Revista Abayomi

Page 1

Busque uma impressora apropriada e adquira aqui a versão em Braille


Acesse as nossas redes

Fotografia: Ronald Santos Cruz


Abayomi BONECA QUE FALA ‘PRETUGUÊS’ Esse produto é resultado do Trabalho de Conclusão de Curso em Comunicação Social com habitação em Jornalismo da estudante Eliana de Jesus Santos (Lila Santos), no semestre 2021.1, pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Orientação Prof. Dr. José Péricles Diniz Bahia Editora-Chefa Lila Santos Coordenadora de Pauta Linda Gomes Revisor Alcides Vicente Diagramadora e Designer Nína Suzart Ilustradora Ana Laura Moreira Fotojornalista Caíque Fialho Foto da capa e fotografia Ronald Santos Cruz Repórteres Amapagu Cazumbá, Cíntia Falcão, Crislane Nunes, Dalila Brito, Isabel Baião, Jorge Barbosa, Karla Souza, Marco Faleiro, Ramon Ramos e Shagaly Ferreira Colunistas Bárbara Borges e Francinai Gomes Anúncio Laíse Matias e Michele Santana Jogo Maria Laura Santos Souza Produção Islan de Castro, Sthefanie Ramos, Tathy Pereira e Thianclei Oliveira


Editorial Bahia, março de 2022 Caras abayomis,

S

omos uma publicação de articulação de política pública racial com enfoque no estado da Bahia, que busca impulsionar representantes políticos estaduais na construção de projetos que considerem as necessidades humanas de pessoas que sempre viveram à margem social no estado. Nosso objetivo é informar; representar grupos que sofrem preconceito, até mesmo dentro de espaços em comum; propor uma comunicação baseada em questões de interesse sócio-racial; pautar a contribuição da grande mídia em relação a comportamentos sociais de opressão; apresentar como utilizamos do jornalismo anti-racista com responsabilidade, enquanto um veículo formador de opinião; prestação de serviço; e propor um material de utilidade pública na luta contra o genocídio do povo preto. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2020 comprovaram que homens pretos e pardos (28,7%) morreram mais de Covid-19 no primeiro ano de pandemia que homens brancos (28,4%). Entre as 209,7 mil pessoas que morreram no país, 200,6 mortes por Covid-19 foram registradas com cor e raça. O censo é do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, disponibilizado na Síntese dos Indicadores Sociais (SIS). O público-alvo da Revista Abayomi são pessoas pretas e pardas do estado da Bahia, tendo como construtores do veículo indivíduos pertencentes a esse grupo. Todavia, encontra-se aberta para a colaboração de pessoas de outras raças, desde que o assunto abordado seja direcionado para espectadores. No conteúdo, não estereotipamos esses sujeitos à perspectiva de necessitados de políticas públicas e sim enquanto pessoas capazes de construí-las, a fim de evitarmos a generalização de suas histórias (ADICHIE, 2019). Falamos em ‘pretuguês’, por entender que é pre-


ciso democratizar a comunicação, utilizando dialetos e ditados populares como prática de guerrilha, permitindo que nossa audiência nos acesse sem ruídos ou qualquer elemento linguístico que dificulte o entendimento. Não colaboramos com a lógica de exclusão na escrita, até porque, muitas dessas características foram influenciadas pelo o saber dessas pessoas (GONZALEZ, 1984, p. 238). A edição ‘Todo menino é um rei’ retrata homens pretos que romperam ciclos de violências provocadas pelo o racismo estrutural e ao mesmo tempo, abre para a doçura e sensibilidade das crianças pretas; reafirmando a reescrita do que significa ser preto na Bahia; e falar das próximas gerações como instrumento na construção de um futuro igualitário, justo e territorial (SANTOS, 2006, p. 13). O material mostra registros sobre o trabalho infantil na feira-livre; manifestação periférica; guerra às drogas; casos de saúde pública, como a anemia falciforme; e a apuração sobre a saúde feminina no Conjunto Penal de Feira de Santana. No campo político e econômico, mostraremos a ação social desenvolvida numa comunidade periférica junto à solidão das mulheres pretas e a inserção de pessoas quilombolas no mercado. Debatemos sobre a desonestidade identitária, representação gay na música e apresentamos uma entrevista com um operário do meio ambiente que viralizou nas redes sociais distribuindo alegria pelas ruas de Salvador. Informamos sobre a atualização jurídica do crime ambiental que estigmatizou a cidade de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, como o município mais poluído por chumbo e cádmio do mundo. Por fim, exibiremos temáticas inspiradoras ao falarmos da lenda maragojipana que mobilizou uma fundação a promover, gratuitamente, oficinas para a preservação do manguezal da região. Para a criançada, trouxemos um jogo de tabuleiro que conta a história da boneca Abayomi. O dossiê traz, portanto, a reafirmação da realeza preta, lúdico e o sagrado e de como o debate racial é um assunto emergencial na Bahia. Convidamos, então, os nossos(as) leitores(as) para exercitar a prática do amor contra a política de dominação (HOOKS, 2016). Boa leitura!

Fotografia: Ronald Santos Cruz


9 23 30 40 42 44 50


OPINIÃO Políticas públicas raciais Trabalho infantil Festa de paredão e guerra às drogas SAÚDE Anemia Falciforme Saúde das mulheres em privação de liberdade POLÍTICA E ECONOMIA Moradores do Alto do Rosarinho Mãe solo Desonestidade identitária Economia solidária

COMPORTAMENTO Rapper Hiran ENTREVISTA Henrique Boca Rosa CULTURA E MEIO AMBIENTE Chumbo em Santo Amaro Lenda Vovó do mangue ESPECIAL Jogo da boneca Abayomi


‘Nem santo aguenta’ a falta de investimento na segurança pública, educação e saúde, tampouco na representação menos numerosa de pessoas pretas nos veículos da comunicação baiana. Se a Bahia é um estado racista que marginaliza a população não-branca, mesmo sendo maioria quantitativa, a grande mídia se coloca no papel de construtor e solidificador dessa base. De acordo com o relatório feito pela Rede de Observatório da Segurança do Brasil em 2021, as informações com os números de mortes geradas pela polícia não são devidamente fornecidas pelo Estado aqui na Bahia, nem são divulgadas pela mídia que tais ações são direcionadas a um público específico de ‘pele-alvo’. Para a organização, a morte pela ponta de fuzil, atinge desproporcionalmente as pessoas pretas, refletindo, assim, em um menor número de óbitos dos brancos, apontando, então, que o problema do racismo é discutido a contragosto. Com isso, as comunidades estão sujeitas aos ataques de agentes encorajados pela proposta do confronto permanente. É preciso construir uma segurança que permita o acesso digno à possibilidade de vida a fim de que esse grupo viva sem temer que uma marmita seja confundida com revólver. É emergente entender a função social da imprensa e seu comportamento na promoção de um jornalismo que não favoreça essa barbárie. Os indivíduos que foram capturados à força da África para a América nos navios em condições insalubres, desumanas, morrendo durante a viagem, sendo vítimas de doenças, maus-tratos e fome, infelizmente, não tiveram grandes modificações em sua realidade com o passar do tempo. Porém, deve-se ressaltar que a história desse povo não começou na escravidão e que essa trajetória não se resume a dor. “Se você quiser saber mais dessas pessoas, você terá de dobrar seus joelhos”, arrematou Rosana Paulino, doutora em Artes Visuais. Ubuntu! (acolhimento) Fotografia: Ronald Santos Cruz


CAPA

“Perdi os meus dois filhos para os braços do Estado”: política pública racial é assunto emergencial na Bahia Dados do anuário da violência de 2020 comprovam que o estado está no 2° lugar no ranking de mortes violentas do Brasil Lila Santos Fotografia: Ronald Santos Cruz

O

Fórum Brasileiro de Segurança Pública, através do Anuário Brasileiro de Segurança Pública com dados de 2020 (public´s), registrou que cidades baianas como Feira de Santana, Santo Antônio de Jesus e Camaçari estão entre as dez cidades com mais mortes violentas no Brasil. Na lista, Feira ocupa o 3° (89,9%), Santo Antônio o 7° (76,2%) e Camaçari (75, 9%) o 8° lugar. Os dados consideraram municípios com acima de 100 mil habitantes. A taxa de mortes violentas no Brasil foi de 23, 6% e o estado da Bahia ficou no segundo lugar (44,9%) no ranking nacional de homicídios.

Abayomi | 9


CAPA

Apesar das capitais e cidades serem consideradas com maior número de habitantes em sua localização, terem mais acesso a programas relacionados às políticas públicas, sistema de segurança e justiça, elas não estão isentas desses dados. Com a 30ª maior taxa de mortalidade violenta, Salvador é uma das capitais brasileiras que aparece primeiro, com a média de 49 assassinatos em cada 100 mil habitantes. De acordo com o censo realizado pelo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2015, Salvador é considerada a cidade mais negra do mundo, fora da África (50,8%). “Enquanto as capitais ainda são alcançadas por um mínimo de políticas públicas, as regiões metropolitanas se tornaram espaços privilegiados para grupos que vivem sob a precarização de serviços”, apontou, à época, Luiz Paiva, do LEV (Laboratório de Estudos da Violência). Mães de luto Cleide Coutinho é uma mulher preta e periférica que perdeu seus dois filhos para o racismo de Estado. Ambos com 17 anos tiveram suas vidas eliminadas numa ação policial em Salvador. As consequências enfrentadas por ela hoje é materializada em dor e destruição eterna. “Criei os meus filhos sozinha, passamos por tanta dificuldade... Foram dias de lutas. Meus filhos eram a minha felicidade. Convivo com doenças adquiridas após os assassinatos. Sinto uma dor infinita, é muito forte”, padeceu Coutinho. Para a pesquisadora Vilma Reis a violência não impacta apenas a saúde pública porque ela vai muito além da eliminação da vida. A morte de um jovem-homem-preto é indissociável nas dimensões identitárias. Ao perder os seus filhos Abayomi | 10

em ações violentas, essas mães morrem junto com as vítimas. “Vivenciadas de maneira interseccionalizada, e quando uma ou duas dessas dimensões são ativadas pelas forças de segurança do Estado, em geral, a coletividade negra está em risco” (REIS, 2005, p.14). Sepromi Atualmente, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) é a única secretaria do estado da Bahia responsável pelo o desenvolvimento exclusivo de políticas afirmativas para a população preta baiana. Criada em 28 de dezembro de 2006, amparada pela lei estadual nº 10.549/2006, no Governo Jaques Wagner (PT), o objetivo é de implementar e articular - em conjunto de secretarias e órgãos estaduais políticas de promoção da igualdade racial, de proteção dos direitos de indivíduos, povos e comunidades tradicionais e grupos étnicos atingidos pelo racismo e desigualdades sociais. À Abayomi, Kleidir Costa, assessor de comunicação da (Sepromi), informou que nesse momento o órgão acompanha os projetos referentes a políticas públicas no estado da Bahia a partir das diretrizes do Plano Plurianual (PPA), programa que faz parte do planejamento do governo do estado, atualizado a cada início da nova gestão. “O PPA 2020-2023, o ‘Programa 307 – Igualdade Racial, Povos e Comunidades Tradicionais’, tem como objetivo promover a igualdade racial e o enfrentamento ao racismo. Consideramos o desenvolvimento político, programas, projetos e ações que tenham por finalidade o desenvolvimento socioeconômico e cultural dessas pessoas pretas”, pautou Costa.


CAPA

Compromissos do Plano Plurianual O primeiro compromisso corresponde a Governança Estratégica da Política de Igualdade Racial e Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Nele encontra-se: O Fórum Estadual de Gestores Municipais de Promoção da Igualdade Racial (integrados por 136 Municípios, pertencentes a 26 territórios de Identidade, que possuem finalidade de combater as desigualdades raciais); Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra (CDCN - órgão colegiado e composto por representantes da Sociedade Civil do Poder Público, que integra a estrutura da Sepromi); Conselho Estadual para a Sustentabilidade dos Povos e Comunidades Tradicionais (órgão colegiado, integrante da estrutura da Sepromi, criado recentemente, composto também por representantes da sociedade civil e do Poder Público); Centro de Referência de Combate ao Racismo e a Intolerância Religiosa Nelson Mandela (CRNM- que tem por finalidade o recebimento, registro e acompanhamento de ocorrências de racismo e intolerância religiosa); E a Rede de Combate ao Racismo e a Intolerância Religiosa (instrumento de articulação entre o poder público, as instituições do Sistema de Justiça e a sociedade civil para implementação de políticas de promoção da igualdade racial). O segundo compromisso trata-se do Enfrentamento do Racismo e a Intolerância Religiosa, envolvendo a popularização da cultura e apoio para a realização de campanhas de combate. Nesse programa deve ser disponibilizado uma Unidade Móvel Itinerante (ônibus adaptado para o atendimento aos crimes de racismo e intolerância religiosa. O terceiro compromisso refere-se ao acesso e permanência das comunidades negras rurais e urbanas e dos Povos e Comunidades Tradicionais aos territórios tradicionais (compromisso com a ação de ampliação do reconhecimento da autodeclaração dos Povos e Comunidades Tradicionais; Mapeamento dos povos e comunidades tradicionais visando a visibilidade no pro-

cesso de formulação e implementação de políticas públicas; Acompanhamento e apoio nas comunidades tradicionais em situação de conflitos (ações que contam com articulação e participação da Sepromi junto aos órgãos responsáveis pela política de regularização fundiária). Por fim, no quarto compromisso deve-se ao desenvolvimento socioeconômico e cultural sustentável para a população negra e povos de comunidades tradicionais - Neste compromisso são realizadas parcerias com a sociedade civil, por meio de Termo de Colaboração, para o desenvolvimento de projetos baseados nos eixos da Década Internacional Afro descendente 2015-2024 (Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento), declarada pela ONU à qual o Governo da Bahia fez a adesão pioneira em todo o país, ato ocorrido em 2015. Diálogos e parcerias Conforme os dados cedidos pela assessoria de comunicação da secretaria, os diálogos e parcerias recentes relacionados às políticas públicas raciais são: Edital Jorge Conceição/2021 (seleção de projetos e produtos pedagógicos destinados à implementação das leis 10.639 e 11.645, com conteúdo sobre a história africana e indígena em sala de aula. Investimento financeiro: R$ 5,9 milhões); Edital para o apoio de pesquisa voltada para a saúde da população preta (com chamadas públicas, desde o ano de 2019), com recorte racial, exclusivamente focada na doença anemia falciforme e outras doenças prevalecentes na população negra. Investimento financeiro: R$ 2,6 milhões. A Sepromi foi o primeiro órgão a tratar de políticas públicas no Brasil para mulheres pretas e se tornar referência no enfre ntamento político contra as desigualdades sociais e raciais no estado da Bahia. Com a reforma trabalhista baseada na lei n° 12.212/2011, questões relacionadas a gênero foi redirecionada para a Secretaria de Política para Mulheres, também criada em 2011. Governo Bolsonaro e políticas públicas O governo Jair Bolsonaro (PL) teve início no dia Abayomi | 11


CAPA

01 de janeiro de 2019 e está previsto para terminar no dia 31 de dezembro de 2022. Eleito com 55,13% votos válidos ao cargo de 38° presidente do Brasil no dia 28 de outubro de 2018. Como uma de suas funções, o militar reformado deve investir e aprovar projetos relacionados às políticas públicas no Brasil. Para Camila Borges, mestra em ciência política, o governo Bolsonaro tem piorado a vida das populações que já estavam em situação de vulnerabilidade social no Brasil. Essa conclusão é retirada a partir dos cortes financeiros e o enfraquecimento de alguns programas referentes às políticas públicas que estão sendo afetadas no seu funcionamento. Entre elas estão os programas de atendimento à saúde, à mulher, atenção básica e atendimento à família. “Essas pessoas têm sofrido com a falta de investimento em projetos relacionados às políticas públicas. Enfrentamos os desmontes das políticas sociais promovido pelo Governo Federal, cortes no orçamento na Política de Assistência Social, Saúde, Educação, dentre outros setores. Isso afeta diretamente no cotidiano das pessoas, principalmente das pessoas pretas e pobres”, informou. Como a política pública racial é um conjunto de programas tomados pelo o governo federal, estadual e municipal, contando com a participação direta ou indireta de instituições públicas e/ou privadas, direcionadas para pessoas que vivem em situação de desigualdade, as prioridades de um governo impactam diretamente esses os grupos vulneráveis. O objetivo dos projetos de políticas públicas é de assegurar os direitos desses sujeitos através de ações que promova a igualdade racial. As políticas públicas são importantes na vida de grupos vulneráveis e essas decisões políticas precisam ser formuladas, implantadas e pensadas dentro de um governo. Borges ainda aponta que a chegada da pandemia da Covid-19 no Brasil evidenciou que o investimento em projetos sociais não está entre as prioridades do atual governo brasileiro. Ao longo desse processo as aplicações nos recursos de políticas públicas de saúde são quase nulas. “Nesse momento de pandemia, o governo não investiu no Sistema Único de Saúde (SUS) para a prevenção ao Covid-19. Ao contrário, disseminou idéias negacionistas, notícias falsas, deixou de comprar vacinas antecipadamente, resultando assim, em morte”, comunicou Borges. Abayomi | 12

A política de governo, por exemplo, se relaciona com um poder específico, ou seja, articulações criadas de forma independente. São decisões que o próprio poder político toma com um planejamento direcionado para esse grupo. Já a política de Estado não depende de quem está no governo e é amparada pela constituição federal. Constituição No art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil ratificada em 05 de outubro de 1988, diz que são de direitos sociais básicos: a educação; a saúde; a alimentação; o trabalho; a moradia; o transporte; o lazer; a segurança; a previdência social; a proteção à maternidade e à infância; e a assistência aos desempregados (redação dada pela Emenda Constitucional n° 90, de 2015). A partir dessas normas cidadã acima e com o reconhecimento de que as desigualdades existem, a liberdade e a igualdade tornam-se um dever a ser seguido. O descumprimento dessa lei passa a ser uma responsabilidade governamental. Igualdade racial De acordo com o Estatuto da Igualdade Racial, da Lei n. 12.288. 2010, promulgada em julho de 2010 pelo o então deputado Paulo Paim. Porém, o processo teve início no ano de 2000 como um PL 3198/2000. O PL durou uma década ou 10 anos na tramitação na Câmara de Deputados e no Senado Federal, por emendas que constantemente eram alteradas ou sendo retiradas por propostas e formulação do Estatuto. Essa lei tem como princípio de que é dever do Estado garantir e estabelecer políticas públicas para que esses direitos essenciais do indivíduo sejam aplicados, ou seja, planejar e colocar em prática ações que permitam a igualdade e que essas ações afirmativas sejam realizadas para esse grupo. Formar e efetivar a igualdade e condições de acesso para pretos e pardos terem direitos considerados básicos para se viver. Através dessa lei, surgiu a importância de entender que as desigualdades de gênero e raça precisam ser discutidas nos espaços políticos e jurídicos.


CAPA

Estatuto e divisão O Estatuto da Igualdade Racial informa logo no 1º artigo de que a lei foi criada para a efetivação da igualdade para garantir condições e acesso para pessoas pretas e pardas como reparação histórica e para diminuir a discriminação racial e desigualdades no acesso aos direitos básicos. Nela é apresentada de que o Estado tem por dever garantir políticas públicas na aplicação de direitos e definir os direitos fundamentais para que essa população seja atendida. O objetivo é alcançar o planejamento, garantir e efetivar as ações necessárias que possam permitir o acesso dessa igualdade a partir das políticas públicas e ações afirmativas. Essa lei é dividida por 65 artigos, quatro títulos divididos e subdivididos por temas que interessam essas pessoas e o que é entendido por desigualdade racial e discriminação étnico-racial. Outros conceitos também citados nesse documento são: disposições iniciais do Estatuto; direitos fundamentais para o acesso aos direitos básicos; informações sobre o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR); direitos fundamentais da população preta e parda; e sobre os direitos fundamentais presentes nos artigos, foram estabelecidos direitos à saúde. Saúde No artigo 6° do Estatuto, é reforçada a importância do SUS (Sistema Único de Saúde) na garantia de que o acesso seja distribuído de forma igualitária, sem distinção de raça. Continua nos artigos 7° e 8°, constituindo a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra como própria dessa população. Buscando, assim, o fortalecimento do SUS, no atendimento especializado, humanizado, informações e comunicação de acordo com a necessidade dessas pessoas. Educação, cultura, esporte e lazer Ao que se refere à educação, cultura, esporte e lazer, do artigo 9° ao 22° é estabelecido para a população preta direitos, como: Art. 9º: participação de atividades educacionais, culturais, esportivas e de lazer adequadas aos seus interesses e condições, de modo a contri-

buir para o patrimônio cultural de sua comunidade e da sociedade brasileira […]; Art. 11º: ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, é obrigatório o estudo da história geral da África e da história da população negra no Brasil, observado o disposto na Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996; Art. 17º: poder público deve garantir o reconhecimento das sociedades negras, clubes e outras formas de manifestação coletiva da população negra, com trajetória histórica comprovada, como patrimônio histórico e cultural, nos termos dos artigos 215 e 216 da Constituição Federal. Liberdade de consciência e de crença; Nos artigos 23°, 24°, 25° e 26°: essa população é assegurada ao direito à liberdade de consciência, de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos. No Art. 23°: se refere à liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e liturgias. Terra, trabalho e moradia. Nos artigos 27° ao 42°: são estabelecidos como dever do poder público se responsabilizar de que esses indivíduos tenham acesso a terra e a uma moradia digna. Art. 35°: o poder público garantirá a implementação de políticas públicas para assegurar o direito à moradia adequada da população negra que vive em favelas, cortiços, áreas urbanas subutilizadas, degradadas ou em processo de degradação, a fim de reintegrá-las à dinâmica urbana e promover melhorias no ambiente e na qualidade de vida. Meios de comunicação Nessa lei é estabelecido que os meios de comunicação incentivem as produções que valorizam a participação da população preta, herança cultural e sua importância histórica no Brasil. Entre os artigos 43º ao 46° é determinada a contratação de pretos e pardos como uma forma de diminuir as desigualdades e discriminações raciais nos conteúdo produzidos. Abayomi | 13


CAPA

Políticas públicas com base no estatuto O Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR) foi criado para trazer os objetivos da Lei 12.288 e mobilizar a criação, organização, articulação de políticas públicas e ações afirmativas direcionada para a diminuição das desigualdades raciais no país. É através desse sistema que o poder público federal do Brasil distribui recursos para ser utilizados em programas de igualdade racial em todos os estados e Distrito Federal. O objetivo é que os estados utilizem da SINAPIR na realização e implementação de políticas públicas e ações afirmativas para minimizar desigualdades étnicas em estados e municípios. Estrutura O Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR) insere a Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR), órgão do poder público federal responsável por realizar termos de adesão e compromisso. Nele os estados e municípios solicitam adesão e compromisso para a realização de projetos étnicos. Nesse sistema estão inseridos o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). O SINAPIR foi desenvolvido para promover, formular e garantir políticas públicas de maneira setorizada, por realizar a distribuição dos recursos e formalizar o que é imposto pelo o Estatuto. Para que essa ação seja feita, é necessário que os estados e municípios tenham como requisitos, um órgão público responsável pela promoção da igualdade racial e um Conselho de Promoção da Igualdade Racial em funcionamento na sua localidade. Após esses requisitos preenchidos, o poder federativo adere às respectivas propostas. É dever do poder público federal conscientizar estados e municípios e participar do sistema.

terminado através de: Art. 56°: O Poder Executivo federal é autorizado a adotar medidas que garantam, em cada exercício, a transparência na alocação e na execução dos recursos necessários ao financiamento das ações previstas neste Estatuto, explicitando, entre outros, a proporção dos recursos orçamentários destinados aos programas de promoção da igualdade, especialmente nas áreas de educação, saúde, emprego e renda, desenvolvimento agrário, habitação popular, desenvolvimento regional, cultura, esporte e lazer. A implementação para a Lei 12.288/10 ainda enfrenta desafios, pois segundo os dados divulgados pelo sistema em Novembro de 2019, apenas 71 municípios brasileiros se interessaram em aderir-se ao sistema desde a implantação. Durante esse período, apenas 20 estados brasileiros aderiram ao SINAPIR. Nos períodos finais em que a lei 12.288/2010 estava para vigorar, surgiram debates em torno do Estatuto da Igualdade Racial, pois não houve consenso definitivo. A justificativa foi de que não tinha por necessidade ter um estatuto específico com demarcação étnica. Para esse grupo, setorizar de forma racializada medidas especializada para pretos por intermédio de uma lei, dividiria ainda mais a sociedade e provocaria segregações. Importância A existência do Estatuto de Igualdade Racial garante melhor condição de vida para a população preta e parda e melhor desenvolvimento de iniciativas e recursos financiados na efetivação de políticas públicas para a diminuição de desigualdades raciais e no enfraquecimento do racismo estrutural no Brasil. O Estatuto da Igualdade Racial no Brasil legitima e vizibiliza a aplicação de leis que garantam uma vida digna e torne o país igualitário em que todas as pessoas tenham por lei, acesso a políticas públicas de qualidade.

Financiamento e debates

Informação e políticas públicas

Com base no Estatuto, o financiamento das iniciativas de promoção de igualdade racial é de-

Numa palestra realizada para a plataforma de responsabilidade da emissora Globo, REP (Re-

Abayomi | 14


percutindo histórias) no ano de 2016, a cientista política Djamila Ribeiro questionou quantas gerações serão sacrificadas por vivermos em um país extremamente desigual. A mestra em filosofia política abordou que somente quando conhecermos a atual situação do país conseguiremos desnaturalizar lugares de violências. “É preciso entender profundamente o que faz determinados grupos estarem minoritariamente em determinados espaços de representação”, refletiu. Na oportunidade, a filósofa destacou que o privilégio de alguns significa perda de direitos para outros e que as oportunidades distanciam as pessoas. As políticas públicas diminuem o abismo entre os grupos sociais. “A minha mãe foi trabalhar com nove anos de idade. Ela colocava um banquinho para lavar a louça na casa de família onde minha avó trabalhou. A minha mãe e minha avó não tiveram a oportunidade ou sequer o direito de escolha. Os meus pais se sacrificaram para que hoje eu tivesse formação”, reviveu. Durante a palestra, a pesquisadora salientou sobre a importância das pessoas beneficiárias socialmente ocuparem lugares de representação para pensar nas políticas públicas com responsabilidade. “A informação colabora para o conhecimento e a propagação da história. Sem ela, não será possível saber que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão. E que os processos de industrialização não consideraram as pessoas pretas e não criaram mecanismo de inclusão para elas”, explicou. Para a pesquisadora é na comunicação que entenderemos porque determinados grupos ocupam lugares vulneráveis e assim, criarmos veículos que se responsabilize por problemas sociais e entendam que a luta não pertence apenas aos grupos discriminados, pois a sociedade pertence a todas as pessoas. “Devemos pensar até que ponto não alimentamos o que dizemos condenar. Precisamos nos informar para nos capacitar, porque querer a gente quer. As pessoas que estão em vulnerabilidade, elas querem. As políticas públicas e a informação são ferramentas para a redução de desigualdades. Quais condições elas têm? Se não criarmos programas e nem apoiá-los, estaremos do lado da desigualdade”, encerrou Ribeiro.

Abayomi | 15


OPINIÃO

Meninos da Feira

A desigualdade social e o trabalho infantil na feira-livre de Cachoeira Bahia Caíque Fialho

T

io, meu sonho é ser jogador de futebol, estou até numa escolinha na ‘Rua da Feira’, mas preciso ajudar a minha família, por isso carrego feira”, alegou Jorginho* Santana.

‘‘

Essa foi a resposta de um garotinho que entrevistei em 2015 na feira-livre de Cachoeira, Recôncavo Baiano, durante a produção de uma série documental sobre de sigualdade social. Os entrevistados eram meninos que trabalhavam para ajudar no sustento em casa. O carrinho de mão é utilizado para carregar feira e compras de mercado. Naquele período, os garotos recebiam míseros R$5,00 por uma entrega e ainda encontravam clientes que barganhavam para pagar menos. Eram compras pesadas e destinos distantes que não compensavam o valor cobrado. Conheço adultos que sustentou durante a infância e ainda sustenta a casa com esse trabalho. Essas crianças e adolescentes não estão nesses lugares por escoIha, mas sim, porque precisam sobreviver. A maioria abandona os estudos para sobreviver. Estamos em 2022 e a história se repete nessa mesma feira-livre. O trabalho infantil é crime e o nosso objetivo não é expor as famílias que estão em situação de vulnerabilidade social, mas de proteger as vítimas da exploração e cobrar que as crianças e adolescentes tenham condições para acessar a assistência social através dos conselhos tutelares e redes de apoio e proteção. Denuncie o trabalho infantil. Disque 100 As fotos não mostram os rostos para preservar a imagem das crianças e adolescentes. A fonte utilizada nessa reportagem, por segurança, não foi identificada. Os dados fictícios a exemplo de nome e sobrenome estão identificados com *.

Abayomi | 16


OPINIÃO

Abayomi | 17


Festa de paredão e a guerra às drogas na Bahia

OPINIÃO

A proibição do governo do estado dividiu opinião e pesquisa comprova que os bairros com menor investimento de políticas públicas têm mais casos de violência Redação Abayomi Fotografia: Thianclei Oliveira

D

urante a pandemia as festas de ‘paredão’ se tornaram constantes na Bahia, principalmente no período em que as aglomerações foram suspensas para evitar a proliferação do vírus. No dia 13 de outubro de 2021, seis pessoas morreram e 12 ficaram feridas no bairro do Uruguai, em Salvador, devido a um ataque armado em um desses eventos. Após o ocorrido, o governador da Bahia Ruy Costa (PT) proibiu as festas de ‘paredão’ em todo o estado. “Quem está financiando a morte desses jovens infelizmente é o fluxo financeiro do comércio das drogas. Não vamos permitir”, ordenou o governador. A decisão gerou polêmica e trouxe especulações sobre quais seriam as reais intenções da autoridade ao proibir uma festa que integra o processo histórico da juventude preta, de comerciantes das comunidades que utilizam o evento para sustentar financeiramente seus familiares e questionar o posicionamento político em relação a perseguição parcial contra o uso de drogas, trazendo à discussão a opinião dos baianos com relação à festa. Opinião popular A jovem Dalila Pimentel se sente desconfortável com determinadas músicas transmitidas nesses eventos, para a não-simpatizante, algumas letras apelam para o fortalecimento do machismo, misoginia e violência contra a mulher. “Não vou porque acredito que é possível ouvir ‘pagodão’ sem ofender ou atacar as mulheres. Não saio de minha casa pra ouvir um homem me chamar de ‘cachorra ou vagabunda’. Sou mulher e mereço respeito. Não posso dizer que me sinto confortável em ouvir e dançar determinados sons”, respondeu.

Abayomi | 18

Para Luís Carlos, as festas de ‘paredão’ movimentam a economia local, proporcionada pela aquisição dos equipamentos de som e da venda de comidas e bebidas realizadas de maneira informal, além de promover o sustento de quem precisa garantir o mínimo para sobreviver. “Acredito que essa festa é tão importante quanto outras manifestações populares. A proibição tira o nosso modo de lazer e de viver. Essa festa é da nossa comunidade e ocupa território, trazendo benefícios para vendedores informais como a tia do acarajé, por exemplo. Antes de criminalizar e proibir a festa, o governo deveria analisar de que maneira ela representa para nós da comunidade. O paredão é nosso, pertence a nossa cultura”, opinou. Abídio Leonardo dos Santos não gosta da festa. Para o vendedor, o encontro deveria acontecer de maneira organizada, sem aglomerações descontroladas. “Não gosto do barulho, o volume é muito alto e incomoda os meus ouvidos. Não sou contra a quem gosta, mas me incomoda bastante o volume do som”, disse. A frequentadora Laíme Vitória Santos acredita que a festa democratiza o entretenimento ao criar de forma espontânea e gratuita o acesso para que toda a periferia se divirta. “Eu gosto de dançar de me divertir e encontrar meus amigos e amigas da comunidade. Devido à pandemia, não temos outro modo de divertimento que não seja esse”, comentou. O que é a festa? A festa de ‘paredão’ são encontros realizados dentro das comunidades periféricas com o intuito de dançar o famoso ‘pagodão’ da Bahia. Esses sons são transmitidos através de caixas potentes, instaladas em porta malas dos carros.


OPINIÃO

Ganhando força na cultura pop, essa diversão reúne a comunidade, atraindo jovens que dançam ao som de outros ritmos como: arrocha, funk, rap, reggae, entre outros. Responsável por movimentar a economia do bairro e trazer entretenimento para os povos que lutam contra a miséria. De acordo Raimundo Nascimento, mestre em educação e ativista do movimento negro, essa manifestação integra um processo de reconhecimento da juventude negra que precisou se reinventar e encontrar formas de entretenimento desde sempre, e não só na cultura. Dessa forma, a proibição dos paredões é um retrocesso para todos que sobrevivem dessa festa que já se tornou parte da cultura baiana. “Eu considero o paredão como mais uma tecnologia social para enfrentar o vazio que o estado brasileiro nos impõe”, contou ao portal G1 Bahia.

Origem Muito antes da sua popularização nos bailes funks, os veículos com os porta-malas abertos já faziam sucesso na frente de bares e adegas das capitais e de cidades do interior, especialmente nas regiões sudeste e nordeste. Ao contrário do que se pensa, os paredões de som não são um fenômeno recente. Uma possível origem são os

sound systems criados na década de 1940 na Jamaica, onde os DJs da época organizavam festas de rua nos guetos a partir da união de um gerador elétrico, toca-discos e alto-falantes em automóvel de grande porte. Esses eventos tomaram conta do espaço público e se estabeleceram como opções de cultura e lazer para um público majoritariamente pobre em contraste com o elitismo dos clubes de música. A festa periférica tem atravessado diversas culturas musicais das periferias brasileiras. Do Norte ao Sul do país, esses sistemas sonoros de alta potência se tornaram elemento central nas festas se moldando de acordo com a musicalidade e o estilo de vida e característica de cada região. Mais tarde, sem possuir grande poder aquisitivo, a população de periferia passou a utilizar ritmos nascidos de sua cultura como o rap e o funk para criar sua forma de entretenimento,

onde a comunidade pudesse se reunir, passando a promover festas nas ruas do bairro em que moravam, nos eventos popularmente conhecidos pela comunidade como “fluxos”. Legislação de trânsito Em outubro de 2016, o Contran (Conselho Nacional de Trânsito) publicou a resolução 624, que proibia qualquer tipo de equipamento autoAbayomi | 19


OPINIÃO

motivo cujo som pudesse ser ouvido fora do veículo emissor. No ano seguinte a lei foi revogada e as autoridades municipais assumiram a responsabilidade de controlar a realização desses encontros. Se por um lado essas máquinas estimulam as relações sociais, reinventa músicas e move a indústria, é também fato que o som dos paredões pode ser problemático. Primeiro que não é permitido que o volume do som acabe extrapolando o limite considerado aceitável de 60 decibéis no horário noturno, compreendido entre 22h e 6h e, segundo a Lei nº 9.756/11, é vetado o funcionamento dos paredões de som nas vias, praças, praias e demais logradouros públicos . Perseguição racial Mesmo com a proibição, as festas continuam acontecendo de forma clandestina. Somente no ano de 2021 mais de 2.500 festas clandestinas ou irregulares foram encerradas pela PM (Polícia Militar) entre os meses de janeiro e setembro. A principal preocupação era em relação às aglomerações e a propagação do vírus coronavírus. Apesar de não frequentar festas de ‘paredão’, Ricardo Santos considera a decisão do governo do estado uma perseguição racista contra a população preta, visto que os paredões são frequentes em bairros periféricos, majoritariamente ocupados por pessoas pobres e pretas. O morador acredita que é preciso desenvolver políticas de segurança que respeitem de maneira imparcial essa festa popular, visto que elas são proibidas, porém a polícia aborda apenas a comunidade e não os bairros da elite baiana. “Existem várias festas de paredões fora da comunidade e ninguém proíbe. A população precisa de segurança porque se o ‘filho de papai’ pode fazer paredão, a comunidade também pode e ela não deve morrer por isso”, continuou. Segurança pública Conforme a análise realizada pela a Rede de Observatórios da Segurança na Bahia, entre os Abayomi | 20

meses de janeiro a maio de 2021, a Bahia registrou 572 ocorrências violentas, entre mortes de policiais, mortes causadas por policiais, feminicídios, violência contra crianças e adolescentes, racismo, chacinas e violência contra pessoas que pertencem à comunidade LGBTQIAP+. Dudu Ribeiro, coordenador da rede e co-fundador da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD), diz que existe uma lógica que explica o alto número de mortes causado pela violência policial no estado. “A nossa política de segurança pública não está baseada na lógica da preservação da vida, mas sim no confronto, no embate”. Ribeiro acrescenta que a redução percentual das armas de fogo está na deficiência na divulgação de dados oficiais e consequentemente os registros transmitidos nas mídias tendem a diminuir. “A gente tem quedas variadas em dados de um ano para o outro, mas é difícil analisar se são efeitos de políticas públicas porque é um período curto para monitorar oscilações dos números”, pondera numa entrevista cedida para o portal de notícias G1. Cor e endereço Ainda de acordo com essa pesquisa, a promoção à vida e o cotidiano de violência são organizados racialmente em Salvador. No estudo, o bairro da Pituba, de maioria branca registrou um número expressivo de substâncias entorpecentes. Entre os meses de junho de 2019 e fevereiro de 2021, 3.040 eventos de violência foram monitorados e constatados que os bairros onde as mídias identificam maior registro de casos relacionados à violência são ocupados por pessoas pretas. Destacando São Cristóvão, Mata Escura, Sussuarana, Itapuã e Lobato. Ribeiro disse que esse resultado mostra que a política de segurança pública de guerra às drogas é um pretexto de um governo racista que tem como projeto aprisionar, matar e controlar a população preta baiana. O também historiador revela que a mídia baiana não considera os pou-


OPINIÃO

cos bairros da cidade que são ocupados majoritariamente por pessoas brancas e que nenhuma dessas pessoas aparece no monitoramento das notícias. “O governo e a mídia baiana distingue, sem dar nomes, os territórios intocáveis, estereotipando e trazendo uma semiótica de territórios ‘naturalmente’ violentos”, concluiu em entrevista para o portal notícia preta. Guerra às drogas Em maio de 2021, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA publicou um relatório contendo a análise das Políticas Públicas sobre Drogas no Orçamento Federal nos anos de 2005 a 2019. Os dados revelaram, por exemplo, que do orçamento total destinado à política sobre drogas, apenas 0,2% foi destinado ao Ministério da Saúde em 2019. Por outro lado, no mesmo ano, foram investidos 3% do valor total do orçamento em ações de repressão, efetivadas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Conforme o Relatório Mundial sobre Drogas, publicado em 2021 pelo Escritório da ONU sobre Drogas e Crimes, entre 2010 e 2019 o número de consumidores de drogas ao redor do mundo aumentou em 22%. “Primeiro, devemos problematizar o motivo de determinadas substâncias psicoativas serem proibidas e outras não. Segundo: Quais as razões e critérios para essa escolha? Criminalizar tem sido eficaz para alcançar a redução do consumo e da oferta? Essas discussões são essenciais, afinal as substâncias psicoativas (ópio, maconha, cerveja, vinho, plantas alucinógenas) sempre estiveram presentes em nossa sociedade, utilizados pelos mais diversos tipos de pessoas, para fins recreativos, medicinais, e, até mesmo, relacionados aos aspectos culturais de determinadas comunidades. Por que então as drogas se tornaram um problema?”, questionou Tâmires Cardoso, defensora pública. Prioridades A defensora pública destacou que os dados demonstram as prioridades do governo Brasileiro e que a criminalização é ineficaz devido ao alcance dos objetivos declarados pelo Estado e pela mídia. “Os dados sobre encarceramento e letalidade policial parecem demonstrar que a chamada Guerra às Drogas possui um objetivo que

não é divulgado, qual seja o controle e a erradicação de uma parcela da população. E quanto a esse objetivo, percebe-se que essa guerra tem sido extremamente eficaz para o Estado”, complementou. De acordo com a regulamentação da Política Nacional de Drogas instituída no Brasil, pela Lei nº 11.343 de 2006, foi instituído que o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) prescreva medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Estabelece também normas para repressão ao tráfico ilícito de drogas, definindo crimes e providências. O SISNAD deve atuar de forma articulada com o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). “Existe duas possibilidades no decreto, porém os dados demonstram que a escolha feita pelo Governo Federal, na prática, é o investimento na segunda parte, voltada para a criminalização e repressão”, diferenciou. Criminalização Segundo o Departamento Penitenciário Nacional o tráfico de drogas é o que mais encarcera, totalizando o percentual de 54,01% das prisões efetuadas no primeiro semestre de 2020. “Estamos historicamente alinhados com a noção de “guerra às drogas”, isso porque se investe mais recursos na erradicação da produção, repressão e criminalização, do que em ações de prevenção e redução de danos”, aplicou. Em 2019 foi promulgado o Decreto nº 9761 que estabeleceu e regulamentou a Política Nacional sobre Drogas. A lei contém previsões sobre programas de prevenção e redução de danos, políticas públicas voltadas para saúde dos usuários/ dependentes e atendimento multidisciplinar. “É preciso cobrar do Estado a efetivação dessas leis. O debate sobre as drogas, necessariamente, deve abordar questões como racismo estrutural, encarceramento em massa e letalidade policial. Precisamos desenvolver um olhar crítico sobre as escolhas e prioridades do Estado na implementação da Política Pública de Drogas”, cessou Cardoso.

Abayomi | 21



SAÚDE

Anemia falciforme: doença é predominante em pessoas pretas Mesmo afetando mais de 50 mil pessoas no Brasil, 47% da população desconhece a doença falciforme, a maior incidência está no estado da Bahia Dalila Brito Fotografia: Ronald Santos Cruz

pessoas brancas. A formação médica descoonsiderada uma alteração genética que nhece os conjuntos de doenças prevalecentes causa a deformação das hemácias (gló- nessas pessoas e o impacto do racismo no bulos vermelhos do sangue), assumindo acesso à saúde. o formato de foice (por causa disso o nome falciforme), a doença falciforme é uma condição hereditária, designada pela hemoglobina S (Hb Sintomas S) e engloba um conjunto de enfermidaAs formas mais comuns des. No caso de pesda doença são: a anemia soas portadoras, as falciforme (Hb SS), a S hemácias, responsátalassemia, a microdrepaveis pelo transporte nocitose e as duplas hetedo oxigênio para todo rozigoses Hb SC e Hb SD. o corpo, são mais ríHá ainda as pessoas que gidas e pegajosas, apresentam o traço falcipor isso, enfrentam forme, que na maioria das dificuldade na pasvezes, não desenvolvem sagem pelos vasos os sintomas da doença. sanguíneos, gerando Dentre as principais comuma série de compliplicações enfrentadas por cações. Por ser uma pessoas nesta condição doença de caráter estão: crises de dor, caurecessivo, o portador sadas pela obstrução do precisa que o gene fluxo sanguíneo; Síndroalterado seja transme Torácica Aguda, que mitido pelo o pai e a mãe. pode incluir sintomas como dor no peito, febre, tosse, infiltrados pulmonares e baixo nível de oxigênio; AVC e infecções; além do compromeDe acordo com o Ministério da Saúde (MS) no timento de órgãos como pulmões, coração, osBrasil, cerca de 8% da população preta é diag- sos, rins, fígado, retina e pele. nosticada com anemia falciforme e a patologia é considerada um problema de saúde pública. Presente, principalmente, na África, penínsuA predominância na população preta dá-se por la arábica, parte da Ásia, América e parte do fatores genéticos, mas pode se manifestar em sul da Europa, a condição afeta cerca de 300 a

C

Abayomi | 23


SAÚDE

400 mil pessoas em todo o mundo, sendo mais frequente entre pessoas pretas. Segundo dados do Ministério da Saúde, no Brasil, a maior incidência está no estado da Bahia, onde 0,2% das crianças nascem com anemia falciforme, forma mais grave da doença. Mesmo sendo a alteração genética mais presente no mundo e atingindo mais de 50 mil brasileiros, dados do estudo ‘Percepção dos brasileiros sobre a Doença Falciforme’, realizado pelo Ibope, mostram que, aproximadamente, 47% da população nacional desconhecem este problema. O desconhecimento e a falta de informação adequada contribuem para a invisibilidade das pessoas que enfrentam a doença. Portadora A jovem Gabriela Santos da Cruz foi diagnosticada com anemia falciforme ainda nas primeiras semanas de vida, através Abayomi | 24

do teste do pezinho. Dezessete anos depois, a adolescente segue convivendo com a falta de informação e compreensão das pessoas ao seu redor. “Muita gente não entende. Muitos não sabem sobre a anemia falciforme e falam que é falta de alimentação e de itens como feijão… Quando digo que não posso correr muito, entrar no mar ou piscina, ninguém entende”, revelou. Gabriela, assim como tantas outras pessoas, enfrenta diversas limitações causadas pela sua condição genética. Segundo ela, tarefas simples como estar exposta a baixas temperaturas, carregar objetos pesados ou produzir movimentos que requeiram certo nível de esforço são suficientes para desencadear crises de dor. “Sinto muitas dores nas pernas e nas articulações. O cor-


SAÚDE

po todo dói. Também tenho tonturas e outros os confirmatórios são mais elaborados e desintomas que já fazem parte da minha rotina”, terminam o perfil da hemoglobina, permitindo enumerou. reconhecer se a pessoa tem a doença falciforme. Dentre eles estão o teste de eletroforese, a Embora tenha sido diagnosticada precocemen- técnica de Cromatografia Líquida de Alta Perte, a adolescente ainda encontra dificuldades formance (HPLC) e focalização isoelétrica, que para realizar o tratamento. Segundo ela, a reali- são mais sensíveis e permitem a quantificação zação de fisioterapia é um dos principais recur- da hemoglobina, proporcionando um diagnóstisos que têm contribuído para o controle do seu co mais seguro. quadro, mas ainda não é o suficiente para garantir uma vida mais próxima da normalidade. Para a farmacêutica e doutora em patologia, Elisangela Adorno, além do diagnóstico, é importante garantir o acompanhamento médico Tratamento para essas pessoas a fim de coletar dados que ajudem a equipe a conhecer melhor o estado Para a pesquisadora da Fiocruz Bahia, Maril- geral do indivíduo. “Hoje é possível fazer a deda Gonçalves, é importante que indivíduos com terminação de marcadores moleculares e, condoença falciforme recebam acompanhamento sequentemente, auxiliar os médicos na tomada multidisciplinar, a fim de garantir maior qualida- de decisão em relação à conduta mais adequade de vida. da para aquela pessoa com doença falciforme”, destacou. “É necessário que o acompanhamento desses pacientes, principalmente aqueles que têm a forma mais grave da doença, a anemia falci- Redes sociais como ferramenta de informação forme, seja seguido por uma equipe multiprofissional, porque é uma doença que envolve o acompanhamento com várias especialidades Diante da invisibilidade da doença, as redes soclínicas”, considerou. ciais têm sido utilizadas como ferramenta para divulgação de informações científicas e compartilhamento de experiências entre conviventes e Diagnóstico pessoas nesta condição. Um exemplo disso é o perfil ‘Divulga Doença Falciforme’, uma iniciaO diagnóstico precoce é fundamental para ga- tiva da Fiocruz Bahia, que compartilha artigos, rantir qualidade de vida para as pessoas com dicas e informações, utilizando linguagem simdoença falciforme. A principal forma de desco- ples e acessível. brir a enfermidade é através do teste do pezinho, que deve ser realizado na primeira sema- Pensando em compartilhar experiências com na de vida. O exame é feito através da análise outras pessoas na mesma condição, a produdo sangue coletado do calcanhar do recém- tora de conteúdo Simone Bruna, reúne mais de -nascido e permite identificar doenças metabó- seis mil inscritos no seu canal do YouTube onde licas, genéticas, enzimáticas e endocrinológi- compartilha relatos de experiências sobre a sua cas. Desde 2011, o teste do pezinho faz parte rotina e os desafios da doença falciforme. Com do Programa Nacional de Triagem Neonatal, do o mesmo objetivo, o assunto virou tema do doMinistério da Saúde, e pode ser realizado gra- cumentário ‘Meia Lua Falciforme’, dirigido por tuitamente, através do Sistema Único de Saúde Débora Olimpio e Cássio Kelm, no qual mostra - SUS. pacientes e profissionais da saúde que relatam as dificuldades do diagnóstico, de atendimento, Há ainda os testes destinados ao diagnóstico como o racismo impede um melhor tratamento tardio, que podem ser os de triagem e confir- e as limitações causadas pela doença que, sematórios. Os testes de triagem são aqueles que gundo o Ministério da Saúde, atinge mais de 50 identificam a presença da hemoglobina S. Já mil pessoas no Brasil. Abayomi | 25


SAÚDE

Saúde das mulheres em privação de liberdade: retratos de violências e exclusões Celas superlotadas, coações e péssimas condições de higiene são alguns dos fatores responsáveis pela falência do sistema prisional da cidade de Feira de Santana Karla Souza

I

magine um ambiente a partir das seguintes descrições: muitas pessoas pretas capturadas e postas em um espaço pequeno, superlotado e insalubre; sujeitos que trabalham em sistema de exploração e sonham com a liberdade, onde os homens são separados das mulheres; grilhões nas pernas e pulsos; doenças proliferando, assim como estupros, torturas, suicídios, assassinatos, e também revoltas. O Cenário visualizado foi uma cela penitenciária ou um navio negreiro? “Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura, até que aportamos nas praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão, fomos amarrados em pé e, para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com

Abayomi | 26

mesquinhez; a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura, asfixiados e famintos” (Maria Firmina dos Reis. Úrsula. 1859, p. 117). No século XIX, Maria Firmina dos Reis, primeira romancista brasileira, realiza a descrição de um navio negreiro em sua obra e carrega na mesma escrita características do cárcere sustentado até a atualidade. Ainda hoje o processo e mecanismos de escravização seguem por meio do encarceramento e demais privações de liberdade e socialização. Egressa Madalena Silva* é uma ex-detenta que esteve em situação de cárcere por três vezes e enfrentou nesse período problemas relacionados a maus tratos, má alimentação, conflitos com parceiras de celas e


SAÚDE

descaso. Apesar disso, nenhum sofrimento daquele período pôde ser comparado a separação do seu filho, ainda bebê. “Fiquei sem ele durante três anos, me vi dependente, sozinha, enfrentei brigas constantes com as minhas colegas de celas e as visitas íntimas eram apenas uma vez por mês. Quando meu filho nasceu, conheci uma detenta que ficou apenas um mês na prisão e como ela recebeu ordem de soltura, pedi pra que ela ficasse com o meu filho enquanto eu cumpria a pena. Durante esse tempo que fiquei sem a minha criança, sofri bastante. Não tive escolha, mas consegui recuperá-lo depois que fui solta”, narrou. Patologia Sífilis e HIV são as patologias mais comuns na população carcerária feminina, atingindo respectivamente 51,43% e 28,57%. Outras doenças afetam 8,57% dessas mulheres, como a hepatite e tuberculose, apresentam ocorrência de 5,71% cada. Entre essas penitenciárias só há dados de equipes e estrutura física de maternidade em Feira de Santana, contando com um centro de referência materno-infantil, um dormitório adequado para gestantes e capacidade para três bebês. Não há registros em equipe própria de pediatria, ginecologia, nutricionista, cuidadores, creche, e capacidade de crianças na creche na unidade feirense ou qualquer outra cadeia baiana. Apesar da falta de informações em itens específicos no levantamento divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional, o estado da Bahia chegou a quase 10 mil procedimentos de saúde entre os cinco últimos meses de 2019. Os atendimentos envolvem intervenções cirúrgicas (0,04%); suturas, curativos (16.23%); vacinas (2,99%); exames e testagens (14,7%); consultas psicológicas (22,49%); consultas odontológicas (6,95%); consultas médicas externas (2,01%) e internas (34,59%).

às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional garante a humanização do cumprimento da pena, protegendo os direitos delas. “Sabemos que existe muita negligência à saúde das mulheres encarceradas, que ocorre também por discriminação à população presa, afetando, assim, o direito à saúde”. As mulheres presidiárias devem ser atendidas por uma profissional de saúde que seja mulher, e em caso de ausência, deve estar presente uma mulher da equipe de saúde, durante a realização dos procedimentos, como exames ginecológicos e consultas médicas. Essas pessoas têm o direito a assistência social, aconselhamento e tratamento de doenças e infecções sexualmente transmissíveis, através de atividades preventivas, como: distribuição de preservativos; material educativo; ações de diagnóstico; e tratamento. As detentas grávidas têm o direito ao pré-natal durante os nove meses de gestação e a realização do parto em unidade hospitalar pública (SUS), fora da unidade prisional. Após o parto, essa mulher deve estar custodiada em uma unidade prisional que possua berçário e uma equipe de saúde especializada no atendimento e acompanhamento da mãe e do bebê. “Enquanto profissional da saúde, não devemos julgar, mas sim atender de maneira igualitária todo e qualquer ser humano, respeitando seu gênero, identidade, enfim, respeitando, acolhendo e cuidando da saúde em sua totalidade. Essa população deve ser assistida de maneira integral e se tornar parte das ações de atenção à saúde”, adicionou Góes. Frente Nacional

Atendimento médico

Nesse momento existem grupos e organizações que lutam pela saúde dessas pessoas dentro dos presídios do Brasil. Dezenove frentes estaduais promovem ações por meio da Agenda Nacional pelo desencarceramento, com o intuito de promover apoio, resistência, fortalecimento e articulação para familiares de pessoas privadas da liberdade a fim de buscar meios para o fim das prisões e violações de direitos.

A Médica Generalista Janine Góes diz que essas mulheres que estão em situação de cárcere merecem atendimento em saúde, gratuito e de qualidade, pois a Política Nacional de Atenção

A Agenda pauta dez diretrizes, sendo elas: suspensão de qualquer verba voltada para a construção de novas unidades prisionais ou de internação; exigência de redução massiva da Abayomi | 27


SAÚDE

população prisional e das violências produzidas pela prisão; alterações legislativas para a máxima limitação da aplicação de prisões preventivas; contra a criminalização do uso e do comércio de drogas; redução máxima do sistema penal e retomada da autonomia comunitária para a resolução não-violenta de conflitos; ampliação das garantias da LEP (Lei de Execução Penal); ainda no âmbito da LEP, abertura do cárcere e criação de mecanismos de controle popular; proibição da privatização do sistema prisional; prevenção e combate à tortura; desmilitarização das polícias e da sociedade. Representante Eleita pelo o Comitê Nacional de Prevenção e Combate a Tortura, Elaine da Paixão é uma articuladora da Frente Estadual pelo Desencarcera Bahia que compõe a Agenda Nacional pelo desencarceramento e representa detentos e detentas que, de acordo com familiares, enfrentam a falta de medicamento, produtos de higiene pessoal, diminuição dos horários de banho de sol e maus tratos como: coação, ameaças e alimentação precária. “Temos em Feira de Santana um diretor que é militar, já respondeu pela a lei Maria da Penha e que direciona um presídio feminino. Quando a gente denuncia a violação de direitos, por exemplo, no conjunto penal feminino de Feira, de Salvador, ou de outros municípios, estamos cobrando algo que já existe tanto na constituição, que são para presas provisórias, quanto na LEP, destinada àquelas que já passaram pela execução penal”, declarou. A representante não espera medidas de políticas públicas de saúde por parte do Estado para essas mulheres devido o cansaço com as inúmeras cobranças que o comitê faz e nada é feito em relação ao tratamento. “Não esperamos absolutamente nada do Estado! Lidamos todos os dias com a falta de medicamentos, falta de absorventes. Mesmo assim, cobramos através de ofícios. Temos nesses presídios mulheres que usam jornais e miolo de pão para substituir o absorvente no período menstrual”, acusou. Elaine afirma também sua insatisfação com a prisão de mulheres por comportamento considerado famélicos (furto por comida para necessidade básica pessoal ou de terceiros) que segundo o art. 24 do Código Penal (1940) não Abayomi | 28

é considerado crime. “A nossa frente estadual é um ponto de apoio para os familiares dessas pessoas e uma forma de articulação e fortalecimento de meios para o fim dessas prisões. Estamos aqui para cobrar do Estado o que deve ser cobrado”, confirmou. A ausência de políticas públicas de saúde para essas mulheres de Feira resultou numa série de privações que estatisticamente representa as negligências estatais. Para Paixão o descaso do governo afeta o acesso para uma vida digna e a desinformação sobre a saúde delas coopera para que esses abusos aconteçam. “Quando falamos que existem mulheres que pegam colchões como absorventes, estamos falando de violações de direitos. Muitas dessas mulheres estão presas tendo anemia falciforme, dentro de um lugar que é propício a tuberculose. Quando entramos nos presídios já vemos um local insalubre. Muitas delas são mães e precisam deixar os filhos com os parentes, não recebem visita com a mesma frequência que os homens. Existe uma tentativa de acabarem com os relacionamentos entre as pessoas que já estão presas e normalmente essas mulheres são associadas aos crimes dos maridos, mesmo que não tenham participação”, concluiu. O que diz a lei? A advogada Isis Kataoka diz que por lei, o estabelecimento prisional de Feira de Santana, deve fornecer mensalmente, produtos de higiene para essas mulheres, popularmente chamados de kit higiene, que são compostos por escova de dente, creme dental, sabonete, papel higiênico e absorvente íntimo. As celas em que se encontram as detidas devem ter instalações e materiais necessários para higiene feminina, incluindo toalhas sanitárias, que devem ser disponibilizadas gratuitamente, pelo estabelecimento prisional e suprimento regular de água. “É importante destacar que ao descumprir os direitos dessas mulheres que estão privadas de liberdade, não priorizando um atendimento humanizado, o estabelecimento prisional está violando uma série de dispositivos legais, tais como: a Constituição Federal, a Lei de Execuções Penais, o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), a política nacional de Atenção Integral à saúde da Mulher (PNAISM) e a Resolução da ONU de regras mínimas para o tratamento de


SAÚDE

mulheres presas (Bangkok Rules)”, comunicou. Para a especializada em Direito Penal, essas mulheres encarceradas precisam receber o atendimento no próprio estabelecimento prisional e que nele deve haver uma equipe de saúde multidisciplinar, disponibilizando medicamentos de uso contínuo, atenção em saúde mental, imunizações, avaliação e orientação para planejamento familiar. “Toda detenta deve ser incluída no programa estadual de prevenção do câncer de mama e de colo de útero e deve ser encaminhada regularmente para a realização de exames laboratoriais, e em caso de possuir diagnóstico de câncer, deve ser encaminhada ao tratamento necessário. A dignidade da pessoa humana deve ser respeitada em qualquer hipótese, especialmente, no caso das pessoas privadas de liberdade”, aconselhou Kataoka. Racismo estrutural O racismo estrutural é um dos mecanismos utilizados para minimizar os formatos de preconceito, garantindo que a população preta e pobre não acesse aos direitos civis, trabalhistas, ambientais, ou direitos básicos, esses quais são garantidos de forma plena e habitual para pessoas brancas. E como resultado das subtrações dos direitos humanos, a colonialidade continua alimentando a exploração por controlar, torturar fisicamente e psicologicamente povos que estão às margens da sociedade, fortalecendo o genocídio e epistemicídio no Brasil. Com o passar dos anos, a população carcerária tem apresentado uma característica cada vez mais homogênea, sendo geralmente composto por homens (95,1%), jovens, negros (66,7%) e com baixa escolaridade, de acordo com informações do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020), divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O estudo também destaca que o quantitativo de pretos nas prisões aumentou em 14%, se opondo a taxa de brancos que reduziu para 19% nos últimos 15 anos. Mulheres pretas Mesmo com a representação de 27,8% da população brasileira, as mulheres pretas não ocupam de forma equivalente os espaços de trabalho, poder, riqueza ou qualquer outra representação

positiva. Partindo do conceito da interseccionalidade - conceito de cruzamento de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação - as pretas são atravessadas minimamente de modo duplo pelo preconceito, sendo eles o de raça e de gênero. Frisando que tanto no período pré-pandemia, quanto em 2020 e 2021, elas continuaram a ser as mais afetadas pela pobreza, 38% neste ano, e extrema pobreza, 12,3% em 2021, conforme dados do Made-USP. O número de pessoas do sexo feminino no sistema prisional entre 2008 e 2019 teve o crescimento de 70,9%, conforme o Levantamento Nacional de Informações Penitenciarias (INFOPEN, 2019). De acordo com o estudo, a composição da população por cor/raça nas penitenciarias femininas brasileiras, no período de julho a dezembro de 2019, teve 21.399 pretas (67%), mais do dobro do somatório formado por 10.331 brancas (32%), 243 amarelas (0,7%) e 65 indígenas (0,2%). As encarceradas também são em maioria pobres e semi-alfabetizadas. O perfil majoritário através das estatísticas demonstra como as penalizações e negligências aplicadas na população de presidiárias no Brasil, especificamente no presídio de Feira, reproduz um sistema racista, patriarcal e capitalista, o qual não necessita de uma reforma e sim de uma cessação organizacional para assim haver a edificação de planos que de fato possam promover reparação histórica a todos os acorrentados ao longo dos últimos cinco séculos de repressão, exploração e genocídio. A primeira fonte dessa reportagem, por segurança, preferiu não se identificar. Os dados fictícios a exemplo de nome e sobrenome estão identificados com *. A fim de entrevistar uma dessas mulheres que estão em privação de liberdade, a reportagem entrou em contato com o Major Allan Araújo, atual diretor da unidade prisional de Feira de Santana, e com o departamento de assistência social do local. Aguardamos resposta. O espaço está aberto para manifestação. Abayomi | 29


POLÍTICA E ECONOMIA

“Sou moradora do Alto do Rosarinho”

Núcleo feminino e centro comunitário impactam a comunidade com ações voluntárias para pessoas carentes e mulheres vítimas de violência doméstica em bairro de Cachoeira Texto e fotografia: Redação Abayomi

A

lexsandra Freitas, Luzinete dos Santos, Maria Silva e Thaís Gomes, são quatro mulheres periféricas que formam o Núcleo de Mulheres do Alto do Rosarinho. Essas lideranças contam com a colaboração de mais sete moradoras, entre 21 aos 39 anos de idade, em sua maioria, mães pretas e solos ou que na prática exercem a maternidade solo, mesmo tendo companheiros. “Iniciamos esse núcleo com um projeto de fortalecimento de mulheres do Alto do Rosarinho a partir de um edital sobre enfrentamento de violência doméstica, baseada na minha própria história e pensando nas vivências de outras mulheres aqui da comunidade. Devido ao sucesso do projeto, decidimos continuar e formar um núcleo de apoio”, disse Thaís Gomes, uma das fundadoras do núcleo. Constituído por mulheres de terreiros, periféricas, pretas, quilombolas, agricultoras e lideranças políticas, o coletivo enfrenta frequentemente situações de censura, violações de direito, violência de gênero e racismo. “Sofremos provocações, boicotes, ofensas de homens que se incomodam com as nossas ações, que duvidam da Abayomi | 30

nossa capacidade de liderar um projeto, apenas por sermos mulheres, ataques de companheiros ou ex-companheiros das vítimas que acolhemos”, notificou. Atividades A unidade está situada no bairro Alto do Rosarinho, no prédio da antiga Creche Municipal, onde fica a sede do Centro Comunitário e da Organização Comunitária do Alto do Rosarinho (Cecor), com intenção inicial de atender apenas mulheres vítimas de violência doméstica. O núcleo promove gratuitamente encontros semanais e diálogos sobre autoconhecimento, fortalecimento, sororidades (irmandade e união entre mulheres) e direitos para moradoras do bairro. Durante a semana são realizados encontros semanais, rodas de conversa, eventos a distância transmitidos na plataforma do youtube e dinâmicas com foco em gênero e raça. “Desenvolvemos por conta própria atividades e nosso lanche. Nossa principal dificuldade é a falta de apoio, recurso e estrutura. Um dos nossos objetivos é termos uma ‘casa-abrigo’ para mu-


POLÍTICA E ECONOMIA

lheres vítimas de violência doméstica daqui do bairro. Nesse momento, contamos apenas com a colaboração comunitária e com as companheiras do grupo”, relatou Gomes. Acolhimento O grupo atende mulheres como Daiane Santana que recebe apoio do ponto de acolhimento desde a sua fundação. “Eu estava me esquecendo enquanto mulher”. Para a moradora, esse projeto foi uma válvula de escape numa experiência traumatizante. Desde então, o apoio do núcleo se tornou primordial na vida ela. “Sou moradora do alto do Rosarinho e tenho medo que esse núcleo acabe. Espero que o projeto continue. Lá eu sou encorajada, me sinto mais forte para continuar vivendo, aprendo sobre autoconhecimento. Esse núcleo me ajuda bastante, possui uma grande importância na minha vida. Estava passando por um momento muito delicado e esses encontros me fortaleceu e ainda me fortalece. Elas me ajudaram a enfrentar os meus problemas e tomar uma decisão na minha vida e perceber de que eu não estou só”, confessou Santana. Cecor O Cecor foi fundado em 2020 pelos os moradores do bairro, após a chegada da pandemia do novo coronavírus no Brasil. O objetivo inicial era a elaboração de um Plano de Enfrentamento e combate a disseminação do vírus no local. A partir disso, foram articuladas ações de amparo aos moradores que estavam desempregados e em situação de extrema pobreza. Para evitar a disseminação de notícias e dados falsos sobre os números de contaminados, o grupo fazia boletins informativos e orientava os moradores da rua sobre as medidas de prevenção ao vírus. As informações eram de circulação local e compartilhada nas redes sociais da comunidade.

No Plano de Enfrentamento constava: distribuição de alimentos, kits de higiene, distribuição de sopas (organizado por quatro voluntárias) e o projeto de plantação de alimentos. O projeto Horta Comunitária teve o apoio financeiro do Grupo Mastrotto através do Edital Sócio Ambiental 01/2020. Na horta são produzidos alimentos orgânicos para o abastecimento de famílias carentes e reafirmar a sobrevivência para construir estratégias de luta. “Na falta de apoio político, decidimos construir sozinhos a nossa sobrevivência durante a pandemia. Tivemos o apoio desse edital para fazermos a nossa própria horta”, aspirou Antônio Roque dos Santos Silva, atual presidente do Cecor.

Horta comunitária do Alto do Rosarinho Foto: Arquivo do Alto do Rosarinho Abayomi | 31


POLÍTICA E ECONOMIA

da escravidão. Com o objetivo de demarcar a identidade e o sentimento de pertencimento, tanto a Igreja, quanto para moradores, o local foi chamado de ‘Rosarinho’. Nele, é possível encontrar o Terreiro Ilê Kaio Alaketu Axé Oxum - primeira casa da nação Ketu - fundado pela Yalorixá Galdina Silva, conhecida popularmente como Mãe Baratinha. Foi nesse terreiro de candomblé que posteriormente, deu origem a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira (confraria religiosa afro-católica, formada unicamente por mulheres pretas, que por muito tempo foi responsável pela alforria de pessoas em situação de escraFila para a distribuição do Sopão Cecor vidão). “Historicamente essa população preciFoto: Arquivo do Alto do Rosarinho sou ‘aquilomba-se’ para sobreviver e resistir até aqui”, incluiu Camila Santos, assistente social. Alto do Rosarinho O bairro periférico Alto do Rosarinho está localizado no Recôncavo Baiano na cidade de Cachoeira, a cerca de 117 km de Salvador-Ba. Tombado pelo IPHAN, o bairro Alto do Rosarinho possui uma importância cultural por contribuir para a história local e do Brasil. Anteriormente conhecido como Zona Recuada, o bairro possui hoje a maior concentração de pessoas pretas da cidade por ter sido instituído no século XIX no período escravagista. De acordo com pesquisadores, o local pertenceu a um fidalgo português que ao retornar para Portugal teria doado o espaço para a Igreja Terceira Ordem do Carmo. O bairro faz parte do roteiro turístico do município por possuir terreiro, igrejas e dois cemitérios antigos - Ordem Terceira do Carmo e o Cemitério dos Nagôs, construído para autoridades pretas da época. No alto da colina fica a Igreja Nossa Senhora do Sagrado Coração do Monte Formoso. O local construído por e para pessoas pretas, era o ponto de encontro entre pretos e abolicionistas para discussões a favor da libertação

Abayomi | 32

Impacto comunitário

Para a assistente social, as articulações femininas e comunitárias feitas no bairro são importantes socialmente, por mobilizar a comunidade, transmitir cuidado, apoio e promover assistência local. “Ações promovidas por grupos como as do Rosarinho são atitudes revolucionárias”. A pesquisadora salienta que o Estado possui uma hierarquia política maior, por isso, cabe a esses governantes estaduais e municipais promoverem e apoiar ações de enfrentamento e bem estar dessa população. “São essas articulações que fazem o povo preto sobreviver ao descaso e projeto de morte do governo. Mas é importante ressaltar a necessidade de enfrentar esses problemas, sem deixar de cobrar atitudes de quem foi escolhido para pensar e desenvolver esses projetos. A responsabilidade de promover e efetivar políticas públicas aqui na Bahia é do governo do estado e do município”, pontuou Santos.


Aponte a Câmera para o QR Code

Novo álbum de Baco Exu do Blues “Quantas vezes você já foi amado?” Esculte agora

Abayomi | 33


POLÍTICA E ECONOMIA

Boy lixo, mãe solo: Desemprego, medo e sobrecarga

A vulnerabilidade à pobreza é maior na Bahia, pois oito em cada dez mães pretas vivem com menos de R$ 413 por mês Cíntia Falcão Fotografia: Caíque Fialho

D

ados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) na pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil do ano de 2018, constataram que a incidência da pobreza na Bahia é maior entre mulheres que vivem sem apoio dos parceiros. 75,1% das mães solos são pretas ou pardas e recebem mensalmente menos de R$ 413. Embora existam mães solos pretas no Brasil, a Bahia apresenta maior incidência de pobreza, sendo o percentual nacional (63%) mais baixo que o baiano (75,1%). Nessa edição foram registradas 682 mil pessoas. O instituto Data Popular, em uma pesquisa divulgada pela agência Brasil em 2015, mostra que entre as 67 milhões de mães brasileiras, 31% são solteiras. São aproximadamente 20 milhões de mulheres que cuidam dos seus filhos sem ter o auxílio paterno. De acordo com o IBGE, enquanto os homens ocupam a maioria dos cargos políticos no Brasil, as mulheres são as que mais executam trabalhos domésticos.

Abayomi | 34

O filho é da mãe Repetidas vezes são reproduzidas falas como: “a mãe é quem deve criar os filhos sozinha”. São as mulheres que enfrentam opiniões de pessoas ao redor sobre a vida e educação dos seus filhos. Trazendo para o senso comum, qual mãe solo ou chefa de família nunca ouviu comentários preconceituosos como: “O filho é da mãe”, logo após dela se queixar da ajuda paterna, cuidado, atraso ou pensão alimentícia? A maternidade é compreendida socialmente como um dom feminino, de que toda a mulher só será realizada e feliz se tiver ou gerar um ou mais filhos. Nessa lógica, são retirados os fardos que a maternidade impõe. A maioria das mães lida com genitores que abandonam suas responsabilidades parentais e que, em muitos casos, só tem a ajuda básica do pai com fraldas, por exemplo.


POLÍTICA E ECONOMIA

Redes de apoio Como muitas dessas mulheres abriram mão dos sonhos para dar conta da maternidade, além de lidar com o abandono dos ex-companheiros após o término do relacionamento, a criação de redes de apoio entre mães e mulheres pretas é uma tática utilizada para aliviar a dor. Laiane Cruz é uma mãe solo de 22 anos que atualmente trabalha como garçonete para sustentar sozinha a filha de três anos e conta com a ajuda da mãe e da irmã. “Quando a minha filha nasceu, ela teve ajuda básica do pai. Com o passar do tempo ela foi crescendo e não teve tanta ajuda assim e hoje em dia ele não paga mais a pensão, é raro ele dar alguma coisa a ela”, elencou. Laiane continuou dizendo que conta com redes de apoio através de outras mães que passaram e passam pela a mesma experiência e que a partir daí se sente mais tranquila. “A minha mãe me ajuda com algumas coisas da minha filha, a tia também ajuda. Fica um pouco mais fácil para mim com a ajuda dessas pessoas”, acrescentou.

Chefas de família Conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE em 2020, mais de 8,5 milhões de mulheres tiveram que sair do mercado de trabalho. No Brasil, 63% das casas são sustentadas por mulheres que vivem abaixo da linha de pobreza. Segundo pesquisa do IBGE, em apenas 34% das famílias chefiadas por mulheres há um cônjuge. Mulheres chefas de família (responsáveis pelo sustento da casa e dos filhos) lidam com a sobrecarga do tempo. Diamila Rodrigues é uma mãe que mesmo tendo um companheiro, existem momentos que se responsabiliza sozinha com a educação da filha. A agente de endemias considera doloroso chefiar sua família nos momentos que o companheiro precisa ir traba-

lhar. “Eu tenho que ocupar o espaço do pai no momento que ele viaja, minha filha sofre muito, fica sem comer e eu tenho que dar um suporte maior”, queixou.

Realidade brasileira A maternidade pode ser uma surpresa na vida de algumas mulheres porque nenhum método contraceptivo tem 100% de eficácia e o aborto no Brasil só é permitido em casos específicos, que não inclui a falha dos métodos de prevenção. Segundo a socióloga Keith Ana, as conquistas femininas de direitos sociais trouxeram às mulheres a possibilidade de trabalhar fora de casa, mas não significou necessariamente que existiria uma divisão do trabalho doméstico. É comum encontrar homens que desde o momento do anúncio da gravidez optam por não cuidar da criança. Keith Ana salienta que a cobrança feita às mulheres não é feita aos homens. “Quando eles realizam tarefas domésticas socialmente entende-se que esse homem está ajudando a mulher. Está enraizada a ideia de que aquele trabalho de cuidar é da mulher, então não se entende que os homens também são responsáveis pela criação dos filhos, mas apenas por prover a casa”, afirmou a socióloga.

Efeitos psicológicos De acordo com a psicóloga Ilayne Sá, especialista em terapia cognitiva comportamental, a sobrecarga de funções da mãe que cuida da família sozinha pode trazer consequências negativas tanto para a mãe quanto para o filho. “A criança vendo outras famílias tendo diferentes formas de figuras representativas começa a perceber que o centro dela é baseado somente em uma pessoa e isso sobrecarrega essa mãe. Consequentemente a criança fica mais dependente da mãe porque ela sabe que a mãe é o único ponto seguro dela, então ela não consegue dividir as atenções com outra pessoa”, finalizou a psicóloga. Abayomi | 35


POLÍTICA E OPNIÃO

Para cada senhor de engenho, uma sinhá Mulheres brancas e a desonestidade identitária

Bárbara Borges e Francinai Gomes

A

s mulheres brancas precisam, com urgência, nomear sua existência a partir dos marcadores sociais, romperem a desonestidade racista e marcar o seu lugar de fala, desfazendo, assim, a universalidade que as beneficia.Vocês não são apenas mulheres, são mulheres brancas. Mulher e branca. Voltando 133 anos, vocês seriam sinhás. Elas, que também estavam no pacto político-social da escravização, que torturaram, mataram e lucraram com o sangue do povo negro. Isso nada tem a ver com ofensa ou briga, estamos falando sobre responsabilização histórica e construção de identidade. Dizemos isso porque vocês, especialistas da fé cristã e do ideal romântico, gostam de recorrer à culpabilização para transferir a culpa enquanto nos pintam de raivosas. A diversidade e stá cada vez mais branca, porque a intenção das classes dominantes no Brasil é manter os negros fora da mesa de negociação enquanto eles resolvem suas desigualdades. Este é o plano, ao dizer “mulher” quando se deveria dizer “mulher branca” isto fica ainda mais nítido. Quando uma mulher branca avança, pessoas negras seguem ficando séculos atrás. Vocês já devem ter ouvido a frase “eles que são brancos que se resolvam”, e é fato que eles têm se resolvido, provando que a identidade racial consolidada na universalidade branca construiu um forte senso de “eu” e de comunidade. Enquanto isso, discutimos se gênero vem antes ou depois de raça, quando na verdade essa ideia não tem intenção de nos aproximar de mulheres negras, mas sim das mulheres brancas. Não estamos dizendo que a discussão sobre gênero não é importante, mas sim como existe uma busca incessante pela construção de vínculo entre nós (mulheres brancas e mulheres negras/indígenas) que mais adoece do que abre caminhos. Temos tido dificuldade para entender isso porque seguimos completamente desarticuladas e enfraquecidas no senso comunidade. Aqui, a união nada tem a ver com ignorar conflitos, desigualdades e problemas dentro do próprio grupo; pelo contrário, eles servem para complexificá-la. É urgente que rompamos com ferramentas coloniais como o mito da democracia racial, a miscigenação e o ideal romântico, fundados por senhores e sinhás.

Abayomi | 36


POLÍTICA E ECONOMIA

Mulheres quilombolas na economia solidária: repensando a relação entre produção e lucro territorial iniciativa une artesanato e agricultura para articular oportunidades de geração, fortalecimento e coletividade Crislane Nunes Fotografia: Caíque Fialho

A

Economia Solidária (Ecosol) é um segmento que contribui diretamente para o desenvolvimento econômico e racial do empreendedorismo entre mulheres pretas e quilombolas. A Ecosol é uma alternativa inovadora e tecnológica para a geração do trabalho e inclusão social, pois forma correntes de apoio baseadas em princípios como: respeito a natureza, comércio justo e consumo solidário. Nesse mercado é possível que todas as pessoas vendam e comprem de maneira igualitária. O fortalecimento dessa economia territorial acontece nas produções artesanais e na agricultura familiar. Essas lideranças do campo e cidade que na maioria das vezes, foram estigmatizadas a um lugar de submissão, investem nessa forma lucrativa para escapar dos paradigmas raciais e de gênero nos espaços cercados de machismo, misoginia e exclusão. Cesol e Cediter Em Cruz das Almas, na Rua Agrônomo Maurício Coelho, no Recôncavo Baiano, existe o suporte técnico do Centro Público de Economia Solidária (Cesol), que é formado pela a Comissão Ecumênica dos Diretos da Terra (Cediter), um espaço que auxilia no processo de emponderamento, reconhecimento e formação de mulheres empreendedoras no território. Instituído pela Cediter, o Cesol Recôncavo, hoje direcionado por mulheres pretas e quilombolas, promove feiras solidárias (seis vezes por ano) na Praça Senador Temístocles/comunidades rurais, cursos, encontros e profissionalização de expansão comercial. O projeto foi implantado no ano de 2016 pelo o Governo do Estado, por intermédio da Secretaria de Trabalho, Emprego, Renda e Esporte (SETRE).

Através dessas produções artesanais e agrícolas desenvolvidas nesses centros de apoio e desenvolvimento de cursos profissionalizantes, mulheres das cidades de Cruz das Almas, Cachoeira, São Félix, Muritiba e Mangabeira estão sendo inseridas no mercado e quebrando paradigmas nos espaços cercados de pessoas que durante muito tempo, as enxergaram como submissas. Apesar do desafio, elas estão quebrando barreiras e liderando espaços que antes eram majoritariamente masculinos. Participação quilombola Maria Dionísia é mãe, mulher preta, quilombola que atua na vice-presidência da Associação Comunitária rural de Baixa Grande em Muritiba Bahia. A líder comunitária e representante do grupo “Frutos da Terra”, conta que sua trajetória no empreendedorismo foi uma maneira de resistir às dificuldades financeiras. “Eu me sinto fortalecida pela coragem que tenho pra lutar e articular ações para a comunidade. Não desisto, não desanimo mesmo com todos os obstáculos do cotidiano”, garantiu. Apesar de o projeto ter o apoio financeiro do Estado, o processo de ocupação no mercado formal e informal ainda é desafiador. Esses empreendimentos liderados e formados por mulheres pretas, redes e instituições propõem feiras solidárias e a participação de pessoas que vivem em situação de pobreza. Para Maria Dionísia esse apoio é uma oportunidade de reparação governamental e de crescimento coletivo. A participação dessas pessoas nas feiras vai além da comercialização, é a oportunidade de representação e valorização dos produtos produzidos e colhidos por mulheres pretas e quilombolas da sua comunidade. “Esse trabalho gera renAbayomi | 37



POLÍTICA E ECONOMIA

da para essas mulheres, e possibilita a criação de redes, de conhecer outras pessoas, outras histórias, compartilhar trajetórias e relatos que são de incentivos para muitas companheiras de luta da agricultura familiar. Participar desse movimento é uma oportunidade, um caminho para nós mulheres pretas”, exaltou. Maria acrescenta que esse modo de empreender incentiva os jovens da comunidade a lidarem com a geração de renda e a possibilidade de permanência dentro das comunidades quilombolas. As participações nas feiras livres trazem experiências e enriquecem as relações entre comunidades rurais e urbanas. “Quando as pessoas compram os produtos, não levam apenas produtos físicos e sim a história de cada pessoa envolvida no processo de construção, desde a matéria prima até o resultado final”, terminou Dionísia. Articulação política Para Maria Abade, coordenadora do Cesol Recôncavo, também mulher preta e quilombola, a economia solidária reafirma os laços afetivos e trajetórias de lutas de um povo preto, contra a descriminalização. Salienta que apesar do avanço, ainda é um espaço de desconstrução de paradigmas e descobertas, onde a solidariedade move as ações dessas mulheres. “Falar da história dessa economia no Recôncavo é motivo de gratificação, mas também é desafiador. Ela perpassa pelo mercado formal e informal, é troca, é ser solidário, compreensivo e ter amor pelo que faz. Essas feiras são nossas, é nosso espaço de comercialização, fortalecimento de vínculo, laço afetivo e articulação política”, defendeu. A também historiadora acredita que é preciso empenho das autoridades na construção de políticas públicas que impulsionem essa forma de mercado, considerando questões raciais e de gênero. “Esse é o dever do Estado de garantir apoio, visto que o mercado desconsidera a importância de pessoas pretas, por construir um modelo lucrativo egoísta e capitalista. Não existe Ecosol sem o recorte racial dentro das políticas públicas, o que a gente precisa compreender é que ainda é tímido, por que não é fácil buscar os nossos direitos e executá-los para o nosso povo”, atestou Abade.

Consumidor Rafael Silva consume os alimentos distribuídos nas barracas e aproveita a oportunidade para trocar experiências, interagir e conhecer mais de perto as comerciantes. “Quando eu compro nas feiras, sempre puxo assunto com o pessoal que ta vendendo. E acho muito importante esses momentos. Eu sempre via umas barracas arrumadas na praça aqui de Cruz, vendendo artesanato, mas não sabia direito do que se tratava, pra mim era apenas comercialização”, citou. Para o morador, esse modo de consumo vai além da venda, pois mudou sua visão social, econômica, geração de emprego e renda, além da construção de uma sociedade consciente da importância do comércio sustentável. “Depois que minha esposa entrou para o curso de Gestão de Cooperativas, ela sempre estava envolvidas nas realizações dessas feiras e eu a acompanhava. Foi dessas conversas que pude entender como funciona a troca existente na economia solidária”, compreendeu Silva. Lucros e benefícios Apesar dessa economia se destacar na solidariedade, a experiência enriquece os agricultores do campo, valoriza a mão de obra, fortalece a participação feminina e colabora para a diminuição da fome na localidade baiana. Ao comprar os produtos, o consumidor dessas feiras leva a história de cada pessoa envolvida no processo de construção da matéria prima. Dentre as várias faces dessa construção de reconhecimento e ganho de espaço da Ecosol, dos empreendimentos e das dificuldades de empreender em uma sociedade tão desigual, é possível compreender as adversidades enfrentadas diariamente para dá visibilidade a esse segmento econômico. Existe pouca visibilidade em relação ao segmento e muito pouco é divulgado sobre o legado implícito nesse tipo de comercialização. O diálogo é preciso e a inserção de políticas que garantam a permanência desse projeto. É nesses espaços solidários que mulheres pretas e quilombolas se capacitam, um reconhecimento que não vem de graça e sim, com luta, resistência autonomia e identidade.

Abayomi | 39


COMPORTAMENTO

Hiran

é a voz do rap queer nacional

Interiorano que ultrapassou as barreiras do preconceito para ser ouvido no mundo musical, fala sobre representatividade Ramon Ramos Ilustração: Ana Laura Moreira Pereira

H

iran Fernandes Santos é um homem preto, gay e rapper que marca presença nos palcos brasileiros desde 2017 utilizando beats e rimas em seus trabalhos. O filho de Dona Delba e Seu José veio de família humilde, onde aprendeu desde cedo sobre amor e respeito. Nascido na cidade de Alagoinhas, no estado da Bahia, o rapper, desde os nove anos de idade se envolvia com as músicas de outros artistas que cantava sobre a vivência nas periferias. Não demorou muito para o artista escrever e cantar ainda dentro de casa. Aos 15 anos de idade se apresentou pela primeira vez em um barzinho da cidade e com 21 anos iniciou a carreira solo no rap/hip-hop. A partir de então, a musicalidade virou sua válvula de escape, uma forma de mostrar ao mundo um pouco do seu verdadeiro eu. Durante a trajetória até o momento, o cantor se orgulha dos caminhos ultrapassados, é otimista sobre os projetos do futuro e não desperdiça nenhuma conquista. “Eu sou o resultado de tudo o que ouvi e escutei até aqui”, evidenciou. Homofobia Ainda criança, sonhava em participar das batalhas de MCs e quando teve a oportunidade de mostrar o seu talento em um duelo de rappers, foi hostilizado pelos os integrantes do grupo. “Saí de lá arrasado. Ouvi versos preconceituosos, um deles, dizia que eu não fazia rap e não rimava bem só pelo o fato de ser gay. Eu era sempre expulso das apresentações de rua”, lembrou. Hiran ganhou voz em todo país ao trazer uma música independente brasileira, nova proposta de discursos e influências, buscando um novo ar pro hip hop: o rap queer. “Eu sempre quis

Abayomi | 40

estar nos ambientes de rap, mas ainda é uma cultura machista, homofóbica. Estou lutando mais que o normal para ser aceito, mas esses acontecimentos também foram o combustível que me moveu e me move até hoje”. Para o rapper, qualquer música que cause sensações desconhecidas como frio na barriga, já traz um reflexo comportamental. “A música é por muitas vezes a força que essas pessoas precisam para seguir em frente, porque as coisas às vezes colidem ao redor para que tudo dê errado”, procedeu. Cena musical Apadrinhado pelo o cantor Caetano Veloso, Hiran traz novas posturas para a categoria musical. Ainda no seu primeiro álbum de estúdio, intitulado “Tem Mana No Rap”, o artista rima sobre sua sobrevivência e reivindica a diversidade no espaço que é majoritariamente masculino e heterossexual, afirmando que questões como sexualidade e cor devem ser normalizadas.


COMPORTAMENTO

“Eu quero ser visto enquanto uma bixa preta do interior da Bahia! Quero ser visto como um artista, cantor, rapper... As bandeiras que carrego estão no meu sangue, na minha personalidade. Eu não vou me esconder ou fingir ser o que não sou”, exibiu.

de que vem do povo preto representa muita coisa por si só”, definiu. Carreira

Hiran lançou recentemente dois singles e o EP Protesto visual (Extended play ou disco digital) História, publicado em seu canal do YouTube. Nele, o Dessa forma, o rap passa a ser não apenas uma artista traz uma reflexão e reconexão com sua arte ou produto e passa a agir também como origem e ancestralidade. O trabalho conta com ferramenta transformadora na vida de pessoas a participação da cantora Margareth Menezes, que estão em vulnerabilidade social, contribuin- Linn da Quebrada e o rapper alagoinhense do para o alcance dessas vozes silenciadas. “A Wendel. “Estou feliz demais com o resultado! As maioria dos artistas que vivem nesse contexto pessoas têm que aprender o quão ser diferenda cultura Hip-Hop já vêm com essa demanda te é importante, necessário e merecedor”. Esse de discutir sobre o que acontece ao nosso redor trabalho é fruto de um processo de reconexão e apresentar as expectativas da realidade dos que o cantor passou nos primeiros meses de oprimidos que estão fadados ao sofrimento. O Rap contribui para dar voz para essas pessoas”, refletiu. Hoje no Brasil e no mundo, o rap está vivenciando um cenário grandioso em termos de crítica e audiência. Hiran acredita que é através desse ritmo o artista geralmente apresenta a sua visão sobre os problemas relacionados aos preconceitos e as suas mais diversas formas (machismo, racismo, lgbtfobia, etc). “A música de protesto tem ganhado força porque as pessoas estão cansadas de ver coisas engessadas, embaladas numa realidade criada por pessoas brancas e influentes. Essa musicalida-

pandemia, onde buscou respostas e apoio de suas raízes. Foi através desse reencontro pessoal que Hiran mostrou seu trabalho como uma mistura de compromisso, diversão e, claro, muita paixão. Associar música e política parece uma ideia perigosa para boa parte do meio artístico, tanto para quem está começando a carreira, quanto para quem já construiu uma. O que parecia ser regra mercadológica de não misturar carreira e ideologia política, hoje não se posicionar politicamente pode resultar na perda de público. Expressar-se nos palcos foi uma das escolhas mais desafiadoras da carreira, mas necessária. “Eu não vou me esconder ou fingir ser o que não sou”, fechou o artista. Abayomi | 41


ENTREVISTA

“Eu quero ser diferente” De Boca Rosa à Michele, Henrique é o gari do sorriso mais bonito da Bahia

Amapagu Cazumbá

B

oca Rosa e Michele são duas criações de um artista soteropolitano que mora ao lado do bairro Estação Pirajá. Henrique Sousa é um gari que canta louvores, faz performances nas horas vagas e desce até o chão enquanto recolhe o lixo da cidade de Salvador. O baiano de 27 anos viralizou na internet dançando músicas de ‘sofrência’ e ‘pagodão’ na cabine da caçamba. Os registros são feitos frequentemente pela população e compartilhados nas redes sociais. Por conta disso, Henrique ‘Boca Rosa’ tornou-se referência na cidade como o gari mais sorridente da capital baiana

por mais um dia de vida, pois foi ele que me deu essa alegria de viver. Quero mostrar no dia a dia a minha rotina. A: Por que você se acha um artista popular? Henrique: Porque aonde passo tenho que falar com as pessoas que assistem os meus vídeos e me reconhecem nas ruas. As crianças me convidam para os seus aniversários com tema ‘gari’, fico feliz quando chego na festa e vejo. Sinto muito orgulho em ser reconhecido por alegrar as pessoas e a minha comunidade. A: Como surgiu esse nome Henrique Boca Rosa? Henrique: Certo dia eu estava trabalhando, quando de repente, fui bater uma caixa de lixo e nessa caixa tinha vários batons, peguei alguns e levei pra casa na mochila. No dia seguinte era uma sexta-feira, fiquei olhando… Prometi a mim mesmo que seria um profissional diferente. Na correria do trabalho, entrei na boleia (cabine) do caminhão, passei o batom e perguntei aos meus colegas de trabalho se eu estava bonito. Fizeram brincadei-

A: Quem é Henrique Boca Rosa? Henrique: Sou ‘Boca Rosa’, um gari que não quer parecer com os outros colegas de profissão ou com o que estamos acostumados a ver. Tenho muito orgulho do trabalho que realizo na cidade e não importa como está sendo o dia, se é debaixo de sol ou chuva, estou sempre rindo, dançando e agradecendo a Deus Abayomi | 42

Fotografia: arquivo pessoal


ENTREVISTA

ras maldosas, mas não liguei. Deixei ‘pra lá’ e disse que Boca Rosa estava na cena. A partir daí, toda sexta, sábado, domingo e nos feriados entro em cena. Jabulane (colega de trabalho) veio trabalhar comigo e via a população dos bairros me chamando de ‘Boca Rosa’. Depois que me viu com uma blusa e bolsa, criou outro personagem para mim. Assim, surgiu a segunda personagem: a tal da Michelle. A: Como você define Boca Rosa e Michele? Henrique: ‘Boca Rosa’ é um gari que anda dançando onde toca música. O cara que agita a galera para descontrair o dia de todos. Michelle é um personagem que gosta de dançar com as crianças e usar bolsas. A: Vocês mataram Michele ou ela apenas está descansando? Henrique: Descansando.Sempre que arranjo umas roupas diferentes, coloco e a resenha está garantida com a personagem Michele. Meus personagens surgem somente no momento do meu trabalho. A: Você fala muito em ser diferente no trabalho. Você gosta da sua profissão? Henrique: Sim, amo minha profissão! Esse diferente que eu tanto digo é para poder um dia ter voz e visibilidade. Mostrar a realidade de um gari. Por trás dessa alegria toda que os Garis passam para a popula-

ção, existe uma luta. É como eu sempre digo: ‘está pensan- A: Henrique Boca Rosa, por do que a vida de um gari é um que é importante ser diferenmorango?’ te? Henrique: Eu sou diferente pra ter visibilidade e ter voz. Para mostrar a realidade dos garis e ganhar voz para representar a minha categoria. A: Como você lida com a repercussão pública dos seus vídeos dançando durante o trabalho? Henrique: Fico sem jeito, mas gosto bastante. Pode não parecer, mas sou tímido. Recebo tanto carinho que fico até sem jeito. Quero alegrar as pessoas. Eu gosto de ser reconhecido. Alegrar as pessoas é o que me importa.

A: Realmente você é muito engraçado! Você pode dizer com certeza que esse é seu maior talento? Henrique: Sim, me considero um palhaço! Esse é meu maior talento, eu amo ver as pessoas sorrindo, contentes. Minha meta diária é fazer as pessoas felizes.

Aponte a câmera do seu celular e reveja Henrique Boca Rosa

A: Você se acha bonito? Henrique: Me considero um rapaz simpático. A coisa que eu me preocupo é com a minha aparência. Então cuido mais do cabelo e dos dentes. Mudo a cor do cabelo para me diferenciar. Cuido da cidade e do meu corpo. Limpeza para mim é essencial. Abayomi | 43


CULTURA E MEIO AMBIENTE

Vítimas do chumbo no Recôncavo Baiano aguardam quase duas décadas por desfecho de processo contra união Contaminados enquanto trabalhavam em antiga fundição de Santo Amaro, ex-funcionários deveriam ser tratados em centro de saúde que não foi construído; ação iniciada em 2003 também condenou Funasa

Shagaly Ferreira e Jorge Barbosa, colaboração de Marco Faleiro

E

‘‘

ra um odor terrível, terrível. Até hoje eu sou prejudicado do pulmão. Com aquela poeira, a gente não tinha gosto de colocar alimentação na boca. Se eu soubesse, não teria pisado meus pés lá”. O relato de Everaldo dos Santos, de 63 anos, que foi funcionário da Companhia Brasileira de Chumbo (Cobrac), instalada em Santo Amaro, Recôncavo Baiano, entre 1960 e 1993, é um retrato da história de espera dos ex-trabalhadores da fundição que foram contaminados por metais pesados durante o beneficiamento de lingotes de chumbo. Em 1977, o ex-operário ocupou uma das vagas oferecidas pela empresa, na qual ficou por seis meses, tendo contato direto com metais pesados, assim ocorreu com mais de três mil outros funcionários. “A gente usava aquelas botas, e com cinco minutos estavam todas derretidas no pé por causa da quentura das borras de chumbo”, conta. O tempo de exposição diária aos materiais contaminantes sem equipamentos adequados de proteção individual foi o suficiente para que os danos à saúde do ex-trabalhador, que também morava no entorno da fábrica, se espalhassem de forma irreversível. “Tudo o que um animal doente sente eu também sinto: dor nas pernas, os dedos ficam todos duros, os braços sem poder mover, gosto de pólvora e os meus companheiros de trabalho sentem os mesmos sintomas. Muitos não aguentaram e faleceram”, lamenta Santos, citando as demais vítimas da contaminação. “Meu maior desejo nesse momento é ter uma clínica, ter um centro de saúde que possa atender a mim e a meus amigos também. Estamos aguardando, mas nesse aguardar, a cada dia que passa estão morrendo alguns amigos. Quem sabe se depois de amanhã não pode ser eu?”, questiona. Esperada há anos por Everaldo dos Santos e seus ex-companheiros de trabalho, a construção Abayomi | 44

de um centro de referência em saúde para o tratamento das vítimas de contaminação por metais pesados em Santo Amaro foi uma das determinações impostas pela Justiça Federal à União e à Fundação Nacional de Saúde (Funasa), em 2013, em acolhida à ação civil pública aberta pelo Ministério Público Federal da Bahia (MPF-BA) 10 anos antes, em 2003. Além do indiciamento da extinta Cobrac – representada pela empresa Plumbum desde 1989 -, Funasa e União foram acusadas de serem corresponsáveis pelos danos à saúde dos contaminados, por, no entendimento do MPF, terem sido omissas, cada uma em sua área de competência, “em adotar as medidas para coibir e para reparar os danos ambientais e humanos”. Na época, o prazo para a fundação da unidade de saúde, aguardada até hoje, era de apenas seis meses. À fundição, responsabilizada pela contaminação de trabalhadores e moradores por chumbo e cádmio, foi determinado o pagamento de multa por danos ambientais e humanos, no valor de 10% do faturamento bruto da empresa. Em 2019, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) chegou a negar um recurso da Plumbum contra uma condenação estabelecida em desfavor da empresa em 1º grau. Conforme a determinação, o valor teria que ser apurado a partir de uma base mensal desde 1989, data em que a empresa sucedeu a extinta Cobrac. A quantia seria destinada à utilização em atividades de recuperação ambiental das áreas atingidas pelos metais pesados no município. Apesar de reconhecidas pelos órgãos jurídicos a urgência e a necessidade de que as determinações fossem cumpridas nos prazos estabelecidos, o processo ainda segue em andamento, 18 anos depois, com última movimentação realizada em fevereiro deste ano, quando decorreram os prazos dos apelantes.


CULTURA E MEIO AMBIENTE

Rastro de contaminação Conforme estudos disponibilizados pelo Centro de Tecnologia Mineral (Cetem), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), um passivo com 490 mil toneladas de resíduos contaminados com metais pesados foram deixados em Santo Amaro após o fechamento da metalúrgica. Além da contaminação de parte da população, especialmente os moradores do entorno da Plumbum e seus ex-funcionários, o solo, a fauna, a flora e as águas do rio Subaé, que passa ao lado das instalações industriais, foram afetados, prejudicando as atividades econômicas ligadas à pesca e à agricultura. Durante as décadas de trabalho, os operários recebiam o minério de chumbo beneficiado no município de Boquira, localizado no sudoeste baiano, passando, posteriormente, a lidar com o material importado do Peru. Ainda segundo as pesquisas, os resíduos que eram manejados, as chamadas escórias de chumbo, com cerca de 3% do minério, era doado para ser utilizado no aterro de ruas e outras construções. Na época, a prefeitura local recebeu e utilizou a escória para as obras de pavimentação da cidade, o que contribuiu para o espalhamento do resíduo pela região central do município, havendo poucas medidas de controle e segurança no manejo desses materiais. O perigo não está em toda a cidade Tendo artigos e estudos publicados sobre o tema, o pesquisador Luiz Rogério Pinho de Andrade Lima, professor do Departamento de Ciência e Tecnologia dos Materiais, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pontuou que, apesar de a escória de chumbo estar distribuída em grande espaço territorial pelo município, o perigo continuado de danos à saúde e ao meio ambiente está concentrado no perímetro ao redor da antiga fundição. Ele explica que a escória de chumbo presente no solo de toda a cidade não provoca danos profundos para a população, e aponta inconsistências técnicas em estudos que identificaram a existência de 20% de cádmio presentes no metal, afirmando ainda que tal situação fosse “impossível”. No entanto, ele alerta que existe uma região no município, próxima à antiga fábrica da Plumbum, habitada por mais de sete mil pessoas, equivalente a aproximadamente 10% até 12% da popu-

lação de Santo Amaro, na qual há um real perigo por exposição ao cádmio, capaz de comprometer a saúde das famílias no entorno. “O cádmio presente no solo da região ao entorno da antiga fábrica caiu em uma região próxima de 500 metros da chaminé, dentro da área da empresa. Esse metal leve se dispersou ao longo do tempo, em função do vento, da passagem de carros, etc. A análise do solo nos nossos trabalhos mostra que atualmente são mais ou menos sete até oito mil pessoas em situação de risco”, afirma. Para ele, ações de desapropriação da área pelos moradores em um perímetro de aproximadamente 1 km e a raspagem do solo contaminado mitigariam o potencial danoso dos resíduos. “A meu ver, toda aquela região precisa ser desapropriada. Ela deveria ser tratada igual aqueles campos minados em lugares que aconteceram guerras, com cercas e placas de alerta indicando perigo. Mas não é o que acontece hoje, existem muitas famílias morando ali normalmente. Eu encontrei até criação de vacas e plantações naquele lugar e ninguém toma uma providência… A escória de chumbo na cidade traz menos problemas que o solo contaminado naquela região. Considerando isso, precisamos fazer algo em relação ao solo daquele lugar. Ele precisa ser tratado e isso não é impossível”, disse. Toxicidade ocupacional Os primeiros sinais de contaminação local foram percebidos já no início de atividade do empreendimento, com a morte de animais nas proximidades do perímetro da fundição. Já em 1980, uma pesquisa divulgada pela UFBA apontou que 96% das crianças que residiam a menos de 900m da chaminé da fábrica tinham níveis elevados de chumbo e cádmio no sangue. O mesmo estudo apontou que à medida que a residência das pessoas analisadas era mais próxima da fundição maior era o nível de metais detectados no organismo da população local. Dados de uma análise de biomarcadores de exposição ocupacional ao chumbo e ao cádmio em um grupo com 195 trabalhadores ativos da Plumbum em Santo Amaro, realizada em 1992 (um ano antes do fechamento da fábrica), pelo pesquisador José Antônio Menezes Filho, professor da Faculdade de Farmácia da UFBA, revelaram Abayomi | 45


CULTURA E MEIO AMBIENTE

que, na época, todos os funcionários examinados apresentaram algum nível de contaminação, em maior ou menor grau. Parte deles teve concentração alta de Pb-S (sulfeto de chumbo) no organismo, com índices entre 40 hg/dL e 50 μg/ dL, superando o Valor de Referência da Normalidade (VR), que é de 40 μg/dL para Indicadores Biológicos de Exposição (IBE), geralmente utilizados para monitorar a exposição ocupacional ao chumbo. Outros ainda apresentaram valores superiores a 50 μg/dL, no limite do Índice Biológico Máximo Permitido (IBPM). O pesquisador explica que o chumbo, no organismo humano, pode causar danos sistêmicos diversos como: ”anemia, hipertensão, danos renais, infertilidade, danos neurológicos diversos, tendo (até) mesmo associação com câncer, já que é considerado como possível carcinógeno humano pela IARC (sigla em inglês para Agência Internacional de Pesquisa em Câncer)”, pontua, salientando que Desfecho na Justiça Diante do perigo da exposição ao chumbo e temendo que o dano socioambiental se tornasse ainda maior pela demora de uma solução na Justiça, o ex-funcionário da Plumbum, Adailson Pereira, de 61 anos, fundou em 2003 a Associação das Vítimas da Contaminação por Chumbo, Cádmio, Mercúrio e outros Elementos Químicos (AVICCA). Ele trabalhou com o beneficiamento de chumbo por seis meses, no último ano de funcionamento da fundição. A organização foi idealizada para mobilizar os funcionários, que começaram a criar pautas de reivindicações para reparar o que passaram ao longo dos 30 anos de prestações de serviços, até o fechamento da fábrica nos anos 90. Segundo o ex-operário e presidente da AVICCA, pouco mais de mil pessoas que passaram pela fábrica morreram e não tiveram a oportunidade, em vida, de ter os seus direitos assegurados. Ele conta que as certidões de óbito dos ex-funcionários não apontam para os danos provocados pela contaminação, mas todos os que tiveram problemas com a exposição aos metais tiveram Abayomi | 46

no registro a avaliação de “infarto do miocárdio agudo”, ou “distúrbio renal”, que são efeitos provocados pela presença dos resíduos tóxicos no organismo. “Foram quase quatro mil pessoas que passaram por essa fábrica, entre efetivos e prestadores de serviço, e hoje contabilizamos 1.200 pessoas mortas. A maioria morreu de falência múltipla de órgãos, fora os cânceres de ossos que tem no município de Santo Amaro, não diria nem só de trabalhadores. Santo Amaro é um município que tem um índice altíssimo de pessoas com doenças ósseas, além dos abortos espontâneos, quando os fetos que nasciam com deformação. Fizemos uma pesquisa dentro da maternidade e todos os bebês que nasceram com a patologia de falta dos membros e anencefalia em Santo Amaro são filhos de trabalhadores da antiga Cobrac”, relata. Na trajetória à frente da associação, Pereira conta que já esteve em Brasília nove vezes, buscando resolução para o pleito dos contaminados na Câmara de Deputados, no Senado e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), chegando até à Presidência da República. Contudo, lamenta que, apesar do esforço, não tenha havido avanço nas resoluções das pautas. “Se me perguntarem quanto vale uma indenização, eu vou dizer de coração aberto, que não queria estar contaminado por chumbo para receber nem R$1 bilhão, pois não vale a pena perder a saúde por dinheiro. A gente não sabe até quando esperar. A gente não está só lutando por um direito de indenização, a gente está lutando pelo direito de viver”. A Advocacia-Geral da União (AGU) reconheceu a ciência da sentença para implantar um centro de referência para tratamento de pacientes vítimas de contaminação em Santo Amaro, contra a qual apelou com recurso representando a Funasa e a União, e recebeu da 6ª Turma do TRF da 1ª Região a manutenção da mesma obrigação firmada em sentença. Contudo, o órgão justificou a não construção da unidade de saúde, informando que a União teve deferido um pedido de suspensão da tutela antecipada perante a Presidência do


CULTURA E MEIO AMBIENTE

Tribunal, suspendendo a obrigação de realizar a obra até o trânsito em julgado da ação principal. “Diante da decisão proferida pelo Presidente do TRF1, que suspendeu a liminar proferida no processo mencionado, a AGU esclarece que não houve o cumprimento da determinação judicial, uma vez que ainda não houve trânsito em julgado desta ação”, informou a AGU em nota. Sobre o caso de morosidade pontuado pelas vítimas em relação à tramitação do processo, o Conselho Nacional de Justiça afirmou que “qualquer cidadão pode acionar o CNJ caso considere injustificado o prazo para a prática de ato de competência jurisdicional ou administrativa do magistrado responsável pelo processo”. Contudo, o órgão afirmou não competir a ele o acompanhamento ou o pronunciamento a respeito do desfecho de processos judiciais. “Como órgão de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados, o Conselho Nacional de Justiça não acompanha nem opina sobre a tramitação e desfecho de processos judiciais. Os magistrados, conforme prevê a Constituição Federal e a Lei Orgânica da Magistratura, têm total independência para tomar suas decisões, que podem sempre ser questionadas em outras instâncias”. Procurados pela reportagem, os representantes da Plumbum Comércio e Representações de Produtos Minerais e Industriais não responderam ao contato até o fechamento da matéria. Já o Tribunal de Justiça informou que o processo foi migrado para o Processo Judicial Eletrônico (PJE) e está tramitando com movimentação processual e as decisões disponíveis para consulta pública, sem menção ao tempo de espera das vítimas pelo desfecho judicial. COM A PALAVRA, A AGU “A sentença ratificou liminar anteriormente concedida para implantar um centro de referência para tratamento de pacientes vítimas de contaminação causada na região Santo Amaro/BA. Posteriormente, Acórdão da 6ª Turma do TRF da 1ª Região julgou os Recursos de Apelação da União e Funasa e manteve a obrigação firmada na sentença. Da decisão do TRF1, A União, por meio da Advocacia-Geral da União, apresentou embargos de

declaração, pedindo que o tribunal se manifeste sobre a ocorrência de Omissão e Erro material no julgamento. Quando do deferimento da Liminar, a União ingressou com um pedido de suspensão da tutela antecipada perante a Presidência do Tribunal (Processo nº. 0020691-16.2013.4.01.0000), que foi deferido, suspendendo a citada obrigação até o trânsito em julgado da ação principal, nos termos do art. 4º, § 9º da Lei 8437/92. Diante da decisão proferida pelo Presidente do TRF1, que suspendeu a liminar proferida no processo mencionado, a AGU esclarece que não houve o cumprimento da determinação judicial, uma vez que ainda não houve trânsito em julgado desta ação.” COM A PALAVRA, O TRF1 “Informo que o processo foi migrado para o PJE =- Processo Judicial Eletrônico e está tramitando nesse Tribunal sob o número 000025749.2003.4.01.3300; a movimentação processual e as decisões estão disponíveis para consulta pública.” COM A PALAVRA, O CNJ “Como órgão de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados, o Conselho Nacional de Justiça não acompanha nem opina sobre a tramitação e desfecho de processos judiciais. Os magistrados, conforme prevê a Constituição Federal e a Lei Orgânica da Magistratura, têm total independência para tomar suas decisões, que podem sempre ser questionadas em outras instâncias. Em relação ao tempo de tramitação, qualquer cidadão pode acionar o CNJ caso considere injustificado o prazo para a prática de ato de competência jurisdicional ou administrativa do magistrado responsável pelo processo.” COM A PALAVRA, A PLUMBUM COMÉRCIO E REPRESENTAÇÕES DE PRODUTOS MINERAIS E INDUSTRIAIS A reportagem entrou em contato com representantes da Plumbum Comércio e Representações de Produtos Minerais e Industriais e aguarda resposta. O espaço está aberto para manifestação. Abayomi | 47


CULTURA E MEIO AMBIENTE

Vovó do Mangue

Lenda que constituiu a identidade maragojipana rompe fronteiras no imaginário popular, movendo ações de políticas ambientais na cidade Isabel Baião Ilustração: Meus sertões

Certa vez, uma senhora preta de rosto enrugado, vestes esfarrapadas, lenço na cabeça, e uma perna, foi vista pelo o Manguezal da cidade de Maragojipe, localizada no Recôncavo Baiano. Ela ficava ali para proteger o Rio e fumar o seu cachimbo. Caso os moradores quisessem proteção, precisavam oferecer cachaça, charuto e um dente de alho. Em troca, Vovó do Mangue, como protetora do ecossistema, garantia a preservação e a abundância.

Alerta Para Carlos Eduardo, de 45 anos, que ouviu sobre a lenda por meio de colegas de profissão e através das pessoas mais velhas, a história da Vovó do Mangue nos alerta para os perigos que envolvem o Rio, pois é comum pessoas que não conhecem o manguezal ficarem perdidas na vegetação.

“Eu, quando criança, tinha um pouco de medo. As pessoas idosas contaPara os que ousavam destruir o manguezal, vam mesmo para que a gente não poluindo ou explorando seus recursos natu- ficasse no mangue para não rais indevidamente, essa senhora se tornava se perder. Antigamenrabugenta e cruel. Como castigo, deixava a te, a gente se perdia pessoa desorientada pela vegetação fazendo porque o mangue com que ficasse perdida. Segundo relatos é muito fechade pescadores e marisqueiras, se tratava de do, entramos uma entidade mística que habita e protege a em um lugar, diversidade existente no manguezal do en- quando vetorno da Baía do Iguape, uma reserva extrati- mos, já estavista localizada no rio Paraguaçu. mos em outro. Por isso, Relatos tem que ter uma atividade Essa tradição é bem forte na cidade e existe danada”, alerum certo temor, principalmente pelas crian- tou o pescador. ças e adolescentes da comunidade. Não é difícil ouvir relatos sobre episódios asso- Orixá Nanã ciados à intervenção da Vovó. A pescadora, marisqueira e também escritora Roquelina A Vovó do Mangue não Souza, de 55 anos, foi advertida desde a in- é apenas uma lenda de fância que não deveria entrar no manguezal importância cultural, na sozinha. “Quem ia pro mangue só? Não ia religião de matriz africanão! A gente tinha medo”, relatou. na ela é conhecida como orixá Nanã, cultuada enHavia também as estórias engraçadas sobre quanto uma entidade da os castigos que a velhinha aplicava. ”Tinha natureza, representada um rapaz que ‘esculhambava’ a Vovó. Aí, di- pela figura de uma sezem que ele cantava assim: ‘que a Vovó tinha nhora vaidosa, possuinum peito só, de um lado só, uma perna só’. do a cor lilás e branca e, Contou que ela pegou, deu uma surra de pei- em algumas nações, a to nele, que ele ficou confuso (risos)”, narrou cor azul. “Cultuamos a Souza.

Abayomi | 48


CULTURA E MEIO AMBIENTE

Vovó Nanã aos domingos. Ela é a chefa da família, mãe de orixás ligados a terra e é um orixá velho que pertence às águas paradas“, manifestou o devoto, Vinícius de Omolu. Nanã é a senhora das Águas Paradas, das chuvas, dos mangues, do pântano e da lama. Alguns pescadores costumam cultuá-la antes das pescas, deixando oferendas para receber proteção e conseguir retornar em segurança para as suas casas. “Quem comanda os mangues é Nanã. Ela que emprestou a lama para criar o nosso corpo. O lugar de culto dela são os manguezais, a lama do mangue”, complementou. Fundação Vovó do Mangue A organização não governamental Vovó do Mangue, surgiu há 24 anos por um grupo de amigos que tiveram como objetivo principal a efetivação de políticas públicas ambientais através da recuperação das áreas de manguezais que estavam deterioradas em Maragojipe. Entre os projetos e atividades educacionais para o desenvolvimento social e valorização da cultura, estão: promoção e conservação de recursos naturais e desenvolvimento socioeconômico de comunidades tradicionais; mutirões de limpeza; replantio; criação de viveiros com mudas do mangue; eventos de educação ambiental nas escolas e comunidades.

Localizada na Praça Conselheiro Antônio Rebouças n° 16, no centro da cidade, a ONG busca contribuir para a manutenção e conservação desse ecossistema e transmitir os ensinamentos presentes na lenda. “Por essa entidade proteger os manguezais e por a gente trabalhar com o reflorestamento de áreas degradadas, existe ligação com o projeto. É um trabalho em conjunto com esta entidade da natureza”, validou Rosiane Campos, coordenadora da Fundação. Manguezais ameaçados A lenda folclórica traz lições de cuidado com a natureza e revela os saberes populares das pessoas que retiram do mangue seu sustento, através da coleta de peixes, mariscos e crustáceos. Ademais, o manguezal é um ecossistema costeiro, de transição entre a terra e o mar, onde a água doce e salgada se mistura. Considerado um “berçário da natureza”, são ambientes propícios para a alimentação e reprodução de variadas espécies, e o “lar” da Vovó do Mangue. Segundo os dados do Atlas Mangues do Mundo de 2010, realizado pela organização The Nature Conservancy e a FAO (Organização de Agricultura e Alimentos da ONU), os manguezais é um dos ambientes mais ameaçados pela ação imprudente do homem. Existe desmatamento em todo o mundo e a conversão dos espaços de mangues em áreas urbanas são as principais causas de sua degradação, além da poluição e exploração de recursos. De acordo com a Lei n° 4.771 de 15 de setembro de 1965, o manguezal é considerado Área de Preservação Permanente (APP). O dia 26 de julho foi a data escolhida para comemorar o Dia Mundial de Proteção aos Manguezais, data que também coincide com o dia das avós, tornando a lenda da Vovó do Mangue ainda mais presente, uma senhorinha que habita e protege os manguezais do município de Maragojipe.

Abayomi | 49


ESPECIAL

Abayomi | 50


Abayomi | 51


Abayomi | 52


Abayomi | 53


i

Feminicídio não é Mimimi v

s

i

Muitas pessoas são mortas todos os anos no Brasil apenas por serem mulheres. Dois minutos de leitura é o intervalo de tempo para que uma mulher seja vítima de violência doméstica no Brasil; onze para que a próxima seja estuprada; duas horas para que outra seja morta. Os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública ainda apontam que, em 88,8% dos casos de feminícidio, o autor é o companheiro ou ex-companheiro. Entre as vítimas, 61% delas são mulheres pretas. A Lei do Feminicidio (Lei n° 13.104/2015) se aplica em casos de violência doméstica ou familiar e/ou menosprezo ou discriminação contra a condição da mulher.

#

S

Denuncie e busque ajuda.

NÂO SE CALE

Acesse a referência bibliográfica


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.