Revista Ao pé da Letra - Volume 18.1.

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VERSÃO ONLINE - ISSN 1984-7408 - VOLUME 18.1 - ANO 2016



Volume 18.1 Janeiro a Junho de 2016 Recife: Universidade Federal de Pernambuco Centro de Artes e Comunicação Departamento de Letras 1. Língua Portuguesa - Periódicos. 2. Linguística - Periódicos. 3. Literatura Brasileira - Periódicos


Catalogação na fonte. Bibliotecária Gláucia Cândida da Silva, CRB4-1662 A638

Ao pé da letra/ Departamento de Letras, Centro de Artes e Comunicação, UFPE (nov. 1999 - ). - Recife: Departamento de Letras da UFPE, 1999 - . v. : il. Semestral, nov. 1999 – v. 18, n.1, jan./jun. 2016. Inclui bibliografia. ISSN 1518-3610 (broch.) 1. Língua Portuguesa - Periódicos. 2. Linguística - Periódicos. 3. Literatura brasileira - Periódico I. Universidade Federal de Pernambuco. Departamento de Letras. 869

CDD (22.ed.)


Expediente UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

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Revisão Técnica Estela Carielli de Castro (UFPE) Rayza Priscila da Silva Chaves (UFPE) Conselho Editorial Acir Mário Karwoski (UFTM) Adna de Almeida Lopes (UFAL) Ana Lima (UFPE) Anco Márcio Tenório Vieira (UFPE) André de Senna (UFPE)

Angela Paiva Dionisio (UFPE) Antony Cardoso Bezerra (UFRPE) Benedito Gomes Bezerra (UPE) Cléber Alves de Ataíde (UFRPE) Félix Valentín Bugueño Miranda (UFRGS) Francisco Eduardo Vieira da Silva (UEPB) Ildney Cavalcanti (UFAL) Joice Armani Galli (UFPE) José Alexandre Maia (UFPE) José Rodrigues Paiva (UFPE) Judith Hoffnagel (UFPE) Karina Falcone de Azevedo (UFPE) Márcia Mendonça (UNICAMP) Maria Angélica Furtado da Cunha (UFRN) Maria Antónia Coutinho (UNL) Maria Auxiliadora Bezerra (UFCG) Maria Cristina Leandro Ferreira (UFRGS) Maria Medianeira de Souza (UFPE) Miguel Espar Argerich (UFPE) Norimar Judice (UFF) Oussama Naouar (UFPE) Patrícia Soares (UFRPE) Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG) Ricardo Postal (UFPE) Roberto Carlos Assis (UFPB) Sherry Almeida (UFRPE) Simone Pires Barbosa Aubin (UFPE) Vera Lúcia Lopes Cristóvão (UEL) Vera Lúcia de Lucena Moura (UFPE) Vera Menezes (UFMG) Wagner Rodrigues Silva (UFT)

Projeto Gráfico e Diagramação Karla Vidal (Pipa Comunicação) Augusto Noronha (Pipa Comunicação)



Política Editorial O Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco, em 1998, criou a Revista Ao Pé da Letra com os seguintes objetivos: » Estimular e valorizar a escrita acadêmica dos futuros professores e pesquisadores na área de Letras. » Legitimar a escrita acadêmica em línguas materna e estrangeira. » Divulgar as pesquisas realizadas em diferentes IES no Brasil, possibilitando o intercâmbio entre alunos e professores de graduação. A Revista Ao Pé da Letra é uma publicação semestral que se destina a divulgação de trabalhos, de cunho teórico e aplicado, realizados por alunos de graduação em Letras de todo o país. Os trabalhos científicos enviados para publicação são submetidos a dois pareceristas. Caso haja opiniões divergentes entre esses avaliadores, o trabalho será avaliado por um terceiro. Os pareceres são encaminhados para os autores e professores orientadores. Somente serão publicados os trabalhos aceitos por dois pareceristas.



Sumário ARTIGOS 11

O Cárcere de Cesare Pavese Eliane Cristina Perry, João Batista Barbosa Jr e Ranieri Mastroberardino (UFPR)

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José Dias sob a ideologia da lógica do favor Ezequias da Silva Santos (UTFPR)

53

Fraseologismos em língua estrangeira: ilustração dos processos de compreensão Ian Gill de Mello (UFPEL)

77

Systemic Functional Grammar at work for language pedagogy: recontextualizing theTransitivity system in a website for EFL teachers Lucas Oliveira Silva (UFSM)

107 Ser e Linguagem em Bakhtin: diálogos com a filosofia heideggeriana Pedro Henrique de Oliveira Simões (UFPE)


RESENHAS 129 Na espreita da linguagem: Milton Hatoum, cronista Aídes José Gremião Neto (UERJ)

137 Um retrato multifacetado de Graciliano Ramos Erick Bernardes (UERJ)

145 Aluno, é assim que se faz Guilherme Arruda do Egito (UFCG)

151 Conscientização e luta em Sagrada Esperança Taísa Teixeira Medeiros (UFSM)

ENSAIOS 159 Olhos nos olhos, olhos nus: olhos: sublimação literária, inspiração poética… José Eduardo Gonçalves dos Santos (UFPE)

177 Comunidades de Machões: um percurso acidentado pela retórica e oralidade das poéticas de Gregório de Matos e Bernardo Guimarães Lucas Bento Pugliesi (USP)

195 Recife às escuras: panorama da representação da capital pernambucana nos contos de Gilvan Lemos Raul da Rocha Colaço (UFRPE)


Artigos



O cárcere de Cesare Pavese Eliane Cristina Perry João Batista Barbosa Jr Ranieri Mastroberano1 Universidade Federal do Paraná Resumo: Este artigo propõe uma análise da obra Il Carcere (O Cárcere), de Cesare Pavese, através de uma pesquisa dos elementos existenciais do livro. Nossa intenção é apresentar uma nova possibilidade de leitura a partir do aspecto do “Existencialismo”. Para tanto, o presente trabalho utiliza as teorias do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard em seu livro “O Conceito de Angústia” e demais autores que serão denominados ao longo da pesquisa. Em primeiro lugar, nós analisaremos o romance, em seguida, apresentaremos elementos existencialistas presentes na narrativa e por fim uma relação com outras obras. Palavras-chave: Pavese; cárcere; existencialismo. Abstract: This article proposes an analysis of the work of Cesare Pavese in “The Prison”, by searching of existential elements of the book. Our intention is to show a new opportunity to read from the aspect of “Existentialism”. For this purpose, this article uses the theories of Danish philosopher Soren Kierkegaard in his book “The Concept of Anxiety” and other authors who will be named throughout the article. First all, we’ll analyze the novel, later we’ll present existentialist elements present in the narrative and finally a related with another books. Keywords: Pavese; the prison; existentialism.

1. Acadêmicos de Letras- Português/Italiano da Universidade Federal do Paraná. O presente artigo foi apresentado à disciplina de Literatura Italiana V, ministrada pela Profa. Dra. Lucia Sgobaro Zanetti, no segundo semestre de 2014. Revista Ao pé da Letra – Volume 17.2 - 2015

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Introdução Trata-se de uma pesquisa, oriunda das reflexões em torno do livro O Cárcere com autoria de Cesare Pavese2. Nosso intuito é apresentar uma possibilidade de leitura a partir do aspecto do “Existencialismo”, contribuindo para a cooperação interpretativa do livro. Para tanto, o presente trabalho parte dos pressupostos de Soren Kierkegaard em o “O Conceito de Angústia” e demais autores que serão denominados ao longo do artigo. Acreditamos que, aproximar-se da obra O Cárcere (1948), é um exercício complexo, que nos exige muita cautela, uma vez que não existem muitas pesquisas sobre o autor em território brasileiro. Esse romance lança questionamentos polêmicos, um estudo histórico minucioso e um sem fim de leituras possíveis. Investigar as dimensões e a importância do aspecto existencialista nessa obra se justifica não só pela inquietude que nos desperta a conformação e valoração que este assume nos estudos literários, mas também por se constituir como um elemento imprescindível na compreensão e na articulação da narrativa. Deste modo, nossa intenção dentro deste artigo é nos debruçarmos primeiramente sobre uma analise geral da obra; assim, apresentamos de forma sucinta, o argumento do romance e ressaltamos aspectos de tradição e ruptura que verificamos neste. Seguidamente, pretendemos uma analise sobre o viés do existencialismo em O Cárcere e, por fim, evidenciamos a aproximação de livro com outras obras.

2. Escritor italiano que vivenciou o contexto da cultura liberal antifascista piemontesa, estudou literatura inglesa e americana. Sua principal atividade era a tradução, empenhando-se, sobretudo, nas obras dos grandes escritores dos XIX e XX, tais como: Melville, James Joyce, Sinclair Lewis, dos Passos, entre outros. 12 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


Contudo, cremos que neste artigo conseguimos estabelecer, em linhas gerais, uma nova leitura da obra de Cesare Pavese, ao atribuir um valor diferente ao apresentado pela crítica existente: assim, imputamos ao existencialismo, como repetiremos várias vezes ao longo deste estudo, seu caráter de elemento simbólico, tomando seu sentido metafórico e desmistificando-o.

Análise geral de O cárcere É um romance breve, publicado em 1948, juntamente com A casa na colina (Casa in Colina), sob o título: “Prima che il gallo canti”(Antes que o Galo Cante), uma história da solidão privada. É um romance que retrata a experiência autobiográfica do autor: representaria o período de confinamento vivenciado em Brancaleone Calabria, entre os anos de 1935 e 1936, por ter tentado proteger a mulher amada, uma militante do Partido Comunista Italiano. O Cárcere desponta com a vida do confinamento e elucida o aprendizado de um intelectual envolvido na política, além de retratar a descoberta de outra Itália. Como veremos mais adiante, a obra se inscreve no neorrealismo italiano, é uma prosa que retrata uma literatura do período de reclusão. Consideramos que O Cárcere antecipa, logo no título, o tema que desenvolverá no decorrer da narrativa, a qual é feita em terceira pessoa com o uso do discurso indireto livre, em que se demonstra a reclusão em um cárcere tanto físico quanto existencial. Essencialmente, o tema de O Cárcere é a solidão do protagonista, característica congênita do seu estado natural, além das precisas contingências históricas e políticas que delimitam o fio interior e o ritmo existencial em que é narrada a história de um engenheiro da região norte da Itália – recluso por antifascismo em uma pequena cidade litorânea do sul italiano. A prisão é branda – ainda que amarga – e, somente em alguns

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trechos, assume a profusão das cores de um tempo e de uma exata estação política. Stefano não se opõe devido à diversidade moral e intelectual e porque estava convencido a continuar na luta. Assim, o seu cárcere não é propriamente um aprendizado político, mas sim uma verificação da própria natureza e dos sentimentos, tendo como pano de fundo uma esplêndida e inerte paisagem, povoada por poucas figuras bastante significativas, tal como evidenciamos nas personagens femininas. Segundo Candido (1998), da leitura de um romance fica a impressão de uma serie de fatos, organizados em enredo, e de personagens que vivem estes fatos. O enredo existe através das personagens, as personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que animam. Para o autor, a personagem que representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção, transferência, etc. Sendo assim, a personagem vive o enredo e as ideias e os torna vivos. Candido (1998) afirma que a personagem é um ser fictício e o romance se baseia, em certo tipo de relação entre ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste. E será a partir desta ideia de ser fictício que iniciaremos nossa reflexão em torno ao livro de Pavese. Sendo assim, consideramos interessante a forma como o autor compõe seus personagens, tais como: Stefano, o protagonista; Giannino; Elena, filha da proprietária da pensão; Concia a mulher selvagem; e o Marechal da Cidade. Observamos um contraste entre eles, como, por exemplo: Elena ama e acolhe ternamente o engenheiro Stefano vindo do norte, porém, se revela tão frágil e submissa que se contrapõe a uma outra representação feminina dominante: Concia, uma mulher inculta, selvagem e sensual. Nesta dualidade, Elena é a mulher que se concede ao protagonista. Há nela um amor absoluto, devoto e quase maternal, o 14 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


que fará com que Stefano tenha uma reação contrária: um movimento de resistência e adversidade. Concia, ao contrário, é retratada como uma jovem selvática, tentadora, à sua maneira, e permanecerá como objeto de sonhos e desejos. Além disso, as mulheres povoam a solidão do confinado. A representação do elemento feminino conflue ao universo de Stefano através da oposição entre: mito e selvagem, companhia e solidão, espontaneidade e discrição, além de outros dualismos que farão d’o Cárcere uma narrativa envolvente e rítmica. No início da obra, as mulheres são descritas e matizadas como sendo extremamente silenciosas e protegidas, em um meio que, em certo sentido, as considera como escravas. Em poucas palavras, Pavese demonstra a realidade sulista italiana tão dessemelhante daquela em que era proveniente. Em torno do protagonista e sua rede de pensamentos, move-se um diminuto coro de homens: jovens ansiosos a passear eternamente pelas ruas de Brancaleone Calabria ou a travar discussões calorosas na taberna; o policial alfandegário, o marechal bonachão, chefe dos carabineiros; algum mendicante. Decorre o tempo, e a espera da liberdade torna-se tão insignificativa que, quando ela chegar, servirá apenas como um pretexto ante a mais profunda angústia de Stefano. Personagem, espaço e tempo são elementos que unidos dão sentido à obra, e nela funcionam e operam bem ao relacionar-se. Deste modo, não podemos desvincular espaço e personagem, também não podemos diminuir a importância da relação entre tempo e espaço. Para Gullón (1990), não há espaço sem tempo, nem tempo sem espaço, devido a temporalidade que marca o primeiro e a espacialidade que acompanha o segundo: o tempo precisa do tempo para se tornar realidade consistente e viva. O romance de Pavese é escandido pelo passar do tempo; pela participação de Stefano puramente nervosa e ausente em relação às festas típicas do local e à vida da taberna; pelos passeios na pe-

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quena cidade e às caças no campo vizinho; pelos banhos de mar no verão; pelas vigílias invernais diante do fogo; pelo seu contínuo desejo de possuir a jovem Concia, que o ignora sistematicamente; e pelo seu afastar-se de maneira reiterada dos afetos de Elena. Quando, na parte final do romance, outro confinado tentar estabelecer um contato, Stefano esquivar-se-á com veemência, pois, quer evitar uma comunicação que poderia modificar o seu já inquieto equilíbrio e o seu sereno desespero de intelectual. Trata-se do desespero de um confinado que se encontra diante de uma cultura diversa da sua, em uma cidade que - de algum modo – torna-se conveniente, uma vez que, ao não despertar recordações, não o agitará em profundidade e isso deixará apenas traços no véu de sua distância, posto que, terminado o confinamento retornará ao norte. A obra O Cárcere, de, Pavese se inscreve no neorrealismo italiano. Mas o que é o neorrealismo? As origens desse movimento remontam à efervescente Alemanha da década de 20, como uma reação ao expressionismo. Na Itália, o termo é empregado pela primeira vez em âmbito cinematográfico (1943 – designa a novidade do filme Obsessão de Lucchino Visconti). Todavia, é nos anos do pós-guerra que o termo se difundirá. Este movimento artístico nada mais era do que uma tendência à representação (em chave moral e política) da realidade popular cotidiana. No ambiente literário representaria uma literatura do engagement, em uma denotação que extrai a dimensão social e antropológica. Desse modo, o novo papel do sujeito intelectual mais engajado nas questões sociais e na reconstrução do país, advém de uma renovação temática, linguística e de conteúdo do fazer literatura. Segundo Cataldi (1994), o próprio Pavese escreverá em 1946:

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Eu sinto apenas um dever literário em direção a estes novos leitores, que afinal representam todos os homens: ensinálos a ler, e para que o ler não seja desperdiçado, oferecerlhes a melhor e a mais rica literatura entre tudo aquilo o que se escreve. (Cataldi, 1994:128) (Tradução Nossa)3

Esta nova forma, do fazer literatura e do representar literário, coincide com a passagem do fascismo à república italiana. De acordo com Calvino ( 2001), o “neorealismo” não foi uma escola (Tentemos dizer as coisas com exatidão). Foi um conjunto de vozes, em boa parte periféricas, uma descoberta múltipla - das diversas Itálias, também ou – especialmente – das Itálias até então mais inéditas para a literatura. Sem a variedade das Itálias desconecidas uma das outras – ou que se supunham desconhecidas -, sem a variedade dos dialetos e das gírias a serem fermentados e amalgamados na língua literária, não teria havido neo-realismo. Em Pavese, a representação da realidade se baseia nas reflexões sobre o significado do existencial. Dessa forma é a partir de um testemunho existencial que se construirá e se fundará a literatura do engagement.

Existencialismo em Pavese: O cárcere O existencialismo surge no século XIX tendo como característica o atribuir ao ser humano a responsabilidade pela construção de seu destino e de sua liberdade. De acordo com teóricos, a existência serve como conditio sine qua non em relação à essência humana, portanto, o homem existe independente de qualquer definição. A vida seria uma jornada, na qual se adquire o conhecimento gradual da essência dos seres humanos. 3. Io sento un solo dovere letterario verso questi nuovi lettori, che sono poi tutti gli uomini: insegnare loro a leggere e affi nché leggere non sia tempo perduto, dargli da leggere quanto di meglio, di piú ricco, di più giusto si sa scrivere. (Cataldi, 1994:128) Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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Os homens não são criados com um propósito pré-determinado, uma vez que a razão e o objetivo se delineiam durante o percurso existencial concernente a cada ser. Por conseguinte, não há como termos consciência de tudo aquilo que nos acontece. Sob esta perspectiva há uma angústia existencial oriunda daquilo que não se pode compreender o sentido. Segundo Kierkegaard (1968), é fundamental que o ser humano reconheça que tem medo dos objetos específicos. Isto gerará um sentimento de apreensão que será refletido em dois conceitos inerentes aos seres humanos, são eles: o “Temor” e a “Angústia”. Esta última palavra, na percepção do filosofo, leva à confrontação do individuo com o nada. O ser humano nessa confrontação será incapaz de encontrar uma justificativa para as decisões que deverão ser tomadas ao longo de sua vida. Em seu livro, “O Conceito de Angústia”, Kierkegaard nos mostra que a angústia é um modo da humanidade ganhar salvação. Ela nos informa sobre as nossas possibilidades de escolha, sobre o nosso autoconhecimento e sobre a nossa responsabilidade pessoal, levando-nos de um estado de imediatismo não autoconsciente a uma reflexão autoconsciente. O ser humano torna-se consciente de sua vida através da experiência de ansiedade e de angústia. Kierkegaard (1968) ressaltou a ambiguidade e o absurdo da situação humana. De acordo com o filósofo, a existência deve ser entendida pelo indivíduo que a assume e isto perpassa o conceito de angústia. O indivíduo, portanto, tem que estar sempre disposto a enfrentar esse conceito para saber qual é a sua definição e, por consequência, sua essência. Sendo assim, subentendemos O Cárcere como uma obra existencial, pois coloca em evidência a desilusão do personagem principal, no que diz respeito a uma inquietação e desassossego do viver. Trata-se de um mal-estar profundo que se confunde com as questões sentimentais e sociais. Através da intrincada psicologia de Stefano – personagem chave do livro – Pavese aponta-nos a complexidade da trama dos relacionamentos humanos, que confluem com a dificuldade de estabelecer um contato com 18 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


o outro. Sob esta ótica, o personagem chave do livro permanece ocluso em si mesmo. Suscetível a uma desinquietação, só resta ao protagonista recolher-se em um cárcere existencial. Sob esta perspectiva, podemos pensar em Abbagnano, citado por Primerano (2009): O homem é realmente livre? Essa pergunta, segundo Abbagnano, adquire um viés diverso e certamente inquietante se reformulada da seguinte maneira: “Eu sou realmente livre”? (Primerano, 2009: 24) (Tradução Nossa)4

Tais questionamentos consideram a problemática da liberdade em um panorama tipicamente existencial. E ao existencial associa-se o coexistencial, isto é, o eu no eu. Nessa multíplice teia convergem a angústia e a melancolia. Portanto, vejamos como isso se manifesta no protagonista de O Cárcere. Stefano é pessimista a respeito da vida cotidiana e da realidade. Assim, subsiste no personagem a vivência de uma crise existencial: [...] bastava que pensasse na intensidade do sol, para que ressentisse aquela angústia, mas a angústia verdadeira é construída pela melancolia. (Pavesse, 1948, pág . 22) (Tradução Nossa)5

A partir de suas inquietações pessoais e subjetivas, o personagem Stefano apresenta a sua angústia com o objetivo de encontrar a sua essência

4. “L’uomo è veramente libero?” Questa domanda, secondo l’Abbagnano, acquista un carattere diverso e sicuramente più inquietante se assunta in tale forma: “Sono io veramente libero?” (Primerano, 2009: 24) 5. “...bastava pensasse al gran sole- e risentiva quell’angoscia, ma l’angoscia vera è fatta di noia.” (Pavesse, 1948, pág . 22) Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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e definição. Stefano torna-se consciente de sua vida através da experiência de ansiedade e angústia. O protagonista do romance prefigura a solidão humana. Na solidão do protagonista, que representa a solidão humana, convergem três conceitos de cárcere: o cárcere das paredes invisíveis; o cárcere coletivo: o mundo concebido como uma cadeia ininterrupta de celas; o cárcere do tempo transcorrido: é o tempo que se repete. Assim, o cárcere é descrito como uma ideia psicológica. Por meio de Stefano, Pavese mostra-nos experiências, sensações e angústias do período de confinamento. São reflexões de muita intensidade, aprofundadas e que são colhidas do universo interior do personagem: a inquietação do recluso em um cárcere existencial. Além disso, Stefano espelha uma desilusão a respeito da sociedade em geral. Citemos um exemplo: Ninguém se sente em casa estando em uma cela, e Stefano percebia sempre ao seu redor, paredes invisíveis. Por vezes, ao jogar cartas na taberna, entre olhares cordiais e atentos daqueles homens, Stefano se via só e frágil, dolorosamente isolado entre aquela gente. [...] Em cada recordação, em cada dificuldade ressoavam em Stefano ecos de que aquela não era a sua gente, aquela não era a sua vida, e aquelas palavras jocosas estavam tão longe dele como um deserto, ele era um exilado que um dia voltaria para casa. (Pavesse, 1948, pág . 3) (Tradução Nossa)6

6. “Nessuno si fa casa di una cella, e Stefano si sentiva sempre intorno le pareti invisibili. A vote, giocando alle carte nell’osteria, fra i visi cordiali o intenti di quegli uomini Stefano si vedeva solo e precario, dolorosamente isolato fra quella gente provvisoria, dalle sue pareti invisibili.[...] Non sapeva che Stefano a ogni ricordo,a ogni disagio,si ripeteva che tanto quella non era la sua vita,che quella gente e quelle parole scherzose erano remote da lui come un deserto,e lui era un confi nato,che un giorno sarebbe tornato a casa.” (Pavesse, 1948, pág . 3) 20 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


O personagem principal coloca em dúvida a sua existência e a sua falta de sentido: é a irracionalidade do existir. Entretanto, se formos seguir a linha de raciocínio de Kierkegaard, o fato do personagem já estar se indagando com uma angustia exacerbada já comprova que ele é dotado de essência e definição. É uma reflexão autoconsciente de sua própria condição.

O cárcere e outras obras sob a perspectiva existencialista Conforme apresentamos o livro O Cárcere, de Pavesse, pode ser considerada uma obra plena de significado existencialista, debruçada em muitos aspectos sobre o pensador Kierkegaard, isto porque, no delinear da obra Pavesse, desenvolve traços desta corrente filosófica que deixam claro esta raiz idealizadora. Para tanto, acreditamos que seja importante relacionarmos com outras obras dentro da perspectiva existencialista, como uma forma de sustentação de pesquisa. Vejamos como isso pode ocorrer. Stefano, nosso protagonista, acreditava na impossibilidade de construir um amor sólido. Depreende-se da banalidade e da superficialidade na tentativa de instituir laços amorosos. Isto é observado no relacionamento entre ele e Elena. Trata-se de uma ligação baseada mormente no ato sexual. Nestas associações de ideias não podemos deixar à margem a obra O Estrangeiro, de Albert Camus. Mersault, personagem principal, e Stefano têm algumas peculiaridades em comum: ambos vivem de experiências sensoriais. O sexo é um exemplo disso. Mersault, pelas suas relações com Marie, e Stefano com Elena e Concia. Exemplificamos: Existia algo de infantil naquele orgasmo de Elena. O cigarro caíra ao chão. Stefano, enfim, levantou-se da cama puxando Elena para perto de si. Em pé deu-lhe um beijo mais

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calmo e Elena aderiu com todo o frescor ao seu corpo. Depois, Stefano afastou-se e começou a vestir-se. (Pavese, 1948, pág . 32) (Tradução Nossa)7

A dificuldade em estabelecer vinculações com outras pessoas destaca-se na obra Mestiere di Vivere (O Misterio de Viver), um diário de Pavese escrito em tons da mais profunda melancolia, e principalmente na possibilidade de instaurar um liame amoroso. Pavese é um homem de reflexões e não de atitude. Ora, em outras palavras, é um intelectual que reflete sobre tudo, mas que, a despeito disso, não consegue tomar nenhum posicionamento. Além disso, podemos considerar Pavese como sendo pós-moderno: a extrema dificuldade de tomar uma posição é convergente a um pessimismo profundo, de base. Assim a extrema racionalidade e emotividade são congruentes a uma espécie de limbo. Por isso, subentendemos que este autor é transcendental, um escritor que vai além de seu tempo. A concepção da vida para Pavese é a extrema banalidade, uma vez que, seja o escritor, seja Stefano (o seu personagem), apresentam dificuldades em adaptar-se a um mundo que se transformava devido aos acontecimentos provenientes da segunda guerra mundial. A dificuldade de adaptação provoca um desassossego que se consubstancia tanto com o tecido social quanto com a situação política da Itália. Nesse período, os intelectuais tinham como ideal a melhoria da situação do País, que estava sob o domínio fascista. Todavia, os partidários, ou seja, aqueles que desejavam mudanças na situação presente, tinham como objetivo principal conquistar o poder. Esta representação é a mesma que encontramos na obra O Príncipe, de Maquiavel. 7. “C`era qualcosa d`infantile in quell`orgasmo di Elena. La sigaretta era caduta a terra. Stefano infi ne saltò giú dal letto,tirando Elena con sé. In piedi,cercò di darle un bacio piú calmo ed Elena aderí con tutto il corpo fresco al suo.Poi si staccò e prese a vestirsi.” (Pavese, 1948, pág . 32) 22 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


Substancialmente, o quadro social que se esboçava refletia a degradação e o declínio italianos sob o enfoque econômico/cultural. A melancolia e o desassossego personificados na figura do personagem Stefano podem ser comparados ao existencialismo perceptível na obra Náusea, de Jean Paul Sartre. Assim como no livro do filósofo, Stefano tem uma sensação de adversidade em relação aos confrontos dos seres humanos com a condição existencial. Nas duas histórias, os personagens principais colocam em dúvida as suas existências e a falta de sentido: é a irracionalidade do existir. De acordo com as concepções de Pavese e Sartre, o existir não tem um significado; é uma lógica sem uma essência. A essência é algo que nos falta. Os dois personagens (Antoine Roquetin e Stefano) são conturbados e transformam as suas existências em algo insuportável. Tal insustentabilidade da existência é comparável com a obra A República, de Platão, especificamente no livro VII, no trecho denominado O Mito da Caverna, no qual o homem imagina-se conhecedor de todo o universo, mas, na realidade, quer conhecer apenas o interior deste mundo (caverna) sem ter o desejo de procurar o mundo externo. Em síntese, este conceito é descrito através dos pensamentos do universo interno. Neste universo, são congruentes as alegorias da janela e da porta retratadas pelo livro O Cárcere: são aberturas voltadas ao exterior, porém, o protagonista permanece ali dentro como um prisioneiro de um cárcere mental. É a solidão e o vazio em uma espécie de configuração do nada. Segundo Gionola (2011), o vazio pavesiano se expressa da seguinte maneira:

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Não tem fundamentos metafísicos, mas é fonte do mais puro instrumento de comunicação, denotação oca, sem ecos de recordações, ausências e também esperanças, capazes apenas de fecundar um modo de escrever que seja realmente poético. (Gioanola, 2011:206) (Tradução Nossa)8

É preciso percorrer sem traços de hesitação a estrada do “adentrar ao nada”, que conduz ao vazio existencial, para chegar ao coração da obra pavesiana. Vejamos alguns exemplos: Aquele sentimento de solidão física que o acompanhara durante todo o dia, entre a multidão festeira e o estranho céu lá no alto, ei-lo novamente. Por todo o dia, Stefano se isolara, como se estivesse fora do tempo, parando um pouco para fitar as vielas estreitas e tortuosas abertas no céu. (Pavese, 1948, pág . 9) (Tradução Nossa)9 Aquela janela baixa aberta para o nada, para as nuvens azuis do mar, parecia-lhe uma porta estreita e secular do cárcere daquela vida. Havia mulheres e velhos lá em cima, entre aquelas muralhas desbotadas, que jamais saíram dos limites da pracinha silenciosa e das vielas. Para eles, a ilu-

8. “non ha fondamenta metafisiche, ma è custode e fonte di tutto il puro strumento di comunicazione, nuda denotazione, senza echi di rimembranza e lontananza e anche speranza, soli capaci di fecondare una scrittura che voglia essere realmente poetica.” (Gioanola,2011:206) 9. “Quel senso di solitudine fisica che l`aveva accompagnato tutto il giorno fra la calca festaiola e il cielo strano di lassù,rieccolo ancora.Per tutto il giorno Stefano s`era isolato come fuori del tempo,soffermandosi a guardare le viuzze aperte nel cielo.” (Pavese, 1948, pág. 9)

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são de que todo o horizonte pudesse caber na palma da mão era real. (Pavese, 1948, pág. 10) (Tradução Nossa)10

Segundo Kierkegaard (1968), o indivíduo tem uma confrontação com o nada. O ser humano, nessa confrontação, será incapaz de encontrar uma justificativa para as decisões que deverão ser tomadas ao longo de sua vida e isso é uma característica inerente ao “cárcere”. Nos exemplos apresentados, percebemos que, por não conseguir tomar uma decisão objetiva, o personagem decide isolar-se. Não obstante, se levarmos em consideração as ponderações de Kierkegaard, o isolamento é o resultado de uma angústia. Esta foi fundamental para que Stefano tivesse consciência de sua existência e definição. O isolamento apenas ilustra uma existência pensada e consciente. Ele apresenta uma reflexão consciente de sua própria condição. O livro O Cárcere também nos faz lembrar da obra O Discurso do Método, de René Descartes, e da sua célebre frase: “Penso, logo existo”. Igualmente para o personagem Roquetin, a consciência do existir provém do pensamento. Em outras palavras: quando alguém pensa, existe. Entretanto, esta consciência é terrível porque Pavese sabe que o único modo de fugir da existência é fugir dos pensamentos. Este tipo de reflexão encontra-se também em outra obra de Pavese: La casa in collina (A casa na colina). Percebe-se claramente que, para o autor, é melhor sermos ignorantes. Assim, não desperdiçaríamos nosso tempo em discussões sobre a vida e as coisas que acontecem.

10. “Quella fi nestra bassa aperta nel vuoto alla nuvola azzurra del mare,gli era apparsa come lo sportello angusto e secolare del carcere di quella vita.C`erano donne e vecchi lassú,fra quelle muraglie scolorite e calcinate,che non erano mai usciti dalla piazzetta silenziosa e dalle viuzze.Per essi l`illusione che tutto l`orizzonte potesse scomparir dietro una mano,era reale.” (Pavese, 1948, pág. 10) Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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Pavese personifica o existencialismo propondo aos leitores a seguinte pergunta: como é possível distanciar-se dos pensamentos se a necessidade da fuga já é um pensamento e conduz a existência? A sua resposta consiste em dizer-nos que estamos ancorados na existência, uma vez que, para ele, Sartre e Descartes, o percurso do pensar e o sentimento do existir são indissolúveis.

Conclusão Com base nos pontos apresentados e amplamente discutidos, Il Cárcere é considerada uma obra neorrealista, tendo uma linguagem e um estilo pessoais. Pavese apresenta, através de seu personagem chave, a realidade nua e crua de um confinado. Permeia na narrativa um confrontar-se da solidão com a paisagem desolada, ainda que se tenha o mar. A natureza espraia-se como uma expressão da alma e do cárcere existencial. Contudo, é uma natureza que suscita alguns momentos de alívio. Nesse sentido, Stefano e a natureza se entrelaçam e repercorrem tonalidades que vão do denso ao vazio. É como se o estado de ânimo do personagem modulasse este complexo relacionamento entre ele e a natureza que o circunda. No entanto, é uma natureza que possibilita a liberdade do pensamento e nos conduz a uma amplitude que se mostra infinita. Além disso, podemos dizer que o autor caminha em direção a uma arte popular e épica. Desse modo, reflete sobre o significado da existência humana. Em linhas gerais, o romance confirma um não pertencimento do indivíduo em relação ao mundo e ao seu destino de isolamento.

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José Dias sob a ideologia da lógica do favor Ezequias da Silva Santos1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná Resumo: O objetivo desse artigo é estudar a figura do pobre, sob a ideologia da lógica do favor, numa sociedade oitocentista. Observando os recursos estilísticos afeitos de Machado de Assis no romance Dom Casmurro, colocamos em xeque as eventuais falas de José Dias e analisamos a subjetividade e a crítica social, através de José Dias, inseridas pelo autor nesse romance. Palavras-chave: Sociedade; Machado de Assis; Ideologia; Favor; Dom Casmurro. Abstract: The goal of this article is to study the figure of the poor, under the favor logic ideology, in the 1800`s society. When we look at the resources of writing and the stylistics features, Machado de Assis peculiarities, in Dom Casmurro`s Novel, some of José Dias thoughts and actions are put in check, and we can analyze the subjectivity and the social criticism, through this persona, introduced by the author in this novel. Keywords: Society; Machado de Assis; Ideology; Favor; Dom Casmurro.

1. Trabalho produzido para o projeto de pesquisa (PIBIC) com o título “A Ordem patriarcal em romances brasileiros: Desvalidos e poderosos sob o império do favor”, sob a orientação do Profº Dr. Marcos Hidemi de Lima, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná campus Pato Branco. Revista Ao pé da Letra – Volume 17.2 - 2015

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Introdução Mestre na prosa realista2 , Machado de Assis destacou-se como escritor universal ao escrever três obras que dialogam entre si, são elas: Quincas Borba (1892), Memorias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1900). Com personagens mergulhados nas angústias da alma, estes três romances de Machado tratam a psicologia de personagem de forma nunca antes vista, embora José de Alencar já tivesse mostrado esses dons de análise em Lucíola (1862) e Senhora (1875). Ao nos determos no romance Dom Casmurro, podemos observar as aflições que oprimem o narrador Bento Santiago, transformando-o, mais tarde, no apelido que se deu justamente por seu espírito taciturno, sorumbático, alcunha esta que também serve para intitular a obra. Entretanto, a personagem de Bento Santiago não será a figura principal nesse artigo. Dentre os vários personagens de Machado de Assis, o romance Dom Casmurro tem, em seu enredo, o agregado3 mais famoso da literatura brasileira: José Dias, ao qual dedicamos, sob a perspectiva da lógica do favor, nossa análise nesse trabalho.

2. É mister anotar que Machado não pode ser visto como romântico nem realista pragmático. Assim como José de Alencar (em alguns casos) e alguns outros grandes nomes da literatura brasileira, Machado “foge” dos chavões das escolas literárias, pois seu excelso estilo transcende os rótulos destas correntes, marcando-o, como afi rma Alfredo Bosi, como o ponto mais alto e equilibrado da prosa realista brasileira. (BOSI, 2013, p.184) 3. Notemos que o romance A Mão e a Luva (1874) traz uma personagem que poderíamos arriscar dizer ser uma primeira versão de José Dias. Sendo uma personagem marcada com traços da era romântica, Mrs. Oswald não tem tanta voz, é apenas a conselheira do lar, que às vezes se arrisca para tirar algum proveito. José Dias, por sua vez, tem seu próprio drama e pode ser analisado paralelamente ao drama de Bento Santiago. Ao contrário de Mrs. Oswald, a personagem José Dias é complexa, tridimensional, podemos assim dizer, e poderia ser muito mais explorada se o narrador não fosse, genial e deliberadamente, em primeira pessoa. 30 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


Observando a sociedade em Dom Casmurro, fixa-se, em algum momento, a imagem do pobre sem voz nem vez que, duma maneira ou de outra, descobre como “pertencer” a essa sociedade. A figura de José Dias representa, assim, uma forma (fórmula) de como viver num meio submetido a condições peculiares de uma sociedade senhorial, patriarcal e escravagista. Num país como o Brasil, em que a distinção entre pobres e ricos sempre foi medida pelo maior ou o menor envolvimento com o mundo do trabalho – e nunca é repetitivo dizer que aqui trabalhar sempre esteve relacionado com a escravidão –, uma minoria de gente livre e sem meios de subsistência optou pela submissão cega aos que detinham a riqueza, valendo-se de uma troca interessada de favores com esses ocupantes do poder, com o objetivo único de fugir ao estigma de servidão que cercava aqueles que tentavam ganhar o próprio sustento com esforços próprios. Roberto Schwarz intitula lógica do favor a esse artifício que desvaloriza o labor e dá méritos ao ócio. Observa o crítico que tal prática funcionou como uma resposta a essa “necessidade” de permanência social dentro de uma sociedade onde as pessoas se encaixavam numa das três classes existentes: “o latifundiário, o escravo e ‘homem livre’” (SCHWARZ, 2012, p.16). A sociedade de classes era claramente apoiada numa espécie de triângulo cujo topo era ocupado pela classe proprietária, composta por poucos, dona de escravos e dos meios de produção. A base que sustentava toda a economia do país, constituída pelo braço servil, era a mais numerosa. Os que compunham o meio da pirâmide, é óbvio, para fugirem à miséria, a uma existência periférica etc., identificavam-se apenas com os de cima, empregando a bajulação, afinal, eram sujeitos livres, e o trabalho considerado um mister aviltante. No grupo desses “homens livres” é que devemos localizar a figura de José Dias. Como se percebe no romance, ele ocupa justamente a classe daquelas pessoas que eram livres e dependentes, uma vez que ele não

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pertence à ordem senhorial, tampouco é um escravo, “Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande. O agregado é a sua caricatura” (SCHWARZ, 2012, p.16, grifo do autor). Inserido nessa camada intermediária, José Dias emprega o estratagema da adulação. Ao empregar o favor, o leitor percebe que, para que essa prática tenha sucesso, requer-se que o sujeito se anule, todavia, isso não significa que tal estratégia não guarde em si certa artimanha malandra. Artimanha malandra porque José Dias sabe que sua subserviência pode lhe proporcionar vantagens no meio familiar dos Santiago. Uma oportunidade que ele não deixa escapar, pois valer-se do favor fazia parte, ainda que intrinsecamente, das expectativas do grupo senhorial. Sub-repticiamente, portanto, a camada patriarcal e senhorial instaura, de certa forma, a cultura do favor na nossa sociedade, isto é, abre flancos pelos quais os “homens livres” possam postular algumas de suas necessidades, desde que, é claro, aquele que postula saiba se comportar e demonstrar uma fidelidade canina. De acordo com a constatação de Schwarz, “O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm” (SCHWARZ, 2012, p.16). Noutras palavras, as ações subalternas de José Dias – agregado, “homem livre” – servem para o clã se sentir valorizado econômica e socialmente.

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O agregado Principiamos essa análise observando a oportuna (para o agregado) chegada4 de José Dias à casa dos Santiago. Embora Santiago pai se ausente em Dom Casmurro e dele reste apenas algumas lembranças, o modo patriarcal da condução familiar, característico do século XIX, se mantém através de D. Glória, que administra o lar com “punhos de ferro”. A ausência do Santiago pai abre, assim, indubitavelmente, um espaço maior para as eventuais falas do agregado. Podemos supor, baseado nessa sociedade patriarcal, que seria difícil José Dias ter tamanha liberdade em relação aos assuntos familiares, se o pai de Bento Santiago estivesse vivo para exercer essa função de homem do lar, função essa que, como dito anteriormente, D. Glória desempenha de forma contundente. A questão, nesse ponto, é atentar para o valor quase nulo do papel de José Dias caso a figura do pai estivesse em constante diálogo com a do filho e a da esposa. Uma vez que Santiago pai se faz ausente, José Dias ganha voz e vez, sendo uma importante personagem secundária, que traz novos lances dramáticos à trama da vida de Bento Santiago5. O agregado é uma personagem complexa, tornando difícil traçar seu perfil. Tudo nele é incerto. Empeçamos pelo modo “mascarado” com que

4. O vocábulo “chegada” traz uma conotação muito mais significativa do que o simples fato de chegar a algum lugar. Em A Casa e a rua, Roberto DaMatta aborda os espaços (casa e rua) fazendo a devida análise do cunho imperscrutável apresentado por estas. Evidentemente que essa análise condiz com o objetivo desse trabalho. 5. A ideia aqui exposta sobre o valor da figura de José Dias (na ausência de Pedro Santiago) tem como base as teorias de Roberto Reis em A permanência do Círculo (1987), mais especificamente no subtítulo “O Círculo Familiar”, do primeiro capítulo dessa obra. Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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este chega à casa dos Santiago, sob o disfarce de médico6. Essa aparição, não muito confiável, do agregado deixa-o em situação muito duvidosa quanto a seus discursos, sejam eles conselhos ou simplesmente apontamentos. O narrador, dedicando a José Dias um capítulo inteiro, descreve um pouco do comportamento do agregado: José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às idéias; não as havendo, servia a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um arco de aço por dentro, imobilizava lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Era magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinquenta e cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado se era dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da consequência, a consequência antes da conclusão. Um dever amaríssimo! (ASSIS, 2009, p. 19)

6. É relevante comparar José Dias ao famoso falso-médico introduzido por Visconde de Taunay em Inocência (1872). Essa personagem (Cirino) já traz uma vaga concepção da malandragem brasileira, muito bem explorada por Manuel Antônio de Almeida em Memorias de um Sargento de Milícias (1852). É curioso notar que tanto Cirino quanto José Dias usam da charlatanices para “penetrarem” em um círculo social familiar, e que isto se dê, talvez, pelo fato da importante função social designada aos médicos: salvar vidas. 34 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


No meio dessas tantas adjetivações dadas pelo narrador e para concluir essa análise superficial da figura de José Dias, temos, enfim, uma certeza em relação a sua personagem; ele, decerto, quer voltar à Europa, e isso, seguindo a cronologia do romance, é tudo a que ele aspira: “Contava muita vez que uma viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus, era tudo” (ASSIS, 2009 p.21). Observa-se que, aos poucos, o narrador vai construindo a personagem de José Dias. O trecho a seguir revela, sutilmente, um pouco do caráter bajulador do agregado que se preocupa em, delgadamente, agradar a dona da casa de forma a conquistar e ser digno de receber “algum dinheiro” que a mãe de Bento punha em suas mãos. A aprovação que José Dias recebe da dona do lar, ao pôr Deus acima de tudo, tem fundamental importância no modo como o agregado se posiciona em relação aos conceitos morais e religiosos adotados por D. Glória e, futuramente, por Bento Santiago7. Nota-se que José Dias repete “cheio de veneração”, dando ênfase nas “suas” prioridades, conforme vemos a seguir: — Abaixo ou acima? — perguntou-lhe tio Cosme um dia. — Abaixo — repetiu José Dias cheio de veneração. E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido lugar, e sorriu aprovando. José Dias agradeceu de cabeça. (ASSIS, 2009, p.22)

Essa veneração de Jose Dias pelos Santiago estende-se, curiosamente, até Bentinho. Todos os elogios do agregado ao menino servem para assegurar, de forma quase categórica, sua permanência na família, caso D. 7. Schwarz complementa essa ideia quando diz que “O favorecido conscientemente engrandece a si e ao seu benfeitor, que por uma vez não vê, nessa era de hegemonia das razoes, motivo para desmenti-lo”. (2012, p.18) Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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Gloria, porventura, deixasse o comando do lar por quaisquer que fossem os motivos (o que viria a suceder no capítulo “Uma Santa”). Os primeiros passos do agregado em direção a sua permanência perpétua na casa dos Santiago são dados quando, em uma aula de latim ministrada pelo padre Cabral, José Dias argumenta: “Não é verdade que o nosso jovem amigo caminha depressa?” Chamava-me “um prodígio”; dizia a minha mãe ter conhecido outrora meninos muito inteligentes, mas que eu excedia a todos esses, sem contar que, para minha idade, possuía já certo número de qualidades moras sólidas. Eu, posto não avaliasse todo o valor deste outro elogio. Gostava do elogio; era um elogio. (ASSIS, 2009, p.53)

A partir de então, José Dias passa a trabalhar em prol de sua permanência na família Santiago, independentemente dos fatos que pudessem futuramente acometer a história do clã. A preocupação do agregado em relação ao seu lugar assegurado na família cresce no momento em que Capitu surge como uma possível namorada de Bento. É curioso notar o contraste das adjetivações fornecidas por Bento e por José Dias em relação aos olhos da moça. Enquanto o jovem apaixonado vê, ainda que atordoado, os “olhos de ressaca”, José Dias dá a seguinte descrição, que, pela esplêndida vivacidade adotada, não podemos deixar de citar na íntegra: “Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe deu...você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana obliqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! A adulação!” (ASSIS, 2009, p. 54). Visto, pelas citações acima, que José Dias é benquisto por D. Glória, percebemos, então, a influência da palavra do agregado no que diz respeito, a princípio, à criação de Bentinho. De modo geral, vê-se desde o início do romance a preocupação que tem o agregado em manter-se útil 36 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


à família. Ele sempre “se preocupa”, sempre tem opiniões em relação a tudo. Essa preocupação em se manter ativo explicita algo que podemos chamar de “corda bamba” em que vive o agregado. Sua situação é incerta e depende dos vários pontos sociais aos quais deve ater-se para que deixe de ser interino e passe a ser, aos poucos, parte da família. A seguinte passagem expõe, novamente, a sutileza com que o narrador delibera à personagem José Dias: — Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los. — Não acho. Metidos nos cantos? — É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase que não sai de lá. A pequena é uma desmiolada: o pai faz que não vê; tomara ele que as cousas corressem de maneira, que... Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lhe que todos têm a alma cândida...— Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que faça desconfiar. Basta a idade: Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze à semana passada; são dois criançolas. (ASSIS, 2009, p. 16)

A princípio temos dois pontos de vista, a do agregado que percebe na relação de Bento e Capitu um problema para suas acomodações futuras, e a de D. Glória, que ingenuamente, visto que seu propósito era mandar o filho ao seminário, não vê mal nenhum na relação. A possível concretização de um casamento entre Bento e Capitu faz tremer perigosamente a “corda bamba” da comodidade em que vive José Dias. Atentando para esses dois pontos de vista, Luís Filipe Ribeiro, na obra Mulheres de Papel

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(1996), apresenta as perspectivas de D. Glória e de José Dias em relação ao comportamento de Bento e Capitu, da seguinte forma: As duas referências, que se cruzam, partem de premissas diferentes: a do agregado, que olha para Capitu do ponto de vista comportamental ou ético; a de D. Glória, que vê as personagens de uma perspectiva etária. A visão de José Dias já traz embutida uma avaliação moral, a de D. Glória a exclui. O agregado luta por suprir uma certa candidez materna e tenta advertir o desenrolar do que ele percebe como uma trama matrimonial a longo prazo. (RIBEIRO, 1996, p. 305)

Essa “inocente” preocupação apresentada por José Dias nasce da possível concretização de um casamento entre Bento e Capitu, casamento esse que o tiraria, talvez, do conforto do lar. Além de perceber em Bentinho o futuro dono da casa, José Dias atenta, também, para o jovem Santiago, seu passaporte garantido para a Europa. Cabe aqui observar as intenções de José Dias quando percebe no Bento adolescente chances reais de atravessar o oceano. Em primeira mão, no início do livro, pela fidelidade que lhe impõe a ótica do favor, o agregado alerta D. Glória sobre os cuidados que a senhora deve ter para precaver-se de um suposto não cumprimento da promessa de enviar o filho ao seminário. Uma vez a par dos planos do Bento adolescente de não querer ser padre, José Dias vê a oportunidade que tanto almeja. Nota-se que o agregado transita entre D. Gloria e Bento cumprindo suas funções conforme lhe é devido. Ele não pensa em nenhum momento em divergir das ideais da mãe nem do filho. Constata-se, no capítulo “De mãe e de servo”, que “José Dias endireitou-se pasmado” quando Bento contou-lhe que não queria ser padre. Pouco mais a frente, o narrador

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volta a descrever a reação do agregado, dizendo que “José dias ouvira-o espantado”. Os demais adjetivos veem-se no trecho abaixo: Os olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer que eu contava dar-lhe com a escolha da proteção não se mostrou em nenhum dos músculos. Toda a cara dele era pouco para a estupefação. Realmente, a matéria do discurso revelara em mim uma alma nova; eu próprio não me conhecia. Mas a palavra final é que trouxe um vigor único. José Dias ficou aturdido. (ASSIS, 2009, p. 55)

Depois desta reação estapafúrdia do agregado, Bento ainda tenta, no mesmo capítulo, convencer José Dias a desempenhar a desagradável tarefa de dissuadir D. Glória de seu propósito: tornar Bentinho um padre. O último parágrafo do capítulo, no entanto, traz uma fala do jovem que causa uma reviravolta no íntimo de José Dias. O rapaz, argumentando em sua defesa, diz: “Olhe não é por vadiação. Se ela quiser que eu estude leis vou para S. Paulo...” (ASSIS, 2009, p.56). Ao próximo capítulo, Machado dá o título “As leis são belas”, o que soa com uma pitada de ironia, pois a beleza das leis está, logicamente, no ponto de vista do agregado. Para um leitor atento, fica fácil entender o porquê “pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma ideia” (ASSIS, 2009, p. 57). A menção de Bento de ir a São Paulo estudar provoca no agregado a nostalgia europeia que cresce ao longo do romance. Não obstante, a indignação, a estupefação e outros mais adjetivos dados pelo narrador no capítulo “No passeio público” dão lugar, agora, a “uma ideia que o alegrou extraordinariamente” (ASSIS, 2009, p.57). Observa-se, no início da fala de José Dias, um quase monólogo do agregado tamanha perspectiva criada por ele ao perceber no Bento adolescente a possibilidade de viajar. A princípio o agregado começa citando grandes metrópoles brasileiras, Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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como São Paulo, Pernambuco, mas lançando mão dos superlativos que lhe é característico, diz que Bento pode ir “ainda mais longe”. Vejamos o monólogo do agregado: Uma vez que você não pode ser padre, e prefere as leis... as leis são belas, sem desfazer da teologia que é melhor que tudo, como a vida eclesiástica é a mais santa...porque não há de ir estudar leis fora daqui? Melhor é ir logo para alguma universidade, e ao mesmo tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos, veremos as terras estrangeiras, ouviremos inglês, francês, italiano, espanhol, russo e até sueco. D. Glória provavelmente não poderá acompanhá-lo; ainda que possa e vá, não quererá guiar os negócios, papeis, matrículas, e cuidar de hospedarias, e andar com você de um lado para outro... Oh! As leis são belíssimas! (ASSIS, 2009, p. 57)

O discurso defensivo que José Dias adota para livrar-se da incumbência de desconvencer D. Glória a fazer de Bento padre, torna-se explicativo-persuasivo, pois ao mesmo tempo que ampara a decisão de Bento de não ir ao seminário, mostra as maravilhas que podem ser vividas/vistas na Europa através de uma viagem de estudo.

O pobre e o político Além da descrição superficial apresentada pelo narrador, a personagem de José Dias carrega, sem dúvida, o peso das opiniões políticas do romance (GLEDSON, 2005, p. 88). Mesmo não sendo a política em José Dias o foco deste estudo, julgamos importante a menção desse assunto para, assim como a visão de José Dias em relação ao pobre, apresentarmos uma formação mais completa do caráter dessa personagem. 40 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


Por essa linha de raciocínio, observamos a liberdade que Machado de Assis concede ao agregado, incumbindo-o da função crítica-política, função essa propositalmente absente nas demais personagens. Perante essa constatação, cabe perguntar qual é o motivo de Machado deliberar esse poder a José Dias. Diferente da família Santiago, José Dias é pobre de fato. Bento Santiago, assim como a mãe, em nenhum momento se preocupa com questões financeiras; tem total autonomia, depois de casado, e faz com seu dinheiro o que bem entende. Para ele não há sacrifício. Nota-se, quando ele “manda” Capitu para a Europa, o valor das despesas sequer é mencionado. O capitulo “A solução” ilustra perfeitamente que para Bento dinheiro nunca fora problema. Aqui está o que fizemos. Pegamos em nós e fomos para a Europa, não passear, nem ver nada, novo nem velho. Paramos na Suíça. Uma professora do Rio Grande, que foi conosco, ficou de companhia a Capitu, ensinando a língua materna a Ezequiel, que aprendia o resto na escola do país. Assim regulada a vida, tornei ao Brasil. (ASSIS, 2009, p. 224)

Depois disso, Bento volta, ainda, duas vezes à Europa, corroborando, assim, a ideia da comodidade financeira que lhe é devida. Em contrapartida, José Dias depende, como visto, dos trocados (pra não dizer míseros trocados) que D. Glória, e futuramente Bento, depositam em sua mão. Sendo assim, torna-se claro o porquê de tamanho poder crítico concedido ao agregado, uma vez que D. Glória e seu filho, talvez pela confortável posição social que ambos ocupam, não se sujeitem ao debate político. A condição de vida em que se encontra José Dias torna-o um sujeito político e sonhador, daí surge, talvez, o desejo ardente de voltar à Europa.

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Fundem-se, nesse ponto, os substantivos pobreza e política, formando, assim, o caráter complexo e duvidoso do agregado. Nota-se, aqui, que seria inadequado, na concepção machadiana, escrever Dom Casmurro sem a personagem de José Dias. No livro Os pobres na literatura brasileira (1983), Roberto Schwarz exprime com maestria a ideologia das personagens pobres em Machado e, embora a análise de Schwarz atente sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas, sua teoria estende-se a Dom Casmurro e atinge em cheio nosso José Dias. Vamos a ela: A situação dos pobres define-se complementarmente, e o que é folga histórica para os ricos – os dois e as duas medidas – para eles é falta de garantia. Não tendo propriedade, e estando o principal da produção econômica a cargo dos escravos, vivem em terreno escorregadio: Se não trabalham são uns desclassificados, e se trabalham só por muito favor serão pagos ou reconhecidos. (SCHWARZ,1983, p. 47)

Pela aparente riqueza cultural que ostenta José Dias, há certa meticulosidade apresentada por Machado nessa personagem, pois este não aceita ser rebaixado aos pobres. Nota-se, pelo constante desdenho em relação à família de Capitu, quando o agregado “esquece-se” de sua situação econômica e age conforme mandava os costumes da época. Percebemos tal procedimento preconceituoso no agregado quando aconselha Bentinho com as seguintes palavras: “[...] não é bonito que você ande com o Pádua na rua” (ASSIS, 2009, p. 54). É visível, pois, nesse preconceito que nutre o agregado em relação ao pai de Capitu, o quanto a lógica do favor influenciava no modo de ser de José Dias. Influenciado pelos valores patrícios da família que o acolheu, ele se sente superior a Pádua, porque este é um homem livre e pobre, que necessita trabalhar para poder manter os seus.

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A neutralidade Embora Machado atribua a José Dias um perfil abstruso, as concepções de inferioridade social e da lógica do favor, foco desse estudo, incrementam, sutilmente, para a formação completa e aceitável do agregado. Através da pobreza e visão política, amalgamadas no caráter de cunho realista dessa personagem, surge, talvez pela força que a ideologia da lógica do favor lhe impõe, o tom de neutralidade. Em duas passagens específicas de Dom Casmurro, o narrador atenta para o tom neutro, cuidadoso, adquirido pelo agregado quando este expõe suas opiniões. Todos os discursos são neutros. José Dias fala com escrúpulos e não restam dúvidas que assim o faz porque não pretende dar um passo em falso que venha destituí-lo (ou ameaçá-lo) de sua posição acomodada ou, ainda pior, ser mandado embora da casa dos Santiago. A primeira situação ocorre quando José Dias discursa a respeito da ida de Bentinho ao seminário. Bem, uma vez que não perdeu a ideia de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho há de satisfazer os desejos de sua mãe e depois a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó governou o império... — Governou como a cara dele! Atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores políticos. — Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando. O que eu quero é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil. (ASSIS, 2009, p.17).

Como se depreende do excerto acima, apesar de ser D. Glória quem provê o sustento de José Dias, este evita qualquer intriga com os demais membros da família – no caso, tia Justina e tio Cosme – os quais se aproveitam da relação sanguínea com a dona do lar para disfarçar sua situação Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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de agregados. Fica evidente no seu discurso certo ar de condescendência, visto que ele não fala nem enfatiza, apenas cita (GLEDSON, 2005, p. 89). É possível notar a ênfase que Machado dá a condição social do agregado. Este tem que sujeitar-se a tudo. Todos os seus movimentos devem aquiescer com os diferentes tipos de pessoas que vivem na casa. Prima Justina comenta sua aversão ao agregado no capítulo “Prima Justina”, em que “recapitula todo o mal que pensava de José Dias” (ASSIS, 2009, p.50). Por essas e outras razões que o agregado vive “apenas citando”, não se compromete com nada, não diz nada com prioridade. Deve lealdade a todos e submete-se a todos. O único com quem José Dias trava debate é com o padre Cabral e, como este não é da família, o agregado abusa da sua capacidade oratória para exultar sobre os conceitos do padre. De resto, porém, é neutro, um pouco tendencioso, mas nunca enfático. O ápice dessa neutralidade está no capítulo “A dissimulação” quando, numa das visitas que Bento faz à família, todos ali se confraternizam com Capitu e comentam a respeito do futuro padre. A atitude, ou melhor, a não atitude de José Dias revela o aspecto da neutralidade em alto grau no agregado. Logo após algumas brincadeiras a respeito do seminarista, o narrador anota: Era isto mesmo, devíamos dissimular para matar qualquer suspeita, e ao mesmo tempo gozar toda a liberdade anterior, e construir tranquilos o nosso futuro. Mas o exemplo completa-se com o que ouvi no dia seguinte, ao almoço; minha mãe, dizendo tio Cosme que ainda queria ver com que mão havia eu de abençoar o povo à missa, contou que, dias antes, estando a falar de moças que se casam cedo, Capitu lhe dissera: “Pois a mim quem me há de casar há de ser o padre Bentinho, eu espero que ele se ordene!” Tio Cosme riu da graça, José Dias não dessorriu, só prima Justina é que franziu a testa, e olhou para mim interro44 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


gativamente. Eu, que havia olhado para todos, não pude resistir ao gesto da prima, e tratei de comer. Mas comi mal, estava tão contente com aquela grande dissimulação de Capitu que não vi mais nada, e, logo que almocei, corri a referir-lhe a conversa e a louvar lhe a astúcia. Capitu sorriu de agradecida. (ASSIS, 2009, p. 124)

Seguindo essa linha de raciocínio, observa-se a impecabilidade com que José Dias desempenha sua neutralidade. Tio Cosme, representando a indiferença familiar e a despreocupação, ri. Não há, em nenhum momento, qualquer dúvida a respeito das segregações de Bento e Capitu. José Dias, porém, não dessorriu. Seria difícil justificar o emprego “dessorrir” do narrador sem que se perdesse algo importante na tentativa. Para que isso não aconteça, vamos à análise feita por Filipe Ribeiro que esclarece tal grifo e, consequentemente, conclui nossa ideia do neutro que tanto preza José Dias. Mas, o nosso José Dias não dessorriu; ele, na verdade, não dessorriu. O que é bem diferente! Ele poderia dessorrir, mas não o fez. É o uso virtuosístico do eufemismo, de que lança mão mais uma vez o velho Machado. E a imagem de José Dias que nos fica é a do dissimulador perfeito. Ele é um verdadeiro Mozart da simulação, não me ocorre outra imagem de perfeição! Ele mesmo que, sem ser médico homeopata, consegue tornar-se agregado na casa do pai de Bentinho exatamente por essa habilitação, habilmente desmentida, com a simulação de grande culpa assumida. Tudo isto está a mostrar, no discurso de Machado de Assis, a que piruetas estavam obrigados os homens livres pobres, numa sociedade escravocrata, para conseguir um lugar ao sol. Todos os pobres simulam, de uma forma ou de outra,

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para agradar aos que lhes estão por cima e deles conseguir alguma redistribuição de renda. Mas esta simulação é constantemente denunciada, como adulação, bajulação e subserviência. É o mesmo José Dias quem já a apontara na célebre conversa do Passeio Público, relativamente a Capitu. A simulação elogiada como astúcia é aquela que serve aos interesses dos de cima. Sejam as piruetas contorcionistas de um Brás Cubas, ou a lição de estratégia de Capitu na passagem citada. (RIBEIRO, 1996, p. 315, grifos do autor)

O sonho não concretizado Para início de discussão neste tópico é necessário resgatar que, com cinquenta e cinco anos. o “vivido” agregado aspira por voltar à Europa. Levando em conta os recursos estilísticos e a famosa e subjetiva crítica (ironia) machadiana, podemos conjecturar o desejo de José Dias como uma diáspora invertida. Finamente embutidas, podemos averiguar as críticas de Machado às relações de poder da época. Cuida-se, quase explicitamente, que a Europa está muito à frente das Américas (o Brasil em particular), em questões éticas e humanitárias (SCHWARZ, 2012, p.19). Pela despreocupação de Bento e D. Glória em relação à contemporaneidade social em que vivem, declaram, inconscientemente, que as condições de vida eram favoráveis aos ricos e, consequentemente, humilhante para os pobres. Vejamos que, no fim do romance, Bento Santiago conta que “Entenda-se que, se nas viagens que fiz à Europa José Dias não foi comigo, não é que lhe faltasse vontade; ficava de companhia a tio Cosme, quase inválido, e a minha mãe, que envelheceu depressa” (ASSIS, 2009, p. 224). Coerente com o título exposto anteriormente, observamos aqui que José Dias empenha-se em vida para conseguir seu tão sonhado retorno ao Velho Continente. Enquanto ainda tem saúde não realiza o sonho por consequência da vida seminarista de Bento Santiago. Por fim, quando Bento 46 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


finalmente decide por si só visitar a Europa, José Dias não o acompanha, pois fica a cuidar do tio e da mãe do “senhor”. Por conseguinte, a figura de José Dias, embora tridimensional e com discurso próprio, poderia apresentar na tipologia do agregado as opiniões de Machado, através do discurso indireto, em relação ao pobre. No capítulo “O último superlativo” o narrador conta, nas últimas palavras deste, que chorou pela morte do agregado: “Porque hei de negar que chorei por ele?” (ASSIS, 2009, p. 226). É relevante notar que Bento confessa chorar por José Dias, mas não se preocupa em contar se chorou ou não a morte da mãe. Podemos dizer aqui que há um caráter falso no sentimento de tristeza expresso pelo narrador. Há uma preocupação dissimulada do rico em relação ao pobre. As lágrimas de Bento ilustram a hipocrisia mascarada pela moralidade obrigatória: seria politicamente incorreto se Bento não chorasse pelo agregado. Ficamos felizes em saber que Machado não nos deixa na mão no que se refere à ideia exposta anteriormente. Para justificá-la, trazemos à tona a personagem Manduca como respaldo à esse pensamento. Para analisar profundamente as intenções de Machado com essa personagem, seria preciso escrever outro texto, por ora contentemo-nos em observar que Manduca era filho de “um pobre homem grisalho e mal vestido” (ASSIS, 2009, p. 149). Visto isso, notamos que há uma característica confluente nas personagens de Manduca e José Dias: ambas são acometidas pelo “mal da política”. O intrigante nesse ponto é atentar para a reação de Bento à notícia da morte de Manduca. Após ser convidado a entrar para ver o defunto, Bento sofre um embate interior que, em um primeiro momento, poderíamos chamar de terror. Porém, como diz o próprio Bento, “Não era medo” (ASSIS, 2009, p. 149), o que nos leva à explicação, no mínimo egocêntrica, dada pelo narrador no último parágrafo do capítulo:

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Não culpo ao homem; para ele, a coisa mais importante do momento era o filho. Mas também não me culpem a mim; para mim, a coisa mais importante era Capitu. O mal foi que os dois casos se conjugassem na mesma tarde, e que a morte de um viesse meter o nariz na vida de outro. Eis o mal todo. Se eu passasse antes ou depois, ou se Manduca esperasse algumas horas para morrer, nenhuma nota aborrecida viria interromper as melodias da minha alma. Por que morrer exatamente há meia hora? Toda hora é apropriada ao óbito; morre-se muito bem às seis ou sete horas da tarde. (ASSIS, 2009, p.149)

Visto a não muito trágica descrição da morte de Manduca, volvemos ao ponto crucial da nossa análise. Para um bom leitor não é preciso evidenciar a despreocupação com a morte do pobre menino, exacerbada pelo egocentrismo do narrador. O emprego da dicotomia vida e morte usada por Machado desconstrói o sofrimento da perda pela morte e a indiferença aos outros pela vida. Se no episódio do falecimento de Manduca a morte tem menos relevância do que o simples retorno de um namoro, por que, então, Bento Santiago chora pela morte de José Dias, sendo que este é apenas um reflexo do outro pobre que, ao morrer, não valeu sequer a dignidade do pêsame dos conhecidos? É significativo notar que Bento não fala em “nota triste”, mas sim “Nota aborrecida que viria interromper as melodias da minha alma” (ASSIS, 2009, p. 150). Não há tristeza pela morte de Manduca, a única coisa ruim nisso tudo é o aborrecimento que a morte causa no narrador por “meter o nariz na vida dos outros” (ASSIS, 2009, p.150). Devido às circunstâncias descritas anteriormente, podemos falar mais enfaticamente sobre a falsa modéstia do narrador em relação ao pobre. É curiosíssimo o modo como a notícia da morte de algumas personagens chega aos leitores. De forma bastante sucinta, o narrador conta, ao reen48 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


contrar com o filho anos mais tarde, que “Só depois é que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e correr, abraçá-lo, falar-lhe na mãe. A mãe, – creio que ainda não disse que estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha Suíça” (ASSIS, 2009, p. 228). Nota-se que o narrador usa o aposto para falar de Capitu, de forma a acrescentar apenas uma informação de passagem. Manduca, por sua vez, sofre de lepra por um bom tempo e morre fazendo acontecer o polêmico episódio estudado anteriormente. O fim de José Dias também é iminente. Morre numa cama e suas últimas palavras são: “... [Demais, foram as ideias da mocidade, que o tempo levou...]” (Assis, 2009, p. 226). As mortes de José Dias, Capitu e Manduca formam, assim, um “trio de ferro” que adota nossa ideia da não concretização do sonho do pobre. Seguindo essa linha de raciocínio, observamos o conteúdo desmoralizante impregnado no pobre, o fracasso da vida e a morte sem honras nem conquistas, completando, dessa forma, o modo circular da vivência dos menos favorecidos. Respaldando essa conjectura da voz crítica de Machado em seus personagens, Roberto Schwarz atenta para a volubilidade dos narradores dos romances machadianos. Corroborando nossa tese a respeito do “pobre sem vez”, vejamos o que diz Schwarz: Tudo nos romances de Machado de Assis é tingido pela volubilidade – abusada em graus variáveis – de seu narrador. Os críticos de hábito a encaram pelo ângulo da técnica literária ou do humorismo. Ela ganharia, entretanto, em ser vista como a estilização de uma conduta de classe dominante brasileira.

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Em vez de buscar a isenção, e a confiança que a imparcialidade suscita, o narrador machadiano dá espetáculos de desplante, que vão da picuinha à semostração literário e ao crime. Paradoxalmente, resulta um retrato social que é mais revelador que o dos contemporâneos naturalistas, os quais entretanto ambicionavam a objetividade. E uma vez que o nosso assunto é a representação da pobreza, note-se também que a má fé deliberada no trato dos pobres exaspera o sentimento de injustiça no leitor, mais intimamente talvez, que as descrições maciças praticadas pelo mesmo naturalismo. (SCHWARZ, 1983, p.46)

Prestando devida atenção, verifica-se a veracidade da informação dada por Schwarz ao “dedurar” o narrador afeito a picuinhas. Dito isto, os discursos de José Dias e Manduca, descritos de forma não confiável pelo narrador, causam duvidosa comoção, ao mesmo tempo que acusam, através da voz do rico Bento Santiago, a indiferença do rico em relação ao pobre e o desmerecimento do primeiro em relação aos anseios do último.

Considerações finais Embora a temática principal de Dom Casmurro seja a relação Bento-Capitu, observamos, através deste estudo, a riqueza nas personagens secundárias de Machado expostas em um Brasil em evolução8. É importante lembrar que “o recurso à desfaçatez literária, com finali8. Esta evolução é vista, em sua maior parte, quando relacionada com o humanitarismo (evolução humanitária), visto que um dos eventos que marcou o Brasil, no século XIX, foi a libertação dos escravos em 1888, aproximadamente onze anos antes da publicação de Dom Casmurro. Uma vez observada a subjetividade machadiana, não podemos ignorar a possibilidade de uma suposta crítica à falta do humanitarismo, resultando em marcas negativas remanescentes até hoje. 50 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


dade de revelação crítica, não era inédito na época” (SCHWARZ, 1983, p.46). Assim, o foco no instável relacionamento de Bento e Capitu não dá importância às questões de caráter moralizante e humanitário, questões essas que não se absentam do romance, pois estas são muito bem representada por José Dias. Como visto neste artigo, nos acontecimentos relacionados aos pobres há grande compactação subjetiva inerente no ser machadiano: nada é de graça, tudo é subjetivo. A historicidade patente em Dom Casmurro firma-se como cenário base para as abstrusas falas do nosso intricado José Dias. Visto isso, tomamos direção para uma “conclusão de caso” que se afeiçoa ao agregado devido ao flagelo que lhe é imposto pela pobreza. A lógica do favor, nesse ponto, mostra-se como a mais possível forma de “vida boa” para o pobre. Embora o desalento da não concretização do sonho de voltar à Europa seja exprimido na hora da morte, José Dias morre tranquilo, sereno, evidenciando a tranquilidade (e a qualidade) de vida que tivera. Essa tranquilidade moribunda de José Dias contrasta vigorosamente com as mortes prematuras de Capitu e Manduca e, cremos ser esta nossa avaliação final, releva a sobrevivência de José Dias nessa sociedade oitocentista. Levando-se em conta que Manduca é filho de pobre, e que Capitu, por vir de família pobre, tem um fim amnésico, morrendo esquecida na Suíça, a morte de ambos realça a longa vida de José Dias por estar ele sob os cuidados de um homem rico. Evidenciam-se, assim, as “corretas” decisões tomadas por José Dias ao longo do romance, precavendo-se para manter-se à sombra de um protetor, ou seja, valendo-se da ideologia do favor, independentemente de o papel de agregado ser a representação da subserviência e da anulação do homem livre.

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Referências ASSIS, Machado. Dom Casmurro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. ______. A mão e a luva. 2. ed. São Paulo: Ciranda Cultural, 2008. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 49. ed. São Paulo: Cultrix, 2013. DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991. GLEDSON, John. Machado de Assis, impostura e realismo: uma reinterpretação de Dom Casmurro. Tradução de Fernando Py. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. REIS, Roberto. A permanência do círculo: hierarquia no romance brasileiro. Niterói: EDUFF; Brasília: INL, 1987. RIBEIRO, Luís Filipe. Mulheres de papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. Niterói: EDUFF, 1996. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 6. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. ______. Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. Recebido em: 29/07/15 Aceito em: 30/09/15

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Fr aseologismos em língua estr angeir a: ilustr ação dos processos de compreensão Ian Gill de Mello1 Universidade Estadual de Campinas Resumo: Este artigo discorre sobre os processos cognitivos utilizados por falantes de português como língua segunda (L2) quando necessitam inferir o significado de expressões idiomáticas (EIs) em língua portuguesa. Indaga-se de que modos esses processos diferem quando as expressões são apresentadas sem contexto ou contextualizadas. Para tanto, foram analisados dados obtidos por meio de entrevistas com cinco estrangeiros, tendo como base teórica autores como Polónia (2009), Gibbs (1994) e Saberian e Fotovatnia (2011). A análise revelou que cada EI representou um desafio diferente para cada sujeito, como também a importância do contexto no processo de inferência das EIs. Palavras-chave: expressões idiomáticas; processamento inferencial; português como L2. Abstract: This article deals with the cognitive processes used by learners of Portuguese as an L2 when attempting to infer the meaning of idioms in Portuguese, and also with the ways these processes may differ when the idioms are seen out of context, on one hand, and in specific contexts, on the other. Data from five speakers of Portuguese as an L2 were analyzed in light of Polônia (2009), Gibbs (1994) and Saberian & Fotovatnia (2011). The analysis has shown

1. Relato de experiência de uma das equipes do PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência) da Licenciatura em Letras do IEL (Instituto de Estudos da Linguagem) – UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), sob a coordenação da Profa. Dra. Anna Christina Bentes. O projeto PIBID Letras UNICAMP (2014), “Diversidade Linguístico-Cultural, Práticas Escolares e Formação Inicial em Letras", é coordenado pelos professores Anna Christina Bentes, Márcia Mendonça e Marcos Lopes, atuando em 06 escolas da Região Metropolitana de Campinas. Revista Ao pé da Letra – Volume 17.2 - 2015

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that each idiom represented a different challenge to each learner, and has also emphasized the role of context to idiom inferential processes. Keywords: idioms; inferential processes; Portuguese as an L2.

Introdução Com a aprendizagem de uma nova língua, surge o interesse em utilizar as construções modernas e recorrentes, a entonação, os gestos, e as palavras comuns do dia a dia dessa língua. O aprendiz deseja compreender e fazer uso das gírias e das expressões idiomáticas (EIs). Deseja sobretudo entrar em contato com essa cultura estrangeira. E é principalmente na área cultural que encontramos as expressões idiomáticas. Elas são o reflexo linguístico puro da cultura de um povo. Entender e utilizar essas construções faz com que o aprendiz se sinta em contato direto com esse novo mundo. Afinal, elas são acontecimentos linguísticos de extrema expressividade, e essa característica as faz especiais. Magali de Lourdes (2007, p. 47) informa que “[A expressão idiomática é] uma construção social em constante processo de acumulação, formada por imagens parcialmente compartilhadas. Essas imagens são tomadas da visão do mundo, ou seja, do conjunto de valores, atitudes, emoções e da ética de uma comunidade linguística”. Dado esse contexto, esse trabalho tem como objetivo entender os processos cognitivos utilizados pelos aprendizes de português como língua adicional para a compreensão de EIs nessa língua. Serão verificados os processos cognitivos empregados na compreensão das EIs na língua-alvo tanto quando essas são apresentadas de forma descontextualizada como quando em um contexto específico. Para tanto, solicitou-se a cinco aprendizes adultos de português como língua segunda (L2) de diferentes nacionalidades que procurassem encontrar o significado de dez expressões idiomáticas. Elas foram apresentadas, primeiramente, descontextualizadas

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e, em seguida, dentro de um pequeno texto. Essa atividade foi gravada em áudio, com a transcrição sendo utilizada para análise dos processos cognitivos empregados pelos sujeitos para realizar as inferências. Além da introdução, este artigo está dividido em 4 seções: uma breve revisão teórica sobre conceitos referentes às EIs em geral, seguida da descrição metodológica do estudo. Na seção subsequente, serão apresentados e analisados os dados, quando serão estabelecidas as estratégias usualmente utilizadas pelos aprendizes para atribuir significado às EIs, incluindo transcrições importantes para a pesquisa. Por fim, as considerações finais relativas ao primeiro ciclo de análise.

Definição e caracterização de EIS Já vimos que as expressões idiomáticas são frutos da cultura de comunidades de fala determinadas. Ortíz Alvarez afirma que elas são unidades fraseológicas que definem conceitos, os quais não são necessariamente explicitados por alguma palavra em si. Sua função é atribuir maior expressividade a esse conceito: Entendemos por expressão idiomática a combinação metafórica de traços característicos próprios que se cristalizou pelo uso e frequência de emprego numa determinada língua, apoiada na sua tradição cultural. Do ponto de vista estrutural, ela representa uma lexia indecomponível e está constituída de mais de uma palavra. Do ponto de vista semântico, o significado dos seus elementos constituintes não corresponde ao sentido geral do todo [...]; portanto, a interpretação semântica não pode ser calculada a partir da soma dos seus elementos. Ortíz Alvarez (2004 apud Pedro 2007, p. 48, itálico nosso)

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Para que uma unidade fraseológica se cristalize em uma expressão idiomática, de acordo com Alvarez (op. cit.), ela deve ser usada com frequência pela comunidade linguística à qual pertence. Essa cristalização não se dá apenas com relação à forma, mas também ao significado da EI. A frequência de uso está relacionada diretamente com a tradição cultural da comunidade de fala. De acordo com Polónia (2009), as EIs são um acontecimento sociológico antes de tudo, com sua criação e consequente fixação ocorrendo através da utilização constante e sistemática. Ou seja, é necessário que ela se torne conhecida pelos habitantes, que tenha expressão suficiente para se tornar patrimônio cultural de certo povo. A autora sustenta que “elas descrevem, pelas imagens que sugestionam, o universo autêntico, reflectem os lugares, as experiências e as formas de sentir de um povo, da sua identidade, do seu imaginário colectivo” (p. 33) . Já a “lexia indecomponível” das EIs é explicada, de acordo com Alvarez (op. cit), pela forma fixa que assumem, praticamente imutável, com raras possibilidades de substituição. Essa forma fixa tem grande responsabilidade com respeito à cristalização de uma expressão idiomática. Polónia (2009, p. 33) formula: “a relativa fixidez das EIs comprova-se pela coesão semântica e morfossintáctica dos seus componentes, cuja estabilidade total ou relativa pode ser comprovada através de testes e operações, que as distinguem das composições livres”. A autora complementa apontando que esses fraseologismos sofrem um processo de lexicalização desmotivada, no qual um conjunto livre de palavras metamorfoseia-se em uma combinação fixa, metafórica, de significado e sintaxe independentes. Quanto ao significado abstrato das expressões idiomáticas, podemos dizer que ele não tem relação com as palavras que as formam, não sendo possível inferir seu significado baseando-se no fraseologismo em si. Em outras palavras, não há como realizar uma leitura literal das EIs. Para que

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determinada unidade fraseológica seja considerada uma EI, é necessário que existam transferências semânticas (POLÓNIA, 2009; ALVAREZ, 2007). Essas transições, conforme estudos mais recentes, são causadas por um processo de metaforização. Polónia afirma que “extraímos” um novo significado semântico da EI, dando a ela uma “nova realidade de significação”, que é resultado da mudança do sentido literal para o idiomático/ metafórico. Ela acrescenta: “a metáfora, no caso das EIs, é um processo que se instaura numa transferência do significado semântico abstracto (o significado idiomático) para um modelo concretamente representável na realidade.” (2009, p. 27, 29). Gibbs (1994 apud Jacques 2011, p. 38) discorda dessa impossibilidade de inferência a partir das palavras que formam certas EIs e que elas sejam necessariamente fixas. Ele defende que em determinados casos podemos inferir corretamente o significado das EIs através dos componentes que as formam. Seguindo a perspectiva cognitiva, ele acredita que temos metáforas conceituais enraizadas, como, por exemplo, “Intensidade de Emoção é Calor”. A partir dessa metáfora, poderíamos compreender EIs como “sair fumaça pelas orelhas” e “estar fervendo de raiva”. A relação entre metáfora e expressão idiomática é essencial pela perspectiva cognitiva. A metáfora é um processo cognitivo por excelência, metaforizamos milhares de vezes cada dia para compreender situações e objetos do mundo real, expressar emoções e “sutilezas do pensamento” (1995 apud Pedro 2007, p. 47). Gibbs defende a ideia de que as EIs são sistemáticas e convencionais, desenvolvidas e interpretadas pelo nosso conhecimento conceitual, podendo ter motivação consciente ou não. O autor utiliza como exemplo a expressão “break a leg” do inglês, utilizada antes de apresentações artísticas e que tem como origem a ideia de que desejar algo bom causa má sorte. Em português, utiliza-se a palavra “merda”, no meio artístico, com o mesmo objetivo. Fica claro que ambos os casos de-

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rivam da mesma metáfora conceitual e são convencionais (op. cit.). Isso não significa dizer que a partir dessas ideias é fácil interpretar um idiomatismo. Kovecses (2010 apud Jacques 2011, p. 39) afirma que o falante geralmente está inconsciente dessas ligações conceituais, mas acrescenta que, em alguns casos, quando aprendizes de língua adicional desejam entender essas construções, procurar essas metáforas conceituais os ajuda não somente com o entendimento, mas também com a fixação das EIs na memória.

Compreensão de EIS por aprendizes de língua Dado esse contexto, percebemos como as EIs são estruturas complexas e, devido a isso, podem ser problemáticas para os estudantes de L2. O aprendiz de língua entra em contato com um novo meio sociocultural e com estruturas linguísticas dissemelhantes. Ele deve lidar não apenas com os aspectos metafóricos e linguísticos das EIs, mas também com toda a bagagem cultural que elas carregam. Polónia (2009, p. 45) afirma que, nesses casos, os alunos possuem problemas em reconhecer e decodificar essas novas estruturas, eles encontram dificuldade com a adaptação ao novo meio sociocultural e com as características próprias das EIs, das quais já falamos. Ela ainda afirma que esses estudantes já desenvolveram suas próprias visões de mundo, isto é, já desenvolveram um sistema de referentes linguísticos e sociais que são os seus e, de repente, se encontram obrigados a criar uma nova maneira de ver o mundo, seguindo preceitos culturais que não são deles. A autora complementa: “a dificuldade está na aquisição dos significados codificados do mundo novo que o circunda, ou seja, a dificuldade está no universo de denominações que lhe não são comuns.” (2009, p. 45) Segundo Flores d’Arcais (1993 apud Polónia 2009, p. 48), ao se deparar com uma expressão idiomática desconhecida, o primeiro problema que o aprendiz encontra é com a identificação da estrutura como sendo um fra58 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


seologismo. O aluno não consegue inferir um significado literal para a frase, o contexto parece não ajudar, e ele não compreende as metaforizações. Alguns pesquisadores da área afirmam que, quando um aprendiz se depara com uma EI desconhecida, seu primeiro passo é inferir um significado baseado no figurativo (NELSON 1992 apud Saberian e Fotovatnia 2011, p. 2). Outros afirmam justamente o contrário, que inicialmente processamos o significado literal e, posteriormente, o figurativo (LIONTAS 2002 apud Saberian e Fotovatnia 2011, p. 2). Há, ainda, os que entendem que os processos de compreensão dependem da proficiência do aprendiz (MATLOCK E HEREDIA 2002 apud Saberian e Fotovatnia 2011, p. 2). Baseando-se nessa ideia, esses dois autores descreveram os três passos que aprendizes com baixa proficiência linguística na L2 precisam seguir: o primeiro consiste em traduzir a expressão para a L1. Após terem acesso ao significado literal da expressão idiomática, os aprendizes buscam criar algum sentido para a EI. No terceiro e último passo, eles finalmente acessam o significado. Eles acrescentam que, conforme o nível da L2 vai avançando, o aprendiz começa a inferir os significados da mesma maneira que um falante nativo, sem precisar estudar a expressão literalmente. Com relação à unicidade de cada EI, Yoshikawa (2008 apud Saberian e Fotovatnia 2011, p. 4) e Saberian (2011, p. 4) dizem que são necessários diferentes cuidados com cada expressão idiomática. Eles problematizam cada tipo de EI a partir da sua transparência e equivalência com expressões idiomáticas da L1 do aprendiz. Ou seja, expressões transparentes e com equivalentes exigem mínima atenção. Expressões com moderada transparência e equivalência parcial exigem mais cuidado. No caso das EIs com falsa transparência e possível significado literal, a atenção deve ser redobrada. Por fim, quando a EI é altamente opaca e sem equivalentes, a atenção pode ser minimizada. Quanto aos métodos de desenvolvimento de L2, Saberian e Fotovatnia (2011, p. 3) afirmam que um bom dicionário e lições de gramática não são o suficiente para um aprendiz desenvolver plenamente uma L2.

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O ensino de EIs é de extrema importância para desenvolver a fluência e a espontaneidade do aprendiz. Lennon (1998 apud Saberian e Fotovatnia 2011, p. 3) tem a mesma ideia, ele acredita que esse tipo de estudo explora a habilidade cognitiva inata de cada indivíduo de procurar sentido fora de seu próprio ambiente. Ele acrescenta que é importante encorajar a comparação de EIs entre línguas, pois, assim, o aprendiz torna-se ciente das diferenças metafóricas entre elas. Segundo Liontas (op. cit.), as EIs devem ser apresentadas o mais cedo possível, não devendo ser separadas de outros aspectos da aprendizagem. Figueiredo (2001 apud Polónia, 2009, p. 46) defende que é necessário que o professor promova as EIs, utilizando para que se tornem conhecidas e passem a fazer parte do léxico do aprendiz. Este irá adquirir a fixação referencial “relação de denominação entre o objeto e o signo”.

Metodologia A fim de ser possível responder às questões colocadas pelo estudo, descritas na Introdução, foram selecionados cinco alunos matriculados no Nível I do curso de Português para Estrangeiros da Universidade Federal de Pelotas, nos anos de 2013 e 2014. Dois deles eram falantes de inglês, e três, de espanhol como língua materna. Para a obtenção dos dados, foram selecionadas dez expressões idiomáticas com as palavras mãos, pés e dedos, com o objetivo de manter uma relação semântica entre elas. As expressões selecionadas foram: passar a mão na cabeça, estar com as mãos atadas, meter os pés pelas mãos, ficar cheio de dedos, dar a mão à palmatória, ganhar/dar de mão beijada, ficar no pé, ter mão leve, ser uma mão na roda. Além da escolha das EIs, foram selecionados textos da internet que as contemplassem. Os textos são todos autênticos, mas a maioria deles foi editada – em geral, optou-se por uma versão mais curta do texto original 60 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


e buscou-se apresentá-los aos participantes com o layout mais próximo do original. A coleta de dados se deu em sessões individuais, por meio de protocolos verbais de pausa e retrospectivos, que consistem em solicitar que o sujeito verbalize o que está pensando no momento em que busca realizar a tarefa solicitada (protocolo de pausa), e logo após tê-la realizado (protocolo retrospectivo), possibilitando assim que o pesquisador obtenha informações sobre os processos cognitivos por ele empregados (ERICSON e SIMON, 1993; AFFLERBACH, 2000; CAMPS, 2003). Todas as verbalizações foram gravadas em áudio, e os dados, posteriormente transcritos. As seguintes etapas foram adotadas durante a aplicação dos instrumentos: (i) apresentação das EIs descontextualizadas aos sujeitos, solicitando que procurassem formar um significado para as que julgassem desconhecidas a partir de quaisquer tipos de conhecimento prévios que possuíssem; (ii) leitura dos textos que continham as EIs consideradas desconhecidas, convidando-os a explicarem o significado atribuído à expressão após a leitura, como também a relatarem em que medida ele poderia ser comparado ao atribuído à expressão descontextualizada. Essas duas etapas foram efetivadas por meio dos protocolos de pausa; (iii) realização de protocolos retrospectivos, com a intenção de promover uma reflexão sobre aspectos específicos do processo inferencial do sujeito, com base em questões lançadas pelo pesquisador.

Apresentação e análise de dados Serão expostas as estratégias de compreensão utilizadas pelos estudantes, bem como o percentual de inferências apropriadas/inapropriadas retirado da análise das entrevistas. O item 4.1 diz respeito aos dados correspondentes ao estudo das inferências descontextualizadas e o item 4.2 ao estudo das inferências contextualizadas. A partir de trechos das

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entrevistas, será feita análise que buscará compreender os processos cognitivos por trás das inferências realizadas pelos sujeitos.

EIS descontextualizadas A análise geral dos dados mostrou que os sujeitos, quando analisam as expressões fora de contexto, fazem uso, na grande maioria das vezes, de três estratégias cognitivas, como se pode visualizar na Tabela 1. Tabela 1: Uso de estratégias das EIs descontextualizadas Ocorrência estratégia

Percentual

Analogias de natureza variada

20

40%

Relação entre EIs na L1 e L2

9

18%

Conhecimentos prévios – da L1, L2 ou gerais

7

14%

Estratégias cognitivas

A primeira delas refere-se a analogias de natureza variada; a segunda, a associações entre EIs nas duas línguas; e a última, ao uso de conhecimentos prévios – da L1, L2 ou gerais. Conforme a Tabela 1, de um total de 50 EIs apresentadas aos 5 sujeitos da pesquisa (cada sujeito foi apresentado a dez EIs), houve tentativa de inferência a partir de analogias de natureza variada em 40% dos casos, ou em 20 EIs. As associações entre EIs nas duas línguas dos sujeitos também foram significativas, com nove ocorrências, representando 18% do total. As inferências a partir de conhecimentos prévios, tanto advindos da L1, da L2, ou de conhecimentos de mundo, correspondem a 14% do total, com 7 ocorrências. Por fim, foram registrados dez casos 62 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


de desistência da realização da inferência da EI – 20% do total –, com os restantes 8% sendo distribuídos entre estratégias variadas. A seguir apresentamos exemplos de cada uma dessas estratégias, retirados de trechos dos protocolos verbais. 1) Analogias de natureza variada: EI: Sem pé nem cabeça Estudante (E): Não conheço essa expressão, mas pelo que eu entendo, o cara não tem tempo nem cabeça pra pensar, é... pode ser isso né? Uma pessoa muito ocupada. Pesquisador (P): Muito ocupada? Aham, pé nem cabeça pra... E: Aham, estar parado, né, estar ficando. Mas esse pé está relacionado a ficar? P: Não sei, é a sua ideia, o que você pensou. Você me disse que era uma pessoa muito ocupada, que não tinha... E: É, uma pessoa muito ocupada, né, não tem tempo nem pra pensar, uma pessoa que está fazendo... fazendo, né. P: Tá, eu entendi, não tem cabeça pra pensar, mas e o pé? Ficaria onde? Não ter pé pra ficar sentado, você disse algo assim? E: Eu entendo assim: uma pessoa que está muito ocupada, porque está trabalhando, tá trabalhando pensando, ou trabalhando também físicamente, então não dá tempo nem para pensar nem para estar ficando, né... P: Ficar de pé? E: Sim, porque se ficar de pé estaria livre...

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EI: Ganhar/Dar de mão beijada Estudante (E): Tampouco vi, acho que seria... “dar de mão beijada”... seria como... apoiar alguma coisa que tá bem superior. Antigamente quando beijavam a mão a pessoa era superior. Então, dar a mão, nesse caso, seria como se você estivesse similar a essa pessoa. Pesquisador (P): Quando você leu... o que eu tentou entender... você pensou no contexto de antigamente, de hierarquia? Se é uma pessoa que tem respeito ou é superior, a gente dá um beijo na mão... E: Isso, você está se igualando a essa pessoa. P: Então, quando você dá de mão beijada... seria? Não sei se entendi... E: Como se você estivesse nesse nível, se você deu a mão que foi beijada por essa pessoa, você está no nível dessa pessoa. P: Então se você ganhou o beijo você ganhou respeito? Autoridade? E: Isso, você ganhou um prêmio, autoridade. Acho que, como que... fez um bom trabalho. Acho que seria isso. P: No sentido de ganhar um beijo, ganhar a mão beijada... E: Isso. 2) Relação entre EIs na L1 e L2: EI: Ter/Estar com as mãos atadas Estudante (E): Isso sim, tem em inglês a mesma expressão, nunca tinha escutado em português, mas... agora lendo, tem a mesma expressão ‘I have my hands tied’, significa que não pode fazer nada, se é o mesmo sentido. 64 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


Pesquisador (P): Você não sabe? E: Eu não sei, nunca escutei, mas no inglês tem esse sentido de: “não posso fazer nada, tenho, eu tô com as mãos atadas, não tem o que fazer”. EI: Ter mão leve Estudante (E): Acho que tem dois sentidos, pode ser a pessoa que pega coisas que não deve, rouba, a pessoa que pega coisas que não a pertencem. Mas também tem em espanhol algo parecido, que é os pais que golpeiam os filhos, “ter mão leve”, qualquer coisa eles vão e batem. Pesquisador (P): Sim, de bater? Que interessante, e essa primeira ideia, de uma pessoa que leva coisas, é do espanhol? E: Sim, tem no espanhol. P: E você já escutou aqui? E: Eu acho que sim, mas não lembro o sentido. 3) Conhecimentos prévios – da L1, L2 ou gerais: EI: Ser uma mão na roda Estudante (E): Nunca escutei, mas a imagem que traz, “ter uma mão na roda”, é... a mão não deixa a roda rodar, né, então essa mão atrapalha toda a roda, não deixa a roda ir, mover, então alguém que é “uma mão na roda”, é alguém que atrapalha, que não deixa as coisas fluirem, que basicamente atrapalha tudo. Se a roda não pode dar a volta não serve para nada... Pesquisador (P): E essa é a imagem que você tem pelo que está escrito, né? E: Aham, pelo sentido literal.

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EI: Meter os pés pelas mãos Estudante (E): Eu acho que tem um significado, hm... como que fazer algo mal. A ideia é fazer com as mãos, para fazê-la bem, mas você mete os pés. Pesquisador (P): Sim, essa você já tinha visto no português? E: Sim, uma forma de falar, alguns amigos que saíram mal na prova: “meti os pés”. P: Fez mal? E: Isso, faz o contrário. No primeiro exemplo da primeira estratégia, temos uma confirmação dos achados do estudo de Nelson (1992 apud Saberian e Fotovatnia 2011, p. 2), o qual concluiu que, ao se deparar com uma expressão desconhecida, o sujeito ignora o significado literal das palavras que a formam e seu primeiro procedimento é inferir a partir do possível significado figurativo. Com relação ao primeiro exemplo da segunda estratégia, podemos perceber que, como Yoshikawa (2008 apud Saberian e Fotovatnia 2011, p. 4) e Saberian (2011, p. 4) já afirmaram, quando a EI é transparente ao sujeito ou quando existe um equivalente perfeito em sua L1, a atenção voltada à expressão será mínima e é provável que o aprendiz faça relação entre elas. Por fim, o primeiro exemplo da terceira estratégia ilustra um dos resultados da pesquisa de Liontas (2002 apud Saberian e Fotovatnia 2011, p. 2) ao mostrar que, quando o sujeito percebe que se depara com um fraseologismo, mas não o conhece, a sua estratégia inicial é inferir o significado da EI a partir do significado literal das palavras que a formam. No caso dos falantes do espanhol, a relação entre EIs nas duas línguas foi a estratégia mais utilizada. Como Polónia (2009) afirma, quando existe uma aproximação maior entre culturas e línguas (Espanhol – Português), tanto as relações entre EIs quanto a interpretação se torna mais fácil. Os

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dados mostraram, contudo, que os sujeitos nem sempre conseguiram chegar ao significado correto da expressão através dessas relações, e isso se deu em geral por relações errôneas ou por falta de equivalência total entre EIs. Dando ênfase à unicidade de cada EI e seguindo os estudos de Yoshikawa e Saberian (op. cit.), cabe observar que as relações entre as EIs, no caso dos falantes de inglês, aconteceram em casos isolados, apenas quando havia equivalência total – ou, pelo menos parcial - entre as expressões idiomáticas na L1 e L2. No geral, a estratégia mais utilizada foram as analogias de natureza variada. Seguindo a linha de pensamento de Liontas (op. cit.), pudemos perceber que o número de inferências literais às EIs apresentadas nesta fase foi constante. Os sujeitos tiveram dificuldade em encontrar o significado apropriado das EIs quando essas foram apresentadas descontextualizadas, tendo sido verificado um número bastante significativo de desistência de realização da inferência (20%) e de inferências inapropriadas (60%). Como se pode visualizar na Tabela 2 que segue, entre os aprendizes que não desistiram de realizar a inferência, o percentual de acerto foi relativamente baixo, de 18%. Tabela 2: Desistências, acertos e erros de inferências EIs descontextualizadas EIs descontextualizadas

Inferências

Percentual

Desistência de realização de inferências

10

20%

Inferências apropriadas das Eis

9

18%

Inferências inapropriadas da Eis

30

60%

Inferências parcialmente apropriadas das Eis

1

2%

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Conforme a tabela, de um total de 50 EIs apresentadas aos 5 sujeitos da pesquisa (cada sujeito, como já dissemos, foi apresentado a dez EIs), houve desistência de inferência de 10 das EIs – o que representa um percentual de 20% do total. Quanto às inferências apropriadas, o número chega a 9 acertos – sendo 18% do total – além de 1 resposta considerada parcialmente apropriada, representando 2% do total. Temos ainda 30 inferências inapropriadas, 60% do total. Fica evidente o nível de dificuldade encontrada pelos aprendizes para inferir o significado de EIs descontextualizadas.

EIS contextualizadas A análise dos dados mostrou que, quando o objeto de estudo são as EIs analisadas de forma contextualizadas, os aprendizes fazem uso de apenas duas estratégias cognitivas, conforme Tabela 3. Tabela 3: Uso das estratégias das EIs contextualizadas Ocorrência estratégia

Percentual

Utilização de dados micro/macro textuais

45

90%

Relação entre EIs na L1 e L2

5

10%

Estratégias cognitivas

As únicas estratégias empregadas para a realização de inferências de EIs pelos sujeitos, quando as expressões estavam contextualizadas - ou seja, apresentadas em um texto, foram a utilização de dados micro/macro textuais e a relação entre EIs da L1 e L2 do sujeito. É importante ressaltar que, no caso das EIs contextualizadas, o uso de dados micro/macro textuais corresponde a 90% dos casos.

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Seguem dois exemplos de cada uma dessas estratégias, a título de ilustração e análise. 1) Utilização de dados micro/macro textuais: EI: Ficar cheio de dedos Estudante (E): Agora eu acho que o texto desse confirmou o que eu achava, porque não tem nada a ver com ser... nada a ver com clumsy2 físicamente. Agora eu fico na dúvida se no texto tá dizendo que queria ou não queria falar... tipo, eu acho que como diz que não queria melindrar amigos... eu não tenho certeza do que significa melindrar mas eu acho que aqui não tava querendo falar mal das pessoas que fizeram a reforma porque conhecem as pessoas... então, talvez, “cheio de dedos” quer dizer meio cauteloso, não tava ansioso para falar... Pesquisador (P): E essa ideia foi basicamente pela leitura? Pelo contexto, né? E: Sim, porque antes não fazia ideia. EI: Dar a mão à palmatória Estudante (E): Eu acho que, neste contexto, não é tão extremo o sentido como eu falei, não é assim de aceitar castigo, algo negativo... mas, parece que é mais, neste contexto tipo: ter ideia própria e saber “dar a mão a palmatória” quando seus colegas têm ideias pertinentes e interessantes... saber compartilhar o “spotlight”... saber: “ah, eu acho minhas ideias boas 2. Clumsy pode ser traduzido por “atrapalhado” em português. Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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mas neste caso as ideias dela estavam melhores, então eu tenho que não fazer só as coisas que eu quero mas deixar as pessoas fazerem quando as ideias são boas”. Pesquisador (P): Aham, apesar de literalmente vir dessa ideia de: “aqui está minha mão, pode me castigar”, ela não é... no contexto não é usada dessa forma tão... E: Isso, saber conceder a outros a razão... 2) Relação entre EIs na L1 e L2: EI: Meter os pés pelas mãos Estudante (E): Aqui nunca escutei essa expressão, acho que, tratar de, tem uma expressão em espanhol que acho que é parecida, “passar gato por lebre”, que é tratar de, querer passar certa coisa dizendo que é outra, convencer de que seria outra coisa, eu acho, né. Pesquisador (P): Sim, e a relação que você fez foi com essa outra expressão? E: Isso! “Passar gato por lebre”. EI: Dar a mão à palmatória Estudante (E): Acho que, saber reconhecer, neste sentido, saber reconhecer aquilo que usa uma face também, dar a mão a torcer, em espanhol tem “dar a mão a torcer”. Pesquisador (P): Sim, e no espanhol significa “saber reconhecer”? E: Sim, sim. Esse torcer é no sentido de dor, reconhecer, mas no sentido literal, sentir dor mas saber que é o correto. P: Sim, claro, ok, vamos pra próxima. No primeiro exemplo da primeira estratégia, seguindo o pensamento de Polónia (2009), podemos perceber que, tendo um pequeno texto como

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apoio, o sujeito consegue ter mais clareza quanto à situação e ao meio cultural em que uma EI pode ser usada. A partir disso, o sujeito tem uma base significativa para inferir o significado da expressão. No primeiro exemplo da segunda estratégia, temos um sujeito latino-americano, ou seja, ele possui tanto a cultura quanto a língua relativamente próximas da nossa. Ele nunca havia ouvido a expressão, mas nesse caso, o possível significado figurativo de “meter os pés pelas mãos” o fez relacionar com uma expressão idiomática do espanhol. Seguindo as ideias de Nelson (op. cit.), ele primeiro pensa no possível significado figurativo da expressão, deixando de lado o literal. É importante ressaltar que, mesmo tendo essa relação mais próxima com nossa cultura, a relação que o sujeito faz entre as EIs é errônea. Já no segundo exemplo dessa mesma estratégia, temos outros sujeito latino-americano que relaciona duas EIs inequivalentes lexicamente mas com o mesmo significado, e ele consegue chegar ao significado correto. As inferências realizadas pelos aprendizes, quando apresentadas em um contexto, tem, em geral, o significado bem próximo ao esperado. Tabela 4: Desistências, acertos e erros de inferências – EIs contextualizadas EIs contextualizadas

Inferência

Percentual

Desistência de realização de inferências

0

0%

Inferências apropriadas das Eis

30

60%

Inferências inapropriadas das Eis

13

26%

Inferências parcialmente apropriadas das EIs

7

14%

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De acordo com a Tabela 4, de um total de 50 EIs apresentadas aos 5 sujeitos da pesquisa, não houve casos de desistência, um grande avanço quando pensamos nos 20% no caso das descontextualizadas. As inferências apropriadas tiveram um aumento expressivo, em comparação com as EIs sem contexto: 30 acertos, representando um percentual de 60% do total. Consequentemente, constatou-se uma queda nas inferências com atribuição de significados inapropriados às EIs: 13 respostas incorretas, ou seja, 26% do total. O número de inferências parcialmente apropriadas teve um leve aumento, contando 7, e representando 14% do total. É interessante ressaltar que dois dos entrevistados (de nacionalidades diferentes) tiveram um desempenho excepcional com a inferência de EIs contextualizadas. No primeiro caso, foi um americano com nível de proficiência elevado. Ele inferiu corretamente 9 das 10 EIs apresentadas sem acessar o sentido literal antes, conforme o que afirma Matlock e Heredia (2002, apud Saberian e Fotovatnia 2011, p. 2) quanto à influência da proficiência. O segundo, latino-americano, não tinha um nível elevado, mas foi possível notar que, através do contexto, muitas das relações entre EIs que ele havia feito anteriormente (no estudo das EIs descontextualizadas) se mostraram corretas. Fica evidente que a proximidade maior entre as culturas o ajudou, conforme Polónia (2009). Esses dados evidenciam a importância do uso de contextos autênticos no ensino/aprendizagem de língua estrangeira, de maneira especial, aqui, no contexto da aquisição de vocabulário (EIs) e, também, compreensão leitora. A compreensão das expressões desconhecidas foi significativamente mais bem-sucedida quando estas eram apresentadas em textos de estrutura sintática e vocabulário simples, em comparação com quando apresentadas de forma descontextualizada.

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Considerações finais Estudos sobre a problematização do ensino de expressões idiomáticas a estrangeiros não são novidade, e esse trabalho não buscou em momento algum trazer respostas absolutas, mas apenas elucidar algumas questões a respeito do tema. Como já colocado nas considerações iniciais, procuramos compreender os processos cognitivos utilizados por estrangeiros, quando necessitam inferir o significado de uma expressão idiomática em L2, e de que maneira os contextos poderiam influenciar nas respostas deles. Foi possível perceber a significativa dificuldade dos sujeitos com relação aos diversos aspectos que interferem na inferência apropriada das EIs. É importante ressaltar a unicidade das EIs, notar que cada fraseologismo representou um desafio diferente para cada sujeito e como o contexto foi uma ferramenta de extrema importância no processo de inferência do significado dessas expressões. Consideramos o ensino de EIs de extrema importância para os aprendizes de L2 e buscamos aqui despertar – ou aumentar – o interesse relativo a essa questão aos leitores. Essa pesquisa está em progresso, o que significa que novas entrevistas serão feitas e novos dados serão adicionados aos já acrescentados. Espera-se, com isso, ser possível oferecer em breve uma contribuição mais detalhada do fenômeno sob estudo.

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Systemic Functional Gr ammar at work for language pedagogy: recontextualizing the Tr ansitivity system in a website for EFL teachers Lucas Oliveira Silva1 Federal University of Santa Maria Abstract: The objective of this research is to identify which resources are employed to recontextualize the concepts and categories of the Ideational Metafunction, assuming An Introduction to Functional Grammar (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004), as primary context for the pedagogical context of English teaching. The theoretical framework is based on the concept of recontextualization (MOTTA-ROTH, 2010) and Systemic Functional Grammar (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) focused on the Transitivity System (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). To identify discursive and visual strategies of recontextualization, I departed from studies on language sciences (MOTTA-ROTH, 2010; LOVATO, 2011; ROSSI, 2012). So, we identified strategies such as de-nominalization and gloss. Keywords: Systemic Functional Grammar; Recontextualization; Pedagogical context. Resumo: O objetivo desta pesquisa é identificar que recursos são empregados para recontextualizar os conceitos e as categorias da Metafunção Ideacional, assumindo “An Introduction to Functional Grammar” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) como contexto primário para o contexto pedagógico de ensino de inglês. O referencial teórico é baseado no conceito de recontextualização (MOTTA-ROTH, 2010) e na Gramática Sistêmico-Funcional (HALLIDAY;

1. Undergraduate student in the degree course Languages – English and Literatures at Federal University of Santa Maria. This paper was produced in 2014 by advising Professor Roseli Gonçalves do Nascimento in the project “Gêneros multimodais e novos letramentos” (NASCIMENTO, 2013 register: 034199). Revista Ao pé da Letra – Volume 17.2 - 2015

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MATTHIESSEN, 2004) com foco no Sistema de Transitividade (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). Para identificar estratégias discursivas e visuais de recontextualização, foi utilizado como base estudos sobre ciências da linguagem (MOTTA-ROTH, 2010; LOVATO, 2011; ROSSI, 2012). Assim, identificamos estratégias como de-nominalização e glosa. Keywords: Gramática Sistêmico-Funcional; Recontextualização; Contexto pedagógico.

Introduction This research is part of the research project “Gêneros Multimodais e novos letramentos” (NASCIMENTO, 2013, register: 034199) developed at LABLER (Laboratório de Pesquisa e Ensino de Leitura e Redação) at UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) . The project aims to describe how meanings are made in literacy practices that involve language but go beyond verbal language by adopting critical genre analysis, and multimodal discourse analysis for a pedagogy of multiliteracies. In 2013, with the proposal for re-design of LINC ( Línguas no Campus) textbooks, I2 was assigned with the task of proposing the grammar systematization section of the textbook by using the systemic-functional approach to language (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). The LINC project provides courses of English and Spanish languages to the UFSM and local community based on Critical genre analysis (MOTTA-ROTH, 2008). In this view, grammatical structures are the realization of discourse structures and social structures. This came as a big challenge to me since selected grammatical structures would have to be relevant and described as a function of the communicative situation of the genre at stake. This task was particularly challenging for me, because I would have to define a

2. I adopted the use of the pronoun “we” to mark the collective work by my advisor Professor Roseli G. Nascimento and me, and when made decisions by myself, I use the pronoun “I”. 78 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


specific moment in the EFL (English as Foreign Language) lesson in which the students should gain awareness of how grammar is presented in the genre, what its function in the context and how such function it is encoded in form. Regarding this, Motta-Roth (2008, p.245) based on (Wallace, 1992) explains that the reading class can be divided in three main moments: prereading, reading and post-reading. We assume that these three moments can be applied to any EFL class, regardless of the skills being focused. In this sense, the grammatical systematization section can be allocated between the second and third moment in order to expose the students the function of the lexical-grammatical structure in the genre. Another challenge we faced was how much metalanguage to use to explain SFG (Systemic Functional Grammar) to students that are not and do not intend to be language specialists. As language students we are introduced to the discursive practices, concepts and metalanguage on SFG. But how can we recontextualize key concepts and categories in SFG to students from other careers? With such questions in mind, I searched for pedagogical materials available on the internet. The selected material is a website named TELENEX (Teacher of English Education Nexus) and used IFG3 (An Introduction to Functional Grammar 3rd edition) as a reference corpus (more details about the corpora in the Methods section). The objective of this research is to identify which verbal and non-verbal resources are employed to recontextualize the concepts and categories of Ideational Metafunction/Transitivity system into a pedagogical context. For that reason, we assume that IFG3 as a primary and academic context and TELENEX website as a secondary and pedagogical one.

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Theoretical framework In this section, I present the theoretical background which sustains my analysis. First, I discuss Recontextualization (section 2.1). Second, I review key concepts in Systemic Functional Grammar theory (section 2.2). At last, I explore the Ideational Metafunction and how it is manifested in the Transitivity system (section 2.3).

Recontextualization The process of recontextualization is adopted in this study to explain how discourse is affected when transferred from one context of use to another, from one set of participants to another. In relation to this, MottaRoth explains that recontextualization is “the transference of texts from a “primary context” of discourse production to a “secondary context” of discourse reproduction”3 (2010, p. 162). My study is based on previous researches (ROSSI, 2012, MOTTAROTH, 2010; LOVATTO, 2011) which were concentrated on recontextualization. Chart 1 contains a summary of the strategies of recontextualization reported in these studies.

3. In the original: “transferência de textos de um ‘contexto primário’ de reprodução do discurso para um ‘contexto secundário’ de produção do discurso”. 80 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


Chart 1: Strategies of Recontextualization by ROSSI (2012); MOTTA-ROTH (2010); LOVATTO (2011) RECONTEXTUALIZATION OF LANGUAGE SCIENCE’S DISCOURSE Author: ROSSI Category Glosa Definition & Sub-categories

As palavras caste e bag são explicadas no livro analisado pela autora em forma de glossário (glosa). Há então uma tentativa de recontextualização dos conceitos dessas palavras.

Example

Caste: noun: one of the traditional social classes that people were born into in Hindu society, or the system of having these classes. (example 22) Bag: noun: OFFENSIVE an insulting word for a woman, especially on who is old. (Exemple 23) (ROSSI, 2012, p. 121)

Category Nominalização Definition & Sub-categories

“No exemplo 24 a marca de interxtualidade é nominalização belief derivada do processo mental believe que no gênero explorado remente a uma voz que não é a voz autoral.” (ROSSI, 2012, p.122)

Example

What is Bush’s belief about college education? (Example 24) (ROSSI, 2012, p.122)

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RECONTEXTUALIZATION OF LANGUAGE SCIENCE’S DISCOURSE Author: MOTTA-ROTH Category Aposto/Glosa Definition & Sub-categories

Recurso “que recontextualiza simplificada e remotamente a ciência em linguagem corriqueira, com raros termos técnicos e frequentes estratégias linguísticas de pedagogização, como aposto e glosa”. (MOTTAROTH, 2010, p.166)

Example

In a paper published today in Science, a team led Clifford Saper from Harvard Medical School in Boston, Massachsetts suggests they have found the region of the sleep brain responsible for the sleep –rhythm adjustment- aclump of cells known as the dorsomedial hypothalamic nucleus (DHM). This region sits close to the idea of the brain that manages ordinary circadian responses to light and dark. (Example 2, p.166)

Category Hiperlinks Definition & Sub-categories

“Hiperlinks, como Read the Full Text, marcado em azul ao final do resumo, exercem uma força centrípeta em direção à esfera de produção primária da ciência, ao conduzir o leitor ao texto integral do artigo” (MOTTA-ROTH, 2009, p. 167).

Example

Read the Full text (Example 3, p.167)

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RECONTEXTUALIZATION OF LANGUAGE SCIENCE’S DISCOURSE Author: LOVATO Category

Glosa é um operador metadiscursivo que “adiciona informações por meio de paráfrase, explicação elaboração do que foi dito para garantir que o leitor consiga recuperar o sentido pretendido pelo autor.” (LOVATO, 2010, p.05)

Definition & Sub-categories

Refomulação “tem como função ampliar, reafirmar ou elaborar o sentido de termos e/ou ideias” (LOVATO, 2010, p. 06)

Example

She was in direct control of something of which Dan’s death was a consequence, and only in this way did she have control over dan’s death. This means that Dan’s death was not in Shirley’s control except in so far as this something was in her control. (LOVATO, p.07)

Expansão

Implicação “tem como função concluir ou resumir a parte mais importante do segmento anterior (LOVATO, 2010, p. 07)

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RECONTEXTUALIZATION OF LANGUAGE SCIENCE’S DISCOURSE Author: LOVATO Category

Glosa é um operador metadiscursivo que “adiciona informações por meio de paráfrase, explicação elaboração do que foi dito para garantir que o leitor consiga recuperar o sentido pretendido pelo autor.” (LOVATO, 2010, p.05)

Definition & Sub-categories

Refomulação “tem como função ampliar, reafirmar ou elaborar o sentido de termos e/ou ideias” (LOVATO, 2010, p. 06)

Example

Due to the lack of success in using several convention methods, anunbiasiased recognition Igorithm is proposed based on a novel statical feature point Recognition principle, called the maximum principle of slope difference. (LOVATO, p.07)

Expansão

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Explicação “vai oferecer esclarecimentos pontuais que elaboram o significado de uma unidade precedente de modo a tornar um conceito, por exemplo, mais acessível ao leitor (LOVATO, 2010, p.07 apud HYLAND, 2007, 274)”.


RECONTEXTUALIZATION OF LANGUAGE SCIENCE’S DISCOURSE Author: LOVATO Category

Glosa é um operador metadiscursivo que “adiciona informações por meio de paráfrase, explicação elaboração do que foi dito para garantir que o leitor consiga recuperar o sentido pretendido pelo autor.” (LOVATO, 2010, p.05)

Definition & Sub-categories

Refomulação “tem como função ampliar, reafirmar ou elaborar o sentido de termos e/ou ideias” (LOVATO, 2010, p. 06)

Example

12 of the 18 (67 per cent) crimes were rape and murder, or a combination relating to a sexual encounter. (LOVATO p.07)

Redução

Paráfrase “serve para restringir o significado do que foi dito “limitando o escopo de interpretação”“ (LOVATO, 2010, p. 07)

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RECONTEXTUALIZATION OF LANGUAGE SCIENCE’S DISCOURSE Author: LOVATO Category

Glosa é um operador metadiscursivo que “adiciona informações por meio de paráfrase, explicação elaboração do que foi dito para garantir que o leitor consiga recuperar o sentido pretendido pelo autor.” (LOVATO, 2010, p.05)

Definition & Sub-categories

Refomulação “tem como função ampliar, reafirmar ou elaborar o sentido de termos e/ou ideias” (LOVATO, 2010, p. 06)

Example

They refer to psychoanalysis, to existential phenology and to Marxism (in particular to the earlier work Marx). (Example 6, p.07)

Redução

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Especificação “a reformulação não funciona para reafirmar uma ideia, mas para detalhar características que foram salientadas no segmento anterior “a fim de limitar a forma como o leitor vai interpretá-las”” (LOVATTO, 2010, p. 07)


RECONTEXTUALIZATION OF LANGUAGE SCIENCE’S DISCOURSE Author: LOVATO Category

Glosa é um operador metadiscursivo que “adiciona informações por meio de paráfrase, explicação elaboração do que foi dito para garantir que o leitor consiga recuperar o sentido pretendido pelo autor.” (LOVATO, 2010, p.05)

Definition & Sub-categories

Exemplificação é “um processo comunicativo onde o significado é esclarecido ou apoiado por uma segunda unidade que vai ilustrar a primeira” (LOVATTO, 2010, p. 06 apud HAYLAND, 2007, p. 270).

Example

Here again, operator like A & P, Dominick’s Jwel, Safeway, Tom thumb and Vons have continue with their Hi-Lo strategy and rare successful. (LOVATO, p. 06)

Chart 1 exposes how the process of recontextualization is made from an academic context into a non-academic as pop science news and EFL textbooks. The categories that are identified in my corpus will be explained in more detail in the Results Section. In this study, I use the concept of recontextualization proposed by (MOTTA-ROTH, 2010) to define the TELENEX website as an instance of recontextualized discourse on SFG. This website is the secondary context, while Halliday and Matthiessen IFG3 is taken as the primary context. Some of these strategies described in Chart 1 were used as points of departure to identify how academic discourse on SFG is recontextualized into teacher-education discourse. Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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Systemic Functional Grammar According to Halliday and Mathiessen (2004, p.23), “language is a resource for making meaning and meaning resides in systemic patterns of choices” that can be represented by grammar. In this sense, SFG theory gets its name from the observation that “the grammar of a language is represented in the form of networks, not as an inventory of structures” (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2014, p 23). Thus, this principle can help us to understand the role of language in the society. For every situation of language use, we choose from available options in the system. Each option expresses one kind of meaning in contrast with other possible meanings. Another key principle is the relation between text and context. The context allows us to predict the text and the text allows us to retrieve the context. The potential of a given context to influence a given text is explained by Halliday as register. Our choices of register “are made in using language with respect to field, tenor and mode” (VENTOLA, 1991, p. 236). Field is the “social activity” (VENTOLA; 1991 p. 238) that is enacted by texts. It corresponds to ideational meaning in texts. Tenor, is defined as “power, relating to power and solidarity relations; contact, relating to the degree of involvement in a relationship; and affect, relating to the predisposition of the persons in the relationship ranging from love through to hate” (VENTOLA; 1991 p. 238). In language, it corresponds to interpersonal meanings. Mode, which corresponds to textual meaning, is concerned with spatial and temporal distance: “distance between interlocutors as affecting aural and visual feedback” (VENTOLA; 1991 p. 238). These definitions by Ventola, 1991 were developed according to models by Martin (1986), Poynton (1984, 1985, 1990) and Plum (1988). In a Systemic Functional Grammar view, grammar is seen as resour88 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


ce for meaning not as a system of rules. Each grammatical structure of language is associated to a communicative function. Thereby, this theory understands language as three metafunctions: Textual, Interpersonal and Ideational. Owing to such features, SFG is the theory of grammar adopted for LINC pedagogy. However, it is a relatively new theory in EFL teaching context due to its complexity, so we decided to search for strategies of recontextualization in a pedagogical context by focusing on the Ideational metafunction and its correspondent system: Transitivity.

The Ideational Metafunction/Transitivity System In Systemic Functional Grammar (SFG) view, ideational meanings are expressed by the System of Transitivity by Processes, Participants and Circumstances. The processes can be material, behavioral, mental, verbal, relational and existential. Each process type has specific functions and requires specific participant types (HALLIDAY, 2004, p. 60). For example, Material clauses require a participant called Actor (which performs the action) and a participant called Goal (which is affected by the action performed by the Actor). Verbal clauses involve the Sayer (responsible for the act of saying) and, possibly, a participant called Verbiage (what is said or uttered). The Circumstances are details “associated with the process” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004. p. 175). They modify the process in terms of location in time or place, manner, means, angle, etc. Unlike Processes and Participants, Cirmunstances are almost optional in the construction of a clause. This analysis is focused on the Transitivity system because it is by choices in transitivity that we “construe[s] the world” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p.170). We believe it is a good point of departure for

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designing grammar explanations that allow the students to understand the clause as unit of meaning, in comparison with the more widely recognized concept of clause/sentence.

Methodology First of all, it is important to highlight that this is a qualitative study. The focus is not on quantifying occurrences of each type of discursive/ lexicogrammatical strategy adopted to recontextualize SFG theory into the pedagogical context. As explained previously, recontextualization processes imply two contexts: a primary and a secondary context. In this study, the secondary is that of EFL teacher education instantiated in a website addressed to EFL teachers. The primary context is that of academic discourse. For this analysis, we considered IFG3 as our reference corpus. IFG3 was resorted to as a point of comparison of how transitivity concepts and categories are manifested in the academic context. In this section, I present the Corpus of analysis in subsections 3.1, and the Analytical procedures in subsection 3.2.

Corpus selection The corpus of this analysis is the website TELENEX developed by the group TELEC (Teachers of English Language Center) in the University of Hong Kong4. This website aims to contribute to the continued education of English teachers by providing them SFG resources to implement their classes. The TELENEX website is organized into three levels. They are divided in three subgroups which are structured in different topics as exposed in Figure 1. 4. http://www.fe.hku.hk/telec/pgram/5-gr/new520.htm 90 l Revista Ao pÊ da Letra – Volume 18.1 - 2016


Figure 1: Sections at the top of the page TELENEX (http://www.fe.hku.hk/telec/pgram/5gr/new520.htm)

The first group at the top is composed by the following sections: Home, Site map, Help, E-mail and Other links. These sections are related to the media support and navigation. Below them is Group 2 organized in the following tabs: Introduction, Prime chat, Prime Gram, Prime Teach, Prime Task and Pattern Finder. These sections point out the topic (Field) of this particular site. Group 3 is composed of sections Teaching Ideas, Glossary, Search, pop-up notes, Comments and Back to menu. These can be considered additional resources that offer support for teachers both in making sense of the concepts presented in main sections (e. g. Glossary, Pop-up notes) and in offering suggestions for pedagogical application (e.g. Teaching ideas). On the left side of the website panel are three main spheres: Text types, Communicative functions and Grammar. In this study, I analyze the third section: Grammar. My interest is to analyze how key concepts and categories of SFG are explained in the website and thus recontextualized in the section PrimeGram. The section Prime Gram is divided in four levels: sentence, clause, groups and phrases and word classes. These correspond to ranks of the language constituency in SFG (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 6-10). Unlike IFG3, the higher level of clause complex is not included. It includes also the sentence, which is decribed by Halliday and Mathiessen (2004, p. 8) as a unit of orthography.

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For this analysis, my focus is on the clause rank. The section entitled Grammar: Clause is organized in three topics, as presented in Figure 2.

Figure 2: Prime Gram - Organization of section clause (http://www.fe.hku.hk/telec/pgram/5gr/new520.htm)

Analitycal procedures The first step was to identify the corpus for analysis. In the beginning, we were looking for a corpus that was focused directly on English teaching. We considered three options: one textbook and two websites. However, the three available options were aimed at EFL teachers. From 92 l Revista Ao pÊ da Letra – Volume 18.1 - 2016


these options we selected TELENEX because it was the most complete in terms of grammar explanations. The second step was mapping discursive strategies of recontextualization and their lexicogrammatical realization in previous studies (ROSSI, 2012, MOTTA- ROTH, 2010; LOVATTO, 2011). Thus I could start to analyze my corpus pointing out the strategies which I found in this.

Results and discussion In order to expose the process of recontextualization obtained in this analysis. I organized this section in Recontextualization of the Transitivity system in verbal language (section 4.1) and Recontextualization of the Transitivity system in visual language (section 4.2).

Recontextualization of the Transitivity System in verbal language In verbal language, we identified three types of discursive strategies: De-nominalization, rhetorical questions and gloss. We claim that these verbal resources play a role into recontextualizating concepts of the Transitivity system into the TELENEX website by calibrating the register to its target audience: in service EFL teachers. As mentioned previously, I narrowed down the analysis of the website to the section entitled clause. In this section, I identified four subdivisions: Using the clause to represent experience, Using the clause to interact, Using the clause to organize text and Further reading: types of clauses. The three first subsections orient the EFL teachers regarding three “actions” people perform by using the clause, which correspond to the three Metafunctions in IFG3 (Halliday and Matthiessen, 2004), as illustrated in Chart 1 ,i.e., the Ideational Metafunction, the Interpersonal metafunction

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and the Textual metafunction. The fourth subsection contains explanations about different clause structures and statuses, such as, independent, dependent and non-finite clause. Taking IFG3 as our primary context, I started by focusing on the concept of language functions in SFG. In Chart 2, I correlate the titles used to introduce the concept of metafunctions in the academic context (IFG3) with those used in the pedagogical context (TELENEX website). Chart 2: De-nominalization process: a comparison between IFG3 and THE PROCESS OF DE-NOMINALIZATION IFG 3 – Chapters of the book

Telenex website - Sections

Clause

as representation

Using

the clause to represent experience

Clause

as exchange

Using

the clause to interact

Clause

as message

Using

the clause to organize text

Noun as head

Nominal group

process

Nominal group

The concept of language metafunctions in IFG3 is recontextualized in TELENEX by means of a process that, for lack of a better term, we labeled de-nominalization, as shown in Chart 2. According to Thompsom (2004, p. 225), nominalization is “the use of a nominal form to express meaning” usually derived from the transformation of a Process or Clause (an event) into a noun group (a thing). In this sense, Halliday and Matthiessen use a packed and dense structure (noun group) to identify the three metafunctions. Thus, if we consider IFG3 as the original context, the website uses de-nominalization as a recontextu94 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


alization strategy that unpacks meaning by transforming the noun group into a (non-finite) clause. Therefore, meaning that was densely packed into one small structure (e. g. clause as representation) is now diluted in a longer structure (Using the clause to represent experience). Halliday and Matthiessen (2004, p. 654) explain that in written language lexical density “packs a large number of lexical items into each clause, whereas spoken language becomes complex by being grammatically intricate”. Therefore, we can infer that for the pedagogical purposes of TELENEX, the authors prefer a structure that approximates that of spoken register in order to reduce the level of technicality of the concept for EFL teachers to get familiar with functions of language and perhaps use a similar strategy in their classes. Also, dense nominal groups are more frequently found in academic genres (e.g. in research articles). If we consider that nominalizations have effect of turning “actions”, something that we can easily observe in nature, into abstract entities, then we can conclude that, in the website, de-nominalizations do the opposite. They transform a dense and abstract Participant (Clause) into Processes or events (using; to represent). Therefore, de-nominalization was identified as a pedagogical strategy in TELENEX. The second verbal strategy identified is the use of rhetorical questions. These resources are use along the website to introduce the topics that will be explained in each section. In Figure 3, it is possible to observe how such resource is employed in the website.

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Figure 3: Rhetorical question to introduce the topic in the website (http://www.fe.hku.hk/telec/pgram/5-gr/new520.htm)

Questions are associated to the speech function of “demand of information” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 107). This means that, in practice, one social actor enacts the role of demanding a piece of information and assigns her addressee with the role of providing such information. However, as explained by Costa and Silveira (2012, p. 7), rhetorical questions are” those ones in which there is not expectation of response”5. They are usually asked and answered by the same person. In this analysis, I identified that for each topic to be discussed and explained, the authors seem to use a rhetorical question in order to generate interest into the topic and to engage EFL teachers in discourse. Chart 3 presents all the rhetorical questions found in the website for the section clause.

5. In the original: aquelas perguntas em que não há a expectativa de resposta. 96 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


Chart 3: Examples of Rhetorical Questions in TLENEX website Contents Transitivity system

Rhetorical questions What do we mean by representing experience? What do we mean by participants?

Clause

What do we mean by circumstance? What do we mean by processes? What do we mean by doing? What do we mean by thinking and feeling?

Types of processes What do we mean by saying? What do we mean by naming and describing?

As illustrated in Chart 3, to introduce clause constituents related to the Transitivity system, and types of Processes, the authors employ rhetorical questions. We classified them as rhetorical exactly because the response is not demanded from the EFL teacher, but provided by the producers of the website. By using a question, the website producers create the need for a response, which the producers themselves are entitled to offer an answer for. Considering that TELENEX is a website that aims to help EFL teachers to implement their classes using the SFG approach in English classes, this strategy can be a useful in grammatical systematization aimed at EFL students. We consider it suggests that students should reflect about potential answers to the question and its topic before getting their teachers explanation. Such strategy implies an inductive approach to knowledge since the

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learner is to some extent stimulated to engage into the learning process. After introducing the topics by means of rhetorical questions, the website producers provide explanations to the EFL teachers. These explanations are realized in one or more paragraphs. In this segment, I identified a third discursive strategy of recontextualization, the gloss. This linguistic resource is presented in Figure 4 below.

In this section, we are looking at how clauses represent experience. Representing experience is one of the major functions of language. Through language, we make sense of what is happening around us and we share our experience of the world with other people through speech and writing. We can call this the experiential function of language. Figure 4: Use of gloss as verbal strategy

According to Hyland (2007 apud LOVATO, 2011, p. 5), gloss is “a brief reformulation of ideas and terms developed to facilitate the interaction author-reader and the understanding of the text6”. In the website, I identified that, in order to promote this interaction with the EFL teachers, the authors provide explanations about the Transitivity system using gloss as discursive strategy. 6. In the original: uma breve reformulação de ideias e termos feita com o intuito de facilitar a interação autor-leitor e o entendimento do tópico do texto. 98 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


In Hyland’s research (2007) it was identified two main types of gloss: exemplification and reformulation. Exemplification is “a communication process through which meaning is clarified or supported by a second unit which illustrates the first by citing an example” (HYLAND, 2007, p.270). Reformulation is “a discourse function whereby the second unit is a restatement or elaboration of the first in different words” to provide it in a distinct point of view and to reinforce the message (HYLAND, 2007, p. 269). This last discourse function is divided in expansion and reduction. Expansion can be realized by explanation or by implication and reduction by paraphrase or specification as expose in Figure 5 below. Explanation Expansion Implication Reformulation Paraphrase Reduction Specification Figure 5: Types of Gloss proposed by Hyland (2007, page 274)

In Figure 5, we can observe a definition by expansion. The authors mention one of the functions of language (represent experience is one of the major functions of language) through a relational clause. Then, they Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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expand the concept (Through language, we make sense of what is happening around us and we share our experience of the world with other people through speech and writing). The last clause, in turn, is an instance of reformulation by reduction in which concept is specified, that is reduced to its technical name (We can call this the experiential function of language). Therefore, the concept is firstly expanded and then reduced. In the expansion, we have a movement from an academic register to a non-academic one. In the reduction, we have an interesting movement that back to a technical register. From this, we may state that the process of recontextualizing discourse from the academic to the pedagogical context involves not only “making things easy” for non-specialists, but also empowering them into technical register to some extent. Therefore, we consider that this discursive resource is a powerful strategy of recontextualization.

Recontextualization of the Transitivity System in visual language Multimodality is “the use of several semiotic modes in the design of a semiotic product or event, together with the particular way in which these modes are combined” (KRESS and VAN LEEWEN, 2001, p. 20). Semiotic modes are images, sounds, tables and these elements can be used in the process of recontextualization. Taking this into account, I identified three types of multimodal strategies in TELENEX that play a role in recontextualizing academic discourse on SFG into a pedagogical context: electronic gloss, visual exemplification and color coding). In Figure 6, I present the first type of multimodal strategy that I labeled electronic gloss as adopted in TELENEX website in order clarify concepts and categories of the Transitivity system.

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Figure 6: Use of electronic gloss to provide the technical term (http://www.fe.hku.hk/telec/pgram/5-gr/new520.htm)

As can be observed in Figure 6, at this point of the website, teachers are provided with a systematization of the types of process in SFG. Each process type is first identified with its less technical label (e.g. doing, thinking, naming), elaborated in terms of function, and exemplified. At the end of each item, the website offers to the EFL teachers a command in form of a square with the letter “N”. If they click on it, a box is opened providing the technical name of the process as is exposed in Figure 4 (e.g. Material, Mental and Relational). This strategy can considered a kind of gloss differently from those proposed by Hyland (2007), but with similar functions. By using the potential of visual resources and the electronic medium, EFL teachers can relate the less technical explanations and labels for process types with their more technical label. Along the website, it is possible to find multimodal exemplifications. These are realized by a box containing one Transitivity concept/category

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instantiated both in verbal clause and in a visual clause. Because the same (similar) Ideational content is expressed verbally and visually, we labeled such strategy multimodal concurrence based on Gill (2002) and Unsworth (2006). According to Unsworth (2006, p. 60), “[c]oncurrence refer[s] to ideational equivalence between image and text.”(Figure 7).

Figure 7: Multimodal resources: Image Exemplification (http://www.fe.hku.hk/telec/pgram/5-gr/new520.htm

Exemplification by concurrence is used to explain how the constituents of a clause, that is, Participants, Processes and Circumstances are positioned and play a role in a clause. In the image, the same clause constituents are realized visually, as can be observed in Figure 7. Here the visual resource of image plays an important role in elaborating the meanings from verbal language. Teachers can, perhaps, use such strategy directly in their classes. The third multimodal strategy observed is colour coding. This resource is used to codify and classify the clause constituents in the website. 102 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


To explain the parts of a clause, the authors provide firstly a color-based legend. This code is maintained in the circular representation of the clause as organized around process type, and lastly in a chart clauses are separated in terms of their constituents. The shade of color (e.g. red) used to identify a given constituent (Participant) is mantained across the three items, as can be observed in Figure 8.

Figure 8: Multimodal resource: Color Coding (http://www.fe.hku.hk/telec/pgram/5-gr/new520.htm)

Conclusion In this paper, I investigated a website designed to function as a resource for the continued education of English teachers by providing them with SFG concepts, categories and resources to implement their classes. The objective was to identify which resources are employed in the website to recontextualize the concepts and categories of Ideational Metafunction Revista Ao pÊ da Letra – Volume 18.1 - 2016

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(Transitivity system) from an academic context (IFG3) into the pedagogical context of EFL teaching. I identified that TELENEX adopts discursive strategies similar to those reported in previous studies (ROSSI, 2012, MOTTA-ROTH, 2010, LOVATTO, 2011,). As already suggested in previous studies, I observed the use of explanation by gloss. Additionally, I identified a strategy that we labeled de-nominalization and multimodal strategies such as visual concurrence and color coding. Although the insight for this study came from a need to reddish EFL teaching materials using SFG, the analysis of the website aimed at EFL teachers was useful in revealing how text producers calibrate grammar explanation for an audience that needs further scaffolding and leveling between technical register and a less technical one. In conclusion, this study has indicated useful strategies for the process of redesigning of LINC materials also for EFL teachers that aim to produce their material based on SFG theory.

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Ser e Linguagem em Bakhtin: diálogos com a filosofia heideggeriana Pedro Henrique de Oliveira Simões1 Universidade Federal de Pernambuco Resumo: Este trabalho investiga a compreensão bakhtiniana do ser como acontecimento. Seu objetivo é problematizar caminhos pertinentes para o estudo do sujeito, em produções discursivas, no âmbito da teoria dialógica da linguagem, que deem espaço a sua posição singular e irrepetível no mundo das ações concretas. Para isso, são traçados alguns dos caminhos epistemológicos do pensamento de Bakhtin, na obra Para uma filosofia do ato, colocando-o em diálogo com a fenomenologia de Martin Heidegger. O estudo sinaliza que, para o filósofo russo, a manifestação singular e única do ser, em sua ação concreta, presentifica-se mediante sua participação responsável no modo como vê e valora o mundo em suas produções de linguagem, na interação com os outros. Palavras-chave: Ser; Linguagem; Bakhtin; Heidegger. Abstract: This work investigates the bakhtinian comprehension of the being as event. Its goal is to problematize relevant ways to the study of the subject, in discursive outputs, in the scope of the dialogic theory of the language, which give space to its unique and unrepeatable position in the world of the concrete actions. For that, some epistemological paths of Bakhtin’s thoughts are traced, in the work Toward a philosophy of the act, putting it in dialogue with Martin Heidegger’s phenomenology. The study signalizes that, for the Russian philosopher, the singular and unique manifestation of the being, in its concrete action,

1. Graduando do curso de Letras-Português da Universidade Federal de Pernambuco. Este trabalho resulta da pesquisa de iniciação científica Filosofia ética da linguagem: a compreensão do Ser, realizada através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da UFPE (PIBIC/UFPE), no período 2013-2014, sob orientação da Profa. Dra. Maria Cristina Hennes Sampaio. Revista Ao pé da Letra – Volume 17.2 - 2015

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makes present by its responsible participation in the way it sees and values the world in its language outputs, in the interaction with others. Keywords: Being; Language; Bakhtin; Heidegger.

Introdução A unicidade do “eu” se esconde exatamente no que o ser humano tem de inimaginável. Só podemos imaginar o que é idêntico em todos os seres, o que lhes é comum. O “eu” individual é o que se distingue do geral, portanto o que não se deixa adivinhar nem calcular antecipadamente, o que precisa ser desvendado, descoberto, conquistado no outro. (Milan Kundera)

O filósofo russo Mikhail Bakhtin, em sua filosofia do ato, trilha os caminhos ontológicos de compreensão do ser como um acontecimento singular. Ser que não é encontrado no mundo da ciência, quando esta se propõe a generalizá-lo; ser cuja existência está no plano das ações concretas, orientado pela linguagem e nela instaurado, seja no mundo da vida, seja no mundo da arte; ser cuja singularidade é constituída na interação com o outro, desde seu nascimento. Como afirma Kundera, em epígrafe, o ser que se distingue dos demais, das generalizações, porque é único, mas que precisa ser desvendado, descoberto no outro. A filosofia bakhtiniana encontra seus direcionamentos iniciais na obra Para uma filosofia do ato (PFA, daqui em diante), escrita no período de exílio à ditadura stalinista na Rússia/União Soviética, entre os anos de 1920 e 1924 (EMERSON, 2003). Esta obra, que não chegou a ser publicada pelo autor, é o segundo trabalho de Bakhtin, após a produção de Arte e responsabilidade, e centra as discussões que, mais tarde, o Bakhtin-pensador viria a trilhar, conforme ressalta Sergei Bocharov (1997, p. 5), na introdução à edição russa: “aqui encontramos o contato filosófico de toda uma série 108 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


de ideias principais, que posteriormente se desenvolveram ao longo de mais de meio século de sua atividade de pensador”. Sobral (2008, p. 221), em seus estudos acerca de PFA, destaca que a obra está dividida em quatro eixos de discussão filosófica: Em primeiro lugar, os atos humanos no mundo concreto (ou “a arquitetônica do mundo vivido” (SOBRAL, 2005a, p. 17)). Em segundo, o ato estético como agir ético (SOBRAL, 2005a, p. 17), ou seja, de como as obras de arte literária envolvem uma dimensão ética que impõe ao criador uma responsabilidade pela junção entre a vida concreta (o mundo vivido) e a criação artística (o mundo representado). [...] Em terceiro lugar, a ética na política, que nunca foi abordada diretamente, embora se possam encontrar vestígios dela nos vários textos. [...] Por fim, a ética da religião, uma questão sempre presente para Bakhtin, inclusive ao tratar da questão da empatia e do amor como parte de suas concepções estéticas [...].

PFA, no entanto, não nos permite remeter, de forma imediata e clara, aos fundamentos que lhe deram sustentação, ainda que na obra haja citações esparsas de filósofos variados, como Kant, por exemplo, autor de grande importância para o pensamento de Bakhtin; bem como de Husserl, Bergson etc. Estudos têm sinalizado alguns dos fundamentos filosóficos aos quais Bakhtin recorreu para a elaboração de seu pensamento (SAMPAIO, 2012; SOBRAL, 2008, 2005). Dentre os filósofos com os quais dialoga, encontramos Heidegger que, para Todorov (apud AMORIM, 2012), foi a fonte na qual Bakhtin bebeu para a elaboração da ideia do diálogo como condição da linguagem, tão cara a seu pensamento. Heidegger, junto a Husserl, constitui o marco da Fenomenologia que nutriu o pensamento

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de Bakhtin em PFA (SAMPAIO, 2013a, 2013b); é um autor-chave na intertextualidade bakhtiniana (AMORIM, 2012). Partindo, portanto, da complexidade que envolve a compreensão dos fundamentos filosóficos do pensamento de Bakhtin em PFA, neste trabalho, colocamos em diálogo a discussão do filósofo russo acerca do ser com a fenomenologia ontológica de Heidegger, estruturada em várias obras, mas analisada especificamente em Ser e tempo e Sobre a questão do pensamento. Nosso objetivo, com isso, além de contribuir com a sinalização de alguns dos fundamentos filosóficos do pensamento de Bakhtin, é compreender como a filosofia desse autor, a partir desses fundamentos, constitui possíveis caminhos para a abordagem do ser nas práticas discursivas, na linha da teoria dialógica da linguagem.

Procedimentos metodológicos O presente estudo é de caráter teórico-bibliográfico, no qual o corpus propriamente dito é constituído pelas obras Para uma filosofia do ato, de Bakhtin – tomada, aqui, em sua versão espanhola Hacia una filosofía del acto ético, de Bajtin2 (1997) –, e Ser e tempo e Sobre a questão do pensamento, de Heidegger, cuja materialidade linguística permitiu-nos colocar, em diálogo, os conceitos acontecimento do ser e tonalidade emocional-volitiva, de Bajtin (1997), e Dasein (ser-aí), Ereignis (acontecimento) e encontrar-se/afetividade, de Heidegger (2012, 2009). A partir da leitura dessas obras, aplicou-se o método dialógico cujo conceitual analítico pressupõe o estabelecimento de relações de sentido

2. Optamos por analisar a versão espanhola por esta ter sido traduzida diretamente do russo, diferentemente da versão brasileira (BAKHTIN, 2010). A partir de agora, sempre que formos nos referir a PFA, em sua versão espanhola, citaremos o nome em espanhol de seu autor, a saber Bajtin (1997). 110 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


entre os discursos filosóficos em questão, tomando-se em consideração “que a expressão do pensamento participativo, como ato responsável, é materializado na palavra, o que equivale dizer, no texto e no discurso” (SAMPAIO, 2013c, p. 14). Sendo assim, a compreensão das obras “passou pelo princípio do agir dialógico, por parte do pesquisador”, o qual pressupôs “um deslocar-se do ato/ação (e contexto) contido no texto-fonte (Hacia una filosofía del acto ético), assinado por Bajtin, e contrastá-lo com os atos/ ações (e contextos) contidos em outros textos”, assinados por Heidegger, “já que o vir-a-ser, tanto em relação ao ser-evento como do sentido, inscreve-se na diferença, na relação de alteridade que se estabelece entre o eu e o outro” (SAMPAIO, 2013c, p. 15). Na obra citada (BAJTIN, 1997), exploramos, pois, passagens nas quais o filósofo problematiza o conceito acontecimento do ser, buscando construir uma compreensão do modo como este conceito se constituiu em meio à arquitetônica bakhtiniana3. Da mesma maneira, analisamos a construção do conceito tonalidade emocional-volitiva. Feito isso, nos debruçamos sobre as obras referidas de Heidegger, analisando, de forma mais específica e sistemática, a construção do conceito ser-aí, sua relação com o Ereignis, e o conceito tonalidade afetiva. Buscamos, assim, tecer fios dialógicos possíveis entre ambos os filósofos, com o intuito de compreender os fundamentos da filosofia do ato de Bakhtin, de modo a contribuir para a exploração da problemática do acontecimento do ser na linguagem dentro do viés da análise dialógica do discurso.

3. A arquitetônica refere-se aos planos de determinação valorativa do mundo entre mim e aqueles que são todos outros para mim e que só pode ser construída pela minha ação responsável (BAJTIN, 1997). Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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Bakhtin em diálogo com Heidegger: caminhos para a compreensão do ser como acontecimento Em defesa da compreensão do ser como acontecimento, Bajtin (1997) traça uma longa e complexa discussão em PFA. A obra, inacabada e com sua parte inicial perdida (ao fazermos sua leitura, encontramos Bajtin já no desenvolvimento de sua argumentação, consistida em um movimento de repetições, como lembra Amorim (2012)), exige do leitor paciência e atenção. Das vezes que retomamos sua leitura, identificamos algo que pareceu passar despercebido nos contatos anteriores. Justifica-se isso pelas condições em que fora produzida (em exílio, no Cazaquistão), tratando-se, na verdade, de um rascunho não produzido para publicação (até mesmo seu título fora cunhado pelos editores russos), com trechos ilegíveis. Um rascunho das ideias futuras ou, como afirma Faraco (2010, p. 148), no posfácio à edição brasileira: “encontramos o autor esquentando os músculos para a grande caminhada de meio século que se seguirá.”. Além disso, Bajtin, que, ainda conforme Faraco (2010), apesentava ressalvas com citações (chegando a afirmar que elas são desnecessárias para o leitor competente e inúteis para o não qualificado), findou por dificultar ainda mais nossa leitura ao não deixar claro o fundamento filosófico ao qual alinhou-se, como afirmamos na Introdução deste trabalho. Heidegger, por exemplo, não chega a ser citado diretamente por Bajtin, apesar de ser considerado um autor fundamental com o qual o russo dialogou. Nosso esforço, aqui, é traçar diálogos consistentes para a defesa de que a filosofia heideggeriana perpassa a filosofia do ato de Bajtin (1997), quando da compreensão do ser como acontecimento, bem como de que esta filosofia sinaliza caminhos pertinentes para a abordagem do ser em produções de linguagem. O acontecimento é um conceito caro à filosofia bakhtiniana. Compreender o ser como um acontecimento significa romper com a tradição 112 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


científica e filosófica quando da abordagem do sujeito no emaranhado das generalizações. Significa abrir espaço à posição singular que o ser assume em suas ações concretas, no mundo da vida ou no mundo da arte, na real interação com outro, mediada pela linguagem. Acontecimento porque nada está pronto, determinado, previamente constituído, antecipadamente calculado. É neste horizonte que Bajtin compreende o ser como um vir a ser, ou seja, como um processo ininterrupto de constituição. No mundo generalizante da ciência, o ser é esquecido; este mundo é indiferente ao ser, na verdade, porque não leva em consideração o seu acontecimento; quer dizer: não cede espaço ao modo como o sujeito vê e valora o mundo, a partir de uma posição singular e irrepetível. Ao tratar do mundo da ciência, o filósofo remete ao que chama de ‘pensamento abstrato’, ‘mundo teórico’, ou ‘conteúdo semântico de um pensamento’ [científico], para o qual é impossível qualquer orientação da vida prática: “É impossível qualquer orientação prática de minha vida no mundo teórico, no qual não se pode viver, nem atuar responsavelmente; eu não sou necessário neste mundo, não estou nele por princípio4.” (BAJTIN, 1997, p. 17). O mundo da ciência, cabe lembrar, ao qual Bajtin remete, é o mundo do fazer-científico tradicional, positivista, de seu tempo. Estamos tratando de uma obra escrita nos princípios do século passado, que, no entanto, pode-se fazer atual se entendermos que muitas das pesquisas científicas são orientadas, ainda hoje, por categorias analíticas bastante sedimentadas, “(re)utilizáveis” em pesquisas diversas, com objetos de investigação específicos e diferentes entre si; com acontecimentos situados em contextos delimitados, mas que findam por ser abordados sempre na dimensão do repetível, como se todos os sujeitos fossem iguais.

4. A tradução para o português de toda citação direta, advinda da versão espanhola Hacia uma filosofia del acto ético, é de nossa responsabilidade. Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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Em contraposição a esse mundo, Bajtin (1997) defende que é apenas mediante o ato ético, responsável, que o sujeito manifesta seu acontecimento e que, portanto, para dar conta do ser, o pensamento científico precisa ser ético: “O mundo como conteúdo do pensamento científico é um mundo singular, autônomo, mas no isolado, senão integrado, mediante o ético real, no único e global acontecimento do ser” (BAJTIN, 1997, p. 20). Entendamos, aqui, o ato ético como a manifestação singular do ser no mundo que, por ser realizada por um sujeito real e único, é de sua responsabilidade. Somos responsáveis por nossos atos, nossas compreensões, nossas formas de ver e valorar o mundo. Não temos álibi para a existência, lembra Bajtin (1997). E, sendo sujeitos éticos e responsáveis, estamos, a todo instante, sendo convidados a participar. Não podemos ser indiferentes ao mundo; estamos sempre, e inalienavelmente, mergulhados na esteira do diálogo, do pensamento participativo. Heidegger (2012), neste sentido, em contraposição à abordagem científica e filosófica/metafísica do ser, ao longo da história do mundo ocidental, sinaliza a necessidade, logo nas primeiras linhas de Ser e tempo, de uma expressa pergunta pelo ser, a qual fora esquecida desde a Antiguidade Clássica. Para Heidegger (2012), na tradição dos estudos filosóficos, o ser fora abordado do ponto de vista entitativo; quer dizer: o ser sempre fora confundido com o ente, uma vez que aquilo que lhe constitui estivera sempre posto em plano de inexistência para a filosofia. É neste sentido que Heidegger coloca a questão do ser em oposição ao ente, sinalizando um método fenomenológico para a compreensão do ser-aí, ou do ser-no-mundo, que não está dado como um objeto, como presença determinada pelo tempo, mas que se constitui como presentificação. Heidegger (2012, 2009) utiliza o conceito de presentificação para remeter à dimensão ontológica do ser, ou seja, do que lhe permite ser ser, de fato. Quando compreendido do ponto de vista entitativo, ôntico, objetual, o ser aparece na esteira da filosofia como uma presença. O ser-aí, 114 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


portanto, nada mais é que um objeto. Do contrário, abordado do ponto de vista ontológico, o ser-aí é compreendido como algo que presentifica-se. Ou seja, não como uma presença apenas, mas cuja presença só se realiza na medida em que o ser repousa sobre ela. Sinalizar o ser-aí como presentificação, é, portanto, entender o sujeito não como algo dado e delimitado, tal como Bajtin (1997) critica ao relacionar esta compreensão ao mundo generalizante da ciência, mas entender que o sujeito presentifica-se em suas vivências, ao longo do tempo; o sujeito, portanto, acontece. Bakhtin e Heidegger, segundo nosso ponto de vista, estão preocupados em estabelecer uma abordagem do ser guiada pelo não universal, abstrato, mas por aquilo que lhe é essencial: seu acontecimento, cuja realização só pode se dar através no mundo das ações, das vivências. É neste sentido que entendemos haver diálogo entre os filósofos, o que, em outras pesquisas, já vem sendo sinalizado (SAMPAIO, 2013a, 2013b, 2012). O quadro 1 abaixo apresenta passagens das obras de Heidegger e Bakhtin anteriormente mencionadas, permitindo-nos visualizar suas relações de dialogicidade: Quadro 01 Heidegger

“O ser, pensá-lo propriamente, exige que se afastem os olhos do ser na medida em que, como em toda metafísica, é explorado e explicitado apenas a partir do ente e em função deste, como seu fundamento. Pensar o ser propriamente exige que se abandone o ser como fundamento do ente em favor do dar que joga velado no desvelar, isto é, em favor do dá-Se. Ser, como dom deste dá-Se faz parte do dar-se. Ser enquanto dom não é expulso do dar. Ser, pre-sença é transformado. Como presentificar faz parte do desocultar, permanece incluído no dar como seu dom. Ser não é. Ser dá-Se como o desocultar do presentar.” (HEIDEGGER, 2009, p. 12)

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Bajtin

“O mundo teórico obtém-se em uma abstração de princípio com respeito ao feito de meu único ser e de seu sentido ético, é concebido ‘como se eu não tivesse existido’, e esta concepção de um ser para o qual é indiferente o feito, que para mim é central, de minha comunhão real e singular com o ser (eu também sou) [...] esta concepção teórica não pode oferecer nenhum critério para a vida prática, para a vida do ato ético, eu não o habito, e se este ser teórico tivesse sido o único, eu não haveria existido.” (BAJTIN, 1997, p. 17, grifos do autor)

Heidegger (2009), no trecho acima, aponta que, na abordagem do ser propriamente, faz-se necessário o afastamento do viés metafísico, cujo fundamento encontra-se no ente, ou seja, na presença. Para o filósofo, “presença significa o constante permanecer que se endereça ao homem” (HEIDEGGER, 2009, p. 19), uma vez que sem a presença, ou sem o ente, o ser não tem condição de existir; ao sujeito, a presença é endereçada, mas sua existência, por outro lado, é também dependente da dimensão ontológica do ser. Uma relação de mútua constituição. Bajtin (1997) neste mesmo sentido, vem defender que é na vida prática que o ser acontece – em sua dimensão ontológica –, no mundo de fato vivido, e não no conteúdo semântico da ciência – em sua dimensão ôntica, entitativa, no dizer de Heidegger. A razão científica, teórica, é, pois, apenas um momento possível da vida prática: Toda a razão teórica não é senão um momento da razão prática, ou seja, da razão que vem da orientação moral de um sujeito no acontecimento singular do ser. Este ser não pode se definir em categorias de uma consciência teórica indiferente, uma vez que se determina mediante as categorias da comunicação real, ou seja, de um ato ético, nas

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categorias de uma vivência eficientemente participativa da singularidade concreta do mundo. (BAJTIN, 1997, p. 20)

Neste horizonte de abordagem do ser, Heidegger (2009) ressalta que o Dasein, ou o ser-aí, é determinado por seu acontecimento. Aparece aqui o conceito Ereignis, que nos leva a entender que o ser só o é mediante seu acontecimento-apropriação. Antes, o autor explica a relação ser e tempo, sinalizando que o tempo, também, não é uma determinação “objetual”, uma vez que o tempo não é, mas dá-se tempo. O ‘se’ do dá-se só pode ser sustentado por meio do acontecimento (Ereignis). O Ser-aí, portanto, não sendo algo dado, mas a presentificação, só pode “repousar” na presença por meio do Ereignis. O acontecimento é responsável pela manifestação do ser na presença, fazendo dele, portanto, ser. O ser alcança a presença, é seu “destino”: O alcançar, porém, repousa, junto ao destinar, no acontecimento-apropriação, no acontecer-apropriar. Este, isto é, o elemento característico do Ereignis, determina também o sentido daquilo que aqui é denominado: o repousar. O que acabamos de dizer permite, obriga até, de certo modo, a dizer como o Ereignis não deve ser pensado. Não podemos representar o que vem designado como o nome de Ereignis, guiados pela semântica ordinária; pois esta compreende Ereignis no sentido de acontecimento e fato – e não a partir do apropriar como o alcançar e destinar iluminador e protetor (HEIDEGGER, 2009, p. 28).

Heidegger e Bakhtin, neste caminho para a compreensão do ser, cuja manifestação dá-se no mundo das ações, através de seu acontecimento, problematizam a dimensão afetiva e emocional-volitiva que perpassa o

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acontecimento do ser. Ou seja, para eles, mediante o acontecimento do ser, sua realização, no mundo, revela o aspecto afetivo do sujeito (Heidegger) e emocional-volitivo (Bajtin), ao qual o sujeito não se pode fazer indiferente. Em Heidegger (2012), a afetividade é apontada como o encontrar-se do ser. Não um encontrar-se perceptivamente, objetualmente, mas o reconhecimento do ser mesmo no mundo, do ser-aí, em sua presentificação, a qual revela sempre um estado-de-ânimo. Na tradução para o francês de Ser e tempo, a noção do encontrar-se surge como l’affection, remetendo, portanto, à afetividade. Esta afetividade constitui-se como determinação existenciária para o ser, o que significa dizer que, sem ela, não há existência. Ou seja, a afetividade é condição existencial para o ser, pois ele mesmo sempre está imerso em um “estado-de-ânimo”. Entendamos como “estado-de-ânimo” a afetividade do ponto de vista ôntico, ou entitativo; quer dizer: a afetividade, ou o encontrar-se, que se encontra no plano ontológico, pode ser entendida, onticamente, como o estado-de-ânimo do ser. Como condição existencial do ser, o encontrar-se, para Heidegger (2012), permite a abertura do ser ao mundo, em seu “estar-lançado”, de modo que, ainda que o ser insista na busca pelo saber e querer do estado-de-ânimo, ele mesmo já estará lançado em um estado-de-ânimo. Em outras palavras: a busca pela compreensão do encontrar-se parte já da inserção do ser em um encontrar-se, uma vez que dele não se pode afastar. Este pensamento opõe-se às concepções de afetividade, com relação ao ser, advindas da Psicologia e da Filosofia. Heidegger (2012) aponta que a tonalidade afetiva, sob os nomes de “paixão” e “sentimentos”, não é constituída por aspectos de cunho estritamente fisiológico, que remete à percepção sensorial das coisas. Destacando que, ao longo da história, não houve atenção ao fato de que o passo dado por Aristóteles, acerca do 118 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


tema, apresenta apenas um aspecto digno de menção, Heidegger aponta que “paixões e sentimentos caem tematicamente sob a classificação de fenômenos psíquicos” e que é “um mérito da investigação filosófica propor uma visão mais livre desses fenômenos.” (HEIDEGGER, 2012, p. 397). Quer dizer, da interpretação ontológica de Aristóteles acerca dos princípios afetivos do ser, entendeu-se a afetividade, mais tarde, como uma atividade psíquica, o que resultou no esquecimento de sua dimensão originária e existenciária para a abertura do ser ao mundo. Bajtin (1997), em sua filosofia do ato, ao abordar este aspecto para a existência do ser, em seu acontecimento, sinaliza a tonalidade emocional-volitiva também como condição existencial, uma vez que, responsável que é por seus atos concretos no mundo vivido, o pensamento do sujeito não pode se abster da dimensão emocional-volitiva do acontecimento do ser, sendo, portanto, um pensamento participativo, com o qual ele valora o mundo. Surge, assim, nesta perspectiva, o componente axiológico para a existência, aspecto tão bem colocado por Bajtin (1997), em sua problemática, e que parece ir além daquilo que nos legou Heidegger. Para os filósofos, seja por se tratar de uma determinação existenciária, que revela o sujeito, seu estar-lançado (HEIDEGGER, 2012), seja por se dar mediante um pensamento participativo (BAJTIN, 1997), da afetividade e da tonalidade emocional-volitiva, respectivamente, o sujeito não pode se distanciar, tal como podemos identificar nas passagens que seguem: Quadro 02 Heidegger

O ‘que é e tem de ser aberto’ no encontrar-se do Dasein não é aquele “que” exprime a fatualidade categorial, ontologicamente pertinente à subsistência, a qual só é acessível numa constatação visual. Ao contrário, o que é aberto no encontrar-se tem de ser concebido como determinidade existenciária do ente que é no modo do ser-no-mundo.

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[...] O encontrar-se é um modo existenciário fundamental em que o Dasein é o seu “aí”. Ele não só caracteriza ontologicamente o Dasein, mas, fundado em seu abrir, tem ao mesmo tempo uma significação metódica de princípio para a analítica existenciária. (HEIDEGGER, 2012, p. 399). Bakhtin

Nenhum conteúdo seria realizado, nem um só pensamento seria efetivamente pensado, se não se estabelecesse um vínculo essencial entre o conteúdo e seu tom emocional e volitivo, ou seja, seu valor sustentado autenticamente por quem o pensa. Viver ativamente uma vivência, pensar um pensamento, quer dizer, não estar absolutamente indiferente até ele, senão sustentá-lo emocional e volitivamente. Um verdadeiro pensar, concebido como ato, é o pensamento emocional e volitivo, o pensamento entonado, e esta entonação penetra substancialmente em todos os momentos do conteúdo do pensamento. Um tom emocional e volitivo abarca todo o conteúdo semântico do pensamento no ato e o relaciona com o acontecimento singular do ser. Justamente este tom emocional e volitivo é o que se orienta no ser singular, assim como orienta e sustenta nele um conteúdo semântico (BAJTIN, 1997, p. 41-42).

Conforme Heidegger, o que é aberto, na afetividade, enquanto encontrar-se, não é a factualidade categorial, ou seja, o fato ôntico, entitativo, que se constata visualmente, numa percepção física, mas a existência do ser-no-mundo. O ser, portanto, é determinado pela afetividade, seu encontrar-se e, além disso, sua existência deve ser analisada metodologicamente sob o princípio da afetividade. Bajtin (1997), em medida parecida, destaca que nenhum conteúdo pode ser realizado sem a dimensão emocional-volitiva que o perpassa, uma vez que existir significa não ser

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indiferente ao mundo, sendo, pois, mediante um pensamento participativo, que revela minha valoração do mundo, que o ser se realiza em seu acontecimento. A orientação da singularidade do ser encontra-se no aspecto emocional-volitivo; revela seu posicionamento, seu apreciação, aquilo que lhe constitui axiologicamente. Entendemos, com isso, que ambos os filósofos encontram-se em diálogo na medida em que sinalizam para a afetividade e a dimensão valorativa do sujeito o caminho que permite ao ser seu acontecimento. Isso significa dizer que, é através do modo como o sujeito vê e valora o mundo, através da linguagem, que o sujeito manifesta sua singularidade, seu acontecimento; ou seja, apenas mediante o ato ético, com o qual o sujeito revela-se e arrisca-se por inteiro, sem álibi para a existência. Destaque-se, aqui, a importância da linguagem, atribuída por Bakhtin, para o acontecimento do ser: Para expressar intrinsicamente o ato ético e o acontecimento singular do ser dentro do qual o ato se leva a cabo, se requer toda a plenitude da palavra: a unidade de seu aspecto de conteúdo semântico (palavra como conceito), de seu lado expressivo e ilustrativo (palavra como imagem), assim como da entonação emocional e volitiva. E em todos esses momentos a palavra plena e global pode expressar uma verdade responsavelmente significativa, que não uma verdade casual e subjetiva. Desde agora, não é ilícito exagerar a força da linguagem: o acontecimento do ser singular e único e o ato ético que nele participa são, por princípio, expressáveis, mas de feito se trata de um problema muito difícil, de modo que a adequação completa resulta inalcançável, apesar de ser sempre plantada (BAJTIN, 1997, p. 39, grifos nossos).

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Aparece, aqui, a importância da linguagem para o acontecimento do ser, perpassado pela dimensão emocional-volitiva que revela aquilo que lhe é único, irrepetível, singular, de forma responsável e participativa. Na linguagem, construímos verdades não casuais, mas responsavelmente significativas, as quais assino e pelas quais manifesto minha entonação. Requer-se, pois, a plenitude da palavra, ou seja, do texto/discurso, para que o sujeito manifeste-se como acontecimento. Sem linguagem, assim sendo, não há ser no mundo das ações concretas. Neste sentido, o outro passa a ser entendido como elemento constitutivo do eu, uma vez que é através da interação com o outro, por meio da linguagem, que a singularidade, a unicidade, do eu constitui-se. A linguagem é a atividade pela qual a interação acontece. Heidegger (2012), neste caminho, destaca que a linguagem tem suas “raízes” na constituição existenciária do ser; da abertura do Dasein ao mundo; de seu estar-lançado, mediante o encontrar-se na afetividade. A linguagem, para o filósofo, é manifestada no discurso: “O fundamento ontológico-existenciário da linguagem é o discurso” (HEIDEGGER, 2012, p. 453), sendo, pois, o discurso existenciariamente originário, uma vez que, para a manifestação do encontrar-se do ser, na afetividade, e de seu entender, ou seja, de sua compreensão, faz-se necessário o discurso: A linguagem é o ser-expresso do discurso. Essa totalidade-palavra, como aquilo em que o discurso tem um próprio se “de mundo”, como ente-do-interior-do-mundo, pode ser encontrada como um utiliziável. [...] O discurso é existenciariamente linguagem, porque o ente cuja abertura ele articula conforme-a-significação tem o modo-de-ser do ser-no-mundo dejectado, remetido ao “mundo”. (HEIDEGGER, 2012, p. 455) [...]

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Porque o discurso é constitutivo do ser do “aí”, isto é, do encontrar-se e do entender, é que o Dasein significa ser-no-mundo; o Dasein como ser-em que discorre já se expressou. O Dasein tem linguagem. (HEIDEGGER, 2012, p. 465)

Podemos concluir, com isso, que, tanto para Bakhtin quanto para Heidegger, é pela linguagem, pela “plenitude” da palavra, pelo discurso que o ser se manifesta, em seu encontrar-se, uma vez que é a linguagem sua originariedade existencial. Ou, como coloca Bakhtin, a manifestação do ser, mediante a tonalidade emocional-volitiva, requer a plenitude da palavra; quer dizer: do texto, do discurso. Dos diálogos realizados entre as obras de Bakhtin e Heidegger, podemos sinalizar duas percepções: (1) de forma mais específica, Heidegger parece estar preocupado em estabelecer um contraponto à abordagem tradicional do ser ao longo da história ocidental, na filosofia, de modo a elaborar uma fenomenologia ontológica que pense o ser como presentificação e não como presença dada no mundo. Neste sentido, Bajtin parece lançar mão do pensamento heideggeriano para a elaboração também de uma fenomenologia ontológica, orientada pela teoria do ato responsável, à qual subjaz uma concepção de sujeito como acontecimento singular participativo e responsável; (2) ambos os filósofos sinalizam um caminho metodológico para a abordagem do ser que leve em conta seu aspecto afetivo e emocional-volitivo, uma vez que é neste horizonte que o ser constitui seu estar-lançado, seu encontrar-se no mundo (HEIDEGGER, 2012) e que manifesta sua singularidade, valorando e apreciando o mundo concreto de forma participativa e responsiva (BAJTIN, 1997).

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Considerações finais Concluímos, com a presente pesquisa, que (1) o encontrar-se do Ser, no mundo, em sua ação concreta, é determinado pela afetividade e pela tonalidade emocional-volitiva que o perpassa, aspecto este que aparece como um caminho metodológico pertinente para a compreensão do ser na linguagem, tal como nos fazem entender os filósofos em análise; (2) Bakhtin, ao remeter a existência ao pensamento participativo, à responsabilidade do ato ético e ao componente axiológico de orientação do Ser, vai além da discussão desenvolvida por Heidegger com relação à afetividade. Estes direcionamentos nos parecem pertinentes para uma mudança de paradigma na pesquisa das Ciências Humanas, na medida em que propõem um fazer-científico que não se esgote na abordagem universal do ser, mas que dê abertura a seu real acontecimento. Entendemos, com isso, que a compreensão do ser como acontecimento que presentifica-se na linguagem, a partir do ato ético responsável, orientador do modo como o sujeito vê e valora o mundo, é fundamental para a abordagem do sujeito em produções discursivas, uma vez que dá abertura à posição singular e irrepetível que o ser assume no mundo das ações concretas, na interação com o outro. Essa posição concretiza-se no horizonte da tonalidade emocional e volitiva, ou seja, no modo como o sujeito valora, acentua, o mundo e os outros. Um sujeito cuja singularidade é axiologicamente constituída no plano da alteridade, em sua manifestação ética e responsável.

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Resenhas



Na espreita da linguagem: Milton Hatoum, cronista HATOUN, Milton. Um solitário à espreita. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

Aídes José Gremião Neto Universidade do Estado do Rio de Janeiro No ano de 2013, chegou ao mercado o primeiro conjunto de crônicas reunidos num só volume do escritor amazonense Milton Hatoum. Neste seu mais recente livro intitulado Um solitário à espreita, Hatoum (2013) nos traz um recorte de suas crônicas que, de maneiras distintas, materializam as diferentes facetas de seu projeto literário. Hatoum é hoje um escritor renomado e estreou com êxito no cenário literário brasileiro no ano de 1989, com seu primeiro romance, Relato de um certo Oriente. Esta obra lhe rendeu o prêmio Jabuti de melhor romance e abriu o caminho para sua consolidação no campo literário. Desde então, o autor vem conquistando seu espaço no campo intelectual e literário nas malhas da ficção brasileira contemporânea, publicando em 2000, o romance Dois irmãos, e, em 2005, Cinzas do Norte. Em 2008, lançou Órfãos do Eldorado, sem contar o volume de contos intitulado A cidade ilhada, no ano de 2009. No que se refere à produção de crônicas, Hatoum vem publicando em diversos suportes ao longo de sua carreira. Entre os anos de 2005 e 2007, teve crônicas publicadas na extinta revista Entrelivros. Em seguida publicou no site Terra Magazine e, desde então, vem publicando regularmente no jornal O Estado de São Paulo. É da reunião dessa modalidade de escrita (a crônica) que Um solitário à espreita se constitui. Esta coletânea oferece ao leitor uma parcela da cronística hatouniana que, assim como em sua prosa romanesca, prima uma linguagem lapidada

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e bem trabalhada, assinalando o gosto do escritor pelo ornamento da palavra. Podemos dizer que, analisadas em conjunto com os romances do escritor, essas crônicas amalgamam o vetor norteador do projeto literário de Hatoum: reescrever histórias reais e ficcionais sob o crivo da memória e, assim, promover uma abertura da história e das possibilidades estéticas que surgem frente a uma escrita autoreflexiva. Além disso, há outra relação subjacente a estas e que não poderiam deixar de serem mencionadas: a escrita de si, em linhas tortas que nada revelam da vida empírica, mas do caminhar da própria escrita, uma espécie de poética do testemunho (testemunho perdido da infância e da juventude). Neste viés, buscando uma síntese que norteie a presente resenha poderíamos dizer que Um solitário à espreita assinala as frentes temáticas principais com as quais o escritor dialoga em sua poética, construindo, portanto, um projeto literário engajado nas seguintes questões: 1) a preocupação com criação estética, o que imbrica também as relações autorais subjacentes ao processo de escrita; 2) o trato com questões de ordem existencial, na qual a ditadura militar brasileira avulta como um dos elementos principais; 3) e o diálogo com as relações culturais que perpassam os sujeitos inseridos em seu universo fictício. Um solitário a espreita nos apresenta, em sua maioria, narradores que dialogam com os limites da memória lembrada e inventada, recuperando sempre os saberes dispostos no texto literário, aos quais Roland Barthes (2007) cunha de mathesis – que, ao lado da mímeses e da semiosis, constitui uma das três forças da literatura. Sendo assim, é possível dizer que as crônicas permitem pensar as relações entre a escrita e sua produção, no que tange às complexas possibilidades de posicionamento do escritor em relação ao seu projeto criador, como pensou Pierre Bourdieu (1968) e, depois, Dominique Maingueneau (2001). Vemos que, assim como o Hatoum romancista, o cronista abre uma gama de possibilidades de (re)

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leituras, ao conjugar questões ligadas ao jogo ficcional, ao caráter incerto da memória e a questões de ordem existenciais. É o que vemos, por exemplo, na crônica “Um jovem, o velho e um livro” (HATOUM, 2013, pp. 184 – 187) em que o narrador, num entrelaçamento temporal impresso por sua memória, conta duas histórias que o levam a outras: a morte de um velho professor, que conhecera na infância, chamado Graça – recente ao momento da enunciação – e a morte covarde de seu amigo Alex, estudante da USP, cujo apelido é Minhoca, ocorrida no ano de 1973, que remonta ao contexto histórico da ditadura militar de 64. Nesta narrativa, há um emaranhado de referências que nos permite supor uma aproximação entre o personagem velho, apenas no final nomeado como ‘Graça’, e a figura de Graciliano Ramos, já que aquele “(...) falava de uma infância maior que o mundo porque não era uma infância qualquer, e sim uma das mais poderosas e belas ficções autobiográficas da nossa literatura” (HATOUM, 2013, p. 185) – o narrador fala de Infância, obra de Graciliano Ramos. É da ligação dessa ausência de vidas que o narrador, situado em um tempo indeterminado do qual só sabemos que o bairro paulistano em que morava inda era ‘sem prédios’, envereda pelos meandros da memória, ao mesmo tempo em que caminha, “(...)andando de volta no tempo e no espaço” (HATOUM, 2013, p.185). Ao passo que recobra o passado de sua infância, ano de 1964 em que conhecera o velho Graça, o narrador demonstra consciência estética quando, não só dialoga com Infância e Vidas Secas, mas também insere um personagem que pode ser associado ao próprio Graciliano Ramos por, no mínimo, dois fatores: seu próprio nome e a relação íntima que este velho Graça mantém com as obras mencionadas de Graciliano Ramos, assumindo, nesta crônica, uma posição próxima a de um narrador, já que há algumas passagens com a rememoração do narrador de seus discursos e considerações sobre as obras deste escritor.

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O narrador, consciente das relações da memória e imerso nos dramas da(s) Infância(s), propõe a seguinte referência acerca de uma das passagens do quadro “O inferno”, de Vidas Secas, no qual o menino dialoga com sua mãe: Silêncio ou respostas atravessadas, incompletas. O narrador adulto percebe que a explicação hesitante não passa de uma aporia. Mas há incongruência e dúvida em tudo, pois a memória não recupera o passado com exatidão: lembra e deslembra, diz e desdiz, afirma para negar ou contrariar. A memória é o lugar da hesitação e da ambiguidade: o móvel da imaginação. (HATOUM, 2013, p. 186) (Grifos nossos)

É no movimento sinuoso e dinâmico da memória que essas histórias se mutilam e interconectam na condição presente deste narrador. Através da morte de um velho conhecido da infância, este narrador autodiegético acende as áreas obscuras das lembranças de sua infância, período em que convivera com o ‘velho’ e entrara em contato com leituras caras a sua formação existencial e intelectual. A esta lembrança da infância se sucede outra: a festada qual participou para esquecer o triste ocorrido com seu amigo Alex. Há, portanto, um eixo que conecta ambas as histórias: o período que se estende de 1964 a 1973, datas passadas que, juntas, não só correspondem ao período de sua formação na infância e ao dia da missa de sétimo dia da morte de Alex, mas também a todo um período de ditadura militar vivenciado pela sociedade brasileira, cujo capítulo “Inferno” de Vidas Secas é alegoria. A partir dessa característica principal presente tanto nos romances quanto nas crônicas de Hatoum, é que os narradores desse conjunto de textos articulam no jogo arguto da linguagem diversas temáticas que perpassam, desde a esfera social, política e econômica, até as discussões 132 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


voltadas para as questões da própria literatura. Esses elementos estéticos dos quais viemos falando compõem uma parte significativa do projeto literário de Milton Hatoum, estando presentes em diversas narrativas como, por exemplo, em Cinzas do Norte ou, mesmo nas crônicas da revista Entrelivros e Terra Magazine. De modo geral e complementar podemos dizer ainda que, nas crônicas de Um solitário à espreita, vemos que o passado retorna como forma de recriação e reflexão das experiências humanas na busca do conhecimento do outro. Elas abrem um horizonte de leitura no âmbito do próprio discurso, que demanda do leitor leituras críticas acerca desses aspectos formais, estéticos e temáticos dinamizados nos enunciados do texto hatouniano. Para ratificar, é válido elaborarmos um estudo do volume Um solitário à espreita (2013), voltando à crônica que abre a obra. Reeditada e publicada no livro mencionado, a crônica intitulada “Um inseto sentimental” (HATOUM, 2013, pp.11-12) tece, metaforicamente, alguns ritos da relação de produção do objeto literário por parte do autor. O narrador-escritor da crônica é incomodado por um inseto que faz “[...] apagar a ideia da crônica” e acabar com a alegria de escrevê-la, mesmo que este narrador saiba que vai “[...] reescrevê-la quatro ou sete vezes” (HATOUM, 2013, p.11). Se por um lado o inseto incomoda o narrador a ponto de ele ter que dar “adeus à ideia da crônica e à leitura de Gógol”, por outro, ao pousar numa velha fotografia de sua mãe, o faz enveredar pelos caminhos da memória e, assim, concede-lhe outra ideia, uma oriunda dos meandros de sua memória, das lembranças de sua falecida mãe, provavelmente situadas na infância. Desta maneira, o narrador finaliza o relato com a mesma construção da primeira frase da crônica: resta “[...] pegar a caneta e escrever a primeira frase da crônica, quase sempre a mais difícil [...]” (HATOUM, 2013, p.12). Se atentarmos para os dois momentos em que esta frase aparece – no início e no fim da crônica –, podemos encarar o desenvolvimento do percurso da escrita como um ‘rithos de escrita’ – termo de Maingueneau

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(2001) –, isto é, como um verdadeiro trabalho estético. Nesse sentido, esta crônica é uma metacrônica que, no fim, revela um movimento circular de escrita e reescrita – reescrita estética e reescrita de si, elaborada por este narrador escritor. O real e a memória, deste modo, são indissociáveis do fazer estético para esse narrador, embora não como um refletir os fatos nas palavras, mas como reflexão, reordenação e experimentação de sua própria experiência/lembranças. Por fim, cabe salientar que os aspectos até então apontados em nossa apresentação não correspondem a um eixo temático unívoco que generalize as amplitudes significativas deste volume, mas a um apanhado geral, pautado em uma leitura crítica, dos caminhos trilhados pela maioria dos narradores hatounianos. Há algumas crônicas que destoam das características até então levantadas que, ao nosso entendimento, não poderiam ser negligenciadas da presente exposição. Bons exemplos seriam aquelas com viés mais cômico, embora com a criticidade política do narrador aguçada, como: “No jardim de delícias”, “Celebridades, personagens e bananas”, “Tarde no Pacaembu”, “Um intruso numa noite”, “Confissões de uma manicure”, “A barata romântica”, dentre outras. Como dissemos, a presente resenha proposta por nós de Um solitário à espreita não almeja caracterizar-se como um estudo que abarque a riqueza temática possível de ser extraída pelos leitores e/ou estudiosos nesta obra de noventa e seis crônicas. Trata-se de uma apresentação que, em respeito ao caráter deste trabalho, finda com a esperança de, quiçá, despertar nos leitores que possivelmente não conheçam as crônicas do escritor a vontade de explorar este universo de sua construção estética, o qual se amalgama no presente livro apresentado.

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Um retr ato multifacetado de Gr aciliano R amos RAMOS, Graciliano. Conversas. LEBENSZTAYN, Ieda; SALLA, Tiago Mio (Orgs.). Rio de Janeiro: Record, 2014.

Erick Bernardes1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro O livro de entrevistas e depoimentos Conversas, de Graciliano Ramos, é uma coletânea organizada pelos pesquisadores Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla. Doutora em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP, Lebensztayn fez ainda pós-doutorado no IEB-USP. É autora de Graciliano Ramos e a Novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis, São Paulo: Hedra, 2010. Já Salla é Doutor em Ciências da Comunicação pela USP, publicou na mesma instituição O fio da navalha: Graciliano Ramos e a revista Cultura Política (2010) e organizou o livro Garranchos (2012), publicado pela Editora Record. Em único volume, os dois organizadores reúnem 25 entrevistas, 20 enquetes e depoimentos, além de 19 “causos” publicados em diferentes periódicos durante a carreira do autor de Vidas secas. Enriquece o trabalho um conjunto de fotos e notas fac-símiles veiculados em jornais, revistas, livros e manuscritos, retratando parte da trajetória do intelectual nordestino. Não obstante a contribuição salutar à fortuna crítica do escritor alagoano, o livro conta com um prefácio dividido em mini seções, no

1. Resenha elaborada para o projeto de pesquisa “Viagens reais e imaginadas: história, ficção e autobiografia”, do Programa de Estágio Interno Complementar da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ), coordenado pelo professor doutor Paulo César Oliveira. Revista Ao pé da Letra – Volume 17.2 - 2015

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qual é montado um arcabouço contextual compatível com a seriedade da pesquisa documental dos seus organizadores. Ao dar continuidade à série de publicações iniciada com Garranchos (2013) e Cangaços (2014), Conversas atende à demanda não só de estudiosos e pesquisadores do campo literário, mas a todos aqueles que se interessam pela vida e obra do político e crítico Graciliano Ramos. Acrescido de notas bibliográficas ao final de cada pequeno capítulo, suas seções trazem à tona facetas pouco conhecidas do cotidiano do autor de Infância. Na seção de “Entrevistas”, vemos a figura pública de Ramos manifestar-se sobre assuntos que vão desde opiniões acerca de obras literárias de escritores anteriores e contemporâneos seus até assuntos relativos à Segunda Guerra Mundial. Para aqueles que o entrevistaram, a ressonância da voz analítica do entrevistado evidencia o lado crítico de quem conhece o panorama histórico e literário da sua época, mas também denota o homem Graciliano na intimidade e seu lado psico-afetivo mais latente, alternando momentos de humor, ironia e introspecção. No espaço destinado às “Enquetes e depoimentos”, a ênfase recai sobre uma variedade de assuntos, como a Copa do Mundo de 1938, a preferência literária por Anatole France e questões políticas, ligadas ao partido PCB. No capítulo que serve aos “Causos”, vemos a comicidade prevalecer, pois seu viés satírico destoa daquela visão taciturna e ensimesmada, sobre a qual tradicionalmente foi pintada a imagem desse artista nordestino. Casos engraçados e anedóticos têm como alvo a situação do escritor no Brasil, a ironia fina concernente à imposição da força do poder e a autocrítica debochada acerca dos seus próprios livros. Enfim, uma miríade de fatos curiosos em situações corriqueiras, nas quais Graciliano Ramos varia a sua fala, alternando ora o discurso de intelectual e figura pública, ora o de homem comum em diálogo simples e despretensioso. Como bem apontado por seus organizadores, o termo que melhor refere o conjunto de textos coligidos em Conversas é a metonímia. As três 138 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


“macrodivisões” que compõem o volume “proporcionam aos leitores atuais um panorama histórico, político, jornalístico e artístico da primeira metade do século XX” (LEBENSZTAYN; SALLA, 2014, p. 39). Se por um lado suas seções seguem uma diretriz cronológica coeva à vida e obra de Ramos dentro de cada divisão, por outro lado suas partes não suscitam ordens temáticas ou formais quaisquer que sejam, e tampouco estabelecem parâmetros com vistas a compor um perfil completo e acabado do homem Graciliano. O que se apresenta é um retrato multifacetado, “um belo painel”, indiscutivelmente diferente daquele que prevaleceu sobre a personalidade do autor de Memórias do cárcere. A modéstia do escritor exigente e autodidata dizia muito do caráter intelectual refinado que lhe era peculiar. Em um “Inquérito” concedido ao Jornal de Alagoas, ainda com dezenove anos incompletos, aquele que viria a receber alcunha de “Velho Graça” já esboçava posicionamentos críticos que iriam tomar contornos realistas ao longo do seu projeto poético, e apontava modos de atuação artística emblemáticos que o fariam “contribuidor” salutar das narrativas de viés regionalista. Ramos argumentava não ser um “literato” relevante, pois suas “ideias tinham pouco valor”, e de literatura pouco conhecia. Porém, segundo Wander Miranda (2004, p.13), apesar da modéstia, “de todo o grupo, o autor de Vidas secas é, sem dúvida, o que mais avança no sentido de desmontar as estruturas de dominação literária, cultural e política, ao mesmo tempo em que confere a seus textos um valor artístico efetivamente inovador”. Ao falar de sua preferência por Aluízio Azevedo, diante da impertinência do entrevistador, que pergunta pela terceira vez “qual dos artistas e literatos brasileiros é melhor? Por quê?”, Ramos, no limite da paciência e da tolerância, responde: “será preciso repetir quase integralmente o que já ficou dito no quesito n. 3. Prefiro Aluísio aos outros literatos brasileiros” (LEBENSZTAYN; SALLA, 2014, p. 55). No entanto, o alagoano não restringe sua opinião ao autor de O cortiço, pois acredita ser importante também

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ressaltar, dentre outros nomes, os de Adolfo Caminha, Rodrigues de Melo, Luís Franco, e, sobretudo, o escritor naturalista português Eça de Queirós, sendo este último influência declarada e justificada pelo autor de Angústia. Em referência ao romancista lusitano, o ex-prefeito de Palmeira dos Índios admite preferir a “forma sincera” ao discurso velado, pois cumpre posicionar-se “verdadeiramente” no campo literário e, consequentemente, no espaço cultural brasileiro. Assim, de maneira sintética e “enxuta” com que depõe a vida e a obra de Graciliano Ramos, Conversas põe em voga, coerentemente, manifestações estéticas que abarcam aspectos que vão desde o discurso literário até opiniões informais, transitando entre o escritor, a obra, o campo literário e situações corriqueiras do cotidiano. É todo um levantamento de textos inéditos em livro acerca da vida pessoal, política e artística desse sertanejo da palavra “enxuta”. O percurso que vai da vida à obra ou da obra rumo à vida do escritor (MAINGUENAU, 2001, p. 46), quando comparado aos textos reunidos em livro por Lebensztein e Salla, mostra a substancial importância da história da imprensa nacional, pois permite ao leitor ter uma noção panorâmica acerca do ambiente jornalístico do Brasil no século XX. Em entrevista feita para O cruzeiro, José Condé nos aponta o início do percurso do escritor que já não é mais aquele rapaz de dezoito anos “aproveitando seus momentos de folga para escrever [...] um rapaz inútil fadado ao fracasso na vida” (LEBENSZTAYN; SALLA, 2014, p. 83). O seu foco de atenção mira eventualmente o moço Ramos, “inadaptável ao meio estranho da capital do país”, em busca de emprego nos jornais cariocas, à procura por um espaço no cenário intelectual. A ênfase dada por Condé vai além de um simples interesse estético literário, sua reportagem é o início de uma série de publicações, as quais têm como alvo aspectos daquela atividade que inscreveria o autor de Vidas secas na existência social. No intuito de atender à demanda de um público consumidor, não só O Cruzeiro, mas também a Revista Manchete, A Gazeta, Revista do Globo, Diário Popular, 140 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


Tribuna Popular, Folha da Manhã, dentre outras revistas e jornais, incluindo periódicos internacionais, visavam particularidades biográficas do artista nordestino que o inscreviam no campo literário, naquela “rede invisível” que, segundo Dominique Mainguenau (2001), “atravessa as divisões sociais” e canônicas, atraindo muitíssimo os consumidores da sua época. A preocupação dos organizadores de Conversas com o enquadramento social do ilustre filho de Quebrângulo deixa claro a rejeição do escritor aos exageros utópicos modernistas que serviriam de instrumento ao fascismo: “Pode anotar, também, não gosto de fascistas”. Declarações enfáticas de denúncia e protesto de Ramos às atitudes opressoras evidenciaram certos ritos de escrita (MAINGUENAU, 2001). Esses tipos de declarações, segundo Aídes Jose Gremião Neto (2014, p. 4), aproveitando as ideias de Mainguenau (2001), trazem à superfície discursiva certos “ritos de escrita” ou “ritos genéticos” cujas marcas estão presentes na escolha de cada autor, “que reconhece as influências e as incorpora a seu estilo próprio”, ou seja, fatores que “embora extratextuais, são análogos à fase de produção do objeto literário” (NETO, 2014, p. 4). Nesse sentido, o conjunto de textos coligidos em Conversas permite ao leitor conhecer um pouco do posicionamento crítico do autor de Caetés, por meio das inter-relações postas em relevo pela seleção dos textos do volume aqui apresentado. Assim, as “Enquetes e depoimentos” apontam também para opiniões, em que Ramos discordaria das extravagâncias modernistas, pois estas desviavam-se sobremaneira da realidade do povo. A “arte pela arte”, dizia ele, era a enunciação da mediocridade que levava à estagnação da nação. Porém, concordava que a revolução operada pela Semana de Arte Moderna fez pelo menos “um serviço: limpar, preparar o terreno para as gerações vindouras” (RAMOS, 2014, p. 132), caso contrário o próprio José Lins do Rêgo teria o seu espaço restrito no meio literário. Opinião que, em “Cartas ao Brasil”, entrevista concedida ao português Castro Soromenho para o Diário Popular, Ramos por si só já depõe a favor da escrita sem exageros

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ideológicos, tendo em suas declarações um modo de atuação intelectual contrário à “liberalidades” e extravagâncias assumidas pelos Andrades e cia. Em boa síntese: Mas a verdade é que, sem saberem escrever, trouxeram qualquer coisa de novo à literatura brasileira. Meteram-se pela sociologia e economia e lançaram no mercado romances causadores de enxaqueca ao mais tolerante dos gramáticos. Foi um escândalo. Mas estavam ali pedaços do Brasil, e isso já era alguma coisa de importante. A literatura enriquecia-se de novos assuntos, novos problemas, nova vida, mas tínhamos que lastimar a maneira absurda e inclassificável como se escrevia. E este foi um grande mal. As barbaridades foram aceitas, lidas, relidas, multiplicadas, traduzidas e aduladas. Havia uma pureza e uma coragem primitivas nos escritores da arrancada, e daí o êxito dessa literatura. Porém, a sua decadência começou cedo, porque se perderam essas qualidades. Começaram descrevendo coisas que viram e acabaram descrevendo coisas que não viram. E, por desgraça nossa, a maioria não aprendeu a escrever. Raros são os que estudaram os problemas e a língua (RAMOS, 2014, p. 216).

Ao adensar ainda mais o viés paratópico do homem cultivador de “boa prosa” que foi Graciliano Ramos, Salla e Lebensztayn, na terceira parte do livro em questão, transcendem a dimensão da imagem de escritor reservado. Em “Causos”, as circunstâncias das “conversas” apresentam-se de modo comparável aos cafés e salões dos séculos XVII, XVIII e XIX. A livraria José Olympio era palco, dentre outras coisas, de pré-difusões de obras de um círculo de intelectuais pelo qual transitavam Aurélio Buarque de Holanda, José Lins do Rêgo, Amando Fontes e outros mais. Destaca-se

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também um fato curioso narrado em “O pouso do morcego”. Quando certa vez na rua, em “frente dum café onde habitualmente” se reunia o grupo de escritores, um incerto morcego decidiu pousar no ombro do ex-prefeito de Palmeira dos Índios, servindo de comparação com o corvo, da obra homônima de Edgard Allan Poe (LEBENSZTAYN; SALLA, 2014, p. 339), sendo portanto, o inusitado do acontecimento merecedor de integrar as páginas de Conversas (2014). Encontramos aqui, talvez, outros ângulos para falar do artífice da palavra que foi Graciliano Ramos, de “caráter a um tempo literário e político” (LEBENSZTAYN; SALLA, 2014, p. 9), isto é, um panorâmico olhar multiforme do profissional engajado, com fotos e fac-símiles de notas de jornais, revistas e manuscritos que ilustram bem o ambiente literário por qual ele transitou. Dessa maneira, cada entrevista, causo, enquete ou depoimento, “a seu modo, permite iluminar facetas pouco conhecidas, ou, até então, obscuras” (SALLA, 2012, p. 61) do artista, postas em relevo por Salla e Lebenszteyn. A obra interessa tanto a estudiosos do meio jornalístico e literário quanto àqueles que buscam saber um pouco mais sobre a vida e a obra do escritor. Enfim, fica-se com a imagem, não só do profissional em seus vários estados de espírito, mas, acima de tudo, de homem que tinha sob o crivo da “autoanálise sem complacência [...] no plano dos atos, um traçado límpido e nobre de comportamento” (CANDIDO, 2012, p. 79), sem excessos ou exageros ideológicos que viessem obscurecer seu modo de “ser-estar” no mundo.

Referências CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. 4 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012. MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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MIRANDA, Wander Melo. Graciliano Ramos. São Paulo: Publifolha, 2004. NETO, Aides Gremião. O escritor no campo literário: um estudo das crônicas de Milton Hatoum. Alumni: Revista Discente da UNIABEU. Nilópolis, RJ: UNIABEU, v. 2. n. 4 agosto- dezembro, 2014. RAMOS, Graciliano. Garranchos. SALLA, Thiago Mio (Orgs.). Rio de Janeiro: Record, 2012. ______. Cangaços. LEBENSZTAYN, Ieda; SALLA, Thiago Mio (Orgs.). Rio de Janeiro: Record, 2014. Recebido em: 05/08/15 Aceito em: 28/08/15

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Aluno, é assim que se faz SILVA, Elizabeth Maria da (Org.). Professora, como é que se faz? Campina Grande: Editora Bagagem, 2012

Guilherme Arruda do Egito1 Universidade Federal de Campina Grande O livro Professora, como é que se faz?, organizado por Elizabeth Maria da Silva, professora da Unidade Acadêmica de Letras (UFCG), em sua edição de lançamento, vem demonstrando excelente aceitação entre graduandos e professores da comunidade acadêmica de Letras, juntando-se às demais publicações interessantes desse campo de estudo. O livro contempla, em cinco capítulos temáticos, relatos de pesquisa que propiciam estudos bastante relevantes no atual contexto de ensino superior, de modo a incentivar o público desse nível de ensino a iniciar e (re)pensar suas pesquisas em torno dos gêneros acadêmicos, a fim de que seja possível a relação entre reflexão e ensino. Essa relação perpassa toda a obra, seja no capítulo inicial, em que se focalizam as percepções de graduandos sobre a disciplina Língua Portuguesa, seja nos capítulos seguintes em que a ênfase recai sobre a produção e análise de esquemas, resumos, resenhas e artigos de pesquisa. Patrícia Fabiana N. Oliveira (UFCG), no capítulo inicial, Percepções de graduandos sobre a disciplina Língua Portuguesa, descreve os significados atribuídos por alunos das áreas de Humanas e Exatas a essa disciplina, concluindo, através da análise dos dados, que, para os discentes, o ensino

1. Aluno do curso de Letras-Português (UFCG). Esta resenha foi produzida durante as atividades da disciplina Metodologia da Pesquisa – 2015.1 sob orientação da professora Maria Augusta Gonçalves de Macedo Reinaldo. Revista Ao pé da Letra – Volume 17.2 - 2015

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de Língua Portuguesa deve fazer parte dos currículos dos cursos de graduação tendo em vista sua importância para a formação acadêmica dos alunos dessas áreas. Durante a abordagem do capítulo, a autora recorre a alguns gráficos para melhor sistematizar as ideias do seu texto. Tais gráficos poderiam ter sido produzidos numa escala de cores mais fortes, que não apenas as variações do cinza, tornando-se mais atrativos e contribuindo na compreensão geral do texto. De qualquer forma, é possível que o leitor atento tenha uma ideia clara do tema versado. No capítulo seguinte, intitulado Esquema, Nayara Araújo Duarte (UFCG) apresenta uma experiência com a retextualização de artigos acadêmicos em esquemas entre graduandos do curso de Ciências Econômicas. A autora, assim como os demais autores nos capítulos seguintes, apresenta o seu trabalho em dois momentos distintos: no primeiro, ela descreve e explica as características sócio-comunicativas do trabalho com o gênero em questão, bem como a sua funcionalidade, para, no segundo momento, analisar os esquemas produzidos pelos alunos classificando alguns exemplares do gênero em três eixos, a saber: 1. Estrutura adequada ao protótipo do gênero; 2. Estrutura parcialmente adequada ao protótipo do gênero; e 3. Estrutura não adequada ao protótipo do gênero. Dos quatorze exemplares selecionados pela autora, dois foram classificados seguindo o primeiro critério (estrutura adequada ao protótipo do gênero), seis de acordo com o segundo critério (estrutura parcialmente adequada ao protótipo do gênero) e outros seis de acordo com o terceiro critério (estrutura não adequada ao protótipo do gênero). Essa classificação reforça a apreensão das características do gênero e da sua finalidade apresentadas pela autora a partir de uma linguagem clara, rápida e fácil de entender, sem causar nenhum tipo de prejuízo ou dificuldade ao processo de (in) formação do leitor.

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Elizabeth Maria da Silva (UFCG), no capítulo Resumo Acadêmico, destaca o processo de retextualização de um artigo de pesquisa em resumo acadêmico junto a graduandos em Geografia, apresentando de maneira bastante explícita a produção do gênero. Nesse sentido, a autora também menciona alguns motivos que demonstram a relevância da produção do resumo no ambiente acadêmico, como o desenvolvimento das capacidades de análise, síntese e parafraseamento, além de o próprio resumo ser bastante importante na produção de um outro gênero, como um seminário, por exemplo. Seguindo o mesmo critério de classificação adotado por Duarte (2012) no capítulo anterior, a autora também apresenta e classifica alguns resumos para facilitar o processo de aprendizagem de potenciais leitores. Dos trinta e cinco resumos selecionados, poucos atenderam adequadamente a estrutura delimitada. A grande maioria foi classificada como atendendo parcialmente a estrutura prototípica do gênero e apenas dois foram classificados como aqueles que não atendem a estrutura esperada. A autora conseguiu apresentar o seu capítulo de maneira bastante clara e atrativa, assim como Duarte (2012), atributo que não se percebe muito bem no capítulo inicial (OLIVEIRA, 2012), talvez porque este exija uma leitura um pouco mais densa e cansativa em relação aos capítulos seguintes. Na sequência, Elisa Cristina A. Ferreira (UFCG) e Roberta A. Meneses (UFCG), no capítulo Resenha Acadêmica, também apresentam orientações teórico e metodológicas a respeito da produção do gênero acadêmico resenha. As autoras analisam exemplares de resenhas seguindo os procedimentos apresentados durante o curso de extensão Exercitando a leitura e a escrita dos gêneros acadêmicos resumo e resenha, ministrado pela professora Elizabeth Silva, na UFCG, no período 2011.1. Neste capítulo, também observamos a classificação de sete resenhas, das dezesseis analisadas, como atendendo a estrutura delimitada, seis atendendo parcialmente e as outras três como não atendendo a estrutura prototípica do gênero.

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O que chama atenção neste capítulo é o caráter da objetividade, da proximidade das autoras com o seu leitor. Elas começam tentando estabelecer um diálogo com este, o que demonstra uma certa preocupação das autoras em relação à compreensão e interpretação do conteúdo pelo leitor, atitude que considero bastante cooperativa. Pelo fato de se tratar da produção do gênero resenha acadêmica, considerado um gênero muito complexo por alguns estudantes, as autoras iniciam o capítulo com esse pequeno diálogo tentando desmitificar esse imaginário que permeia o meio acadêmico, o que foi, sem dúvida, bastante interessante. No quinto capítulo, de Maria Gilmária V. Sousa, a elaboração da introdução do Artigo de pesquisa é trabalhada pela autora através da experiência com alunos recém-ingressos no curso de Geografia, no primeiro semestre de 2011. Através de exemplos, analisados detalhadamente neste capítulo, o leitor é convidado a refletir sobre discussões que buscam inovar a abordagem didática da produção e organização da Seção Introdução de artigos de pesquisa, o que é um grande salto de qualidade, assim como também se verifica nos capítulos anteriores. Tais exemplos, como a própria autora do capítulo destacou, parecem demonstrar que os alunos atendem à estrutura delimitada do gênero, no que diz respeito às marcas linguísticas e movimentos retóricos a serem seguidos, apresentando um pouco mais de dificuldade no momento de desenvolvimento das ideias, mas que, com um pouco mais de esforço na leitura, essa lacuna é superada. Em suma, como se percebe durante a leitura de todo o livro, as autoras não se detiveram a um trabalho de descrição apenas, mas procuraram discutir e fundamentar as análises dos gêneros produzidos por graduandos, a partir de estudos sociorretóricos, a exemplo de Swales (1990), Motta-Roth e Hendges (2010), entre outros. Nesse sentido, as autoras não se satisfazem com a simples mensuração dos dados e apresentação da teoria conhecida, conseguindo oxigenar a sua obra com marcas de reflexões aturadas e pertinentes para a formação de graduandos. A linguagem do 148 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


livro é bastante clara e demonstra uma visão segura e em consonância com os pressupostos teóricos adotados, justificando-se, portanto, o êxito do livro destinado especialmente aos alunos dos cursos de Letras, cumprindo exemplarmente com as suas finalidades.

Referências MOTTA-ROTH, Désirée; HENDGES, Graciela Rabuske. Produção textual na universidade. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. SWALES, John Malcolm. Genre analysis: english in academic and research settings. Cambridge: CUP, 1990. Recebido em: 27/07/15 Aceito em: 30/09/15

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Conscientização e luta em Sagr ada esper ança NETO, Agostinho. Sagrada esperança. São Paulo: Editora Ática, 1985.

Taísa Teixeira Medeiros1 Universidade Federal de Santa Maria Sagrada esperança é um livro de poemas datados dos anos 1940, 1950 e 1960, sendo os poemas mais antigos escritos por volta de 1945. A obra como um todo traz reflexões e sensibilizações a respeito da situação africana nos citados anos, decorrente do colonialismo europeu e da demasiada exploração dos povos africanos. Através das palavras, Agostinho Neto, poeta angolano (e também o primeiro presidente de Angola após a independência dessa nação) tenta levar principalmente os opressores a uma mudança de consciência. Essa iniciativa se dá por mensagens de otimismo - segundo Basil Davidson, autor do prefácio, “um otimismo severo que nunca é sentimental ou romântico” (1985, p. 6), amor à vida e humanismo. Sua poesia não permite mascaramento: sua luta é clara. Não à toa, Agostinho foi vítima de opressões e frequentes vezes preso por posicionar-se contra a autoridade colonial portuguesa. Quando se lê os poemas contidos em Sagrada esperança, é possível traçar uma reta formada por vários pontos em comum nos poemas. Uma das características que mais chamam a atenção ao longo da obra é a forma como o autor defende seu povo, o exalta e o valoriza. Como em “Na pele do tambor”, é perceptível a valorização da cultura africana, dando bastante 1. Aluna da graduação em Letras pela UFSM. Esta resenha é fruto de trabalhos desenvolvidos na Iniciação Científica, orientada pelo Prof. Dr. Anselmo Peres Alós. Revista Ao pé da Letra – Volume 17.2 - 2015

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ênfase para a imagem do tambor. Já em “Sangrantes e germinantes” o enfoque se dá nas diversas facetas da África: debaixo das garras (do europeu); a África “negra e clara como manhãs de amizade” (NETO, 1985, p. 61); a África imensa e, por fim, a África unida no amor. Através dessa valorização, Agostinho Neto dá força política a seus poemas, assumindo o papel de líder de seu povo através das suas palavras. É sobre assumir esse papel de liderança e de ver além que trata o poema “Adeus à hora da largada”. O eu-lírico inclui-se na miséria que ele descreve – ele também é povo, ele não se isenta desse sofrimento. Fala sobre a dor de abandonar sua terra em um momento em que a guerra parece perdida, tratando a pátria angolana como “Mãe”. Para além disso, o eu-lírico afirma: “eu já não espero/sou aquele por quem se espera” (NETO, 1985, pág. 9), dando um caráter mais político ao poema. Outra temática bastante recorrente nos poemas é a do trabalho escravo, por vezes falando do sofrimento, e em outras trazendo a esperança do seu fim. Em “Contratados”, o enfoque inicial se dá na descrição do trabalho de carregadores. Ao longo do poema, esses deixam de ser meras figuras e vão ganhando sentimentos e, apesar de tudo, eles cantam. Por meio desse poema, é possível perceber a força que a musicalidade tem na cultura angolana, ainda mais como modo de desabafo, uma vez que os trabalhadores não podiam contestar e também não sabiam escrever. O contexto histórico é de extrema importância para a compreensão das obras. Isso ocorre em diversos poemas, mas creio que o que mais pede compreensão do contexto é o poema “Massacre de S. Tomé”, que como o título sugere, fala sobre o Massacre de Batepá, ocorrido em três de fevereiro de 1953, em São Tomé. No poema, o autor cita o sacrifício feito pelas centenas de são-tomenses em tal acontecimento e, para isso, é preciso compreender a história. O fato deu-se a mando do governador português da época, Carlos Gorgulho, com o objetivo de angariar mão de obra barata para seu programa de construções e melhoramentos pú152 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


blicos. Porém muitos se rebelaram contra isso, negando-se ao trabalho, provocando atos extremos da parte do governo. Mobilizando o argumento de que estaria havendo uma conspiração incitada pelos africanos, os nativos foram assassinados naquele que se configuraria como o pior massacre da história das ilhas de São Tomé e Príncipe. Com isso, o massacre transformou-se em um dos mais importantes marcos da história do arquipélago, não só pelo horrendo ato que foi, mas também pela mensagem de coragem demonstrada pelos que tombaram em nome da pátria. Agostinho Neto, mesmo não sendo um escritor são-tomense, ajuda a manter na memória esse fato tão importante para o país. Há também, em “Massacre de S. Tomé”, uma forte colocação do leitor no espaço de ação através das descrições. Um exemplo disso é a frequente repetição das imagens do mar, da praia e da água salgada. Agostinho Neto retoma esses elementos porque o massacre deu-se na praia de Fernão Dias, no noroeste da ilha de São Tomé, quando corpos ensanguentados entravam em contato com a água do mar, manchando a praia com o sangue dos são-tomenses. Para “secar o mar”, as pessoas tiravam água salgada do mar com baldes e jogavam na praia, na intenção de diluir o sangue das areias da praia. Além disso, mesmo contando todo o drama do povo africano, Agostinho Neto jamais apela ao melodrama fácil, pois antes mesmo de pensar negativamente, ele coloca um pouco de esperança em suas palavras. É exatamente como o autor do prefácio define: “[os poemas são] completamente imunes à influência da amargura ou da mágoa, do ódio [...], celebrando a história trágica de um povo, assim como a vitória sobre essa tragédia” (DAVIDSON, 1985, p. 6). Por isso, Neto faz a revolução com suas palavras: porque ao pensar positivo acaba por ser visionário. O poeta também mobiliza o povo em relação à sua pátria no poema “Havemos de voltar”, escrito quando se encontrava em uma prisão em Lisboa. Trata-se de um poema carregado de exaltação à sua terra, com

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lembranças cheias de nostalgia e de um desejo de rever uma vez mais a sua pátria. Porém, ele não fala em voltar para a Angola ainda dependente dos seus colonizadores: ele quer voltar para sua terra e vê-la liberta. Analisando esses dois últimos poemas, percebe-se o enfoque nos movimentos de partida e chegada do sujeito à sua terra. Assim, Agostinho Neto contempla dois momentos da luta com a qual muitos angolanos se identificam, falando da dor da partida, do sentimento de saudade e da esperança do reencontro com sua pátria já independente. Outro ponto importante são as descrições de espaço e de cenário feitas pelo eu-lírico. Através do ritmo do poema e das palavras escolhidas pelo poeta, o leitor é inserido naquele contexto, tornando mais palpáveis os sentimentos descritos, as ações e os personagens ali colocados. É o caso do poema “Sábado nos musseques”, que traz a descrição dos bairros humildes e dos acontecimentos ditos comuns para um sábado à noite. Com a mobilização dessa estratégia retórica, a leitura segue a cadência dos versos criados pelo poeta, podendo o leitor sentir a ansiedade presente ao longo da descrição dos acontecimentos que se passam nos musseques. Agostinho Neto expõe as ânsias e percepções dos moradores dos musseques, e escolhe um momento de bastante ansiedade para retratar, como o sábado. Com isso, o autor acaba por exemplificar as tensões sociais existentes e chamar a atenção para a vida dessa população. É notável o trabalho de Agostinho Neto, que tanto acrescentou às lutas dos povos africanos, em especial do povo angolano, mesmo depois da independência. Agostinho Neto escolheu as palavras para escrever história e para fazer a diferença em uma sociedade que já vinha perdendo as esperanças de alcançar a soberania.

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Referências DAVIDSON, Basil. Prefácio. In: NETO, Agostinho. Sagrada esperança. São Paulo: Editora Ática, 1985. p. 6-12. NETO, Agostinho. Sagrada esperança. São Paulo: Editora Ática, 1985. PAVÃO, Suzana Rodrigues. O desenvolvimento da consciência nacional em Sagrada esperança. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 6, n. 12, p. 337-347, 1º sem. 2003. Disponível em: <http://www.ich.pucminas.br/cespuc/Revistas_Scripta/ Scripta12/Conteudo/N12_Parte03_art03.pdf>. Acesso em: 17/09/2015. SANTOS, Edna Maria dos. Viriato da Cruz e Agostinho Neto: história, poesia, música e revolução. Magistro, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 65-73, 2010. Disponível em: <http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/magistro/ article/viewFile/1059/621>. Acesso em: 17/09/2015. Recebido em: 22/09/15 Aceito em: 28/10/15

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Ensaios



Olhos nos olhos, olhos nus: olhos – sublimação liter ária, inspir ação poética... José Eduardo Gonçalves dos Santos1 Universidade Federal de Pernambuco Resumo: Ensaio, no texto que ora apresento, uma relação entre a literatura e a música por meio da concepção que compreenda a poesia como elo coesivo das duas expressões, entre as artes de modo geral. Assim, neste ensaio, tomo a poesia em seu conceito de manifestação intersemiótica e transgenérica, indo beber na fonte de autores como Paz (2013) e Pound (1976), além da conceitualização do trabalho com a palavra em seus aspectos verbivocovisual (CAMPOS,A.; PIGNATARI, D.; CAMPOS, H., 2006). O corpus, consoante a intenção, habita na poesia, ora na linguagem musical, ora na linguagem literária: Olhos nos olhos, Olhos nus: olhos. Palavras-chave: Literatura; Música; Poesia; Intersemiose. Abstract: This essay points out a connection between Literature and Music through the comprehension of poetry as a cohesive link among cultural manifestations and among arts in general. Therefore, there will be considered two concepts of poetry here: the first one of intersemiotical and transgender manifestation based on the works of Paz (2013) and Pound (1976), and the other one of the conceptualization of the word in its vebivocovisual aspects (CAMPOS. A; PIGNATARI. D; CAMPOS. H, 2006). As intended, the corpus chosen lives in poetry, both in musical and in literary language: Olhos nos Olhos, Olhos nus: olhos (Eyes to eyes, Naked eyes: eyes). Keywords: Literature; Music; Poetry; Intersemiosis.

1. Licenciando do Curso de Letras Língua Portuguesa da Universidade Federal de Pernambuco, com pesquisa no âmbito da Iniciação Científica UFPE/CNPq em Teoria Literária, lugar da reflexão para a escrita deste ensaio, que me serviu como revistador da mobilização teórica para a produção do relatório fi nal de pesquisa; integro o Coletivo de ações de leitura literária “Sala de Leitura João Cabral de Melo Neto da Comunidade”; sou aluno voluntário do PET Letras UFPE. Revista Ao pé da Letra – Volume 17.2 - 2015

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Por um efeito de início... Acho que a vida anda passando a mão em mim. Acho que a vida anda passando. Acho que a vida anda. Em mim a vida anda. Acho que há vida em mim. A vida em mim anda passando. Acho que a vida anda passando a mão em mim. Vida Tempo – Viviane Mosé

A vida riscou com uma fina navalha, sem dó2, o rosto de um missionário que se foi enviado ao Chaco paraguaio pra coçar, e coçar muito, a verdadeira palavra divina a um velho cacique, sábio não por ser velho, mas por saber que, nem tudo que coça, coça de verdade. Por saber que, sendo mais ouvidor que falador, os que vão à busca de levar verdades não as têm, que as verdades são construídas. Sábio, ainda mais, por saber que, o uso demasiado da palavra, não garante o impacto, o susto, o deslumbramento, o desestabilizar: típico das ações com a linguagem que não visam o mero convencimento. Que, na verdade, não têm nada em vista, mas têm uma meta: a própria linguagem em seu apuramento artístico. O velho cacique, d’A função da arte/2 (GALEANO, 2002: p. 18), nos traz aos olhos, com forte repercussão aos ouvidos e à fala – e a tudo o que a arte suscita – um bom exemplo daquilo que a arte nos provoca: ela coça, ela causa impacto e nos faz não pestanejar. Partindo disso, vou à busca de ensaiar aqui uma discussão que se volta para aquele trabalho com a palavra que é contun-

2. Aponto o poema de Viviane Mosé, Vida/Tempo, citado posteriormente, como um ponto chave para a discussão que realizo neste trabalho. Sua reflexão em torno do tempo e a relação com a canção Olhos nos olhos (escolhida como parte do corpus da análise que ora apresento), evidenciada no último verso do poema, se faz fulcral para tal referência. Logo de início, revelo essa apreciação pela poesia naquele poema. 160 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


dente e preciso onde coça, vou tentar caminhar entre dois trabalhos de linguagem que visem o apuramento artístico em sua essência, que prezem pela poesia e pela subjetivação do outro frente ao que podemos chamar de artefato artístico. O tempo, ingrediente necessário à vida e à ação do homem sobre a própria vida, passou com certa calma na vida do cacique da tribo paraguaia. No entanto, nem sempre ele se faz calmo em outras vidas. O tempo anda, em outras vidas, como quem corre... temos que saber domar o tempo, ele pode ser bom conosco. Vida/Tempo (MOSÉ, 2007: p. 25), mostra-nos, no outro lado da linguagem: no verso, que a vida anda e que o tempo anda com ainda mais contundência na vida. Depois de ter se resolvido com o tempo, o eu lírico ganha instantes, exerce presença e anda remoçando... remoçando anda também a mulher na canção de Chico Buarque (1994), Olhos nos Olhos, depois de ser traída pela vida, de ter a sensação de perda de tempo e de luta contra o próprio tempo. Foi largada, quase morreu de ciúmes. Obedeceu. A vida passou a mão nos dois eus, o do poema e o da canção. Entre esses dois trabalhos, algo de semelhante nos ocorre: a presença subjetiva e transgenérica da poesia. Sentimos poesia no poema e na canção. Em nós, os dois coçam. Por assim dizer, no ensaio que ora apresento, irei estabelecer um paralelo entre a linguagem da música e a da literatura3. Aqui, buscarei valorizar a essência de ambas produções artísticas: a poesia será entendida como uma manifestação que não habita apenas no verso. Habita, também, no trabalho rítmico e conciso da canção; no trabalho denso e complexo da prosa, poética por ser artística. Olhos nos olhos; Olhos nus: olhos. Con-

3. Para estabelecer tal paralelo, o conto Olhos nus: olhos (Mia Couto), que integra a obra Essa história está diferente– organizada por Ronaldo Bressane –, foi escolhido, junto a já citada canção Olhos nos olhos(Chico Buarque). Por uma questão metodológica, que se fez necessária visto o curto espaço que tenho, escolho um conto dentre os dozes que a obra apresenta. Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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fluências estéticas, divergências genéricas. Trata-se, o primeiro, de uma música, reconhecidamente poética e artística, do músico e escritor Chico Buarque; o segundo, um conto, igualmente poético, do escritor Mia Couto. Como é possível notar, os títulos já nos guiam para uma semelhança em tratos estéticos e temáticos: os olhos estão em evidência. Qual a relação, portanto, que se pode estabelecer entre os dois textos? Uma vez que o conto nasce a partir da música, irei observar como e quais os fios poéticos do primeiro serviram de base ao segundo. O emaranhado linguístico de uma produção de linguagem permite-nos entrar por um ou outro ponto, por um ou outro fio. Nessa tecitura, irei tentar observar qual a linha que guiou Mia Couto na leitura (e até na arquileitura) da canção para o conto. Para a realização de tal trabalho, o cronotopo da segunda produção receberá aqui uma atenção especial, a fim de se observar a construção de um espaço que não cabe na concisão da letra da canção, um tempo que não é o mesmo da letra buarquiana, que vai além e que nos faz perceber que a canção não foi apenas mote, no sentido (re)textual, do conto. Antes, foi, para a produção, um indiciador de inspiração, de ampliação da dança dos olhos que vemos na música Olhos nos olhos.

Epifania, magia, sublimação: a poesia como elo da relação entre as artes A palavra é o elemento coesivo das duas expressões artísticas que neste texto venho discutindo, a literatura e a música. Nesse mesmo sentido, a linguagem, em seu trabalho estético e apurado, é a manifestação da própria arte, em outras expressões. E o que existe de convergente entre a palavra literária, enquanto cimento social, e a linguagem, em sua meta artística? Uma manifestação que perpassa a todas essas ações, a poesia. Esta, que habita na palavra, habita na melodia, habita na tela, habita na performance... a poesia, por ter várias habitações, faz com que nela ha162 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


bitemos, dá-nos várias moradas. No seu Livro do desassossego, Fernando Pessoa (1986) nos traz uma reflexão sobre a existência e a permanência da poesia em nossas ações, nas ações que nem temos, mas que contemplamos na atuação outra, uma vez que “tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim” (PESSOA, 1986: p. 244). A literatura, em expressão apurada da palavra artística, sempre nos empresta uma boa base para a reflexão da poesia para além da própria literatura, nas ações humanas e em fatos cotidianos. Contudo, e é aqui que nos centraremos, a poesia faz-se sentida e refletida na arte pelo seu trabalho, pelo empenho de quem expressa sentimentos na criação. Em nosso caminhar, portanto, antes de lermos juntos a canção e sua recepção no conto, precisamos tomar partida em uma concepção de poesia que consoa, primeiramente, com a Literatura e com alguns escritores–críticos inspirados, como Paz (2013). Além dessa concepção que tome a poesia para além da Literatura, tendo sempre a preocupação com o trabalho para uma materialização artística, iremos buscar em Pound (1976) o embasamento para uma discussão que relacione a literatura à música, mais especificamente. Para o supramencionado autor, “a poesia começa a se atrofiar quando se afasta da música” (POUND, 1976: p. 22), pois, tendo em si uma relação melodiosa, a literatura, em verso ou em prosa, busca na música um modo de fazer as palavras dançarem, de narrar uma expressão corporal por meio da palavra, de suscitar o aspecto verbivocovisual da poesia (CAMPOS,A.; PIGNATARI, D.; CAMPOS, H., 2006). Música–Literatura; melodia–palavra; palavra–melodia... a relação do trabalho musical e do trabalho com a palavra em muito converge, uma vez que na ação de trabalho com o verso, com a prosa, o escritor vai à busca da melhor organização musical, do melhor ritmo, da boa sonoridade. A relação vem desde a essência, esta vem como o elo entre os dois trabalhos, “a poesia se polariza, congrega e isola em um produto humano: quadro, canção,

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tragédia” (PAZ, 2013: p.22), na poesia vemos refletida a ação humana e o agir em diferentes linguagens, inclusive a corporal. Logo, quando no conto Olhos nus: olhos vemos uma definição de poesia como sendo a capacidade de se ver infeliz e saber que na felicidade éramos poesia, bem como na infelicidade também, percebemos que o autor Mia Couto quer realizar um empreendimento artístico que se torne vivo, que fale da vida, de uma vida toda em linguagem. “A poesia aprende-se sendo feliz. Mas só sabemos que sabemos quando somos infelizes” (COUTO, 2013: p. 198), disse João Rosa à sua nova namorada Adélia. Adélia é adjetivada como sendo capaz de fazer “os homens ficarem sem alfabeto” (Ibdem, p. 198, 2013), por seus advérbios (a)temporais. Adélia via em João Rosa poesia e ficava encantada com o seu bem falar, bem portar: com ação que não encontrou em outra pessoa. Os olhos negros de João não são os causadores da fascinação, as palavras são encantadoras. Assim, busco uma concepção de linguagem poética que me constitui e que me faz ver que o trabalho empregado pelo autor no conto vislumbra a um apuramento artístico, de modo que a meta é falar da poesia simultânea à produção da manifestação poética, pois a linguagem não é só meio de sedução, é o próprio lugar da sedução. Nela, o processo de sedução tem seu começo, meio e fim. As línguas estão carregadas de amavios, de filtros amatórios, que não dependem nem mesmo de uma intenção sedutora do emissor. (PERRONE-MOISÉS, 2OO6: p. 13, grifo meu).

Para acontecer, os amavios pedem um outro, o eu que se encanta com a poesia. Parafraseio Paz (2013) para dizer que existem poemas que não tem poesia, ao passo que existem pessoas que são a própria poesia. Ora, se a poesia é fruto do trabalho artístico, como pode existir um poema apoema (CÍCERO, 2005)? A poesia é garantidora de subjetivação, é o lugar onde 164 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


mora o ser, é a própria morada da arte... para ser arte, tem que ter poesia; para ser poesia, não precisa ser arte. A poesia é o elo que liga as artes, é a fonte de sublimação, de passagem de uma para outra expressão: de ver Vidas Secas (RAMOS, 2006) em Segue o seco (BROWN, n/d)4; de nos fazer ver a (inter)ligação entre as linguagens e nos levar à reflexão acerca de sua existência em todas as linguagens: a poesia é manifestação intersemiótica. Bem sabemos, nesse sentido, que qualquer estudo comparado que se volte a duas ou mais expressões literárias – em seu sentido temático, bibliográfico, formal, cultural ou histórico – está no campo da Literatura Comparada (PERRONE-MOISÉS, 1984). Num caminho semelhante, qualquer intento comparado entre diferentes signos artístico-semióticos, está no campo da Tradução Intersemiótica (PLAZA, J. 2003). Assim, neste ensaio, passearei entre as duas obras analisadas numa movimentação que vislumbra a criar linhas de compreensão e significação consoantes, entre os dois signos, sem, contudo, militar em uma ou outra perspectiva crítica-analítica. Ainda mais por Saber que os lugares de circulação das duas obras são distintos: entre a intermídia, que dá maior visibilidade à canção, e o livro, que permite a ampliação da temporalidade e sua relação com o espaço. Então, não seguirei aqui, ainda que seja possível, uma leitura ancorada na Semiótica ou na própria Intersemiose. Estas, apesar da primeira não ser uma Teoria Literária – sendo antes uma área do conhecimento que muito contribuiu nas interpretações de obras literárias – aparecerão, de modo pouco sistemático, nas relações entre as linguagens, bem como as percepções teóricas e críticas literárias, numa relação antropofágica para o trabalho realizado. Meu objetivo, neste ensaio, é valorizar – antes de 4. Apesar de não se ter uma data exata da composição, que contenha ano, a música foi vinculada, pela primeira vez, ao álbum da cantora Marisa Monte, Verde, Anil e Amarelo, lançado em 1994. É possível que em alguma entrevista o compositor da letra, Carlinhos Brown, dê alguma defi nição exata da produção. Contudo, não localizei tal informação. Por tal motivo, não defi no o ano de composição. Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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tudo – a palavra literária por compreender que nela toda e qualquer outra forma de constituição do saber esteja em avant-garde. Não obstante, é válido mencionar que a intersemiose é o elo entre as linguagens, numa compreensão que vai buscar em Joachim (2012) as bases para essa coesão: compreendendo a disciplina como um exercício estético-político por dar voz às novas formas de organização artística, considerando os intermeios como lugar possível de acontecimento da arte. Na perspectiva do paralelo entre as linguagens artísticas, a Literatura Comparada iniciou o trabalho de confronto entre o objeto literário e outros que, convencionalmente, são chamados de arte, com abertura de simpósio e de debates fecundos acerca dessa inter-relação (Cf. NITRINI, S. 1998; CARVALHAL, T 1999.). Ora, se por um lado isso se apresenta como uma guinada à interdisciplinaridade – pondo a literatura como lugar do encontro, por excelência, com outros jogos discursivos, como quis Barthes (1977) – por outro traz a literatura “como o ponto de referência dominante” (CLÜVES, C. 2006, p. 13), relegando as linguagens emergentes ao lugar abaixo da arte da palavra. É preciso, então, repensar os métodos e as formas de abordagem das relações entre as artes, entre as mídias, chegando ao ponto de se ter a intermedialidade enquanto interpelação intelectual (MOSER, W. 2006) com forte projeção à interpelação social – tendo como processo o fim de uma ordem de inferioridade entre as produções de linguagem, pondo a música popular como baila às reflexões sociais e estéticas, pondo a fotografia como campo de registro e de manipulação, por exemplo. Ao final, a arte não é; dá-se a ser. Isto dito, menciono que a análise que se faz neste ensaio pouco se volta para a canção em seu aspecto genérico: na melodia, na letra e na performance; como também não vai buscar no conto aspectos mais formais de composição de enredo e de paralelo tempo-espaço, uma vez que o objetivo de minha leitura é a de observar como a canção serviu de mote à construção do texto literário, numa valorização de relação entre 166 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


as duas artes pelo viés da palavra, tomada como literária em ambas as expressões. O tempo, observado em ambos os textos, se dá em seu lugar de tema e de ampliação naquilo que as linguagens apresentam de distintas em suas organizações: no rolar das águas e no olhar dos olhos. Apesar disso, reconheço que o modo de estudo da canção – quando se precisa chegar a um dado empírico acerca de sua atuação em palimpsesto, ou quando se considera os modos da atuação melódica e sua relação com a performance – é de suma importância, uma vez que a canção se caracteriza por ter em si uma inter-relação entre a palavra, a melodia e os modos de ressignificação performáticas. Neste caminho, Tatit e Lopes (2008) estabelecem passagens semióticas de porosidades entre a canção enquanto letra e a canção enquanto melodia, chegando a traçar lugares de maior recorrência e modos de organização dessa inter-relação, bem como Falbo (2009) traz no bojo de seu trabalho, contextualizado na obra de Itamar Assumpção, o corpo como modo de ampliação textual – numa performance que pode complexificar o dado verbal e melódico. Com alguma outra contundência: entre as maneiras possíveis de estabelecer tais relações, a que escolho aqui segue pelo andar do verbo na ampliação dos espaços da canção, na atuação do conto e na construção de novos personagens.

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Do tempo na canção para o tempo no conto: de tantas águas que rolaram restou um fino fio de chuva no vidro da janela... Por seres tão inventivo E pareceres contínuo Tempo, tempo, tempo, tempo És um dos deuses mais lindos Tempo, tempo, tempo, tempo Oração ao tempo – Caetano Veloso.

Na canção, o tempo é já; no conto, o tempo é um contratempo; na canção, em um curto espaço, tudo volta ao seu lugar com um obedeci, mesmo querendo morrer de ciúmes; no conto, ela resiste à ideia de perda, precisa dizer que existiu a morte, ele morreu...: “[...] ela passara a usar luto. A todos proclamava a trágica notícia: João Rosa morreu, o seu João tinha morrido. – Morreu sim.” (COUTO, 2013: p. 202, grifo meu). Por esses e outros, vejo no trabalho realizado por Mia Couto algo transcendente à retextualização, algo que parece servir de inspiração, a partir da poética canção de Chico Buarque. No trabalho em prosa, os papéis parecem, em algum momento, serem invertidos. Quem é que está pronto a ser visto, sendo mais bem amado que outrora? Na canção, o eu-lírico feminino declara ser bem mais e melhor amada; no conto, o personagem João Rosa é quem parece querer mostrar que pode ser bem mais amado, bem mais cuidado: ele exibe Adélia n’Atribo dos caçadores, quer mostrar que ela viu em seu olhar um manifestar poético: João Rosa não se dirigiu logo à casa de Adélia. Antes, entrou no bar, ombros hasteados de orgulho. Os amigos, economistas como ele, sabiam de seu novo caso: João

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Rosa era um caçador triunfante repuxando brilho a bravuras. Como era de esperar, ele trazia um novo troféu. E desta vez não era inventado. (Ibidem: p. 200 grifo meu).

Que olhar era esse? Nos dois trabalhos de linguagem, os olhos nos desvendam algumas coisas, mesmo sem ser a janela que tudo entrega. Os amigos se debruçaram sobre seu rosto. Não pretendiam apenas ouvir: procuravam em seus olhos o brilho de invejadas glórias e vitórias. [...] Desta vez, porém, os amigos notaram nele uma máscara. A voz era a mesma. Mas havia em seus olhos um cinza tristonho, a gota já escorrida no vidro da janela. (idem).

Clarice declara a morte de seu esposo, a loucura de seu esposo, à ausência de seu amor... ela envelhece. Rosa luta contra o tempo e não vai ver sua ex-mulher, sabe que o tempo não passou o suficiente entre eles, retarda o tempo. Adélia percebe angustiada o tempo no olhar de João, a rosa entre Clarice e ele ainda vive. O que fazer com o tempo? Criar espaço. Em linguagem apurada, Mia Couto parece ter captado a essência do tempo, em possibilitar a criação do espaço, de modo que, com o desenrolar da história, tempo e espaço se confundem. Ora, o tempo que faz os olhos de Rosa ficarem cada vez mais claros, quase azuis, faz também com que Clarice vá exercendo instante e ganhando presença: o tempo anda passando na vida dos dois personagens. Enquanto morrem todos de ciúmes (Rosa, Clarice e Adélia), mais uma canção de Chico Buarque é posta em cena, Pedaço de mim. “Já que não mais viveria de coração, morreria vítima dessa paixão às avessas que é o ciúme. Cantarolava como se rezasse: – Ó pedaço sem mim...” (COUTO, 2013: p. 202, grifo meu). Esta, diferente de Olhos nos olhos, aparece como trilha sonora da reflexão de Clarice acerca das letras de amor e do sentir o amor: as letras são bonitas, o amor fez Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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dele invisível, tendo ela agora a oportunidade de inventar rainhas e criar para si a imagem que sempre fora dele. Ficou para trás. Não pretendo aqui apresentar as obras, pretendo, antes, observar a sublimação da passagem de um gênero artístico para outro: da música para a canção. Nesse meu caminhar, observo que o conto, com uma divisão peculiar – recebendo títulos entre os diferentes espaços que se constrói –, apresenta-nos uma das passagens sob o título Morrer de ciúmes. Na canção, ela quis morrer de ciúmes; no conto, por ciúmes, ela o declara morto. Afinal, “Morrer de ciúmes é bonito de ser cantado em letra romântica” (idem). No conto a leveza de um fim de relacionamento é explorado, o leve peso de ter que envelhecer, já que nada mais resta: — Não me resta senão envelhecer – confessara Clarice a um vizinho. — Envelhecer? — É tão fácil ficar velho – respondeu ela. — Nem sequer é preciso tempo nem idade. Basta não ter vontade de acordar. (Idem, grifos meus).

Essa parte, em particular, nos dá uma bela releitura da canção buarquiana, uma vez que nos faz ver que Clarice carrega em si um pouco daquela mulher que se descobre após a ausência de um ele: a ausência passa a ser a coisa mais visível em Clarice e também assim o é na canção. No entanto, como o tempo da linguagem musical é outro, a conjectura que podemos fazer vem em função da possibilidade de ampliar nossa sensibilidade por meio do conto. A mulher forte, que, mesmo obedecendo – após morrer de ciúmes, quase enlouquecer –, é bem mais e melhor amada e já pode se apresentar feliz, aparece a partir da existência da ausência, ela lutou para que a ausência não pudesse ser maior que ela, que ela pudesse ser mais visível que a ausência, Clarice lutou assim, uma luta sofrida e inconsciente.

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Uma lágrima furtada em um lapso de olhos foi destinada à Adélia, disse João, até que, de modo descuidado, a palavra Clarice surge em sua boca. No final da palestra sobre economia global, os aplausos ao rubro e eis que uma lagrimazinha, quase uma inconcluída gota, lhe espreitou nos olhos. Apressadamente, João Rosa passou a manga do casaco pelo rosto. [...] – O que sucedeu, amor? Porquê aquela lágrima? — Foi da luz, aquele foco directo sobre o rosto... [...] — Pois eu digo, meu amor, a sala estava toda Clarice... perdão, queria dizer: a sala estava toda claríssima. (Ibidem: p. 200 grifo meu).

Como agora fazer com que ela acredite que, a emoção do instante já, das palmas e do procurar alguém em um castelo de rostos, seja para ela? Bom prosador, Chico Buarque nos apresenta de um modo muito narrativo, a história de sua mulher que encerra o verso: o outro lado da linguagem, refeita, tão feliz. Em linguagem que não é literária, uma vez que se trata da letra de uma canção, mas é tão poética e até mais que muitos poemas que nos deparamos. Logo, o que, além da recepção, une os dois trabalhos de linguagem é a poesia, a poesia no modo prosaico de dizer que um amor encerrou, mas que não acabou; que os afetos nunca dados serão dados em intensidade maior. Prosaico é pensar que isso possa acontecer; fazer isso acontecer, em linguagem poética, é a contribuição inicial de Chico Buarque, seguido por Mia couto, ambos nos tocam ao trabalhar a poesia em um apuramento artístico. O tempo do conto permite que Adélia entre na história e faça Rosa perceber a complexidade do amor, adiando a visita à Clarice, mulher para quem dedicou nada além de presença. A primeira visita. Clarice decide tomar um vinho, se embriagar. Quem sabe assim não teria coragem de ligar de para João. Na verdade,

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ela queria ser bebida. Queria ser tragada até à última gota. Ela queria que a ausência de Rosa lhe viesse molhar a boca, devorar-lhe os beijos que foram dele, lamber-lhe nos seios as marcas que João Rosa semeara. E, no final, ser atirada ao desdém como uma garrafa vazia, desperdício no meio do lixo. (Ibidem: p. 208).

Olhar no espelho e ver refletidos os frios e distantes olhos de João: adormecer. Os olhos e a sua evidência para a construção de personagens que se invertem, de um tempo que também é espaço e de um espaço que perpassa o tempo. É antes da primeira visita que a história do conto se vê em sintonia total com a da canção: para Clarice, morrer de ciúmes é demasiado solitário, ela tem medo. Alenta-se em palavras que ela mesma a diz, mesmo sem saber o porquê diz. Sabe que é eterna, que já amou na vida, o que, para ela, já é garantir a existência para além do existir. Qual sua amiga única? A canção Olhos nos olhos. Parece que ela agora decide se refazer, procurar sem bem mais amada. Quando, em cena seguida, é surpreendida pela visita de João. Ainda estava antiga. Estando antiga, não podia oferecer a casa como também sendo sua, no venha sim, como na canção acontece. Ex-amor, exigiu ser assim chamada. Decidida estava em voltar a viver, a tombar a árvore do amor entre eles que, ainda de pé, não mais tinha vida. João se viu surpreso, não consegue assim chamá-la, é diagnosticado de ainda amá-la, por ela mesma, que, agora, parecia também amá-lo pelo avesso. Colírios para a vermelhidão dos olhos, livros como sendo a desculpa da volta. A canção, que há muito está inspirando todo o conto, agora é também a trilha sonora. A poesia do encontro entre duas representações artísticas. Clarice sabe que ele vai voltar para pegar os livros, já os deixa separados. Junto à última parte física do ex-amor, ela deixa a antiga mulher, da cena anterior. Quando os dois olhos se cruzam e a constatação: você está com 172 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


meus olhos, você chora e eu sei que chora: são meus olhos. João não teve força para vê-la refeita, e os seus olhos escorreram como gotas de chuva em vidro de janela. Os olhos uniram as duas produções, construiu tempo, criou espaço, causou a epifania, típica da poesia. Sublimou em conto a canção.

Do fechar a página, do cessar a nota... Procurei encontrar entre as duas produções um ponto de interseção. Forçando esse encontro, não o encontrei, com a espontaneidade que as artes pedem. Foi quando pude perceber que, na verdade, o encontro existe na dança dos olhos, no lento desenrolar do texto, que não é um encontro retextual, mas inspirador, poético. Um encontro entre duas apuradas linguagens artísticas, entre dois trabalhos de outros lados. Talvez, seja a recepção para além da estética, por ser outra linguagem; talvez, os estudos ainda não compreendam recepções de uma obra em outra linguagem, ainda mais no fronteiriço campo da relação literatura-música. Sabemos, no entanto, que a Intersemiose se apresenta enquanto campo conceitual de estudo entre semioses, libertando o texto novo da dívida à produção primeira, dando possibilidades de percepções cíclicas e relacionadas entre as artes: ambas se tocam em porosidades e são refeitas, ao passo que transcriadas. Assim, considero que meu objetivo primeiro foi alcançado. Meu objetivo segundo, também será. Afinal, ao escrever as linhas que ora se encerram, não tive outro se não o objetivo de fazer o leitor um leitor por vir dos contos e a recepção nos cantos buarquianos. Ver a linguagem apurada para além das canções, perceber como umas são inspiradoras ao trabalho de criação literária, como outras são notas lançadas ao fundo de uma narrativa. O trabalho deve vir do acreditar, do saber que, com o que proponho, algo poderá ser feito. Se esse algo for, ao menos, a leitura do conto que apresentei, de modo que você possa concordar,

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discordar, ampliar... como o que aqui foi posto, ficarei com a sensação de contribuição por dar a ler uma das ações em linguagem literária que mais me emocionaram, por trabalhar com a inspiração direta de uma canção que muito me emociona. Além do mais, a onomástica, para criação dos personagens, não me parece gratuita: João Rosa, Clarice, Adélia – uma tríade que pode revelar a intimidade de Mia Couto para com a literatura brasileira, evidenciando seu corpo leitor experimental e moderno, para além das aproximações com um Manoel de Barros, por exemplo. O conto, bem como a produção de Mia Couto, vem como consolidador de uma contemporaneidade moderna, em produção literária. Para além disso, sim, a poesia é o elo que liga as artes, que cose as nossas ações, que dá sentido à vida; muitas vezes por construir uma vida paralela. Em poesia, mesmo sem sabermos, nos constituímos. Na arte, me conheço e me estranho. A arte coça, a vida passa, o tempo anda...

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Comunidades de Machões: um percurso acidentado pela retórica e or alidade das poéticas de Gregório de Matos e Bernardo Guimar ães Lucas Bento Pugliesi1 Universidade de São Paulo “O passado se oferece a nós como uma mina de metáforas com a ajuda das quais, indefinidamente, nós nos dizemos. Por que não confessá-lo e fazer dessa confissão um ponto de partida?” Paul Zumthor “El anverso y el reverso de esta moneda son, para Dios, iguales.” Jorge Luís Borges Resumo: O presente ensaio recobre algumas possibilidades de leitura comparada de excertos das poéticas de Gregório de Matos e Bernardo Guimarães a partir de uma perspectiva historicista que visa observar similitudes retóricas no cerne de seus heterogêneos fazeres, bem como possíveis aproximações no que tange os dois contextos de enunciação: a Bahia do Século XVII e a Faculdade de Direito de São Paulo do XIX. Palavras-chave: Poesia do Século XVII; Poesia Romântica; Historiografia Literária. Abstract: This essay proposes some reading possibilities for two excerpts from the poetry of Gregório de Matos and Bernardo Guimarães, through a

1. Ensaio produzido no contexto da disciplina “Literatura Brasileira V” voltada para a produção do Brasil colônia, durante o primeiro semestre de 2015. Apresentado ao Professor Doutor Hélio de Seixas Guimarães da FFLCH-USP/SP. Revista Ao pé da Letra – Volume 17.2 - 2015

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historicist approach that aims to perceive rhetoric similarities which constitute their heterogeneous writing; identifying, as well, their enunciative contexts – the Bahia of the seventeenth century and the Faculdade de Direito de São Paulo of the nineteenth century – as a, somewhat, common ground. Keywords: Brazilian Poetry of the Seventeenth Century; Brazilian Romantic Poetry; Literary Historiography.

Os estudos de Hansen e Moreira (condensados na monumental edição Gregório de Matos Poemas atribuídos - Códice Asencio-Cunha) têm reposto Gregório de Matos em sua historicidade, em seu lugar próprio de enunciação, restabelecendo relações de significação num movimento de época. Seguindo esse movimento, a fala, na Jornada de Estudos da Oralidade (2015), de Moreira trouxe informações preciosas acerca das condições de produção, difusão e leitura da obra de Gregório que se dariam, primariamente, através das “folhas volantes” que teriam circulado entre um público restrito de leitores (no caso, especificamente, aqueles capazes de ler), mas também através de papéis anexados em prédios públicos ao redor da cidade que seriam, então, lidos coletivamente. Tal tipo de situação de enunciação e de modo de circulação pressupõe um sistema de regras articulatórias em total desacordo com o qual nos acostumamos com o sedimentar dos tempos da imprensa. Imprescindível para uma poesia da performance pública e certa retórica que atinja o ouvinte-leitor nesse átimo do momento de enunciação. Ora, mas é preciso definir retórica. Não de modo exaustivo, contudo, à maneira de um tratado que estabeleça uma “poética” da retórica, ou ainda uma retoricidade – para usar de um tipo de construção discursiva mais antiga. Mas deslizar pela retórica enquanto possibilidade conceitual. Uma primeira aproximação se daria pelo vislumbre do estado da retórica no século XVII que, como Hansen e Pécora apresentam muito bem (2006), passaria por algumas categorias institucionais que deveriam ser respeitadas; espécie de compêndio ético do “bem-fazer”. Tais categorias trazem o 178 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


retrato de um sistema fechado de pensamento, que pode ser muito bem metaforizado pela noção de “Regime Artístico” de Rancière. Para o filósofo argelino, a história da arte passou por três sistemas maiores de valores, não necessariamente positivados, do ponto de vista histórico, apesar de resguardarem uma relação íntima com a história. Dois deles parecem de especial valia para o estudo dessa poética: No que diz respeito ao que chamamos arte, pode-se, com efeito, distinguir, na tradição ocidental, três grandes regimes de identificação. Em primeiro lugar, há o que proponho chamar um regime ético das imagens. Neste regime, a “arte” não é identificada enquanto tal, mas se encontra subsumida na questão das imagens. Há um tipo de seres, as imagens, que é objeto de uma dupla questão: quanto à sua origem e, por conseguinte, ao seu teor de verdade; e quanto a seu destino: os usos que têm e os efeitos que induzem. [...] Do regime ético das imagens se separa o regime poético – ou representativo – das artes. Este identifica o fato da arte – ou antes, das artes – no par poiesis/mimesis. [...] Ele se desenvolve em formas de normatividade que definem as condições segundo as quais as imitações podem ser reconhecidas como pertencendo propriamente a uma arte e apreciadas, nos limites dessa arte, como boas ou ruins, adequadas ou inadequadas: separação do representável e do irrepresentável, distinção de gêneros em função do que é representado, princípios de adaptação das formas de expressão aos gêneros, logo, aos temas representados, distribuição de semelhança segundo princípios de verossimilhança, conveniência ou correspondência, critérios de distinção e comparação entre as artes etc. (RANCIÈRE, 2014, p. 28-9)

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Desse modo, o fazer retórico passa por algumas categorias que implicam, por si mesmas, o sustentáculo de um sistema de pensamento que as lastreiem. Conforme mostra o estudo de Hansen e Pécora (2006) acerca de algumas dessas categorias, a agudeza2 de um Gregório de Matos ou de um Vieira passa inevitavelmente pelo pensamento teológico, pela validação do poético por um exterior metafísico: isto é, tudo se liga enquanto ramificações de um cerne sólido que é Deus. A associação metafórica aqui entre elementos aparentemente díspares tem como condição de possibilidade o esquema teísta que muito se aproxima do regime ético da imagem, ao buscar validação no exterior como condição de verdade para a representação. Mas penso que a articulação é mais complexa. A poética do século XVII está regida também pelo engenho3 que implica modos de fazer associados à concepção da poesia enquanto ofício. Há nesse ofício, um modo de fazer retórico que conduz as relações e hierarquiza a poesia tanto no que diz respeito a relações de decoro, quanto em pareceres estruturais acerca do bem feito versus mal feito; 2. “A agudeza associa-se ao artifício. Genericamente, o termo significa uma arte de fazer, uma técnica, aplicada à composição de alguma coisa. De modo específico, indica qualquer espécie de ficção ou fi ngimento produzido por arte ou indústria, para obter determinado efeito e fi m. Assim o artifício deve ser entendido como uma operação técnica ou como o efeito de uma técnica: por outras palavras, como o resultado controlado da aplicação de um conjunto de preceitos que visam à produção de determinado efeito. Segundo a linguagem do século XVII, o objeto produzido pelo artifício ou o que o evidencia é o artificioso. Muitos críticos de formação romântica julgam adequado opor “artificial” e “natural”, caracterizando “artificial”, de modo pejorativo. [...] a própria natureza é considerada um artifício do engenho divino, que gera o mundo como uma verdadeira máquina produzida segundo plano e doutrina, com a ordem e as partes específicas de um organismo racional que funciona segundo leis e atividades regulares complexas. (HANSEN e PÉCORA, 2006, p. 5-6). 3. “[...] O artifício é assim o lugar do engenho agudo, pois como efeito de uma técnica, admite magistério, ou doutrina, o que garante sua variedade, em oposição à imitação espontânea, buscada exclusivamente pelo esforço da mente, donde resultam apenas conceitos poucos e homogêneos.” (Idem, ibidem) 180 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


desse modo, essa poética se embrenha no regime representativo de que fala Rancière. Posto isso, pretendo deslizar um pouco mais acerca da noção de retórica. Além da verticalidade da convenção do fazer, do ofício poético que implica um sistema de pensamento muito particular, há talvez ainda outra “retórica”, em dupla articulação desse radical greco-latino que estruturou a frutífera árvore – contanto que não se coma o fruto, é preciso compostura, afinal – do pensamento ocidental. Essa outra retórica cresce como um fungo espalhando seus rizomas descentralizados, no âmbito do invisível ao olhar judicativo. Uma voz que implica então uma poética que independa da poética da instituição, análoga da, também dupla, aproximação de literatura e doença que se opera no pensamento de Deleuze: A literatura é delírio, e a esse título, seu destino se decide entre dois polos do delírio. O delírio é uma doença, a doença por excelência a cada vez que erige uma raça pretensamente pura e dominante. Mas ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda proibida que não para de agitar-se sob as dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona e de, como processo, abrir um sulco para si na literatura. [...] Fim último da literatura: pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. (DELEUZE, 2013, p.15-6)

Retórica que não provém então da raiz unilateral da árvore, mas da multiplicidade de vozes do fenômeno oral, da ideia de forma-força de

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Zumthor4 que (re)conecta vínculos entre as formas fixas da poesia e suas ocasiões de produção. A poesia de Gregório de Matos por seu caráter inerentemente oral obrigatoriamente passa pelas duas retóricas: aquela vertical, dos manuais do bem-fazer; mas também a da comunidade de ouvintes, a da poética de uma voz, regulada por modulações, pausas e pulsões rítmicas que atinjam o público, conectem-se com ele. Num dos mais belos momentos de Performance, recepção e leitura, Zumthor rememora um momento de sua juventude no qual se deparou com uma performance de rua: A canção do ambulante de minha adolescência implicava, por seus ritmos (os da melodia, da linguagem e do gesto), as pulsações de seu corpo, mas também do meu e de todos nós em volta. Implicava o batimento dessas vias concretas, em um momento dado; e durante alguns minutos esse batimento era comum, porque a canção o dirigia, submetia-o à sua ordem, a seu próprio ritmo. (2007, p. 39)

A poesia oral passa inevitavelmente por esse efeito de anulação subjetiva, por um estreitamento de laços da comunidade que no instantâneo do momento afina as vozes e os ouvidos daquele conjunto para a melodia ínfima do efêmero. Mas por mais belo que seja o deslize poético, o rizoma, devir terapêutico, que queria Deleuze, cresce por atrito, pelo entrechoque com a raiz. Praticar uma poesia oral implica necessariamente uma proximidade maior com o leitor, até pelo caráter restritivo de seus números. O texto escrito da era da imprensa não conhece os limites espaciais que a performance oral pressupõe. Desse modo, ainda que forçadamente, 4. “Eixo pelo qual se pode ordenar a força constitutiva de um gênero oral: sua fi nalidade imediata e explícita, quando ela se identifica com a vontade de preservação do grupo social.” (ZUMTHOR, 2010, p. 99) 182 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


instaura-se um senso de comunidade e, portanto, de valores comunais de um público alvo que se pode atingir a partir da poética. Ora, a “permeabilidade” do solo à palavra, para falar com Vieira. Para tatear esse processo de valoração que implica necessariamente um jogo de exclusão, a mim, é especialmente caro o conceito de “partilha” de Rancière: Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. (2014, p. 15).

Partilha significa, portanto, tanto a divisão quanto a participação: aqueles que podem participar de determinado comum e aqueles que estão excluídos deste. A partilha parece passar por essas duas esferas: a união do corpo comunal em torno de um comum¸ como também a configuração de um aporte conceitual, valorativo, que institua quem terá acesso ou não a esse comum. Para pensar as condições de partilha do século XVII da Bahia de Gregório de Matos, o estudioso de lírica arcaica Paul Allen Miller talvez possa contribuir de alguma forma. Allen Miller, em seu livro Lyric Texts and Lyric Consciousness (1994), defende o imperativo da necessidade do suporte material do texto escrito para a existência do gênero lírico. A reflexividade da consciência lírica individual implicaria assim um leitor (não um ouvinte) e o texto escrito, passível de expansão. A poesia arcaica grega, em sua concepção, estaria estruturada num contínuo entre o épico, o iambo, a elegia e a mélica, todos os gêneros estariam fundados num lastro comunal da oralidade, num conjunto de valores intercambiáveis, num sistema particular de partilha. O autor vai mais longe ao esmiuçar a poesia de Arquíloco, compreendida então a partir das relações entre os philoi, membros da comunidade que o poeta integra e a quem o poeta

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interpela, e os ekhthros, os estrangeiros alvos da invectiva alinhados aos padrões desviantes e condenáveis (MILLER, idem, p. 2, p. 33-4). A poesia ao pulsar na performance com o corpo comunal reafirma também seus valores ideológicos, algo de uma dupla articulação das retóricas. A Bahia do século XVII não é, sem dúvida nenhuma, o simpósio do qual participava Arquíloco. Mas há algo ali de análogo no universo de valores que ambos mobilizavam em sua locução. Arquíloco evidenciava traços de uma pesada misogia, para usar de um termo anacrônico, também presente nas censuras de Gregório. Ora, a mulher não fazia parte de nenhuma das comunidades, afinal. A mulher como alteridade, não incluída na partilha, parece sempre constituir alvo propício para a invectiva. Na sátira “À Damázia”, pode-se observar a constituição de alguns pontos nevrálgicos que tentei alinhar acerca dessa forma particular de expressão. Os traços da partilha invadem, de cara, a didascália que sucede o título: “outra mulata que chamava seu um vestido que trazia de sua senhora”. Para nossa sensibilidade, os dizeres são diretamente perversos. A qualificação como “outra” coloca Damázia como representação exemplar de um padrão comportamental considerado risível ou condenável (e, como nos mostra Miller, no interior do humor oriundo da relação entre philos e ekhthros, os conceitos são quase sinonímicos). De forma dramática, paras as letras contemporâneas (mas satírica naquela Bahia), nos é apresentada “uma mulata” que tenta atingir determinado patamar hierárquico de valor social através do veículo material do “vestido”. A posição do enunciador da sátira é a da terapia, não a deleuziana, mas a do eletrochoque que pela censura poética vem curar a mulata de seus desvarios, devolvendo-a a seu devido lugar.

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Muito mentes, mulatinha Valha-te Deus por Damazia, Não sei quem, sendo tu escura, Te ensina a mentir às claras. (MATTOS, 1882, p. 212)

Aqui a agudeza está a serviço das forças reparatórias no contraste simétrico entre a cor da pele e o audacioso ato da mentira descarada. “Mentir às claras” opera também numa espécie de desvio de sentido, qualificando a mentira a partir de um campo semântico que, costumeiramente, está associado à verdade, seu par conceitual opositor. Vale o apontamento de como a identificação do desviante no outro perpassa tanto o ser (na cor da pele) quanto o fazer (o conjunto de suas ações). A censura deve atuar nas duas camadas, entrelaçadas pelo jogo agudo de imagens, homologáveis ainda pela mesma posição acentual final que essas ocupam em ambos os versos. Além do olhar da raça e da classe, coaduna-se a misoginia que, se até então se encontrava pressuposta e implicada pela estrutura do poema, passa a ser enunciada, tomando para si o foco da sátira/censura: Tal vestido não é teu, Nem tu tens, Damazia, cara Para ganhar um vestido, Que custa tantas patacas. Tu ganhas dous, três tostões Por duas ou três topadas, Não chegam as galaduras Para deitar uma gala. (idem, p. 212-3)

Passa a prevalecer uma ambiguidade estrutural que invade a sintaxe de modo a entrever, a cada verso, o domínio conceitual sobre um julgamento que rebaixa também a sexualidade da figura interpelada. Em “Nem tem

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tu, Damazia, cara” pode instaurar-se ai uma dupla leitura: tanto a aglutinação de vocativos “Damazia” e “cara” (“Cara Damazia”) quanto a alusão à beleza da mulata (ou sua ausência), evocada pelo termo “cara” (de teor rebaixado, animalesco). Damazia, por sua insuficiência dentro dos padrões de beleza, nunca alcançaria forma de conseguir o dinheiro necessário para comprar o vestido. Se as implicações conceituais são sempre terríveis, se prestam a revelar muito sobre essa particular comunidade: a única forma de uma mulher, ou ainda de modo mais circunscrito, de uma mulher “mulata”, alcançar alguma mobilidade social seria pela via do corpo, da prostituição, para a qual Damazia não estaria apta. Aglomeram-se nessa figura os padrões desviantes da sexualidade passível de recriminação, ainda mais acentuados pelo desajuste dessa mulher a essas práticas. No segundo quarteto transcrito, a agudeza está em via de aproximar o modo de ser da mulher ao da galinha, rebaixando ainda mais seu estatuto, ao atacá-lo pela via sexual. O verbo “galar” por sua multiplicidade semântica (e aqui será difícil recuperar possíveis nexos históricos precisos) traz o ato sexual em si pelo vulgo, mas também o ato de fecundação específico dos galináceos, no dito formal. Algo antecipado pelas “galaduras”, mais uma vez, que é tanto o vestígio da fecundação na gema do ovo, como o ato sexual no vulgo, ainda mais especificamente, referindo-se ao gozo masculino. A voz, portanto, afirma a incapacidade de Damazia em fazer gozar seus amantes, algo ressaltado pelo número limitado de “duas ou três topadas”, verso que em si caracteriza e recupera a disposição sonora de todo o quarteto, fortemente marcado pelas oclusivas, em especial as oclusivas dentais que ao obstaculizarem a fluidez do verbo, obstaculizam também a fluidez ejaculatória. Crime pior de Damazia não é a exploração da sexualidade como forma de ascensão econômica. Na verdade, esse pensamento está de tal forma embrenhado no poema que parece passar quase por um fatalismo; situação ordinária incontornável do destino de uma mulata – outra entre 186 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


tantas. Seu “pecado”, seu desvio, dá-se pela atuação sexual fracassada, relevando-a a um estatuto menor entre as mulatas. Damazia nunca poderia alcançar o patamar de sua senhora, metonimicamente trazida pelo vestido, a ascensão está fora do sistema. Contudo, não se qualifica nem mesmo para lucrar pelo seu conjunto de ações sexuais e, desse modo, ocupar espaço privilegiado entre suas iguais. Estão impressos protocolarmente os vestígios da posição do enunciador que, ao interpelar Damazia o faz a partir de uma noção de decoro, evadindo o uso do verso nobre, numa dicção rebaixada compatível a sua interlocutora textual. O conjunto de valores transborda quando interpretados à luz de tais categorias que desvelam o modo de operar do poema, do poeta e ainda do conjunto de seus philoi que idealmente se regozijariam enquanto público ideal contido no sistema enunciativo. O trabalho de Hansen e Pécora resgata esse Gregório da “comunidade de machões” que se ria com o esmero (do que chamaríamos hoje de) “estético” em tratar dessa alteridade não adequada aos preceitos comunalmente eufóricos. Muito diferente do Gregório de Haroldo de Campos, o Gregório revolucionário, pai-espiritual em terras brasileiras, da poesia concreta. Não pretendo com isso condenar sua leitura. Seria esse mais um lugar comum dentro de um consenso. Tampouco endossá-la, endossando assim outro consenso. Não ocupo um lugar dentro das comunidades críticas de detratores ou defensores de Haroldo. Se trago seu pensamento é porque há algo de deliciosamente irônico no percurso que traceja em sua poética sincrônica de poetas revolucionários. Se Gregório é o concretista sequestrado, Bernardo Guimarães, dois séculos depois, seria o representante legítimo dos preâmbulos de um surrealismo que não veio. Em A arte no horizonte do provável (1976), Haroldo recupera o soneto de Bernardo, Eu vi dos polos o gigante alado para defender o modo como a construção nonsense já antecipava os mergulhos antirracionais do século XX. A “deliciosa ironia” é que a ocasião de performance desse particular

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soneto não só está documentada como também, longe de inspirar desvarios estéticos vanguardistas, parece se aproximar muito mais daquele contexto de enunciação ao qual se reportava a poesia do século XVII. No trabalho monumental Tradições e reminiscências da Academia de São Paulo: Estudantes, Estudantões e Estudantadas (1907, 9 volumes), Almeida Nogueira recupera a tradição “intelectual” desviante da Faculdade de Direito de São Paulo; na terceira parte, o autor entrega a palavra ao Barão de Paranapiacaba, ainda vivo naquela altura, que vem narrar um pouco da experiência poética de meados do século XIX (o trecho se refere à turma de acadêmica de 1844-48): Estava em moda a poesia, mais tarde conhecida por pantagruélica, que consistia em dizer disparates, sabendo-se que o eram: o que exigia agudeza suprema de espírito. (NOGUEIRA, 1907, vol 3, p. 19)

Somos informados não só desse particular contexto de performance – o de uma comunidade de letrados organizados pelos lastros intelectuais comuns da Faculdade de Direito –, como também dos critério de seu funcionamento. O nonsense está regido ainda, dois séculos depois, pela mesma categoria da “agudeza” reconhecida e reconhecível na poética do XVII. A imbricação dos mais dissociados elementos do absurdo rege agora o modo de bem fazer da poesia – já, aparentemente, distanciado do catalisador divino. Mais a frente, o narrador informa ainda que Bernardo lhe ofereceu o soneto em questão numa espécie de ato provocador na esperança de uma resposta. Estão transcritos tanto o poema de Guimarães quanto o produzido pelo Barão como via de contestação. Revela-se a natureza predominantemente oral dessa poesia em pleno século XIX, produzida entre pares bem distintos num momento em que a Europa se via lidando com a angústia da indistinção de público.

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Persiste, dessa forma, um contexto similar de enunciação, no qual se mantêm, os caminhos da oralidade, assim como a série de categorias retóricas a esses associada. Categorias essas pensadas dentro da aludida dupla articulação da retórica, enquanto forma, enquanto força. Aos traços do oral reminiscentes na poesia do jovem Bernardo – aspecto que muito se metamorfosearia em sua poética tardia pensada para a organização em livro – se aglutinaria também um conjunto de valores que refratam questões de um sistema de pensamento próprio de uma sociedade de época, mas mais especificamente dessa comunidade literária da Faculdade de Direito. Retomo a noção de ekhthros. Se para Gregório os alvos da invectiva se multiplicavam de mulheres a “afeminados”, passando pela questão da raça, a comunidade de Bernardo abriu-se em alguns pontos, justamente por ocupar essa posição apartada do corpo social, de modo a construir um lugar crítico capaz de reavaliar alguns indícios da barbárie. A representação do negro começou a ganhar contornos de outros estatutos em sua obra; o afeminado ainda é questionado em o “Elixir do Pajé”, por exemplo, mas nem de longe da forma acintosa de um contemporâneo como Laurindo Rabelo; mas a mulher, definitivamente, não ocupava ainda – ou poderia ocupar – o espaço estudantil da faculdade. Sua poesia jovem, mesmo a da lírica dita séria – que não parece operar de forma muito contrastante à sua sátira –, é pontuada por uma profunda misoginia que resguarda algo do pensamento conservador de um grupo de estudantes homens. A mulher permanece na esfera de uma utopia conservadora, isto é, a figura pura, intocada, quase etérea que só deve existir enquanto tal. Em certos poemas de seu primeiro livro – talvez não por acaso – chamado Cantos de Solidão, editado por colegas de faculdade, quase que de modo independente à sua

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vontade – conforme o próprio relata no “Prefácio à Segunda Edição”5 da obra (1959), o imperativo da virgindade chega quase à obsessão: Mas vai sozinha... nem jamais eu veja Ninguém mais junto de ti, e nem profiras Nome que meu não seja, Qual se vivo a teu lado inda me viras. Se nunca em vida ouviste-me queixumes, Morto, quem sabe?... ó bela, tem cuidado Que lá dentro da campa agros ciúmes Não vão morder-me o coração gelado (GUIMARÃES, 1959, p. 143)

Nesse trecho do poema Idílio, a voz censura a amada que interpela por toda a extensão do canto, após conjecturar longamente acerca da própria morte. Ao direcionar a voz a uma mulher do mesmo estrato social, as regras de decoro se perfazem de forma outra. Apesar da amplitude de variação métrica e acentual, algumas estruturas se destacam, como a alternância entre o decassílabo e o verso de seis sílabas de modo a emular os dísticos elegíacos clássicos no momento do lamento fúnebre, temática constitutiva tradicionalmente do gênero poético greco-latino. Dentro de uma linhagem poética, se está, portanto, numa dicção mais elevada. O tom “elitista” no decoro dos versos se foi, mantendo-se, entretanto, o mesmo tipo de ajuizamento sobre a sexualidade feminina. Se Damazia pecava pela “ineficiência”, a amada da voz poética de Idílio é censurada pela mera possibilidade de uma multiplicidade de amantes, ainda que póstumos. Permanece o policiamento sobre este outro feminino, de modo que

5. Tal prefácio foi redigido na ocasião em que o livro, que antes circulara somente entre os próprios amigos que o organizaram – numa forma antológica que reteve muito das “folhas volantes” –, seria, enfi m, publicado “comercialmente”. 190 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


incidem, sobre essas mulheres, os valores do comum de uma persistente “comunidade de machões”. A visão sobre a mulher, valorada positiva ou negativamente de acordo com a função exercida, constituindo uma visada instrumental, quase “utilitarista”, permanece. Mais curioso é pensar que Bernardo Guimarães pode ter se tornado autoconsciente desse aspecto ao retirar da segunda edição certos momentos mais acentuadamente misóginos de sua lírica, justamente no momento da profissionalização de sua obra, agora sim, voltada para um público leitor (não mais “ouvinte”), indistinto, amplo (dentro da amplitude letrada da sociedade brasileira do XIX) e, potencialmente, formado, também, por leitoras. De modo singular, entretanto, sobreviveu na poesia dessa comunidade que se organizou em torno da Faculdade de Direito um nicho predominantemente oral num momento de profusão escrita, mais identificada aos modos de produção e visibilidade do que Rancière chamaria “regime ético”. Tal nicho prefigurou ainda algo daquele descompasso entre doença-delírio que vê Deleuze, assumindo uma posição de crítica social aos valores aristocráticos ao mesmo passo que reforçaria a ideia da mulher enquanto “função” do homem, enquanto objeto – de prazer ou virtude, pouco importa. A mesma boemia comunal estudantil manqueteou entre o patriarcado e a emancipação, algo talvez distante da transgressão entrevista por Haroldo. Persistiu nesse momento específico um conjunto de práticas poéticas de séculos anteriores, numa espécie de subsistência “anacrônica”. Anacrônico em que medida, contudo? O que afinal instaura a anacronia, para pensar as mais simples categorias de enunciação a partir de Benveniste, é justamente a relação intersubjetiva entre um “Eu” e um “Tu” no momento da fala, num determinado tempo, num determinado espaço. Ora, considerar uma temporalidade como desviante implica um deslocamento espacial. A comunidade poética da São Paulo dos anos 40-50 do século XIX é pertinente ao meio ao qual se insere, talvez anacrônica para um outro espaço (talvez europeu) que vivenciasse um outro tempo (o

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da imprensa indistinta, da angústia da falta de público). De fato, talvez haja algo nessa particular articulação entre espaço-tempo que funcione quase em devir em nossa sociedade: basta um happy hour em qualquer boteco de bairro para que mais uma vez se erga, impávido e protuberante, um grupo de “machões”, seu comum e, enfim, a sua comunidade.

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Recife às escur as: panor ama da representação da capital pernambucana nos contos de Gilvan Lemos Raul da Rocha Colaço1 Universidade Federal Rural de Pernambuco Resumo: Tendo como objetivo investigar a representação recifense em contos do escritor Gilvan Lemos, este estudo desenvolveu-se a partir da análise de um corpus de sete livros que dão conta das suas narrativas curtas. Com o aporte teórico de Auerbach (1976), Candido (1998) e Cruz (1994), compreendeu-se a natureza dessa representação, exposta, aqui, de forma panorâmica. Desse modo, pode-se apontar que a capital pernambucana é representada por meio dos aspectos toponímicos; dos vícios, dos hábitos, das comidas e dos lexemas locais; e, principalmente, das nuances negativas que a circundam. Palavras-chave: Representação ficcional; Cidade; Recife; Gilvan Lemos; Literatura. Resumen: Tomando como objetivo la investigación de la representación de la ciudad de Recife en cuentos del escritor Gilvan Lemos, este estudio se desenvolvió a partir del análisis de un corpus de siete libros que dan cuenta de sus narrativas cortas. A partir de teóricos como Auerbach (1976), Candido (1998) y Cruz (1994), se comprendió la naturaleza de esa representación, expuesta, en este trabajo, de forma panorámica. De esa manera, se puede apuntar que la capital de Pernambuco es representada a través de los aspectos toponímicos; de los vicios, de los hábitos, de las comidas y de los lexemas locales; y, principalmente, de las líneas negativas que la circundan. Keywords: Representación ficcional; Ciudad; Recife; Gilvan Lemos; Literatura.

1. Este trabalho foi desenvolvido no contexto do Projeto de Pesquisa Representações do Recife na Narrativa de Gilvan Lemos, no qual o bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC-UFRPE) analisa os contos do autor Gilvan Lemos, sob a supervisão do Prof. Dr. Antony Cardoso Bezerra, coordenador do projeto. Revista Ao pé da Letra – Volume 17.2 - 2015

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A cidade do Recife é representada com recorrência na obra ficcional de Gilvan Lemos (1928-2015). No que diz respeito à narrativa curta, sete são os livros que contêm contos a apresentar a capital de Pernambuco como cenário/ambiente ou, ainda, fator que influencia na diegese. Diante desse quadro, este ensaio visa caracterizar essa representação de forma panorâmica, apontando aspectos toponímicos, vícios, hábitos, comidas típicas e lexemas recifenses, bem como as tonalidades negativas presentes no discurso comum sobre essa cidade. Trata-se de questão ainda não problematizada na esfera da Crítica Literária e se espera, com tal iniciativa, abrir caminhos que tornem possíveis estudos que se voltem à obra do autor pernambucano.2 Para se alcançarem os ditos propósitos, em primeiro lugar, leram-se os livros do corpus [Os que se foram lutando (1976), Morte ao invasor (1984), A inocente farsa da vingança (1991), Onde dormem os sonhos (2003), Largo da alegria (2003), A era dos besouros (2006) e Na rua Padre Silva (2007)] e fez-se uma recensão (resumo do argumento do texto literário seguido de apontamentos que caracterizem a representação do Recife naquela narrativa) para selecionar apenas os contos em que a capital pernambucana estivesse presente, findando num total de quarenta contos. A partir desse tratamento, foram úteis instrumentais relativos à Filologia, à Narratologia e à Teoria Literária, que serviram de base para a apreciação do corpus. Nessa perspectiva, ressalta-se a postura descritiva deste trabalho, que tem por ambição expor, de forma mais geral, a representação ficcional do Recife na pena de Lemos, em suas diversas nuances.

2. Nas investigações relativas ao primeiro ano da pesquisa, com vistas à elaboração de uma Bibliografia Passiva Comentada, só foram encontrados sete trabalhos acadêmicos que se dedicam a analisar a prosa literária de Gilvan Lemos. No que engloba a abordagem específica da ambientação recifense, o quadro composto pela crítica se torna ainda mais restrito. Para maiores informações, consultar o site https://sites.google.com/site/fi lologiaiberica/ bibliografia-passiva-comentada. 196 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


Para iniciar a caraterização, parte-se de um trecho do conto “O fio da vida”, presente no livro Morte ao invasor. Laurita, a personagem principal, desloca-se de Bentuna (ficcionalização de S. Bento do Una, terra natal do escritor) para o Recife3, passando a morar com o irmão e a cunhada. Após um tempo, ela decide se mudar para uma pensão onde só habitavam moças: Não foi difícil encontrar vaga numa pensão só para moças, na Rua do Hospício, ótima, quarto individual, com móveis, preço módico e, sobretudo, pertinho do trabalho. Igreja, socorro médico, cinemas, tudo a dois passos. (LEMOS, 1984, p. 29.)

Nessa passagem, o narrador heterodiegético demonstra a facilidade de se encontrar um lugar “numa pensão só para moças”4 no centro da cidade. Em acréscimo, destaca sua localização, pois, justamente por ser estabelecida no centro, era próxima a tudo, além de ser bem organizada e oferecer um baixo preço, acessível ao salário que a jovem ganhava como caixa da farmácia. É importante destacar a referência à “Rua do Hospício”, processo recorrente na narrativa de Lemos, em que se situa o leitor nas ruas recifenses. Prosseguindo no mesmo conto, vai-se a outro trecho: Aos domingos assistia missa na igreja da Praça Maciel Pinheiro. Depois da missa aproveitava a caminhada, alongava-se até o Parque 13 de Maio, voltando pela Rua da Aurora. À tarde ia à matinê do São Luiz. E passeava. Uma

3. Pode-se marcar a mudança de espaço dos personagens, isto é, o deslocamento do interior à cidade, como um traço bastante regular na prosa de Gilvan Lemos. 4. Em boa parte dos comentários sobre os trechos literários, existem palavras marcadas pelas aspas. Esse destaque foi feito para ressaltar que os termos são do discurso de Gilvan Lemos e não do autor deste trabalho. Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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vez fora até o cais do porto. Decorava facilmente o nome de todas aquelas ruas. Avenida Rio Branco, Oliveira Lima, Rua Matias de Albuquerque, da Moeda, Duque de Caxias, Livramento, da Praia, da Penha. Gostava de sentar-se no passeio da Ponte Duarte Coelho, do lado da Rua do Sol, e imaginar que os passantes haveriam de julgá-la uma autêntica recifense, bem identificada com sua cidade. Mas as meninas da pensão disseram-lhe que ali era o ‘quem me quer’, lugar escolhido por certas mulheres para se oferecerem aos homens. Depois disso Laurita jamais passou por lá. (LEMOS, 1984, p. 30.)

Nesse excerto, percebem-se os hábitos de Laurita “aos domingos” e todo o percurso que realizava no centro: ia à “missa” numa igreja localizada na “Praça Maciel Pinheiro”, seguia para o “Parque 13 de Maio” e retornava pela “Rua da Aurora”; pela tarde, deslocava-se ao cinema “São Luiz”; e, “uma vez”, caminhou até o “cais do porto”. Com certa facilidade, ela conseguia decorar o nome – novamente Lemos gravita em torno da nomeação – das várias ruas, avenidas e pontes que atravessava (“Avenida Rio Branco, Oliveira Lima, Rua Matias de Albuquerque, da Moeda, Duque de Caxias, Livramento, da Praia, da Penha, Ponte Duarte Coelho e Rua do Sol”). Como era do interior, a moça acreditava que, ao sentar-se num dos bancos perto da Ponte Duarte Coelho, os passantes iriam tomá-la como uma “autêntica recifense”; a ação, entretanto, segundo as “meninas da pensão”, poderia acarretar um efeito não esperado: Laurita ser confundida com uma prostituta, visto que aquele local era utilizado por profissionais dessa categoria. Desse modo, indica-se o contraste entre interior e capital, pois a personagem, apesar de já estar identificada com a cidade grande, ainda possui a pureza da vila, sem se dar conta da malícia contida em certos ambientes urbanos. Logo que lhe é revelada a natureza promíscua do local, Laurita deixa de frequentá-lo. 198 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


Percorrendo, ainda, o leito extenso da nomeação, pontua-se a denominação de algumas lojas. O conto “Em casa de vovô”, do livro Onde dormem os sonhos, desenrola-se através da relação de Paulinho e seu avô, que, na aparência, demonstra não se importar com o neto, chegando, muitas vezes, à rispidez. Trata-se de comportamento que o homem de idade não cultiva ao encontrar a turma de aposentados (e, também, como se encontra na escrita de Lemos, desocupados), em que se flagra clara mudança aspecto: “Buscava os companheiros num banco da Rua Nova, em frente à Sloper. Em outro se transformava. Gesticulante, verboso, risonho. Paulinho o encontrara assim, uma ocasião em que fora com a avó à Casa das Rendas.” (LEMOS, 2003, p. 38-39.) Na passagem, o avô de Paulinho se encontra com os amigos “em frente à Sloper”, uma antiga loja de artigos femininos, localizada na “Rua Nova”. Como indicado, ao ver os colegas, ele muda de atitudes, torna-se “gesticulante, verboso, risonho”, bem diferente da forma como tratava o menino. Faz-se alusão à Casa das Rendas, uma loja de artefatos de costura. Nas narrativas de Lemos, é comum esse tipo de reunião, composta por idosos e por desempregados, ocorrer num banco da praça ou em frente a uma igreja, por exemplo. No trecho a seguir, do conto “Quem canta os vizinhos espanta”, do mesmo livro, vê-se um outro desses encontros: Muitas [apostas] podiam ser feitas no local, com testemunhas, dinheiro casado. — E que me dizem no jogo de domingo, Sport e Santa Cruz, no Arruda? — No Arrudão? Sou Santa. — E eu Sport. Vamos lá, quem for Santa vá botando a grana aqui na minha mão. Laporte recolhe as do Leão da Ilha. (LEMOS, 2003, p. 59-60)

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Nessa narrativa, o personagem Marcos espera, no início da Ponte Maurício de Nassau, seu amigo Laporte retornar de uma tentativa frustrada de arranjar dinheiro. Como este não conseguiu nada, os dois se dirigem a uma esquina, ponto de encontro de velhos, desocupados, discussões e apostas. Assim, entra-se no trecho: nessa esquina, as pessoas poderiam realizar vários tipos de disputas. No dia em questão, era relativa ao clássico do futebol pernambucano Sport e Santa Cruz, no estádio deste último, o “Arruda”. Novamente, percebe-se a nomeação das agremiações esportivas do Recife, bem como do estádio José do Rego Maciel, conhecido popularmente como Arruda, pelo bairro em que se situa. Além disso, Gilvan Lemos, nas suas narrativas, reforça a inclinação das suas personagens ao jogo: as figuras masculinas estão, muitas vezes, fazendo apostas sobre partidas de futebol, brigas de canários ou de galos. Seguindo, agora, a trilha dos hábitos recifenses, elege-se um trecho de “Me esbaldo mas descubro o Genibaldo”, de Os que se foram lutando. A voz narrativa do conto pertence a um narrador autodiegético, que exprime sua derrocada financeira. Sem dinheiro para conseguir pagar a pensão em que morava, passa a perambular pelas ruas do centro do Recife e a se relacionar com vários tipos sociais. Um deles é um homem idoso, dono de um fiteiro (lexema caraterístico do dialeto recifense). Com o transcorrer do tempo, o protagonista ganha a confiança do velho e, após uma doença, este lhe confia seu negócio. Contudo, apesar do protagonista cuidar bem do idoso, ele rouba para si os ganhos do estabelecimento: “Lucro pequeno, os negócios estão ruins, há muitos fiteiros espalhados por aí (eu mesmo já tenho um, na Rua Nova, aos cuidados dum ex-colega do jogo do bicho).” (LEMOS, 1976, p. 89) Nesse trecho, o personagem principal do conto discorre acerca dos baixos “lucros” hauridos no fiteiro, uma prestação de contas que realiza para o dono. Entretanto, o que está entre parênteses indica o que não foi relatado ao velho, levando o leitor a compreender, de forma sutil, que 200 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


o protagonista está desviando dinheiro, pois já possui um fiteiro na “Rua Nova”. Em acréscimo, deve-se destacar, aqui, o responsável pela administração do novo fiteiro, “um ex-colega do jogo do bicho”, o que deságua na revelação de mais um vício das personagens da capital pernambucana: apostar no jogo do bicho. Ainda no plano de “Me esbaldo mas descubro o Genibaldo”, um pouco antes do excerto mencionado, o narrador realiza a descrição do fiteiro: “Nas horas vagas eu conversava com o velho do fiteiro de cigarros, um fiteiro bacana, com registradora, balcão e tudo, instalado na porta da casa lotérica.” (LEMOS, 1976, p. 87). Ou seja: mesmo sendo um fiteiro (um negócio simples), o estabelecimento possuía seus requintes, “registradora, balcão e tudo”. Vale ressaltar a recorrência de fiteiros na obra de Lemos: em muitas narrativas, os personagens interagem com esse tipo de negócio, sendo donos ou, simplesmente, fregueses. Esse uso constante do fiteiro, como elemento de pano de fundo, proporciona a ambientação da diegese no Recife, cidade permeada por diversos negócios dessa espécie. Ao continuar na ambiência do Recife, vai-se em direção às comidas típicas. O conto “Crime mais que perfeito”, encontrado no livro A inocente farsa da vingança, é construído por meio da narração autodiegética de um homem que afirma ter cometido um crime. Indignado por ter perdido todo o seu dinheiro em apostas de brigas de canários, depara-se com Abdias, um taxista que, inversamente a ele, obteve sucesso financeiro na sede de canários. Abdias oferece uma carona para o protagonista; este aceita e, ao longo do percurso, planeja a morte do motorista, realizada, em seguida, com êxito exemplar. No entanto, esse crime o atordoa, já que a polícia não o investiga, sendo algo que o deixa mentalmente fragilizado (essa perturbação mental pode ser associada, por exemplo, ao conto “O coração delator”, de Edgar Allan Poe, no qual o protagonista é atormentado pelo barulho ensurdecedor das batidas de um coração, o que o leva a confessar

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seu crime). Numa dessas alterações psíquicas, o narrador flana no cais do porto, observando as placas dos táxis: Não tinha o que fazer na rua. Andei pelo cais do porto, sempre com os olhos nas placas dos táxis. Já não tinha esperança de encontrar o TX 3687, mas aquilo era instantâneo, mecânico. Tomei uma cerveja, comi um pacote de amendoim, recusei ovos cozidos, engraxei o sapato. Quando voltei ao apartamento... Porra! Tinha sido arrombado. (LEMOS, 1991, p. 229)

Nesse excerto, o narrador alude ao momento em que bebe “cerveja”, come “amendoim” e recusa os “ovos cozidos”. Essa cena é bastante comum nos bares da capital pernambucana, principalmente nos que se localizam em ambientes abertos (como no cais do porto), onde os vendedores ambulantes circulam livremente oferecendo ovos de codorna e amendoim. Como caraterização recifense no que diz respeito a hábitos alimentares, Gilvan Lemos recorre constantemente, em suas obras, à utilização de lexemas como marisco, goiamum, caranguejo, sarapatel, cozido, caldo de cana, pitanga, caju etc., todos bastante presentes na culinária local. Em sentido suplementar, no último trecho analisado de “Crime mais que perfeito” (como, de resto, no conto como um todo), percebe-se um outro componente caro à prosa do escritor pernambucano: a violência. Esse tema é assíduo na escrita ficcional do autor, permeando a ampla maioria das narrativas. Nessa diegese, por exemplo, tem-se um protagonista que comete um crime (assassina um taxista) e, pouco depois, esse personagem é vítima de um roubo em seu apartamento. Para elucidar esse o traço da violência com mais detalhes e dar início ao desnudamento do véu, revelando um aspecto negativo do Recife, elege-se um trecho anterior do mesmo conto, em que o protagonista conversa com Abdias dentro do carro: 202 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


— Nunca usou uma arma? — Algumas vezes. — Não tem uma? — Não. Nunca precisei. — Se fosse motorista de táxi como eu, ia precisar. Ora se ia. Não vê as notícias do rádio, dos jornais, da televisão? Um colega meu... (LEMOS, 1991, p. 222)

Nesse excerto, o taxista Abdias pergunta ao personagem principal se ele já houvera utilizado uma “arma” de fogo. O personagem responde afirmativamente e, depois de esclarecer outra pergunta, diz que nunca precisou ter posse de uma. Então, o motorista ilumina o valioso suporte da violência em Lemos: a mídia. Os personagens estão, quase sempre, em contato com a mídia (jornal impresso, rádio e televisão) e é por ela que, várias vezes, chocam-se com a violência. Entretanto, é necessário esclarecer que a violência emerge, também, por si só, isto é, sem qualquer intermediário, como ocorre nesse conto. Outra forma de a violência se materializar é através de boatos e de conversas informais entre os personagens, como no trecho em questão, especificamente na parte “um colega meu...”. Abrindo, ainda mais, as cortinas escuras dos problemas da capital pernambucana, Gilvan Lemos revela a desorganização da cidade. No conto “Roda, roda, roda”, do livro Morte ao invasor, tem-se, novamente, um ponto de encontro de idosos, localizado na frente da Matriz de Santo Antônio. Nesse local, os aposentados, todos os dias, jogavam conversa fora, admiravam as jovens que transitavam por ali e embebiam-se de saudosismo. Num dado momento, um deles faz a seguinte reclamação: A administração pública é uma lástima. Exemplo? A cidade que se acanalha. Os ambulantes tomaram conta do centro. Fritam bolinhos, batatas, peixes, pastéis, em

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plena rua. Povo maltrapilho, mal-educado, ninguém mais usa paletó, uma gravata. Sem falar nos marginais. Antigamente se podia andar por qualquer logradouro público. Voltava-se para casa a pé, de madrugada, sem nenhum perigo. Hoje, quem se arrisca? (LEMOS, 1984, p. 99)

Logo no início do trecho, faz-se uma crítica à “administração pública”. É por causa dela que a cidade perde seus eixos, pela falta de fiscalização dos “ambulantes” que povoam o “centro” da cidade. Esses vendedores cozinham os alimentos a céu aberto, no meio da “rua”, o que remete à falta de higiene. Além disso, eles andam em farrapos, sem “paletó” ou “gravata” (aqui, Lemos ressalta a mudança de hábitos dos habitantes da cidade — traço recorrente em sua prosa —, isto é, o Recife em mutação, não somente em aspectos físicos, mas culturais: as pessoas passam a usar bermuda e camisa de mangas curtas em detrimento do paletó e da gravata). Em seguida, refere-se à violência “atual” e compara-se o passado com o presente: outrora se andava pela cidade com maior segurança e tranquilidade, retornava-se à “casa a pé, de madrugada”, enquanto “hoje” existe um receio da população em relação a circular pelas ruas à noite, devido à violência existente. Ainda na esfera da desorganização citadina, contempla-se a um trecho da obra Era dos besouros, mais especificamente, do conto “Dias e dias”. Nessa narrativa, o ponto de vista oscila entre a heterodiegese e a autodiegese, através do discurso indireto livre, ao contar a vida monótona do personagem principal em seu lar, no caminho para o trabalho e no trabalho. Inclusive, até nos domingos, o protagonista cumpre uma rotina, também enfadonha para ele: ir à praia. A seguir, registra-se o ponto de ônibus num dia útil, antes de ir trabalhar: “Ponto de ônibus, multidão à espera, confusão para entrar na viatura, não há assentos desocupados, aperto, empurrões, mãos adormecidas nos corrimãos superiores. Reclamações, protestos, maus cheiros”. (LEMOS, 2006, p. 172) 204 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


Desse modo, Lemos dá substância à discussão de um elemento bastante caótico da capital pernambucana: o trânsito. Com a má qualidade do transporte público da Região Metropolitana do Recife (RMR), os pontos de ônibus ficam lotados; quando o transporte coletivo chega a esses pontos, não existe uma organização prévia, ou seja, as pessoas, geralmente, correm para subir no ônibus e garantir um assento, o que gera “confusão para entrar”. Essa desordem traz consigo o “aperto” e os “empurrões”, que muitas vezes nem adiantam, pois o ônibus já se encontra lotado. Se não há assento, fica-se de pé, segurando nos “corrimãos superiores”; e, como o trânsito da RMR é muito desorganizado, os passageiros passam horas dentro do ônibus, presos em congestionamentos, chegando a sentir dormência nas mãos. Com tanto alvoroço, surgem as “reclamações” e “protestos”. A representação do Recife em sua desordem também se configura em outras narrativas. Para se ficar num exemplo, retomando-se o livro Os que se foram lutando, vai-se ao conto “A volta do príncipe”. Nele, tem-se a história de um menino, chamado Expedito, que foi abandonado pelos pais. Como não tinha com quem morar, o cego Miranda se aproxima e lhe oferece moradia, no bairro do Zumbi, desde que ele se torne seu guia. Dessa maneira, os dois passam a pedir esmolas nas ruas do Recife. Contudo, o cego era extremamente avarento, gastando o mínimo possível com Expedito, que acaba se cansando. Num dia qualquer, o menino descobre onde Miranda escondia o dinheiro; furta-o, em seguida; inventa um esconderijo no campo de futebol do bairro, enterrando boa parte do achado; e sai pela cidade para gastar a outra parte do dinheiro, indo ao cinema. No entanto, chove torrencialmente enquanto ele assistia ao filme, alagando a capital quase toda, destruindo, assim, o fruto do seu roubo e a possibilidade de melhoria de vida. Ao se analisar a data de publicação da obra, ano de 1976, percebe-se a forte proximidade temporal com a enchente ocorrida no Recife no ano de 1975. Essa cheia, presente também

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no conto “Os que se foram lutando”, alagou oitenta por cento da cidade, submergindo várias localidades em mais de um metro e meio de água. O trecho seguinte elucida um dos momentos em que Expedito e o cego Miranda estavam no centro da cidade agindo como pedintes: Muitas vezes, guiando o cego Miranda, Expedito dera com Carmona na frente dos Correios, com o filho de Florinda no colo, contando aquela lengalenga. Expedito tinha de reconhecer uma coisa: Carmona trabalhava bem, era uma artista, pois a cavilosa até chorava, pedindo auxílio para o pobre abandonado pelo pai desalmado. (LEMOS, 1976, p. 31)

No excerto acima, Expedito encontra uma moradora do Zumbi, Carmona, em frente ao prédio “dos Correios”. Assim como ele, a mulher também exercia a mendicância: com o filho de outra residente do bairro, Florinda, pedia uns trocados aos transeuntes. Em acréscimo, Carmona possuía um dom especial para a função, “era uma artista”, pois “chorava” e suplicava ajuda para cuidar do suposto filho. É válido salientar que nessa narrativa, bem como em algumas outras, Gilvan Lemos apresenta o centro da cidade como um ambiente povoado de pedintes. No conto “Ponte da Boa Vista”, por exemplo, do mesmo livro, o personagem Vô, já aposentado, roga esmolas para complementar a renda recebida pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Nesse sentido, o autor ilumina a realidade nebulosa e excludente do ambiente metropolitano, que obriga os menos favorecidos a se submeterem à compaixão dos outros para conseguir sustento. No sentido indicado, pode-se associar a narrativa de Lemos àquilo que Auerbach intitula como “realismo moderno sério” (AUERBACH, 1976, p. 27), isto é, a partir do séc. XIX, os sujeitos do baixo extrato social e os eventos do cotidiano são representados de forma sóbria, sem recorrer, necessariamente, ao tratamento cômico usual na representação literária 206 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


anterior. Na prosa de Lemos, percebe-se uma inclinação do tom aos “desvalidos”, àqueles que não têm voz na sociedade: são comuns as figuras do pedreiro, do caixa de farmácia, do dono de fiteiro, do vendedor de caldo de cana, do taxista, do pedinte, do aposentado, do servidor público, do morador da pensão, do malandro etc. Em outro conto, que dá nome ao livro Os que se foram lutando, faz-se alusão à mesma cheia, a partir da história da família de Zacarias, criador de galos de briga. Em meio à catástrofe, Zacarias tenta salvar seu investimento, obrigando a esposa e os dois filhos a acudir alguns galos enquanto aguardavam o socorro no telhado de casa. O trecho a seguir diz respeito ao início do conto, no qual, através do discurso indireto livre, Zacarias desabafa com o colega Tota: Zacarias estava só querendo esquecer. Mas aquilo não podia ser verdade. Dizendo, ninguém acreditava. Olha, Tota... Mas você sabe, você viu. Casas? As que permaneceram de pé mostravam apenas o telhado. Lugar onde a gente jurava que nunca haveria de ser encoberto. Tudo. Tinha canto que parecia uma cachoeira. Um rio, Tota, o Amazonas. A força duma pororoca arrastando cavalo, boi, porco, jumento. Até gente arrastando. Vi um defunto amarelo, inchado, passar na correnteza. Eu dizia é mentira, meu Deus, não estou vendo não. E o resto do mundo? Será que o mundo está se acabando? (LEMOS, 1976, p. 15.)

No excerto acima, o personagem Zacarias se encontra num bar, buscando “esquecer” o trauma que a enchente lhe causou. Essa calamidade destruiu casas (as que escaparam foram submersas até “o telhado”) e deixou “tudo” “encoberto” de água, chegando a arrastar animais pesados e pessoas. Apesar de catástrofes dessa magnitude terem sido praticamente extintas no Recife, depois das medidas tomadas na época pelo governo, Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016

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a cidade ainda sofre com as chuvas e os alagamentos gerados por elas, embora numa proporção bem menor a 1975. Uma das prováveis causas atuais dos alagamentos da metrópole é a poluição da cidade e, também, dos seus rios. Gilvan Lemos denuncia esse quadro no conto “Orozimbo”, do livro Na rua Padre Silva. Na narrativa, Zimbo, um barqueiro que transportava as pessoas de uma margem à outra do Rio Capibaribe, rememora seu passado, particularmente a época em que sua esposa era viva. Imerso nessas recordações, Zimbo lembra a construção da ponte, momento em que o barqueiro perde seu emprego, passando a viver de biscates. A seguir, Zimbo se encontra envolto em saudades da limpeza do rio: O rio o atraía como saudade, tristeza pelos bons tempos perdidos. Doía-lhe ver o Capibaribe abandonado pelos pescadores, abarrotado de entulhos, sem cor definida, sem aves aquáticas, sem mulheres lavando roupa, sem ninguém tomando banho nele, a não ser um ou outro moleque mais afoito, que com sua bagunceira o emporcalhava ainda mais. Sem falar na lixeira que se formava em seus arredores, montes de lixo onde mulheres, velhos e crianças iam catar as sobras aproveitáveis. (LEMOS, 2007, p. 122)

Nessa passagem, o narrador heterodiegético mergulha nas lembranças do barqueiro em relação ao Rio Capibaribe, numa época perdida em que suas margens eram limpas e frequentadas por “pescadores”, “aves aquáticas”, lavadeiras e banhistas. Além disso, revela-se a poluição recente, que deixa o rio “sem cor definida”, por causa dos “entulhos”, bem como a degradação do seu entorno, que atrai “mulheres, velhos e crianças” pobres, buscando reaproveitar algum alimento ou material. Nessa vereda, desemboca-se numa crítica à modernização, traço constante e pertinente na escrita literária de Lemos. Considerando-se, ainda, o mesmo conto, Zimbo compara, em quase todos os momentos, o 208 l Revista Ao pé da Letra – Volume 18.1 - 2016


passado com o presente, e a sua balança pesa sempre mais para o passado, isto é, pode-se afirmar que a modernização não sinaliza progresso, mas uma espécie de retrocesso. Segue mais um trecho: Zimbo pensava: Enquanto se julgava feliz, veio o progresso e acabou com sua felicidade. Construíram a ponte ligando os dois bairros, Seu Valério encerrou a vacaria, loteou o terreno, fim do transporte pelo barco. Seu Valério, como indenização, lhe dera o barco de presente, mas àquela altura de que ele servia? Quem ia mais pagar passagem tendo a ponte para pedestre gratuita? (LEMOS, 2007, p.122-123.)

Novamente, o narrador expõe os pensamentos do barqueiro, mostrando o quanto o suposto “progresso” pode oprimir o sujeito da arraia-miúda. Com a edificação de uma “ponte” interligando “os dois bairros”, Zimbo perde seu emprego, pois ninguém irá pagar por um serviço se o puder ter gratuitamente. Como forma de “indenização”, Seu Valério doa-lhe a embarcação, que a essa altura de nada serve. Nessa perspectiva, Zimbo se vê obrigado a fazer biscates para sobreviver. Antonio Candido (1998), no capítulo “Degradação do espaço”, ao falar de Gervaise, personagem principal de L’assommoir, romance do escritor francês Émile Zola, aponta a sua queda social ao subir os andares do edifício em que morava: O casal sai do rés-do-chão e sobe para um aposento do 6.º andar, onde culminam a miséria e a degradação. [...] A subida e descida na escada definira simbolicamente o cortiço como vórtice. O resumo acima mostra que a vida de Gervaise é a história da sua destruição por este vórtice, mas num movimento contraditoriamente cruzado, pois a descida moral e material se exprime pela subida espacial.

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Instalada a princípio no nível da rua, voltada para a rua, ela não é absorvida desde logo pela voragem do edifício; fica encostada nele, em sua loja clara e limpa. Perdida a loja, é tragada e se perde no labirinto dos andares superiores, até a toca do 6.º andar, situada nos pés do antro dos Lorilleux. (CANDIDO, 1998, p. 71.)

No livro Na rua Padre Silva, ao contrário do romance de Zola, esse declínio social é apresentado de maneira proporcional. A obra é composta por doze contos e cada um deles dá conta de uma família ou casa específica dessa rua. Sendo assim, é perceptível a disposição das casas semelhante a uma rua física do Recife, ou seja, a primeira narrativa apresenta uma casa em melhores condições que as demais e, à medida que percorremos as narrativas (descemos a rua), as residências vão perdendo a qualidade e as famílias vão ficando mais pobres, até findar num mocambo, no caso do conto de Zimbo — o penúltimo —, e “num casebre fora do alinhamento da rua” (LEMOS, 2007, p. 131), do conto “Os esquecidos da rua”, que encerra o livro. Aqui, pela própria arquitetura do livro, dá-se conta sinteticamente dos contrastes da cidade. Para finalizar, busca-se pauta na declaração de Claudio Cruz (1994), em Literatura e cidade moderna: Porto Alegre: 1935, ao falar do romance A ronda dos anjos sensuais: No caso de Reynaldo Moura, também fascinado “pela poesia da metrópole moderna”, ficam somente as luzes na cidade. Este é o motivo pelo qual podemos criticá-lo: não porque ele tenha se encantado pelo lado luminoso da vida moderna, mas porque ele só quis ver e expressar este lado. (CRUZ, 1994, p. 37.)

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Na prosa de Gilvan Lemos, encontram-se, usualmente e em sentido inverso ao da obra de Reynaldo Moura, várias nuances negativas tanto em relação à cidade do Recife quanto no que abarca a sua modernização. A capital pernambucana é vista a partir da falta de luz, da sua escuridão, pois o autor dá voz aos personagens da classe menos favorecida; a modernização é tratada como regressão, um progredir no tempo que é vil, que causa mais problemas do que oferece soluções; e a grande árvore citadina é representada a partir dos seus frutos apodrecidos: violência, prostituição, poluição, congestionamentos, má educação, vícios, pobreza, miséria etc.

Referências AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na Literatura Ocidental. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. CANDIDO, A. Degradação do Espaço. In: ______. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1998. CRUZ, C. Literatura e Cidade Moderna: Porto Alegre: 1935. Porto Alegre: EDIPUCRS; IEL, 1994. LEMOS, G. Largo da Alegria. 3. ed. Recife: Bagaço, 2008. ______. Na Rua Padre Silva: novela. Recife: Nossa Livraria, 2007. ______. A Era dos Besouros: contos e novelas. São Paulo: A Girafa, 2006. ______. Onde Dormem os Sonhos. 3. ed. Recife: Nossa Livraria, 2003. ______. A Inocente Farsa da Vingança: novelas e contos. São Paulo: Estação Liberdade, 1991. ______. Morte ao Invasor: contos. Recife: Fund. de Cultura Cidade do Recife; Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984. ______. Os que se foram lutando: contos. Rio de Janeiro: Artenova, 1976. Recebido em: 29/04/15 Aceito em: 24/10/15

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