Revista Literal n. 1

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nobreza, nenhuma grandiosidade. A poesia (o conto) é um trabalho duro, em que o escritor precisa sujar as mãos. Cabral propunha uma poesia terra a terra, apegada aos problemas concretos e submissa a estratégias inteligentes – desafios brutos e – sem facilidades, que cada poeta deve traçar para si mesmo. Isso quer dizer: antes de escrever, escolher e fixar os limites da escrita. Erguer normas pessoais – inventar essas normas e depois a elas se submeter. Desenhar os limites de seu destino. Desse modo, a liberdade deixa de ser algo de que nos embebedamos, para se tornar a camisa de força que escolhemos, livremente, vestir. Não leva à embriaguez, mas à atenção. Não leva a “qualquer coisa”, mas só à precisão. Tudo isso vale, e muito, para o contista. Escrever contos não é derramar-se, sem qualquer pudor, no caminho pantanoso das palavras. Não é soltar a imaginação e deixar que ela ferva, que entre em ebulição. Ao contrário: é criar obstáculos e objetivos, rígidos, duros, e fixar com nitidez um destino – ainda que não se chegue a realizá-lo, ainda que nunca se chegue, de fato, até ele. É conter-se. O contista, como o poeta cabralino, precisa saber onde pisa e em que direção caminha. Ainda que essas escolhas se dêem, como em geral acontece, no escuro, e sejam motivadas por razões secretas que lhe escapam, é a elas que o contista deve ser fiel. Apesar de si e apesar da própria ignorância e dos próprios limites, não recuar, não voltar atrás. Em uma entrevista concedida nos anos 70 à Folha de S. Paulo, João Cabral argumenta: “Se a literatura é problemática é porque ela existe. No dia em que a tivermos burocratizada, com o poeta sentado em uma mesa na função de fazer versos, aí sim a literatura estará morta”. O poeta (o contista) não escreve por encomenda, ou para corresponder a padrões, ou para 44 Revista Literal

se adaptar a cânones. Não segue as tendências da moda como, por exemplo, a indústria do automóvel, ou os ateliês de costura. Clarice Lispector dizia: “Eu não coso para fora, eu coso para dentro”. Logo, não existem modismos, não existem manequins, não existem fitas métricas; a medição é interior. Serão essas, de fato, escolhas que o poeta (o contista) chega a fazer? Ou, em vez disso, são apenas coisas que se impõem e que, uma vez reconhecidas como partes de sua voz, o levam a se submeter? Nesse caso, e para seguir a pista deixada por João Cabral, o contista não se submete a algo de fora, a um cânone, ou uma palavra de ordem, ou a um guru. Submete-se, antes, a si. Em outras palavras: contém-se. E só ali, naquela prisão pessoal (Cabral poderia pensar nos engradados em que se espremem as galinhas...), que ele arrisca alguns vôos. Vôos pequenos, precisos, em direções claras e com o retorno incluído. Os vôos decisivos. Uma estratégia, sem dúvida, trabalhosa, até porque ela empurra o escritor, qualquer escritor, poeta, contista, romancista, para uma grande solidão intelectual. Em uma entrevista que concedeu nos anos 80, Cabral diz: “Sou um poeta meio marginal, que de certa forma fugiu do lirismo e do romantismo comuns na poesia brasileira”. À margem dos grandes movimentos e das grandes ondas, Cabral se isolou em seu caminho, apegou-se ferozmente a sua voz, suportou todas as conseqüências disso, e só por isso se tornou um grande poeta. A estratégia, insisto, serve também para o contista: é no aferrar-se a sua solidão, quando é fiel a si e a mais ninguém, que um contista se afirma. Faz parte desse retorno ao essencial o apego de João Cabral não só à Espanha, mas à literatura espanhola. Cabral disse certa vez ao crítico e poeta Antonio Carlos Secchin: “A literatura espanhola usa preponderantemente o concreto e por isso me interessou. As litera-


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