na peneira. Regue o cordeiro e sirva, decorado com folhas de hortelã.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

O tiro, meio século depois

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udo indicava que 54 seria no Brasil um ano igual aos outros: no dia primeiro, faltara água em Copacabana; o discurso do presidente, na véspera, fazia promessas e anunciava venturas; e vinha do Ceará um telegrama em que se noticiava que, ao contrário do que se esperava, as chuvas não haviam caído. Rubem Braga contava que vira de uma janela do Hotel Comodoro, em São Paulo, o dia e o ano morrerem. E aos dois dissera com uma certa melancolia: “Adeus”. Outros adeuses foram ditos, por outras pessoas menos líricas e mais aflitas. Fúnebre, o sr. Augusto Frederico Schmidt informava numa entrevista que “a hora é nada risonha nem franca”. Esperanças vãs, tristezas várias, alegrias rotineiras – 1954 seria, certamente, um ano como os outros. Foi quando de repente, oito meses depois, no dia 24 de agosto, às 8 e 25 da manhã, ouviuse um tiro no Palácio do Catete; e então “os céus se misturaram com a terra e o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas” (Manuel Bandeira). • Continente dezembro 2004

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Divulgação/AE

ELIS Do inferno ao paraíso


MÚSICA

Ícone da música popular brasileira, a cantora gaúcha encarnou as agruras de uma artista, vivendo nos anos cinzentos da História brasileira Sérgio Luz

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air da vida para um cemitério, é comum, acontece com todo mundo. Mas sair de um cemitério para a vida, só mesmo simbolicamente. Pois foi o que aconteceu com uma gaúcha chamada Elis Regina Carvalho Costa que, em 36 anos de vida, gravou 27 LPs, 14 compactos simples e seis duplos, que venderam um total de quatro milhões de cópias – um número até hoje impressionante. Em poucos anos, Elis sai do Inferno para o Paraíso. Ao Inferno, ela chega ao ser “enterrada” no Cemitério dos Mortos-Vivos do Cabôco Mamadô – para onde o cartunista Henfil, no semanário O Pasquim, mandava pessoas que, na opinião dele, colaboravam com a ditadura militar no início da década de 70. Ao Paraíso, Elis ascende, ao liderar um grupo de artistas de esquerda (Fagner, Belchior, Gonzaguinha, João Bosco, Macalé e Carlinhos Vergueiro, entre outros), que faz vários shows para levantar dinheiro para o Fundo da Greve do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, no ABC paulista, em 1979. Essa vivência política é um lado pouco conhecido de Elis Regina que, aos 18 anos, foi sozinha para o Rio de Janeiro, onde chegou a morar num quarto-e-sala na Rua Barata Ribeiro, 200, em Copacabana (um prédio tipo balança-mas-nãocai, celebrizado numa peça de teatro, Um Edifício Chamado 200, de Paulo Pontes). Em 1965, acontece o estouro: Elis vence o I Festival de Música Popular, da TV Excelsior, com “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. (Esses festivais, organizados por emissoras de TV, marcaram o cenário musical nos anos 60 e revelaram para o grande público alguns dos melhores compositores da MPB: Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Geraldo Vandré.) Elis fez pelo menos três shows antológicos: Falso Brilhante (1975), Transversal do Tempo (1977) e Saudade do Brasil (1980). Dos seus discos, a maioria de qualidade acima da média, o melhor é o que gravou com Tom Jobim, em 1974, nos EUA, considerado uma obra-prima, mesmo por quem não gosta de Elis Regina. Por causa do seu gestual no palco, agitando os braços como se nadasse de costas, Elis foi chamada de Elis-Cóptero e Élice-Regina, mas o apelido que pega, mesmo, é o que lhe dá Vinicius: Pimentinha. Sim, porque, dali em diante, já como estrela conhecida no país inteiro, ela iria, por assim dizer, apimentar muitos aspectos da vida cultural brasileira, durante praticamente duas décadas. Elis nunca teve papas-na-língua, era do tipo que falava “duela-a-quem-duela”. Do cemitério à anistia – O episódio mais apimentado da vida de Elis, sem dúvida, foi o seu “enterro” no Cemitério do Cabôco Mamadô. Lá, ela fez companhia a gente Continente dezembro 2004

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MÚSICA como Wilson Simonal, Amaral Neto (um deputado carioca de direita, defensor da pena de morte e alcunhado de Amoral Nato), e Flávio Cavalcanti (um apresentador de TV que liderou, metralhadora na mão, a invasão e depredação do jornal Última Hora, no Centro do Rio de Janeiro, logo no início de abril de 1964). Elis foi “enterrada” por Henfil por duas atitudes em relação ao Governo Federal, na época chefiado pelo ditador-de-plantão general Garrastazu Médici, o mais sanguinário dos militares-presidentes. Primeiro, foi a gravação de uma chamada veiculada em todas as TVs, a partir de abril, conclamando o povo a cantar o Hino Nacional no dia 7 de setembro de 1972. Foi o ano do Sesquicentenário da Independência, uma data que a ditadura aproveitou ao máximo (inclusive com a organização de uma Mini-Copa de futebol, vencida pela Seleção Brasileira). Vivia-se o período pós-Copa do Mundo de 70, quando o Governo juntou duas coisas: a euforia pela conquista do tricampeonato no México e uma ditadura implacável – para produzir na população um sentimento que variava da alienação (entre os não informados sobre a repressão) e o medo (entre os que sabiam que a ditadura estava torturando e matando). Vários outros artistas também apareceram em cha-

madas de TV, promovendo a Olimpíada do Exército, em filmes produzidos pela Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República. A AERP foi uma reedição atualizada do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) do Estado Novo (1937-1945). Por isso, Marília Pêra, Paulo Gracindo, Tarcísio Meira e Glória Menezes, entre outros, também foram “enterrados”. A segunda atitude de Elis que provocou a irasanta de Henfil (e um segundo “enterro...”) foi a apresentação dela na Olimpíada da Semana do Exército, em setembro do mesmo ano, 1972. Hoje, mais de 30 anos depois do Cemitério do Cabôco Mamadô do Pasquim, é preciso entender aqueles tempos-de-chumbo para compreender a postura radical de Henfil. Vivia-se um momento de intensa repressão política. Mas a razão principal do “enterro” de Elis, está no próprio Henfil – um artista engajado que não fazia concessões, e pagou por isso –, que tinha um irmão exilado, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, um militante que fugiu do Brasil para não ser assassinado pelos órgãos de segurança. E Betinho, indiretamente, teve a ver com um dos motivos para a passagem de Elis do Inferno para o Paraíso: a gravação, em março de 1979, de uma das Eduardo Simões/Tyba

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O cartunista Henfil mandou Elis para o Inferno, mas se arrependeu Continente dezembro 2004


MÚSICA

Lula, palavrões e cachaça – Foi nessa época que Elis virou militante pró-metalúrgicos do ABC e conheceu um líder operário chamado Luiz Inácio da Silva, que ainda tinha o Lula só como apelido. Sobre o atual presidente da República, Elis deixou dois depoimentos que, lidos hoje, são até curiosos: – Bom, ele primeiro falou uns três palavrões daqueles maravilhosos, que você fica logo super à vontade. Depois, ele ficou brincando de ver – pega no braço – se existe mesmo ou se é figurinha de televisão e ficou me sacaneando bom tempo. Eu fiquei morrendo de vergonha e conversei muito pouco com ele. Ele estava muito eufórico com a presença das pessoas, ele estava contente. Eu acho que ficou uma coisa mais forte. Ele é uma pessoa baixinha, troncudinha, fala olhando dentro dos olhos, tem uma cara ótima. Mas aquele cara deve saber tudo. Inclusive, eu Elis foi “enterrada” por perguntei pra ele: é Henfil por duas atitudes em você, rapaz, que relação à ditadura: a anda aprontando gravação de uma chamada tudo isso? Ele nas TVs, conclamando o falou: “Eu, apronpovo a cantar o Hino tando? Imagina, Nacional no dia 7 de sou apenas um setembro de 1972 e uma trabalhador”. Você apresentação na Olimpíada da Semana do Exército não tem tamanho pra falar desse jeito, não, hein, rapaz! Você é muito pequenino. Aí, ele ficou brincando um tempão. É que o clima estava meio de festa mesmo. Deu pra conversar pouco, ele deixou o telefone pra gente ligar pra ele, que ele gostaria de ir na minha casa pra gente conversar, saber uns lances da profissão da gente. Pra ficar melhor informado.

Arquivo/AE

músicas politicamente mais engajadas da MPB, “O Bêbado e a Equilibrista”. De João Bosco e Aldir Blanc, a música foi uma espécie de hino de um dos mais importantes movimentos políticos da História do Brasil: a luta pela anistia ampla, geral e irrestrita. A campanha foi lançada em janeiro de 1978, com a criação do Comitê Brasileiro de Anistia (CBA), no Rio de Janeiro. “O Bêbado e a Equilibrista” – que emociona até hoje, fala na “volta do irmão do Henfil”. Na época, Betinho – que, como Henfil e o outro irmão, Francisco Mário, era hemofílico e pegou Aids numa transfusão de sangue – estava no México, esperando, justamente, a anistia.

Elis na TV Record, no início da carreira, 1967

(Entrevista ao extinto Folhetim, da Folha de S. Paulo, em junho de 1979). – Ele é muito legal. Me convidou para fazer o show do Fundo da Greve. Foi muito gostoso, fui tratada como uma a mais. De repente, éramos todos metalúrgicos, a cachaça era a mesma, o sanduíche era o mesmo. (...) Foi muito legal, (Lula) é muito inteligente e precisa tomar muito cuidado para não ser utilizado. Tem muita gente dando força ao Lula, empurrando, para depois puxar o tapete, pois não é brincadeira. Ninguém gosta de liderança, ainda mais liderança de proletariado, que é a mais “perigosa”. É bom ele perceber isso, se é que já não está sabendo. (Revista Musical, julho de 1979). Elis e Henfil: cara-a-cara – O “coveiro” Henfil e sua “defunta” Elis acabaram se encontrando, por iniciativa dela. Sobre esse momento, Henfil deu, três anos depois da morte da cantora, um depoimento tão sincero quanto comovente a Regina Echeverria, autora de “Furacão Elis” (Nórdica – Rio de Janeiro, Continente dezembro 2004

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Arquivo/Agência O Globo

1985). O cartunista não pediu desculpas por tê-la “enterrado”, mas se arrependeu. Os dois acabaram amigos sinceros, trabalharam juntos e se falaram até dois meses antes da morte da cantora. Com a palavra, Henfil: – Foi igualzinho a hoje. De repente, os artistas são arrebanhados pelo Governo, só que – eu não sabia – debaixo de vara, de ameaças, para fazerem uma campanha da Semana do Exército. O que eu vi, na realidade, foi o comercial de televisão. Me aparece o Roberto Carlos dizendo: “Vamos lá, pessoal, cantar o Hino Nacional”. E, de repente, a Elis surge regendo um monte de cantores, de fraque de maestro, regendo o Hino Nacional. E nessa época nós estávamos no Pasquim e eu, mais que os outros, contra-atacando

Elis para o Lula sindicalista: “Você não tem tamanho”

todos aqueles que aderiram à ditadura, ao ditador-deplantão. (...). Eu só me arrependo de ter enterrado duas pessoas – Clarice Lispector e Elis Regina. Tentaram me forçar a desenterrar o Carlos Drummond de Andrade. Não me arrependo. (...) Eu não percebi o peso da minha mão. Eu sei que tinha uma mão muito pesada, mas eu não percebia que o tipo de crítica que eu fazia era realmente enfiar o dedo no câncer. Quando nos encontramos anos depois, (...) Continente dezembro 2004

fomos jantar numa cantina perto do Teatro Bandeirantes e ela fez questão de sentar na minha frente. (...) De repente, ela começou a falar: “Pô, bicho, eu te amo tanto, bicho, te gosto tanto”. E eu já não estava gostando dessa história de “bicho”, porque eu não gostava do jeito que ela falava, nunca gostei. Daí me irritei e disse: “Elis, o que você está querendo dizer com isso? ”. Aí, ela começou a chorar. As pessoas na mesa enfiaram a cara no prato, todos sabiam o que eu tinha feito, só eu não sabia. Ela disse: “Pô, você me enterrou”, e começou a me esculhambar, dizendo que aquilo foi uma covardia, que ela estava ameaçada. (...) Elis nunca me perguntou se eu estava atacando porque ela estava defendendo um regime militar que queria matar meu irmão. (...) Resolvi engolir. Ela terminou de falar, entendeu meu subtexto: “Tá, Elis, eu aceito”. (...) Ela ficou falando só comigo. Contava uma série de coisas e, de vez em quando, voltava ao assunto. Eu, então, olhava de cara feia e ela mudava. Eu sei que muitos personagens que viveram essa história das Olimpíadas do Exército faziam isso independentemente de motivos e de pressão militar por trás. Evidente que os militares estavam pressionando o país inteiro. Eu sabia disso, os militares faziam censura prévia no meu jornal (Pasquim), presença física, todo dia. (...) Então, tinha todo o direito de criticar uma pessoa que ia para a televisão se entregar. Eu não mudei em nada e ela percebeu isso. (...) – Ela tinha a preocupação de me provar que tinha mudado. Que continuava uma pessoa de confiança ideologicamente. (...) Como se eu fosse inspetor de quem não é de esquerda. Aí, mandava dinheiro: do show que fez no Canecão, inclusive para que eu entregasse aos grevistas de São Bernardo. Me fez isso duas vezes seguidas. E muitas vezes eu tinha que sair do Rio de Janeiro e arrumar um jeito de chegar a São Bernardo. (...) Ela ouvia dizer que tinha um manifesto rolando, me pedia para arranjar pra ela assinar. E eu não gosto de manifesto.” No enterro, uma roupa censurada – A atividade política de Elis Regina não se limitou apenas aos shows para os grevistas do ABC ou à gravação do Hino da Anistia. Por exemplo: ela se engajou no esforço de vários artistas para saber o paradeiro do pianista Tenório Júnior, que fazia uma excursão a Buenos Aires, acompanhando Vinicius de Moraes e Toquinho. O músico foi preso na rua, em março de 1976 – sem documento, quando ia a uma farmácia comprar remédio para asma – possi-


Acervo UH/Folha Imagem

MĂšSICA

Elis, morta aos 36 anos, foi enterrada com camiseta nas cores do Brasil, proibida pela censura

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MÚSICA “Lula é muito inteligente e definidas e que não tinha medo de velmente confundido pela repressão precisa tomar muito cuidado manifestá-las. argentina com um guerrilheiro. para não ser utilizado. No dia seguinte, 20 de janeiro, Elis casou duas vezes (com o Ninguém gosta de Elis é enterrada no Cemitério (de compositor Ronaldo Bôscoli e com liderança, ainda mais verdade) do Morumbi. Seu corpo o músico César Camargo Marialiderança de proletariado, vestia uma roupa que ela foi proino), e teve três filhos (o músico e que é a mais ‘perigosa’. É bida, pela Censura, de usar no produtor João Marcelo Bôscoli e os cantores Pedro Mariano e Maria bom ele perceber isso, se é show Saudade do Brasil – uma caque já não está sabendo” miseta com um desenho da BanRita). Ela morreu em São Paulo por (Elis, 1979) deira do Brasil onde, no lugar do overdose de cocaína, às 11h45 do dia “Ordem e Progresso”, estava escri19 de janeiro de 1982. O velório foi no Teatro Bandeirantes, por onde passaram mais de 60 to: ELIS REGINA. Quer dizer: Elis Regina Carvalho Costa, politicamil pessoas. Um dos presentes, Luiz Inácio Lula da Silva, já então presidente do Partido dos Trabalhadores mente falando, riu por último ao ser enterrada com a roupa censurada. Tanto que, hoje, é lembrada pela (PT), falou da Elis politizada: – Ela tinha posições políticas coerentes, batemos música “O Bêbado e a Equilibrista” e a anistia, e não um longo papo e eu fiquei admirando não só a Elis pela sua “passagem” pelo Cemitério dos Mortos-Viintérprete, como também a artista que tinha posições vos do Cabôco Mamadô do irmão do Betinho. •

Elis em DVD Gravadora Trama lança o programa Ensaio totalmente restaurado Dois meses após o lançamento do álbum Elis & Tom, a gravadora Trama, em parceria com a TeleImage, coloca no mercado o primeiro DVD da cantora gaúcha. Elis Regina – MPB Especial 1973 traz na íntegra a famosa entrevista que Elis concedeu ao diretor Fernando Faro para o programa Ensaio, da TV Cultura. Durante uma hora e meia, ela canta 17 canções memoráveis, entrecortadas por depoimentos sobre a infância “medíocre”, as relações familiares, o início da carreira e seus relacionamentos com alguns dos maiores compositores brasileiros, como Edu Lobo, Milton Nascimento, Chico Buarque e Gilberto Gil. A gravação, ousada para o seu tempo – em P&B, repleta de silêncios, closes, perguntas em off –, alimenta a idéia de que por trás da imensa voz pulsavam medo e timidez (Elis não dá sossego às próprias mãos: aperta-aas, mexe insistenContinente dezembro 2004

temente nas bijuterias, coça a cabeça e acende cigarros – o que também rende belas imagens de cortinas de fumaça). No processo de restauração, que durou 11 meses, todo o conteúdo da entrevista, originalmente gravado em fitas analógicas, foi transferido para o computador e as imagens foram recuperadas quadro a quadro, assim como o áudio, de onde foram eliminados ruídos e distorções. (I.C.) DVD Elis Regina – MPB Especial 1973 (Dur.: 99 min.). Trama, preço médio: R$ 50,00.

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Som em quadrinhos Projeto multimídia de Clériston (música e quadrinhos) resulta em trabalho original e de qualidade

Imagens: Divulgação

O músico e cartunista pernambucano Clériston (Antônio Clériston de Andrade) pegou 16 canções de sua autoria e entregou a 16 desenhistas (incluindo a si próprio) para “traduzi-las” em forma de histórias em quadrinhos. O resultado acaba de ser lançado e é uma experiência multimídia de qualidade: HQCD – E o Som Virou Quadrinhos, com a instigante exortação “leia o som, ouça os desenhos”. O álbum, de 56 páginas, traz as leituras de cartunistas como Jarbas, Lailson, Leugim, Lin, Mascaro e Samuca, entre outros, no que Cristina Vieira de Melo, autora do “Prelúdio”, define como uma tradução multimodal. São trabalhos de arte, que funcionam como paráfrases visuais das letras ou as interpretam ao modo de cada autor. O CD encartado traz a Banda Dialógica, composta pelo próprio Clériston, cantando as suas composições e tocando violão e guitarra, e mais Fred Andrade (guitarras), Ebel Perrelli (bateria) e Leopoldo Nunes (baixo). A música de Clériston incorpora elementos do rock, do blues, do makulelê, da ciranda e de “um frevo ou maracatu inexplícitos” e, a partir de influências diversas, desenha um estilo próprio.

HQCD ...E o som virou quadrinhos. Independente, preço médio R$ 15,00.

Um piano para dois

Vôo solo

O canto das farinhadas

O pianista Cláudio Santoro – que conta com mais de 400 composições, sendo grande parte inédita – tem uma intérprete e difusora de sua obra à altura do seu legado: Gilda Oswaldo Cruz, pianista brasileira que se apaixonou pela obra do amazonense aos quatro anos e encampou a difusão das suas músicas no Brasil e na Europa. Neste segundo disco, O Piano de Cláudio Santoro II, Gilda toca obras inéditas em CD, entre elas as duas primeiras sonatas para piano, que chamam a atenção para a vertente inovadora de Santoro. Gilda parece incorporar o compositor, não se permitindo liberdades com o texto, executando-o com a dinâmica e solenidade de quem compreende profundamente cada frase. E respeita.

O percussionista Sérgio Cassiano dá seu vôo solo. Ciência de Festa, seu primeiro álbum – absolutamente autoral –, traz baiões, elementos de capoeira e de bumba-meu-boi, cavalos-marinhos, sambas e toadas, com letras que confirmam a veia poética de Cassiano. Destaque para as faixas “Quando ela roda”, um ondulante maxixe, e “Bagaço”, homenagem a João Cabral de Melo Neto. O disco investe na percussão e é feito com o apuro de quem faz música há 20 anos, convivendo com as raízes pernambucanas e incorporando novas tendências, mas ainda aponta uma forte influência da Mestre Ambrósio, banda que Sérgio integrou por 10 anos. É um álbum para se dançar, mas também para se ouvir e recitar.

Farinhada é o nome dado a uma “farra” comum nos inóspitos municípios do Nordeste: a da feitura da farinha de mandioca, que envolve toda a comunidade e que é tão esperada pelo nordestino quanto a chuva, pois garante o sustento. Nestes encontros, homens, mulheres e crianças participam de cada momento, desde a colheita do fruto até a embalagem da farinha, passando pela moagem, queima e secagem. E durante esta festa comunitária, são cantados os rojões pelas mulheres. O álbum Canto das Farinhadas é o registro das vozes polifônicas de mulheres dos povoados de Porto Real do Colégio (AL). Mulheres detentoras de vozes abertas, solares e iluminadas, como a paisagem do Sertão.

O Piano de Cláudio Santoro II. Biscoito Fino, preço médio R$ 22,00.

Ciência de Festa. Independente, preço médio R$ 22,00.

Canto das Farinhadas. Independente, preço médio R$ 15,00. Continente dezembro 2004

AGENDA

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MÚSICA



CONTEMPORANEIDADE

Q

uando o Comitê Nobel anunciou no último dia 8 de outubro o nome de Wangari Maahtai para receber o Prêmio Nobel da Paz, estava indicando o 12o nome feminino a receber a distinção e a primeira africana a ganhar o prêmio. Wangari tem 64 anos e três filhos, e é, também, a primeira mulher da África ocidental com Ph.D, sendo Doutora em Ciências Biológicas pela Universidade de Nairobi, após ter concluído mestrado na Universidade de Pitsburgh, nos EUA. O Comitê Nobel justificou a premiação dizendo que Wangari “está à frente da luta para promover um desenvolvimento ecológico, que seja viável socialmente, culturalmente e economicamente no Quênia e em toda a África. A paz na terra depende da nossa habilidade em proteger o meio ambiente em que vivemos”. O prêmio, no valor de 1,1 milhão de euros, serlhe-á entregue no dia 10 deste mês, em Oslo, capital da Noruega. Wangari, que lutou contra o antigo regime opressor de Daniel Arap Moi, presidente do Quênia, de 1978 a 2002, é assistente do Ministro do Meio Ambiente, Recursos Naturais e Vida Selvagem de seu país, e foi a fundadora, em 1977, do Movimento Cinturão Verde, um dos programas de maior êxito na proteção ambiental contra a desertificação das florestas, sendo responsável pelo plantio de 30 milhões de árvores no Quênia. Apenas dois por cento do território do país é coberto por florestas, quando, segundo as Nações Unidas, o ideal seria 10%. As árvores ajudam a evitar a ersão, a aumentar a produtividade do solo, a reter a água e garantir o acesso à lenha. Com isso, reduz-se o tempo que as mulheres gastavam na procura de água e lenha (recursos cada vez mais escassos) a fim de que possam utilizá-lo em outras práticas. O Movimento realiza programas de formação em práticas agrícolas, processamento de alimentos e produção de mel. Isso tem conseguido elevar a qualidade de vida, a condição econômica e a participação na sociedade de dezenas de milhares de mulheres, ao mesmo tempo em que promove a consciência ambiental, a conservação da biodiversidade e o desenvolvimento local. Também através do ensino, do planejamento familiar, da alimentação e da luta contra a corrupção, o Movimento Cinturão Verde tem fortalecido o caminho do desenvolvimento. Seus métodos holísticos têm se mostrado tão eficientes que estão sendo copiados por outros países, como Tanzânia, Uganda, Etiópia e Zimbabwe. Para Israel Klabin, presidente da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), “o Prêmio Nobel da Paz de 2004 premiou o futuro e criticou o presente. Os caminhos do desenvolvimento sustentável passam necessariamente pela formação de uma consciência humanística global, única maneira de se assegurar paz e sobrevivência para o planeta, para os países, para as cidades e para cada um de nós”. “Wangari é uma mulher negra, africana, bióloga, humanista e, acima de tudo, uma crente de que a presença do homem no planeta está ligada aos princípios básicos de justiça social, respeito à dignidade humana e, sobretudo, à preservação dos recursos naturais, benesse que nos foi dada no início dos tempos. Essa mulher negra africana representa todos nós, os que vêm, nos últimos 20, procurando os caminhos de um novo modelo que nos dê esperança quanto ao futuro”. A premiação de Wangari faz lembrar outra mulher: Gro Brundtland, a grande norueguesa que primeiro levantou a tese de desenvolvimento sustentável, em 1972, tese que foi consagrada por todos os países do planteta em 1992. Para Klabin, “a visão de futuro da mulher é sólida e carnalmente comprometida com a descendência por ela gerada. E o compromisso de preservção dos recursos naturais se liga diretamente à herança que deixaremos para nossa descendência”. •

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O pensamento de Wangari Maahtai

0 mundo precisa de uma ética global que valorize o que dá realmente sentido às experiências de vida e, mais do que instituições religiosas e dogmas, sustente a dimensão não material da humanidade. Os valores universais do amor, compaixão, solidariedade e tolerância devem formar as bases para essa ética global que deve permear a cultura a política, o mercado, a religião e a filosofia. Ela deve também permear a grande família das Nações Unidas. Todos temos Deus em nós, e esse Deus é o espírito que une toda a vida e tudo que está neste planeta. Ele deve ser a voz que está me dizendo para fazer algo, e tenho certeza de que a mesma voz está falando a todos neste planeta - ao menos a todos que parecem preocupados com o destino do mundo. Há muitas gerações o povo africano tem feito esforços para escapar da opressão. É importante que uma massa crítica de africanos não aceite o veredicto que o mundo tenta impor de que temos de desistir A luta deve continuar e é importante cultivar quaisquer idéias e iniciativas que possam fazer a diferença para a África. Os homens também são partes da criação, e porque os seres humanos têm a inteligência para compreender isso, eles precisam ter a consciência de deixar outras espécies sobreviverem. Sempre tenho esperança. Se você perde a esperança, você perde um ingrediente muito importante de ser humano. Você deve acreditar que as coisas podem mudar e passar esse sentimento às futuras gerações. Quando eu planto uma árvore e a vejo crescer - e se há frutos, vejo as crianças comerem - eu sinto que isso é fantástico. Ou se vejo uma árvore crescer e dar lugar a pássaros e animais, isso também é bom. Eu sou uma pessoa ativa. Não gosto apenas de falar. Eu quero agir porque quero traduzir minha convicção em algo que fará a diferença, e plantar árvores, para mim, é um sinal de esperança e um sinal de que, enquanto estivermos agindo, nós podemos fazer a diferença.


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CÊNICAS

Fotos: Arquivo Pessoal/ Marcelo Lyra

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Bravo, Geninha! Caso raro de unanimidade entre os seus pares, a incansável primeira-dama do Teatro Pernambucano, Geninha da Rosa Borges, se prepara para criar um Espaço Cultural homônimo Luís Augusto Reis

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Geninha em cena de O Marido Domado, peça escrita para ela por Ariano Suassuna

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tualmente, nos meios teatrais, talvez nenhuma outra palavra venha sofrendo maior desgaste do que a palavra “generosidade”. No entanto, embora banalizada, utilizada a torto e a direito por todo tipo de caçador de sucesso midiático, essa palavra sempre guardará em sua essência uma das significações mais profundas da arte teatral. Uma significação que se renova e se amplia diante de nomes como o de Geninha da Rosa Borges que, há mais de 60 anos, entrega-se de corpo e alma, com enorme alegria, à arte de representar – esse laborioso ofício, cuja finalidade, como nos diz Shakespeare, “sempre foi e será erguer o espelho diante da natureza, para mostrar à virtude sua verdadeira face”.


CÊNICAS A carreira de Geninha se confunde com a do TAP. Mas, sem jamais se afastar do grupo, soube trabalhar em outros conjuntos, como o Teatro de Arena e o Teatro Popular do Nordeste (TPN)

Quando Geninha estreou no teatro, em 1941, a presença de uma “moça de família” no elenco de uma peça era vista como transgressão

Quando estreou, em 1941, atuando em Primerose, segunda montagem do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), sob a direção de seu contraparente Valdemar de Oliveira, idealizador do grupo, a presença de uma “moça de família” ou de uma “senhora da sociedade” no elenco de uma peça era uma verdadeira transgressão. Naquele tempo, a despeito de admiração e de popularidade, uma artista de teatro “não servia para casar”. Portanto, Geninha e as demais atrizes do grupo, todas egressas das “melhores famílias do Recife”, como o Dr. Valdemar orgulhava-sse de afirmar, contribuíram imensamente para abrandar esse preconceito. Foi decerto através do caminho aberto por elas, que o Recife pôde ver surgir tantos outros grandes talentos femininos. Sem esse pioneirismo do TAP, dificilmente os teatros da cidade teriam conhecido, ainda nos anos 50, e sobretudo nos anos 60, o trabalho de atrizes como, entre outras, Lúcia Neuenschwander, Maria de Jesus Baccarelli, Leda Alves ou Yara Lins. Ao lado de Geninha, essa geração elevaria a arte da interpretação praticada na região a altos níveis de qualidade. Entretanto, ninguém mais do que Geninha conseguiria manter o mesmo entusiasmo e a mesma inquietação produtiva, recusando-sse a se render ao gradual e constante declínio de prestígio que, por diversas e complexas razões, o teatro local iria experimentar ao longo das últimas décadas do século 20. Considerada como uma de suas fundadoras, a carreira de Geninha se confunde com a própria trajetória do TAP, porém não se limita a ela. Sem jamais se afastar do grupo, onde deu vida a diversos personagens do cânone dramatúrgico ocidental, soube também trabalhar em outros conjuntos, como por exemplo, o Teatro de Arena, de Alfredo de Oliveira, e o Teatro Popular do Nordeste (TPN), de Hermilo Borba Filho. Com o equilíbrio que lhe é característico, nunca se deixou prejudicar pela tensão entre o diletantismo intransigentemente defendido por Valdemar de Oliveira e o indiscutível profissionalismo que sempre se depreendeu de suas qualidades como atriz. Hoje, Geninha não hesita em reconhecer que a dignidade do trabalho do ator não deve, nem pode, ser aferida pela ausência ou pela presença de remuneração - e muito menos pelo valor dessa Continente dezembro 2004

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CÊNICAS

remuneração -,, mas, sim, pela seriedade de seu esforço e pela honestidade de seu propósito. Tão inteligente quanto humilde, fez-sse mestra, sem nunca abandonar o espírito de aprendiz. Nos anos de apogeu do TAP, trabalharia com alguns dos encenadores mais importantes da história do teatro brasileiro. Nomes consagrados, como Ziembinski, Bollini, Graça Melo e Bibi Ferreira chegavam ao Recife, convidados por Valdemar de Oliveira, e deixavam por aqui seus inestimáveis ensinamentos. Como conseqüência desse aprendizado, além de atuar, anos mais tarde Geninha passaria também a figurar como diretora, assinando montagens de relevo no repertório do grupo. Nessa duplicidade de funções, certamente dois momentos merecem ser destacados: Yerma, de Federico García Lorca, em 1978, e As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, de Rainer Fassbinder, em 1987. Novos planos – Como todo verdadeiro artista, Geninha não esquece o passado, mas aponta sempre para o futuro. Uma vez que o TAP, infelizmente, não tem conseguido manter o mesmo nível de produtividade que o distinguiu na cena teatral do país, a atriz tem se mantido em plena atividade graças, sobretudo, às suas iniciativas autônomas. Além de uma participação-rrelâmpago na novela Da Cor do Pecado, deliciando os telespectadores da Rede Globo, ao lado de Ney Latorraca e de Maitê Proença, em impagáveis situações para lá de farsescas, Geninha tem se dedicado a novos e ousados desafios teatrais. Após incursionar com muita beleza no requintado universo dramático deixado pelo seu amigo Osman Lins, trabalho que desenvolveu ao lado do jovem encenador Marcus Rodrigues, dentro do Projeto Aprendiz Encena, do Centro Apolo-H Hermilo, ela agora se movimenta em torno da realização de um grande sonho: transformar a casa em que viveu durante décadas em um

Há mais de 60 anos, a atriz entrega-se de corpo e alma à arte de representar

Além de atuar, Geninha também figura como diretora. Duas montagens merecem ser destacadas: Yerma, de Federico García Lorca, em 1978, e As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, de Rainer Fassbinder, em 1987 Continente dezembro 2004


CÊNICAS

espaço-escola dedicado não somente ao teatro, mas às diversas manifestações artístico-culturais. Para tal, tem promovido apresentações especiais de seu espetáculo Dois em Um, com o intuito de levantar recursos e de divulgar os objetivos de seu projeto. Nessa montagem, embora não se trate de uma produção do TAP, tem-se novamente Geninha trabalhando em família. Dirigida por sua filha, a atriz Anamaria da Rosa Borges, e contracenando com o seu sobrinho Pedro de Oliveira, ela revive, em tom de aula-espetáculo, dois momentos marcantes de sua carreira, uma tragédia e uma comédia: Yerma, de Lorca, e O Marido Domado, peça escrita por Ariano Suassuna especialmente para ela. Quem conhece sua força realizadora, seu caráter bondoso e seu encanto pessoal, traços que fazem de Geninha um caso raríssimo de uma quase total unanimidade entre os seus pares, não tem dúvidas de seu êxito nesse empreendimento. Ademais, a pertinência do projeto, por si só, deverá atrair apoios tanto do setor público, como da iniciativa privada. Esse centro, que receberá o nome de Espaço Cultural Geninha da Rosa Borges, não apenas promoverá ações como escola de artes e como local de manifestações culturais, mas servirá também para abrigar permanentemente o precioso acervo pessoal da atriz, tornando-o disponível ao público, para deleite de seus admiradores e para a alegria dos pesquisadores das artes cênicas da região. Bravo, mais uma vez, Geninha! •

Leopoldo Nunes/ JC Imagem

Aos 80 anos, a atriz pretende criar um espaço cultural, que também vai abrigar o seu acervo pessoal

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CÊNICAS Fotos: Roberta Mariz

Em 1700, o costume de fazer presépios se transformou em modalidade artística

As vidas de Geninha Além de atriz e empreendedora cultural, Geninha da Rosa Borges tem uma outra faceta: a de colecionadora Isabelle Câmara

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oda coleção é um “museu de sonho”, definiu o poeta Carlos Drummond de Andrade. Seria o gosto de reter devaneios ou a vontade de guardar desejos, de arquivar memórias, que impulsionam um colecionador? Walter Benjamin arrisca uma hipótese: “colecionador autêntico seria aquele em a posse seja a mais íntima relação que se pode ter com as coisas: não que elas estejam vivas dentro dele; ele é que está vivo dentro delas”. Geninha habita dentro dos presépios que coleciona. São mais de 200, feitos de barro, bambu, resina, madeira, palha de milho, vidro, algodão, porcelana, cabaça, seixo, bucha, bolinhas de gude, oriundos da China, Taiwan, Hong Kong, Índia, Japão, Portugal, Espanha, França, Itália, Polônia, Alemanha, Bélgica, Suíça, Estados Unidos, Chile, Colômbia, Peru, Guatemala, Costa Rica e Panamá. Do Brasil, a atriz tem vários, “mas não de todos os Estados”, como ela mesma afirma. A história dos presépios é antiga. Depois da morte de Jesus, crucificado pelos romanos, os cristãos passaram a fazer homenagens ao Cristo morto e a todo o calvário sofrido pelo filho de Deus. Mas foi só ano de 1223 que se comemorou, pela Continente dezembro 2004

primeira vez, seu nascimento. E a idéia veio de um personagem polêmico e importante na história do cristianismo: São Francisco de Assis, que junto com amigos montou o cenário no meio de um bosque na aldeia italiana de Greccio, na Umbria. Em uma clareira, construíram uma manjedoura, na qual pousava uma criança recém-nascida, filho de um aldeão, ladeado por uma vaca e um jumento, conforme descreve a Bíblia. O povo veio ver em clima de festa. No Brasil, o presépio chegou em 1583, com os jesuítas que o usavam no caldeamento cultural. Porém, foi só por volta de 1700, na cidade de Nápoles, que o costume de fazer as pequenas construções e figuras que simbolizam o nascimento de Cristo se transformou em modalidade artística. Mas não são só presépios que Geninha coleciona. Das representações populares, a quartinha, também conhecida como bilha ou moringa, e outro objeto sacro: o crucifixo. A descoberta do gosto pelos presépios surgiu com Abelardo da Hora, primo do seu marido. “Com ele, que também colecionava o artefato, aprendi a curtir aquelas coleções mais populares, puras e primitivas, sem interferência de erudição alguma”. Objetos que guardam as várias vidas de Geninha. •


O Baile aqui principia Ao comemorar 21 anos de encenação, o espetáculo Baile do Menino Deus se renova e ganha uma montagem inédita Fotos: Divulgação

Arilson Lopes, na nova versão do Baile

“Senhores donos da casa, Jesus, José e Maria/ O Baile aqui não termina, o Baile aqui principia/ Do mesmo jeito que o sol se renova a cada dia/ Da mesma forma que a lua quatro vezes se recria/ Do mesmo tanto que a estrela repassa a rota e nos guia”, o espetáculo Baile do Menino Deus, do escritor e dramaturgo Ronaldo Correia de Brito, composto em parceria com Antonio Madureira e Assis Lima, também se revigora e se recria. Ao comemorar 21 anos de uma bela trajetória, tendo sido encenado incontáveis vezes – pois o foi por grupos profissionais, estudantes do ensino fundamental, integrantes de Ongs, portadores de síndrome de Down etc., de todo país –; ganho versões televisivas e edição em forma de livro pelas Edições Bagaço e, recentemente, pela Objetiva, através do Programa Nacional Biblioteca Escolar (PNBE/MEC), a obra ganha uma inédita versão, em forma de cantata natalina, apresentada na rua, com o patrocínio do Funcultura/Governo do Estado e Chesf, e apoio da Celpe e da Prefeitura do Recife. O palco será a praça do Marco Zero, no Bairro do Recife. “Pela primeira vez vou realizar esse sonho, com o Baile ganhando uma roupagem em que participam a Camerata Stúdio de Música, os corais Canto da Boca e Canto da Boquinha (infantil), além de bailarinos, atores e dois cantores solistas – Kelly Benevides e Geraldo Maia”, diz o dramaturgo, que assume a direção da montagem. Baile do Menino Deus. Praça do Marco Zero (Bairro do Recife), dias 19/12, às 18h, 23 e 25/12, às 20h.

Vitrine Teatral A trupe da peça teatral A Inconveniência de Ter Coragem, que tem texto assinado por Ariano Suassuna, direção do limoeirense Fábio André e produção da Consultoria de Ações Culturais, ao completar dois anos em cartaz, percorrendo todo o Nordeste, organiza uma festa do talento cênico, de 15 a 19/12. A Vitrine Teatral vai levar para o palco do Galpão das Artes oito peças teatrais, objetivando o que o próprio nome sugere: expor as peças num espaço privilegiado e fortalecer a relação produto/público. Mas não só: com a bilheteria arrecadada, a peça A Inconveniência de Ter Coragem pretende fazer uma temporada, em março de 2005, na Universidade de Coimbra, em Portugal. Vitrine Teatral. Galpão das Artes (Av. Severino Pinheiro, 329-A, Centro, Limoeiro-PE. Fone: 81.36280694/9918.4545), de 15 a 19/12. Ingressos: R$ 5,00.

Programação 15/12, às 21h Samba Nosso de Cada Dia 16/12, às 09h Hércules 16/12, às 21h A Inconveniência de Ter Coragem 17/12, às 09h Bananas 17/12, às 21h A Cerca 18/12, às 17h 30 O Circo do Seu Bolacha 18/12, às 21h Risoflora 19/12, às 17h 30 O Macaco Malandro

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AGENDA

CÊNICAS


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TRADIÇÕES

A magia do riso nas mãos Festival Sesi de Bonecos, que acontece no Recife, reunirá cerca de 30 grupos nacionais e internacionais, revigorando a arte secular Fábio Araújo

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onecos são signos. Enquanto representações de uma realidade, só estão completos a partir das referências e vivências pessoais de cada pessoa. Todo objeto pode se transformar em boneco, bastando para isso que nossa imaginação lhe dê vida e alma. Talvez por essa ligação íntima como a psique humana, o teatro de bonecos era usado pela Igreja, na Idade Média, como ferramenta de difusão do espírito religioso. Foi assim que esses personagens chegaram ao Brasil no século 16, possivelmente trazidos pelo padre Anchieta para ajudar na catequização dos índios. Os antigos “títeres” portugueses geraram, na Olinda dos anos 1700, um descendente originalíssimo, secularizado e brasileiro, que logo se disseminou para diversos Estados: o mamulengo, expressão maiúscula da nossa arte popular. Lúdico e híbrido, o teatro de bonecos toma como base o cotidiano das pessoas, usa o riso como arma, interage espontaneamente com a audiência. Sua origem remete aos antigos Egito, China e Índia, de onde conquistaram a Europa. De 7 a 12 de dezembro, o Recife e Olinda serão as sedes do SESI Bonecos do Mundo, festival que reunirá cerca de 30 grupos nacionais e internacionais, no Teatro de Santa Isabel e no Mosteiro de São Bento. O público poderá conferir, gratuitamente, atrações como os mestres mamulengueiros Zé Lopes, Saúba e Zé de Vina (PE); Zero Cia.de Bonecos (MG); Grupo XPTO (SP); Mundaréu (PR); La Tabola Rassa (Espanha); Micropodium (Hungria); e Dondoro Theatre (Japão), além de oficinas e seminário. Trata-sse da segunda etapa do SESI Bonecos do Brasil, que percorrerá todas as capitais nordestinas. A responsável pela idéia é a publicitária Lina Rosa Vieira, que criou o projeto e este ano divide a curadoria com Fernando Augusto Gonçalves. “O mamulengo é referência forte para grupos de todo o Brasil. Mesmo quando não está diretamente presente, sua força invade as demais maniContinente novembro 2004


Fotos: Toinho Belmot/Divulgação

TRADIÇÕES

Festança, do Mamulengo Só-Riso Continente novembro 2004

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TRADIÇÕES

Lina Rosa: “Ao olhar com atenção, não será difícil perceber que um deles parece com você”

festações”, afirma. Exemplos dessa influência são o Sobrevento (SP), que trabalha com a técnica da luva chinesa, mas contratou o mestre pernambucano Saúba para fazer seus bonecos, e a mineira Zero Cia. de Bonecos, que se baseia no cancioneiro popular nordestino. Segundo Lina Rosa, a exposição ao ar livre terá 140 bonecos, compondo um grande cenário temático. “O teatro de bonecos acaba sendo um espelho da realidade nacional. É uma ferramenta de alta assimilação, pois o aprendizado com base no humor trabalha todas as partes do cérebro”, aponta. Como diretora de Criação, Lina trabalha com campanhas e projetos culturais. Já realizou iniciativas como o Cinema no Interior, levando a sétima arte a 500 mil pessoas no interior de Pernambuco, Alagoas e Paraíba; e o Jardim Cultural, que movimentou a cidade de Belo Jardim com cinema, circo e fotografia. Desde cedo, gostava do teatro de bonecos como espectadora. Cita os “Títeres de Santo Aleixo” de Évora (Portugal), e os “Contadores de Histórias”, de Paraty Continente dezembro 2004

(RJ), como espetáculos que lhe marcaram. A idéia de realizar um festival de bonecos surgiu meio que por acaso. “Em 2003, fiz parte do júri do Festival Internacional de Gramado. Fui recebida, por engano, pelos bonecos do Festival de Canela, mas prometi que também apareceria por lá. Fui e fiquei louca”, lembra. Lina não conseguiu entender como Pernambuco não estava presente em Canela, mesmo com toda a tradição do mamulengo, e já voltou do Rio Grande disposta a criar um evento. “O bonequeiro é um híbrido de artesão e artista. É comum ver esses senhores levarem sempre os bonecos consigo, como se o fio da marionete fosse um cordão umbilical. Eles não conseguem se separar das criações”, descreve. Segundo ela, no teatro chinês considera-se que o boneco recebe e guarda a alma do criador. Por isso, costuma-se queimar toda a obra após a morte do mestre. Gerando prejuízos irrecuperáveis para o futuro. Patrimônio imaterial – Aos 10 anos, José Severino dos Santos morava no Sítio Cortesia, em Glória do Goitá, município da Zona da Mata pernambucana. Estimulado pelo irmão de criação Sebastião Cândido, conseguiu permissão da mãe para segui-lo


nas apresentações de mamulengo. “Sebastião foi meu mestre. Eu andava atrás dele, carregando as coisas, até que um dia ele me mandou botar os bonecos e fazer a passagem”, lembra o mamulengueiro, hoje famoso com o nome de Zé de Vina. Após beber uma “bicada de misturada com pé de galinha”, fez sua primeira apresentação aos 12 anos. Até hoje, aos 64, Zé de Vina não parou mais. Já mostrou sua arte em diversos Estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais e Paraíba, e tem hoje 300 bonecos espalhados pelo mundo. O segredo? Fazer o boneco mais feio possível, porque as crianças adoram. “Puxo pela memória e apresento o que aprendi com meus mestres, mas tenho que improvisar na hora, mudando as passagens muito velhas. No interior a apresentação dura a noite toda, mas quando a gente viaja, é no máximo 40 minutos”, conta. Zé de Vina é conhecido por rejuvenescer a arte a cada espetáculo, nela injetando – talvez sem saber – elementos de contemporaneidade. Outro grande mestre pernambucano é Zé Lopes, também de Glória do Goitá. Tudo começou aos quatro anos, quando ele perdeu o pai. Para sobreviver, sua mãe passou a vender bolos nas festas de mamulengo. Algum tempo depois, aos 10 anos, surgiu no menino uma súbita fascinação pelo tema. “Eu aprendi sozinho a confeccionar os mamulengos. Eu ouvia as histórias, gravava as fisionomias e ia pra casa fazer igual. Levei muito corte de faca até pegar prática!”, lembra. Desde então, tornou-se o mais conhecido mestre mamulengueiro do Estado, famoso pela destreza e senso de improvisação. Zé Lopes já levou sua arte a várias partes do Brasil e a países como Espanha e Portugal. Ele atribui o sucesso a fatores como boa vontade, amor pela arte e dedicação. Diretor e fundador da companhia Só-Riso, Fernando Augusto Gonçalves defende que o mamulengo seja considerado Patrimônio Imaterial do Brasil. “O mamulengo retrata seu próprio povo. Um povo que, sob o sol dos trópicos e o luar dos sertões, demonstra aptidão privilegiada para o poético e para o dramático; índole épica; realismo crítico e satírico; tendência picaresca e espírito dionisíaco. Em tudo prevalecendo a mistura e a convergência dos elementos étnicos”, escreve. No texto de apresentação do evento, Lina Rosa resume o principal motivo que explica todo nosso interesse pelos bonecos: “ao olhar com atenção, não será difícil perceber que um deles parece com você”. •

Grupo Imbuaça (SE), na 1ª etapa do Sesi Bonecos, em Aracaju

Programação Teatro de Santa Isabel 08/12 - Antologia, da Cia. Jordi Bertran (Espanha), às 20h30 (classificação: livre); 09/12 - El Circo de Madera, da Cia. Karromato (República Tcheca), às 20h30 (livre); 10/12 - Sevé, da Cia. Zero de Bonecos (MG), às 20h30 (adulto) Pátio do Mosteiro de São Bento 11/12 – Diversas companhias, de várias origens, fazem Feira, Exposição, Oficina, além da apresentação de Mestre Tonho de Pombos, às 16h30 – Desfile de bonecos gigantes e pernas de pau, às 17h; – Stop, da Cia. Mikropódium (Hungria), vários horários; – A Cartola Encantada, da Cia. Mão Molenga, às 17h30; – Mestre Mamulengueiro, de Zé Lopes (PE), às 18h; – Cuentos Pequeños, do Teatro Hugo Ynes (Peru), às 18h30; – História da Carrocinha, da Cia. Caixa do Elefante (RS), às 20h00; – Cortejo Natalino, da Mundaréu (PR), às 21h30; – Show Lunário Perpétuo, com Antônio Carlos Nóbrega, às 22h30. 12/12 – Diversas companhias, de várias origens, fazem Feira, Exposição, Oficina, além da apresentação de Mestre Tonho de Pombos, às 16h30; – Desfile de bonecos gigantes e pernas de pau, às 17h; – Cia. Mikropódium (Hungria), várias apresentações, em horários diversos; – Folgazões & Foliões e Foliões & Folgazões, da Só-Riso (PE), às 17h30; – Mestre Mamulengueiro, de Zé de Vina (PE), às 18h; – Vovô, da Cia. Truks (SP), às 18h30; – El Circo de Madera, da Cia. Karromato (República Tcheca), às 20h; – Cobra Norato, da Giramundo (MG), às 21h30. Obs: Todos os espetáculos apresentados no Pátio do Mosteiro de São Bento têm classificação livre e são gratuitos, bem como os do Teatro de Santa Isabel.


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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Cristo nasceu em Macujê O lugar onde compreendi em definitivo o significado da palavra arrogância

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posto que vocês não conhecem Macujê. Nem sabem que é um distrito de Aliança, na Mata Norte de Pernambuco. Querem aprender como se chega lá? Passando por Timbaúba, entrando para Ferreiros e seguindo um caminho de 12 quilômetros por dentro dos canaviais. A estrada é de barro, esburacada e poeirenta no verão, cheia de lama e atoleiros no inverno. A única paisagem é o canavial. Os olhos celebram uma árvore, quando aparece alguma, isolada e triste no meio dos pés-de-cana. Macujê é um lugar aonde só se vai a negócio. E como há poucos negócios por lá, a não ser os da cana, quase ninguém visita Macujê. Também, para fazer o quê? Se pelo menos ainda existisse uma boa reserva da nossa Continente dezembro 2004

Mata Atlântica, com sua fauna e flora exuberantes... Mas, botaram tudo a baixo. Não sobrou nada. Dois ou três hectares de mato estorricado, salpicados entre as canas, são nada para mim. Nem pense em pescar em Macujê. O rio Capibaribe Mirim, aquele que inundou a periferia miserável da cidade de Goiana, transformou-se numa latrina. Antigamente, as pessoas viviam da pesca de peixes e camarões, as mulheres lavavam roupas nos remansos d’água, os meninos tomavam banho e contraíam esquistossomose. Agora, ninguém se arrisca sequer a molhar os pés. Com todos esses defeitos, uma população pobre de três mil habitantes, a ausência de um restaurante onde se possa matar a fome, as casinhas feias, a igreja malconser-


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vada, o calor sufocante, Macujê passou para a minha vida como o lugar onde compreendi em definitivo o significado da palavra arrogância. Isto parece brincadeira, mas juro que nunca escrevi tão sério e comovido. Fui a Macujê, pela primeira vez, trabalhar com alunos, professores e agentes comunitários, numa campanha de arte-educação em saneamento básico e saúde. Como não existiam espaços disponíveis, ficamos numa garagem de uma casa, instalados entre bancos velhos de ônibus, sucatas de carros, armários e mesas. Nenhum cenógrafo conceberia um lugar mais desconfortável e inadequado para uma oficina de interpretação. Um pouco abaixo do nosso local de trabalho, construíam uma estação de tratamento de esgotos. De 10 em 10 minutos subia um trator com sua pá carregada de barro, e no intervalo descia outro, vazio. A bomba d'água da casa, instalada na garagem, também precisava ser ligada. Os participantes, em torno de 25, quase todos jovens, não relevavam essas interferências, que me deixavam nervoso e esgotado. Nem mesmo as pessoas olhando pelas janelas e pelo portão, pareciam incomodá-los. Prevalecia o desejo de aprender algo novo. A vila se agitava para um grande acontecimento. No final da tarde, no pátio da igreja, se apresentariam emboladores e artistas, representando esquetes com os temas da campanha de saúde. As pessoas pronunciavam “teatro” com todos os acentos mágicos da palavra. Às três horas, largados os afazeres, amontoavam-se numa platéia improvisada no comprido da rua. Às cinco, já sabiam que o carro que traria os artistas quebrara no caminho, perto do Recife. E que a TV Globo não faria a cobertura do evento, como prometido. Tentamos alguns improvisos. Trouxeram caixas de som e dois microfones do local, que deformavam as vozes. Ninguém compreendia nada, por mais que gritássemos. Não havia fios de extensão, de modo que ficávamos presos à porta da igreja. Um passo à frente e tudo se desligava. Joguei os alunos da oficina no meio das pessoas. Na velocidade da luz, eu os promovi a atores. O meu assistente transformou-se em palhaço. Somente

quando os titulares pisaram o palco, depois de duas horas de espera, cessou o clamor dos frustrados e escutaram-se aplausos. Às oito horas da noite, no meio da representação, Macujê ficou envolta por uma fumaça sufocante, provocando tosse e lacrimejamento. Do alto, avistávamos incontáveis incêndios, as queimadas da cana, cercandonos. Temi morrer assado no meio daquele inferno. Do Capibaribe Mirim, correndo sujo lá embaixo, subia a catinga do vinhoto, lançado nas águas do rio pela usina. E, mais tarde, a apoteose: uma chuva de fuligem preta, o malunguinho, caindo do céu como se nevasse, numa noite de Natal europeu. Compreendi o que significa arrogância. O descaso absoluto pelo Outro faz com que joguem os dejetos das usinas nos rios, envenenem o ar, encham as casas de fuligem. Tudo isto em nome de uma economia que, há muito, dá sinais de falência, mantendo-se artificialmente com ajuda do Estado. A quem beneficia manter esse erro? Por que nunca se teve coragem de buscar uma outra cultura para a Zona da Mata, além da cana? João Cabral escreveu o seu poema natalino, de morte e nascimento, descendo o Capibaribe, de Toritama ao Recife. Subindo em sentido contrário, do mar até a mata, pelas águas podres do Capibaribe Mirim, chegaremos em Macujê. Mata, ali, é um nome arbitrário, pois só existe cana. Arbitrária, também, é a vontade dos que envenenam sua gente, há tantos anos. Sem nunca atentarem para o sentido de compaixão, o sagrado ideal por que morreu o Cristo. Este que celebram no Natal, esquecidos de quem foi e para que veio. Ligados apenas nas boas castanhas portuguesas, no vinho tinto, no peru suculento, na troca de presentes. O álcool das libações natalinas é como a fumaça da cana queimada, envolvendo Macujê. Obscurece a realidade, mas não a transforma. Numa casa, onde se costuma passar fome na entressafra, nasce um “Jesuscristinho”, todo sujinho de fuligem, já de foice de cortar cana na mão. – Seja bem-vindo! Deus o salve! – dizemos. E é tudo o que podemos fazer? • Continente dezembro 2004

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HISTÓRIA

A educadora e escritora potiguar Nísia Floresta, que viveu no século 19 e foi interlocutora de personalidades como o filósofo Auguste Comte, antecipou-se ao seu tempo, defendendo os direitos dos escravos, dos índios e das mulheres Constância Lima Duarte

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entre os ilustres nomes que fizeram a história da mulher em nosso país, o de Nísia Floresta se destaca pela coragem e o ineditismo de suas idéias. Este nome, ou melhor, pseudônimo, pertenceu a Dionísia Gonçalves Pinto, nascida em 1810, no Rio Grande do Norte, que, após residir em diversos Estados brasileiros, como Pernambuco, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, mudou-sse para a Europa, onde permaneceu até falecer, em 1885, em Rouen, na França. Num tempo em que a maioria das mulheres vivia enclausurada em preconceitos, sem qualquer direito que não fosse o de ceder sempre à vontade masculina, e o ditado popular dizia que “o melhor livro é a almofada e o bastidor”, Nísia Floresta criou uma escola para meninas no Rio de Janeiro, o Colégio Augusto, e escreveu inúmeros livros defendendo os direitos das mulheres, dos índios e dos escravos. Aliás, Nísia Floresta deve ter sido uma das primeiras mulheres no Brasil a romper os limites do espaço privado e a publicar crônicas, poesias e ensaios em jornais da chamada grande imprensa. E esse é um importante traço da modernidade de Nísia Floresta: sua presença constante na imprensa nacional, desde 1830, comentando as questões mais polêmicas. Se lembrarmos que apenas em 1816 a imprensa chegou ao país, mais se destaca o papel pioneiro que esta brasileira desempenhou no cenário nacional. Numa rápida leitura de sua obra, é interessante observar como os textos dialogam entre si, um iluminando o outro como peças complementares de um mesmo plano de ação prática, que era formar e modificar consciências. Tal plano tinha principalmente um propósito: alterar o quadro ideológico vigente no que diz respeito ao comportamento das mulheres e, naturalmente, o dos homens contemporâneos. Nísia Floresta publicou cerca de 15 títulos, entre poemas, romances e ensaios, e não só em português, mas também em francês, inglês e italiano. Seu primeiro livro, escrito aos 22 anos, é também o primeiro que se tem notícia no Brasil que trata dos direitos das mulheres à instrução e ao trabalho, e que exige que elas sejam respeitadas e consideradas seres inteligentes. Este livro, publicado em 1832 no Recife, tem o sugestivo título de Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens. No ano seguinte, 1833, saiu uma segunda edição e, em 1839, ainda uma terceira, no Rio de Janeiro. O Direitos das Mulheres de Nísia Floresta foi inspirado em diferentes autores, como Mary Wollstonecraft, Poulain de La Barre, Sophie e Olympe de Gouges, esta última, a autora da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Mas, ao invés de simplesmente traduzir as novas idéias que circulavam na Europa, a autora brasileira escreveu um texto para denunciar os preconceitos existentes no Brasil contra a mulher, identificar as causas desse preconceito e, também, desmistificar a idéia dominante da superioridade masculina. Tais reflexões, naturalmente, não encontraram eco entre os contemporâneos, e são o testemunho do quanto Nísia Floresta se destaContinente dezembro 2004

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cou em meio à massa de mulheres submissas, analfabetas e anônimas. Foi esse livro que deu à autora o título de precursora do feminismo no Brasil, e talvez até mesmo da América Latina, pois não existem registros de textos anteriores realizados com estas intenções. Em outros trabalhos ela também destaca a importância da educação feminina para a mulher e a sociedade, como em Conselhos à Minha Filha (1842), Opúsculo Humanitário (1853), A Mulher (1859), e em novelas dedicadas às jovens do seu colégio. Nesses escritos encontramos desde conselhos de como as meninas deviam se comportar, os deveres esperados de uma filha e histórias didático-moralistas, até minuciosas e ricas explanações acerca da história da condição feminina em diversas civilizações e em diferentes épocas. Em Opúsculo Humanitário, por exemplo, que reúne 62 artigos sobre a educação, Nísia Floresta tece comentários sobre a Ásia, a África, a Oceania, a Europa e a América do Norte, antes de tratar do Brasil, estabelecendo sempre uma relação entre o desenvolvimento intelectual e material do país, ou o seu atraso, com o lugar ocupado pela mulher. Em conContinente dezembro 2004

sonância com intelectuais da época, Nísia defende a tese de que o progresso de uma sociedade depende da educação que era oferecida à mulher; e que só a instrução e a educação moral dariam maior dignidade e fariam dela melhor esposa e melhor mãe. Esses, aliás, seriam precisamente os objetivos da educação das meninas naquele tempo: torná-las consciente de seus deveres e de papéis sociais. Nísia foi precursora também na abordagem de outras questões, como quando trata do índio brasileiro. Em um longo poema – intitulado A Lágrima de um Caeté, de 1849 – encontramos interessantes posicionamentos da autora a respeito do indígena. Uma leitura do texto permite a identificação de inúmeros elementos marcantes do Romantismo, como a lusofobia, o elogio da natureza e a exaltação de valores indígenas. A novidade é que o poema nos traz não a visão do índio-herói que luta, presente na maioria dos textos indianistas conhecidos e, sim, o ponto-de-vista dos derrotados, do índio vencido e inconformado com a opressão de sua raça pelo branco invasor. Uma outra narrativa importante é “Páginas de uma vida


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obscura”, que circulou apenas como folhetim no jornal O Brasil Ilustrado, no ano de 1855. Ela contém a história de vida de um escravo, desde que foi trazido da África, ainda criança, seus atos de heroísmo e a ininterrupta dedicação ao trabalho até a morte. Podemos perceber neste texto as primeiras manifestações do pensamento de Nísia Floresta no que diz respeito ao sistema escravocrata. Ela enaltece as qualidades do homem negro, defende com ênfase um tratamento humanitário por parte dos senhores de escravos, e se revela sinceramente condoída com o sofrimento do outro. Alguns anos mais tarde, por volta de 1870, a autora vai defender apaixonadamente a abolição. No mesmo ano da publicação de A Lágrima de um Caeté, Nísia Floresta embarcou para a Europa, onde passou a residir. Nessa época, no auge da maturidade intelectual, ela viajou anos seguidos pela Itália, Portugal, Alemanha, Bélgica, Grécia, França e Inglaterra, e se relacionou com grandes escritores da época, como Alexandre Herculano, Alexandre Dumas (pai), Lamartine, Duvernoy, Victor Hugo, George Sand, Manzoni, Azeglio e Auguste Comte. Das viagens pela Europa resultaram alguns livros que, bem ao gosto da época, contêm suas impressões dos lugares que ia conhecendo. Só que Nísia Floresta não realiza simples relatos de viagem, mas descreve com riqueza de detalhes as cidades, as igrejas, os museus, os parques, as bibliotecas e monumentos, detendo-sse nos tipos humanos, comentando tudo com sensibilidade e erudição. Itinerário de uma Viagem à Alemanha (1857), e Três Anos na Itália, Seguidos de uma Viagem à Grécia (em dois volumes, 1864 e 1872) são os títulos desses livros escritos e publicados em língua francesa, e que apenas recentemente ganharam versões em português. Esse último, por exemplo, contém anotações do ano anterior à unificação italiana, a descrição da luta, dos sentimentos populares, do clima revolucionário e nos revela a admiração da autora pelos líderes, Garibaldi e Azeglio, com quem se correspondeu durante algum tempo. Um outro trabalho, dos mais importantes, é Cintilações de uma Alma Brasileira, publicado em Florença, no ano de 1859. Este livro contém cinco ensaios que tratam da educação dos jovens, da mulher européia, e das saudades de seu país após tanto tempo ausente. Cito dois. Um deles, intitulado A Mulher, trata da francesa de meados do século 19, que a autora critica pelo comportamento superficial e mundano. Nísia se antecipa aos governantes e condena, nesse ensaio, o costume das mulheres francesas de abandonarem os filhos recém-nnascidos para serem amamentados e criados no interior do país por camponesas. Em outro ensaio, O Brasil, ela resume a história da nação brasileira, fala dos recursos econômicos, das riquezas conhecidas e latentes, dos sábios e escritores mais conhecidos. Sua intenção era, além de fazer propaganda da pátria no estrangeiro, desfazer os preconceitos e mentiras que predominavam na Europa, acerca do Brasil. Assim, ainda que rapidamente, é possível perceber a importância do resgate de uma figura como Nísia Floresta. No momento em que se pesquisa e se constrói a história intelectual da mulher brasileira, é hora de dar a Nísia Floresta o lugar de destaque que ela de fato merece, e reconhecer o ineditismo de seus escritos. A autora – que tão longe iria em sua trajetória de vida –, com certeza, foi uma das mulheres “educadas” do Brasil patriarcal, e também uma das raras mulheres de letras de seu tempo. Mas foi mais ainda: foi também uma brasileira erudita e ilustrada como poucas em nossa história. • Continente dezembro 2004

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ÚLTIMAS PALAVRAS

Rivaldo Paiva

Para tempos de dezembro Reflitamos com antecedência, como terminaremos o ano

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ês da esperança. Dos aconchegos. De abraços de perdão. Das mangas açucaradas dos quintais. Tempo do calor predecessor de chuvas aliviantes. Dos vovôs e vovós balançantes nas cadeiras do passado. De pensamentos recicláveis. Das boas lembranças de outros dezembros de muitos Natais. De um ano dourado qualquer da nossa juventude. Anos dourados, mais acentuadamente, para uma geração de jovens corajosos que liam e abordavam o futuro do país com a destreza dos sábios e a alegria sem documentos. Cada um de nós cultiva seus dezembros. Façamos deste o melhor de todos. Mais uma vez. Sempre. Rezemos às nossas certezas e incertezas. Esqueçamos, pelo menos em razão da paz, as discórdias de um ano que não passaram de meros equívocos da ilusão. Tranquemos o desnecessário ódio que porventura nos tenha atormentado, por momentos, na última gaveta do baú do esquecimento. Que se danem os atropelos dos irrefletidos; os lenços lavados de lágrimas; as provações do destino; as atrocidades desmedidas dos idiotas poderosos; as incoerências dos incapacitados; os lamentáveis descumprimentos dos direitos humanos; os ventos poluentes da hipócrita política que nos suga a credibilidade em sua prática cotidiana, a qual carregamos com tanto otimismo por toda uma vida. Às favas as amarguras de amores não correspondidos; as traições vis daqueles que pensamos ser nossos amigos; as sinucas de bico; as contrariedades às leis que nos governam; às mulheres de bigodes e os efeitos televisivos destruidores da instituição familiar. Que as bestas tirânicas de qualquer canto do mundo se percam na desolação. Que vão aos cafundós do Judas os invejosos que nunca vencerão, o analfabetismo, os intelectuais confeitados. Para o inferno os ladrões da nação, do patrimônio

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alheio, das idéias, da cidadania, dos sonhos alimentados pelos esquecidos da sociedade e da vontade do povo bom. Que repudiemos essa maldita elite que desrespeita os pobres e as crianças solitárias e carentes de amor paternal, despejadas pelas vielas do abandono. Festejemos o Senhor, em qualquer religião, desde o seu nascimento. Para os que não acreditam na Sua invisível presença entre nós injetemos o que lhes resta – a fé em si mesmos, a esperança. Lembremo-nos de saudosos dezembros. Dos irrequietos tempos de infância. Das férias escolares, dos veraneios nas praias, do esperado Natal dos presentes – do lendário Papai Noel –, das meias penduradas nas janelas, destoando dos menos apaniguados à espera do nada. Reflitamos, com antecedência, como terminaremos o ano.Uma boa prece, a gosto preferido, conforta-nos pela boa saúde, por uma boa convivência com o nosso próximo. Cá estou eu, erudito, pois melhor encarar nosso dezembro assim natalino, risonho, nunca choroso – é preciso acabar com essa mania de transformar este mês em tristeza e solidão –, pois o mais extasiante momento deve ser o de congraçamento e afeto. Mensagens ruidosamente exclamadas não tocam o verdadeiro espírito de dezembro, solícito à troca de amabilidades sinceras e pessoais. Tempo de atentarmos para tempos de períodos modificados por novos tempos que advirão pela magia do calendário da imaginação. Parece até que, completados os dias de dezembro, um novo ano surgirá como se não fosse um outro dia comum. No entanto, é bom conservarmos essa idéia: Ano Novo é vida nova, é esperança. Notem que utilizei a palavra esperança no início, no meio e, agora, finalizo, como Érico Veríssimo, nos textos dos seus livros, com o ponto da esperança.




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