Revista Mosaico

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Editorial

“Toda obra de arte é filha de seu tempo e, muitas vezes, a mãe de nossos sentimentos”. Esta frase de Wassily Kandinsky representa bem a primeira edição de Mosaico que está em suas mãos. Nas páginas que seguem, você será convidado a visitar alguns temas que permeiam o nosso cotidiano, filtrados a partir da perspectiva das vanguardas artísticas modernas mais importantes do século XX. Elas romperam com a antiga representação do mundo ao reconhecerem uma nova sensibilidade que surgia com as transformações e inovações trazidas pela urbanização e pela industrialização. Procuramos deslocar percepções estéticas e problemáticas conceituais para a realidade do homem que vive em 2009, o ano do centenário do Manifesto Futurista de Marinetti. Criamos uma engrenagem que te conduz pelos desdobramentos desses movimentos artísticos na atualidade. O obscuro e o feio do Expressionismo. As cores intensas e a multiplicidade de viéses do Cubismo. A velocidade do Futurismo. A guerra debochada do Dadaísmo contra a existência humana e contra si mesmo. O mundo dos sonhos e a loucura do Surrealismo. E a exaltação irônica das celebridades, da publicidade e dos cartoons estampados nos muros em forma de grafite, típicos da Pop Art. O jornalismo, assim como a arte, é uma produção que envolve reflexão e crítica, e que tem o poder de combater sua própria efemeridade quando fala de seu tempo, revelando-o para a atualidade e servindo de memória para a posteridade. Mosaico é o resultado da união harmônica de forma e conteúdo. A primeira, inspirada em vanguardas revolucionárias que imprimiram novas concepções de fazer e ver a arte. O segundo, assinalado por características, preocupações e necessidades representativas de nosso tempo. Abrimos as portas desta nova galeria chamada ­Mosaico. Aproveite a leitura e renove seus sentidos!

Glória Maria


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expressionismo Reportagem expressão à flor da pele

Ensaio

FREAK SHOW: ESPETÁCULO DE HORROR

Reportagem

O JOGO DO NOVO VAMPIRO

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cubismo Reportagem SOMOS MUITOS, E DE UMA VEZ SÓ

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futurismo Capa uma ode à liberdade

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Extra

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Reportagem

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Extra

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Entrevista

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O DIA EM QUE ENCONTREI A FORMA

malabares

Ensaio

self-portrAIT

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a era da velocidade

os profissionais da velocidade

Reportagem o ano é 2109

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dadaísmo Reportagem era uma vez o homem

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surrealismo Reportagem alucinações de realidade

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pop art Reportagem pop às avessas

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Ensaio

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Ensaio Artístico

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Reportagem

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Extra

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Extra

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Ensaio

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READYMADES: A ARTE ESTÁ PRONTA

Duas etc.

Entrevista

Olgária matos

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viagens de um surrealista contemporâneo do alto vejo o meu surrealismo

Reportagem

conversa de edredom

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subversão em cores

romance de sanduíche

Reportagem

luzes efêmeras de inquietos holofotes

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Expressionismo

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spontaneidade. Intensidade. A subjetividade expressionista assemelha-se a um grito. Não é à toa que as cores e a intensidade de “O grito”, de ­Munch, configuram-se como uma das obras mais representativas no movimento. É o ato de gritar que pinta a exteriorização de sentimentos que precisavam ser divididos, externalizados, mas não necessariamente compreendidos. As ­o bras neste movimento representam uma verdadeira explosão de energia psíquica. Que pode levar ao hilário, ou ao horror. Aos extremos. Aqui, criamos um cenário que remete muito mais ao cinema daquela época. Estética utilizada amplamente pelos alemães, representava uma sociedade ainda assustada com a guerra. Kandinsky dizia que essa arte teria surgido para realinhar a pintura às necessidades espirituais do homem. E o ser humano daquela época ainda estava sentido pelas suas mortes, pelas perdas, pela destruição. Já hoje, encontramos novos caminhos ao externo. Os mais corajosos colocam o corpo como tela de expressão. Aqueles nem tanto, criam personagens nas telas virtuais. Espaços em que é possível liberar os instintos. Representar realidades próprias e singulares, sem limites.

Noite estrelada Vincent Van Gogh Mosaico

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Expressão à flor da pele

Apesar de milenares, as modificações corporais são consideradas símbolo de contemporaneidade

por ana cláudia lima imagens karen ferraz e divulgação arte maralise lopes

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atuagens, piercings, alargadores. Se você não tem nenhum deles no corpo, com certeza conhece alguém que tem. Num mundo extremamente visual e com as pessoas buscando exprimir sua individualidade, as modificações corporais se fazem cada vez mais presentes. O termo “modificações corporais” – ou Body Modification, como é mundialmente conhecido – é usado para designar mudanças feitas no corpo de diversos modos, desde o uso de produtos químicos até intervenções cirúrgicas. Os motivos que levam uma pessoa a aderir a essa prática são diversos, mas podem ser divididos em dois grandes grupos: vontade de seguir a moda vigente e o compartilhamento de ideais por um grupo de indivíduos. O segundo grupo é mais especificamente estudado pela Professora Beatriz Ferreira Pires no livro “O Corpo Como Suporte da Arte”. Para ela, vivemos numa época de banalização do nosso corpo e por isso temos a necessidade de nos reaproximar do próprio corpo e de estabelecer uma identidade que nos diferencie dos demais. Para isso são usadas as “marcas pessoas” (as modificações corporais) que seriam uma forma de expressarmos nossos sentimentos, uma forma de concretizar algo do nosso interior, da nossa mente. No entanto, esse tipo de expressão nem sempre é bem vista pela sociedade, que muitas vezes associa modificações à criminalidade. T. Angel, como Thiago Soares é mais conhecido, representa bem o grupo estudado por Beatriz: “Utilizo meu corpo como minha mídia. Faço dele meu objeto de propagação de idéias. Procuro pensar e fazer pensar.” Ele começou a transformar o próprio corpo aos 16 anos, quando fez seu primeiro piercing, e desde então não parou mais: foram tatuagens, branding, escarificações, implantes etc. Hoje, ele é diretor do site Frrrk Guys (www.frrrkguys.com), que se auto-define como “um

projeto que tem como base explorar o universo masculino, fugindo do tradicional e mostrando que sensualidade não está apenas em músculos e, principalmente, que o ‘belo’ é bem relativo”. Para ser um frrrk guy é obrigatório que o candidato tenha modificações corporais e um ensaio fotográfico. aprovado

Utilizo meu corpo como minha mídia. Faço dele meu objeto de propagação de idéias. Procuro pensar e fazer pensar

Um dos exemplos mais conhecidos de modificação corporal é o americano Erick Sprague, mais conhecido como The Lizardman (“homem-lagarto), na foto à esquerda. Sua lista de modificações é extensa: tatuagem imitando escamas verdes de répteis por quase todo o corpo, língua bifurcada, alargadores, diversos piercings, implantes subcutâneos acima dos olhos, dentes afiados para parecer com caninos etc. Essa transformação começou com um projeto de faculdade sobre o que significa ser humano de um ponto de vista lingüístico. Para isso, o americano come-

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çou a tatuar uma textura de lagarto sobre a pele. Mas o projeto ultrapassou os tempos de faculdade e hoje virou sua fonte de renda. Sprague faz shows há mais de dez anos, participa de diversas convenções, programas de TV e abre shows pra bandas famosas como Slipknot. Quando perguntado sobre o fim do seu projeto de transformação, ele responde que ainda não terminou, mas que espera que esse dia chegue. E ressalva: “Eu não vou dizer que eu terminei definitivamente, no entanto, podem surgir novas tecnologias e ideias que eu possa incorporar no meu trabalho”. Não se sabe exatamente como ou quando os homens passaram a fazer essas modificações nos corpos, mas estima-se o surgimento do body piercing, por exemplo, no período da Pré-História devido a descoberta de um homem das neves que possuía piercings corporais, que foi chamado de Otzi. Antigos ou contemporâneos, estéticos ou ideológicos, o fato é que o Body Modification anda fazendo a cabeça – e o corpo – de muita gente pelo mundo. Uma prova disso são os donos do estúdio Tatooage, na cidade de Bauru, Marcelo e Rogério “Bambu”. Eles chegam a fazer cerca de cinco tatuagens por dia, sendo que a mais barata custa R$200,00. “Nós preferimos tatuagens maiores, onde dá para trabalhar melhor os detalhes”, afirma Bambu. Eles próprios usam o corpo para mostrar ao mundo a arte que produzem: a última tatuagem de Rogério foi um Charles Chaplin na perna, como homenagem ao ator que admira.

Algumas body modifications de Marcelo: tatuagens, alargador e piercing

body modification O tatuador Rogério “Bambu” utiliza o corpo como forma de expressãpo

Tatuagem: processo de pigmentação da pele através da inserção de agulhas. É um dos processo de modificação corporal mais difundido no mundo. Piercing: perfuração do corpo para inserção de um objeto metálico. Existem piercings estéticos e os funcionais, colocados nas genitais para aumentar o prazer ­sexual. Branding: desenhos feitos na pele com pequenas placas de metal aquecidas com um maçarico. Escarificação: técnica feita com um bisturi em que se usa a lâmina do instrumento para se fazer cortes, que formam o desenho na pele. Implantes: inserção de um objeto embaixo da pele. O implante pode ser totalmente subcutâneo ou deixar uma parte do objeto é introduzido para fora.

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Freak show: espetáculo de horror

Ensaio

Algumas pessoas encontram prazer em formas inesperadas de manifestação. Para os adeptos do freak show, espadas, ganchos e agulhas fazem parte do espetáculo, assim como sangue e dor. A seguir, fotos de Neto em uma apresentação de arrepiar Fotos Gisele Sanfelice

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Ensaio

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Ensaio

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Expressionismo

O jogo do Novo Vampiro Coloque a sua humanidade à prova. Para sobreviver, você deve matar seus amigos um a um. É o sangue deles que você precisa. Sanidade. Moralidade. Depravação. Tudo fica à prova. por érica nering arte maralise lopes

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os tempos em que Bram Sotcker criou o Drácula, vampiros apenas lutavam para viver, apavoravam donzelas que temiam ter seus pescoços marcados pelos dois furos que as levariam a uma eterna vida nas trevas. Inspiração para o marco do cinema expressionista, Nosferatu era só um conde um pouco corcunda criado pelo diretor F.W. Murnau. Mas de 1922 para cá, não só as pessoas, vestimentas, máquinas ou cidades, sofreram mudanças. Os vampiros também. Ganharam regras, clãs, justificativas bíblicas, gráficos 3D, seguidores e apreciadores no mundo inteiro. A popularidade veio por meio de um jogo de RPG chamado “Vampiro: a máscara”. Do terror à popularidade, percebemos que não foi só a arte que mudou de conceitos ao longo do último século. “O que eu gosto nos vampiros é a questão do horror pessoal deles, de serem seres poderosos e sedutores, mas ao mesmo tempo viverem o horror de serem eternos monstros”, disse Yaridovich, como gosta de ser chamado Lucas Moreira, jogador de RPG e moderador de uma comunidade sobre “vampirismo” no orkut.

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A máscara A Máscara, no jogo, é aquilo que protege os vampiros dos seres humanos, dos seus governantes e da mídia. “É por isso que gosto de RPG, filmes e games: são maneiras de fugirmos da realidade”, explica Lucas. Uma verdadeira metáfora da vida real? O jogo “Vampiro: a Máscara”, assim como a maioria dos RPGs, possui uma filosofia que rege a história. Neste, o jogador começa como um humano morto-vivo, que se transforma aos poucos em monstro, conforme mata outros humanos para sobreviver. Segundo a história, quem originou as gerações de mortos-vivos que depois viriam a formar seitas e clãs de vampiros foi Caim, o filho de Adão e Eva, assassino de seu irmão Abel por ciúmes. O clã de vampiros mais visível no mundo do game, chama-se “Nosferatu”, uma alusão ao vampiro de Murnau. Os espiões dos mortos, são conhecidos por sua aparência asquerosa, uma metáfora da vaidade que remete ao primeiro do clã: um homem belo e orgulhoso que teria sofrido uma maldição pelas mãos de Caim.

O que é RPG? RPG significa “Role-Playing Game”, que traduzindo quer dizer “Jogo de Interpretação de Papeis”. É exatamente isso que você faz: você interpreta um papel. Existe um narrador, que cria a base da história, do mesmo jeito que um roteirista, e os personagens participam da narrativa. As decisões dos personagens podem mudar o rumo da história, tanto para melhor quanto para pior. “Vampiro: a máscara” começou como um jogo de RPG tradicional, por meio de cartas e, devido à popularidade, transformou-se em jogo de computador (a imagem remete ao personagem vampírico do game digital). Além disso, a história também inspirou o seriado de televisão “Irmãos de Sangue”.

O que eu gosto nos vampiros é a questão do horror pessoal deles, de serem seres poderosos e sedutores, mas ao mesmo tempo viverem o horror de serem eternos monstros

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Cubismo

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hamamos de “quadrado” aquele que se apega ao antigo, que resiste às novas e inevitáveis formas de ver e sentir o mundo. Certamente não é o caso dos cubistas. Sem compromisso com a aparência “real” das coisas, o movimento desprezava as regras da perspectiva e desejava explorar as obras de diversos ângulos, combinando planos, mostrando que as questões quase sempre têm bem mais que dois lados. Ainda que não estivessem unidos por uma teoria forte ou um manifesto, podemos dizer que Pablo Picasso, George Braque e Juan Gris formam a base desse movimento, com as obras mais expressivas e definidoras do movimento. Influenciados por Paul Cézanne, os cubistas promoviam a valorização das formas geométricas, negando o naturalismo, mas mantendo seu aspecto figurativo, na busca do equilíbrio entre a representação e a abstração. A decomposição do objeto em planos resultava numa visão ampla do objeto, expondo simultaneamente todas as suas faces. É essa perspectiva – na verdade, a ausência dela -, que queremos passar nas páginas seguintes, explorando novas maneiras de se olhar o que nossos olhos já se acostumaram a ver.

Three Woman Pablo Picasso Mosaico

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Cubismo

Somos muitos, e de uma vez sĂł

A primeira pessoa do singular nĂŁo precisa ser a Ăşnica por aline naoe imagens aline naoe arte maralise lopes

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inha análise da alma, da psique humana, leva-me a crer que o ser humano não é verdadeiramente um, mas verdadeiramente dois. O discurso vem da boca do respeitável e recatado Dr. Jeckyl, protagonista do romance O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson. Para ele, o homem tem dois lados: um bom e outro mau. Tentando separar essas duas personalidades com uma substância química, o doutor acaba libertando de si mesmo um monstro, capaz até de cometer crimes, e comprova a máxima que diz que “de médico e louco todo mundo tem um pouco”. Engraçado é que aqui na vida real nem precisamos de poção mágica para soltar algumas feras. TPM, trânsito, dor nas costas, o prato que veio errado: não é preciso muito para o humor oscilar e revelar um pequeno monstro que mora atrás de faces serenas. É o caso da Marcela Pimenta, mulher de voz delicada e jeitinho de menina, que espanta muita gente durante o dia. “No geral sou bem calma, mas acho que meu humor varia umas 30 vezes por dia, dependendo de onde estou e do que estou fazendo. Às vezes a gente precisa ser brava!”, esbraveja a estudante de Farmácia, filha do seu Juca, namorada do Mateus, voluntária no centro espírita e doida por uma balada, como ela própria se define. Para cada pessoa uma maneira de falar, vestir, cumprimentar, gostar. Para cada situação, a Marcela escolhe a Marcela mais adequada. Não se trata de falsidade. Vamos combinar que ninguém é igual com a mãe, com o professor e com os amigos da faculdade – e seria bem estranho se fosse. Assumir que um pode ser vários não tira de nós personalidade nem nos faz menos autênticos. Claro que há extremos. Por vezes a variação no humor é tão grande que é preciso tratamento médico. É o caso do transtorno bipolar, uma doença que pode atingir de 1,8 a 15 milhões de brasileiros, segundo estimativa da Associação Brasileira de Transtorno Bipolar (ABTB).

No divã “As pessoas podem ter prejuízos no trabalho, desde perda de rendimento a faltas até não conseguir mais trabalhar. Quem tem transtorno bipolar apresenta maior chance de divórcio e problemas de relacionamento em geral”, explica a psiquiatra Sheila Cavalcante Caetano, pesquisadora da Universidade de São Paulo e diretora-secretária da ABTB. A pessoa bipolar apresenta períodos

Quem tem transtorno bipolar apresenta maior chance de divórcio e problemas de relacionamento em geral

intensos e intercalados de depressão profunda e euforia, as chamadas fases. Em uma, sente uma enorme tristeza e desânimo e, na outra, tanta agitação e ansiedade que fica até mesmo sem ­conseguir dormir. É algo como as fases azul e rosa do Mosaico

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Cubismo

início da carreira de Pablo Picasso. Melancólico, o pintor de Andaluzia retratou durante um período a solidão, o abandono e a morte. Coincidentemente, após conhecer uma nova mulher, por quem se apaixonou, passou a pintar com mais cor, alegria e delicadeza. A pessoa com transtorno bipolar vive como num quadro de Picasso, mas uma tela com tons indecisos sobre o azul ou o rosa. A bipolaridade se manifesta em diversas intensidades, em casos que exigem desde remédios comuns a antidepressivos e nas situações mais graves, a internação. Outra doença bastante incômoda é o distúrbio de identidade dissociativa, mais conhecido como múltiplas personalidades. Em uma só cabeça convivem várias mentes – segundo um levantamento médico, a média de alter-egos nos pacientes é de 13, o que faz, por exemplo, com que a estação de rádio favorita não esteja sintonizada porque “outra” pessoa andou mexendo nos botões... Mais assustador que isso é saber que, enfim, tudo isso possa ser fruto de um desarranjo em funções naturais do nosso cérebro, que desenvolveu a habilidade “ser vários” como uma proteção : é aquilo que nos dá o poder de esquecer de si mesmo enquanto dirige ou que permite abstrair de grandes tristezas e problemas para dar conta de trabalhar e se alimentar direito. Ter mais de uma personalidade aparece então não só como uma necessidade, mas um desejo das pessoas,

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sem que isso represente algo doentio. Já percebeu como as pessoas gastam horas para fazer e atualizar seu perfil no Orkut e outras redes sociais?

Mil faces A internet caracteriza um ambiente perfeito para expressar não só as diversas identidades que temos, mas também as que gostaríamos de ter. Criamos avatares, perfis e usuários em plataformas diversas e com os mais variados objetivos, desde impressionar possíveis paqueras até ganhar dinheiro. “Existem diversas perspectivas teóricas que advogam que todos nós somos compostos de mais de uma expressão identitária, e que nós , no dia-a-dia, apenas gerenciaríamos a sua expressão de acordo com as demandas situacionais. A partir desses enfoques, poderíamos afirmar que, com a internet, apenas foi potencializada esta expressão”, explica o José Carlos Ribeiro, doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea e professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. “Com certo cuidado, eu diria que estamos potencializando a possibilidade de explorar diversos aspectos de nossas experiências cotidianas, seja no campo existencial, cognitivo ou comportamental”, completa o Prof. José Carlos. Real ou virtual, a vida deixa e pede que sejamos flexíveis e mesmo contraditórios. Se somos, afinal, uma mistura daquilo que dizem nossos genes com tudo aquilo que vemos, ouvimos e tocamos, é de se esperar que o resultado de tudo isso seja um mosaico de jeitos e gostos. Como todo super herói que se preze, temos nossos disfarces – e o poder de decidir quando e para quem tirá-los.


Extra

O dia em que encontrei a forma

A verdade está além de qualquer realismo e a aparência das coisas não deveria ser confundida com sua essência

Juan Gris

por Alice Meirelles ILUSTRAÇÃO KENJI KIHARA

Ver meu mundo através de novos olhares. Parti rumo aos detalhes despercebidos de um caminho pelo qual tenho andado todos os meus anos. Era a volta para a casa. Demoro alguns passos para perder o automatismo do olhar. Notar planos diferentes, que deslizavam entre si, conforme o piscar das pálpebras. Como quem achara o X de um mapa do tesouro, retive o andar. Fui capaz de ver cada ponto de luz e projeção de sombra da casa com a qual dividi a vida. A estrutura de tijolos era neutralizada pela rua de arbustos opulentos e placas enferrujadas. Mas pelas lentes de minhas experiências, única. Observar cada parte do todo permitiu que sua plenitude como casa fosse absorvida. Era a alegria da descoberta e o prazer do inesperado. Já não se projetava simplesmente como um lar... Agora eu via as falhas do telhado e as ranhuras na fachada.

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Cubismo

Malabares por érica nering

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Sou dois, sou três, sou sete De manhã ator à tarde contestador à noite pivete sou guerra, sou paz. Sou terrorista, malabarista equilibrista artista, cantor, amo, odeio canto, choro sou ateu, amo a Deus sou dentista, jornalista bondoso, montruoso. NÃO!!!!!!!!!! Quem sou eu? Já sou tantos que Eu já não sou mais. No quarto luto contra essa guerra Ergo a bandeira branca esgotam-se as forças PÁRA!!!!!!!!!!!!! Já não vejo mais, não escuto, não sinto... Estou só, Eu e esta insana imaginação que não me abandona. SAIA!!!!! Choro, Berro, Sou, Sumo... LARGA!!!!! Já não sou mais Jeckyl sou Hyde. CORRE!!!!!! Sou Tu. LUTA!!!!!!!!! Sou seu. VINGA!!!!!!! Sou dele. Sou de todos, só não mais Meu...


Ensaio

self-portrait

por Sharon Pazner

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Futurismo

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Futurismo

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ábricas, fumaça, automóveis. Como quem dá partida em um motor de combustão, os futuristas incendiaram heranças artísticas, pregaram a libertação com o passado e a “higienização” do mundo através da guerra e da destruição de museus e academias. Em 20 de fevereiro de 1909, o poeta italiano Filippo Marinetti inaugurava a primeira vanguarda artística do século XX com seu Manifesto Futurista, estampado nas páginas do jornal francês Le Fígaro. Um discurso inflamado que escandalizou e apavorou a sociedade, aclamando um mundo veloz conduzido por máquinas e engrenagens. Estava proclamada a necessidade de uma nova arte para um novo mundo, uma resposta ao ritmo veloz com que as cidades cresciam. O Futurismo exaltou a beleza da velocidade, do dinamismo e das máquinas, que saíram das fábricas para tornar a vida mais ágil e prática, como o automóvel, seu signo máximo e representante perfeito da velocidade. Cem anos depois, as profecias futuristas se concretizaram e a vida continua cada vez mais veloz.

A carga dos lanceiros Umberto Boccioni Mosaico

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Futurismo

Uma ode à Liberdade O manifesto futurista faz 100 anos. A comemoração nos faz retomar os conceitos de negação ao conservadorismo, à liberdade pura da arte, dos pensamentos, das palavras....

por Érica Nering IMAGENS tatemodern.co.uk arte maralise lopes

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“V

amos, disse eu; vamos amigos! Partamos! Finalmente a mitologia e o ideal místico estão superados. Nós estamos prestes a assistir ao nascimento do Centauro e logo veremos voar os primeiros Anjos! Será preciso sacudir as portas da vida para experimentar seus gozos e ferrolhos!... Partamos! Eis, sobre a terra, a primeiríssima aurora! Não há que iguale o resplendor da espada vermelha do sol que esgrima pela primeira vez nas nossas trevas milenares!...”. Marinetti, manifesto futurista. Era o dia 20 de fevereiro de 1909, há 100 anos, quando o jornal francês Le Fígaro publicou em sua capa as frases que anunciavam a chegada da “primeira vanguarda do século XX”, escrito por Filippo Tomasso Marinetti. O movimento surgiu para modernizar a arte e as atitudes sociais italianas, mas sua influência espalhou-se por toda a Europa, e o mundo. Foi uma revolução. Uma resposta ao dinamismo da vida moderna: a tecnologia, a velocidade, a vida nas grandes cidades... Tudo isso expresso pelos pincéis de Pablo Picasso, Umberto Boccioni, Luigi Russolo, Giacomo Bala e Gino Severini, entre outros. Obras que representavam um verdadeiro fascínio pelos automóveis, bondes e aviões, por meio de cores fortes e estridentes. Entregar-se como pasto ao desconhecido, assim como pediu Marinetti, foi o objetivo da exposição “100 anos de Futurismo”, que começou em Roma, na Itália, e passou pelo Tate Modern, em Londres. E em contraste com o manifesto, que mandava: “desviem os cursos do canais, para inundar os museus!”, Mosaico convida para um passeio pelas galerias modernas do Tate, e deixar para que o leitor entenda da forma mais livre possível, esse movimento da liberdade.

À esquerda: Movimento d’uccello, de Fortunato Depero, que ilustra a capa desta edição. Abaixo: The Revolt, de Luigi Russolo

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Futurismo

Sala 1 - O que é o Futurismo

Comemorar a Guerra como um meio de mudança política. Velocidade como a nova beleza. A primeira fase é aquela da experimentação: os artistas baseiam-se em novas ideias de percepção, a fotografia experimental. A fragmentação do corpo usada para demonstrar o constante impacto ao qual estamos sujeitos.

Sala 2 - A Rua Milanese, Boccioni, Russolo e Carrà fizeram das ruas o tema principal: a iluminação pública permitia que se caminhasse por elas nos dias e nas noites. Os trens e os bondes podem ser vistos pelas janelas de casa.

Sala 3 - Cabarés Os teatros e os cabarés eram os espaços da vida enérgica futurista. Onde o homem moderno havia encontrado a diversão. Um verdadeiro contraste entre as emoções, o prazer e a libertação daquilo que inibe. Verdadeiros sinais de como a intensidade era, e ainda é, vivida.

The Dance of the Pan-Pan at the “Monico” Gino Severini 28

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Unique Forms of Continuity in Space Umberto Boccioni


Sala 4 - Palavras em Liberdade Marinetti não queria revolucionar apenas as artes, como também a escrita propriamente dita, promovendo a ideia de “palavras em metáforas-liberdade”, por meio da condensação de imagens telegráficas, vibrações máximas e nós nos pensamentos.

Sala 5 - Guerra Em 1914, quando começou a primeira guerra, a Itália manteve-se neutra. Mas os futuristas agitaram-se em uma onda intervencionista. Para Marinetti, a neutralidade era um sintoma de conservadorismo, que contraria a todas as ideias futuristas. Nessa época, eles procuraram capturar a atmosfera de renovação nacional, que levou a Itália à guerra, em 1915.

Sala 6 - Paris orfismos

Subway (Paroles in liberta) Fortunato Depero

O movimento cubista de Apollinaire foi essencial para que os futuristas conseguissem chegar à abstração. Essas influências de união das duas vanguardas foi chamado de “orfismo” em memória a Orfeu, poeta e música da mitologia grega, o mais talentoso de todos os tempos. Robert Delaunay foi a figura principal desta fase, apesar de rejeitar que tenha influências futuristas.

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Futurismo

A Era da Velocidade As novas tecnologias permitem Ao homem viajar a uma velocidade seis vezes superior À do som e se conectar com qualquer parte do mundo no instante de um clique por karen ferraz imagens pedro vilaz arte aline naoe

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I

magine fazer uma viagem entre o Rio de Janeiro e Nova York em apenas duas horas. A construção de aeronaves que voam a velocidades seis vezes maiores que a do som é cada vez mais possível graças às recentes pesquisas tecnológicas em velocidade hipersônica. Nos próximo meses, o Brasil inicia a etapa de testes do motor do 14-X, um veículo que atingirá velocidades próximas a 3 km/s a uma altitude entre 40 e 50 quilômetros. A aeronave foi projetada pelo engenheiro Tiago Rolim, formado pelo ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), e está sendo desenvolvida no Instituto de Estudos Avançados (IEAv). “Um veículo deste tipo seria usado como uma alternativa aos motores foguete atuais, pois o 14-X, com o seu motor scramjet, de combustão é supersônica, conseguiria levar ou acelerar cargas em grandes altitudes mais eficientemente que os foguetes”, explica Tiago. Existe pouco espaço para erros quando se considera velocidades próximas a 3km/s. Grandes velocidade trazem uma série de desafios tecnológicos, como o desenvolvimento do sistema de proteção térmica e do sistema de controle das aeronaves para, em futuras pesquisas, serem aplicadas em


aeronaves de transporte comercial. Até hoje, o recorde de velocidade de uma aeronave de transporte pertence ao Concorde, modelo construído juntamente pela França e Inglaterra, cuja velocidade atingida é duas vezes superior à do som.

Tão rápido quanto o pensamento Mas de onde vem esse fascínio pela velocidade e essa necessidade de estar sempre buscando superá-la em experimentos tecnológicos? Quando prenunciaram um mundo dinâmico e veloz movido por máquinas, os futuristas foram vanguardistas ao captarem o impacto das novas invenções tecnológicas na velocidade com que a sociedade se transformava. A partir do século XX, seu ícone máximo de expressão, o automóvel, deixou de ser um artigo de luxo de esportistas e abonados para se tornar um meio de transporte e objeto de consumo em massa completamente presente no cotidiano que, talvez, seja uma das invenções tecnológicas que mais mudou a vida do homem moderno – ao lado da energia elétrica, dos aviões, do telefone, da televisão, e, mais recentemente, da internet. Para Tiago Rolim, o criador do 14-X, a razão dessa

busca incessante pela velocidade vem do desejo do homem de se locomover tão rápido quanto seu pensamento. “Como faríamos para alcançar um lugar quase instantaneamente eu não sei, mas até que se invente um meio de ‘teletransporte’, curtos tempos de viagem são relacionados a grandes velocidades. Meios de transporte hipervelozes poderiam nos colocar frente-a-frente com uma pessoa que esteja distante em questão de minutos, salvar vidas na locomoção de doentes ou no transporte de órgãos para transplante, ou quem sabe, uma rede internacional de doadores não poderia ser instituída?”, ressalta o engenheiro. As tecnologias deram ao homem a liberdade de se locomover rapidamente tanto físico como virtualmente, transpondo barreiras com um simples apertar de botões. Consequentemente, nossa sensibilidade e percepção também foram modificadas, por isso, não é estranho ouvir de alguém dizer Mosaico

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Futurismo

que sente o tempo passar mais rápido. As máquinas, já compreendidas anteriormente pelos futuristas como um novo corpo que multiplicaria o corpo humano, nos possibilitaram executar diversas atividades simultaneamente, porém, criando uma nova exigência na modernidade: a de cumprir um maior número de tarefas ao mesmo tempo. Nosso cérebro está tão acostumado a realizar automaticamente e agilmente sua rotina, que escrever com uma caneta, ao invés de teclar as letras freneticamente, tornou-se uma missão bastante lenta e árdua. É substituição do manual pelo automático. Assim como a noção temporal foi alterada pela incorporação de tecnologias no cotidiano, o espaço deixou de ser medido exclusivamente por escalas matemáticas. A velocidade do mundo moderno já não é mais essencialmente representada pelas fuselagens adornadas dos carros, e sim pelos espaços virtuais constituídos pela interação de infinitas redes de navegação que possibilitam o compartilhamento de informações em tempo real, em qualquer lugar do planeta. Nesse contexto, surge o ciberespaço, o novo espaço que rompe com as antigas estruturas lineares de tempo e territorialidade, no qual transita um fluxo de informações por

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um ambiente virtual que pode ser acessado através da internet, de celulares e pagers. As novas relações espaço-temporais dispensam a presença física do homem para serem estabelecidas e são definidas estritamente pela convergência de diversos meios e recursos tecnológicos, pela interatividade e pela simultaneidade dos processos comunicativos, inaugurando novas formas de sociabilidade pautadas essencialmente na velocidade. Velocidade que permite realizar funções instantaneamente, como mandar um email, assistir a um vídeo, acessar um portal, fazer compras, ver uma pessoa que está do outro lado mundo pelo computador. Nessa nova era, a da velocidade, o homem tornou-se completamente dependente das máquinas, acelerou suas ações e sua vida e revolucionou a noção de tempo e de espaço: é o sonho futurista diante de nossos olhos.


Os profissionais da velocidade

Ingo Hoffmann, o maior piloto da história da Stock Car, e Airton Daré, a fera da Fórmula Indy, contam as experiências de quem desafia altas velocidades na pista

por karen ferraz arte maralise lopes

“U

m carro de corrida cuja capota é adornada com grandes canos, como serpentes de respirações explosivas de um carro bravejante que parece correr na metralha é mais bonito do que a Vitória da Samotrácia”. Assim escrevera Marinetti em seu manifesto, há cem anos, ao comparar a beleza de um carro de corrida com a da escultura grega da deusa da vitória, produzida entre 220 e 190 a. C.. Em 1769, o francês Nicolas Cugnot foi pioneiro ao movimentar um veículo com um motor a vapor, mas apenas em 1885, graças ao alemão Karl Benz, e sua ideia de introduzir um motor de combustão interna a gasolina, foi possível idealizar um veículo com autopropulsão que conseguisse transportar passageiros por distâncias consideráveis. Desde então, proprietários e aficionados por ­carros começaram a testar a potência de seus modelos em disputas que aconteciam nas ruas das cidades, o que oferecia vários riscos aos pedestres. A primeira corrida aconteceu em 1894 na França, em que um Peugeot foi o carro vencedor dentre os 20 concorrentes no percurso entre Paris e Rouen. Os veículos ainda eram os mesmos que andavam pelas ruas, porém as fábricas já percebiam que era vantajoso incentivar essas competições para valorizar e dar visibilidade a seus produtos. Com a regularização do automobilismo, as provas

foram transferidas para circuitos fechados. Assim, em 1906 surgiu a Grande Prêmio da França, no qual 32 carros completaram 12 voltas em estradas em ao redor da cidade de Le Mans. O automóvel, então, entra no imaginário popular através de corridas espetaculares e, mais tarde, com sua popularização e produção em série e o surgimento dos vários road movies e filmes cujos personagens saiam com seus carros furiosos em busca de aventuras. Como protagonistas da vida real, os pilotos tornaram-se bravos heróis que arriscavam suas vidas desafiando a velocidade e batendo seus recordes levando o público à loucura. Hoje dominam super máquinas e atraem milhares de aficcionados para os autódromos do mundo inteiro. Mas afinal, como é sentir o cheiro do combustível na pista e a adrenalina de “voar” a 300, 400 km/h? Ninguém melhor para responder do quem vive essa experiência por debaixo de macacões e capacetes: aqui, os pilotos Ingo ­Hoffmann e Airton Daré em uma conversa sobre a velocidade.

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Futurismo

Eu consigo ter uma visão profunda durante a corrida (...) Enxergo até coisas na arquibancada

O conhecimento técnico é necessário a um ­piloto? Ingo Hoffmann: Hoje o conhecimento técnico pelo piloto não é fundamental. Na minha época era necessário dominar o funcionamento interno do carro e eu fui aprendendo aos poucos.

Ingo Hoffmann Amante da velocidade desde criança e piloto autodidata, Ingo Hoffmann considera-se um privilegiado por ter conseguido transformar sua paixão em profissão. em 1976, estreou na fórmula 1 e, Em 1979, na Stock Car, onde conquistou doze títulos, sagrando-se o maior campeão da história da categoria. Atualmente, Ingo trocou as pistas dos grandes circuitos pela adrenalina dos rallys off-road e revela que todo esse sucesso só foi alcançado com muita dedicação e comprometimento

E qual é a sensação de se experimentar altas velocidades? Você sente alguma alteração corporal ou psicológica durante a corrida? IH: O interessante é que a pessoa acaba se acostumando com a velocidade. Muitos começam no kart e depois vão para modalidades mais velozes. Faz parte ir adquirindo noção de velocidade e adaptando os reflexos que nem se percebe que está a uma velocidade de 300 km/h. Eu consigo ter uma visão profunda durante a corrida em função da adaptação. Enxergo até coisas na arquibancada, e aquele cara com a bandeirinha sinalizando. E como é a sua preparação para as corridas? IH: É importante ter preparo físico para aguentar o calor e manter uma boa frequência cardíaca, além de ter raciocínio e reflexo rápidos. Eu pratico esportes regularmente, como corrida, maratona, e faço um treinamento para o fortalecimento dos músculos. Hoje existem profissionais especializados em psicologia esportiva, que fazem toda preparação dos pilotos. Você é um piloto que já correu na F1, na Stock Car e em rallys. Como você descreve a variação de velocidade dentre essas diferentes modalidades? IH: Nas pistas de F1 o piloto se acostuma e nem sente a velocidade. Por incrível que pareça, a velocidade de um carro de rally parece estar a 400 km/h. A sensação de velocidade é muito maior porque na F1 o asfalto é todo preparado, enquanto no rally você anda no meio do mato, passa muito perto de árvores e de outros carros. Por que você acha que o homem está sempre buscando experimentar cada vez maiores velocidades? IH: Acho que é coisa do ser humano, cuja ambição e desejo de evoluir e de procurar novos desafios é cada vez maior para não cair no tédio e no ostracismo. Buscamos sempre nossa superação.

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Airton Daré O que é mais importante na sintonia entre o piloto e o carro: a habilidade ou o feeling? Airton Daré: É um conjunto, e a pessoa tem que ter sorte. Cada categoria tem sua particularidade. Na fórmula Indy depende muito mais da percepção do piloto que acerta mais o carro e fala pro mecânico, e já na Stock Car a corrida depende mais do braço do piloto do que do acerto do carro. Antigamente os pilotos conheciam mais do carro, hoje em dia um piloto de F1 não sabe nem apertar um parafuso. Como é pilotar um carro à 400 km/h? AD: Na Stock Car não se sente tanto a velocidade, o contrário da Fórmula Indy, em que o piloto corre a uma velocidade tão alta que o cérebro demora umas três voltas para acostumar com a corrida. O que você sente durante e depois do término da corrida? AD: Depois, quando você desce do carro, ainda fica com aquela sensação de estar em alta velocidade. No aspecto físico, como é um circuito oval, o corpo sente a força G no pescoço e na coluna durante as curvas.

Airton foi um dos primeiros ­pilotos brasileiros a conquistar espaço na Indy ­Racing League, conhecida aqui como ­Fórmula Indy, modalidade na qual os corredores pilotam carros a uma velocidade de 400 km/h em circuitos ovais. Daré, que já disputou vários prêmios internacionais importantes, correu também pela Stock Car, sempre gostou de carros, mas a intimidade com a velocidade começou mesmo com o jet ski

Comparando os carros de hoje com os de antigamente, qual evolução tecnológica você considera a mais importante? AD: Os carros atuais são totalmente diferentes e não dá para comparar com antigamente, mas acho que a maior revolução no automobilismo aconteceu nos freios e no aprimoramento da segurança e dos soft-walls, principalmente depois da morte do Senna. Além de melhorias na aerodinâmica dos carros também. Como é pilotar um carro na Fórmula Indy? AD: Só quem andou em Indianápolis a 400 km/h sabe o que é. A sensação é indescritível!

Hoje em dia um piloto de F1 não sabe nem apertar um parafuso

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Futurismo

O ano é 2109 Navego em rede, logo existo. Tenho uma família margarina moderna. Trabalho em casa. Sou vegetariano. por PAULA RODRIGUES imagens divulgação arte aline naoe

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m 1900, algumas pessoas pintaram em telas o cenário que imaginaram dali a cem anos, representadas ao lado. É curioso observar que, salvo alguns engenhos tecnológicos, nada mudava em termos de vestimentas, mobiliário e arquitetura. As pessoas têm uma enorme dificuldade de romper os atuais paradigmas e libertar a imaginação das amarras dos valores impostos e das fórmulas prontas. Em homenagem ao centenário do Manifesto Futurista, de 1909, promovemos um exercício de reflexão e perguntamos para especialistas de várias áreas como eles pensam o futuro do próximo século.

Mídias Digitais Carlos Nepomuceno – presidente do Instituto de Inteligência Coletiva e professor de Mídias Digitais do Senac “A história nos mostra que as mídias não vivem de continuidade, mas de rupturas. Certamente, já é possível prever que as redes de conhecimento serão filhas de algo que virá da inteligência artificial, de robôs e de mudanças genéticas, além do posicionamento por satélites, como também a virtualização geral do mundo real, com dificuldade de saber o que é ou não digital, no estilo Matrix. E “estar em rede” fará parte da nossa vida sem necessidade de aparelhos, ou dispositivos. Nós seremos estes dispositivos, navegando ao mesmo tempo em que existimos, sempre tendo o que queremos em termos de informação, através das demandas que faremos, talvez por demandas cerebrais, sem mesmo precisar falar”. 36

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Finanças e Economia

Alberto Borges Matias – doutor em Finanças e Marketing

Agricultura Pedro Jovchelevich - Gerente geral da Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica “Depois de todas as crises ­ambientais e de alimentos, o ser humano desperta lentamente para seu papel aqui na ­Terra e supera a ganância pelo consumo desenfreado. Neste sentido, a agricultura se torna uma maneira não apenas de produção de alimentos, mas de integração do Homem com a Natureza. Em vez de grandes áreas de produção em monocultura, voltado para exportação, cada região desenvolve sistemas de produção adaptados e diversificados nas bases da agricultura orgânica e biodinâmica. Todos os recursos locais são reutilizados e não há dependência de insumos externos. Não importa a quantidade, mas a qualidade do alimento produzido. O ser humano do futuro buscará conhecer novos alimentos, ­principalmente do reino vegetal, já que a ­maioria da população será vegetariana. A maior parte da área hoje cultivada será ­usada para recuperação de florestas ­nativas, visando a estabilizar o clima do ­Planeta”.

“Estamos entrando, no Brasil, em um período de elevada liquidez de mercado, nunca antes vista neste país - em razão da recente crise econômica, o Banco Central liberou o compulsório dos bancos e este dinheiro está sendo aplicado em operações de crédito, iniciando um novo ciclo de crescimento econômico. Observa-se estreita relação entre economia e finanças. Podemos, assim, imaginar um século de crescimento, mesmo com crises econômicas a cada período próximo a cinco anos. Isto significa emprego e a necessidade de qualificação da mão de obra, através de pleitos sociais – o brasileiro é um povo pacato, mas vendo a ineficiência do setor público em questões de educação, saúde e infraestrutura, deveremos nos unir e cobrar, prevendo-se movimentos sociais em pleito à qualificação do setor público. Finanças dominarão cada vez mais o controle de terrorismo e tráfico de drogas. A evolução da nanotecnologia, das neurociências e da informática irá provocar vibrantes mudanças na produção, distribuição e armazenamento de produtos e serviços, integrados ao dia a dia dos consumidores por canais altamente eficientes de comunicação. Viveremos um novo mundo de expansão do homework.

Estrutura Familiar

Roberta Palermo - terapeuta familiar

“A estrutura familiar pode até ter muitas mudanças, mas imagino que a família ainda será a base de cada um mesmo daqui a cem anos. Quem sabe o que deva mudar seja o número de filhos. Se a mulher quer trabalhar e ser mãe, tem que ver quantos filhos terá, de quantos dará conta. Com o desenvolvimento tecnológico, imagino que o ser humano tenha ainda mais mecanismos que auxiliem e facilitem a interação e sua união. Eu não imagino nada tão diferente do que vivemos hoje, afinal, já é confuso demais. Espero que as famílias estejam aceitando bem essas alterações que aconteceram nesse século: a chegada da madrasta e do padrasto, casais homossexuais criando filhos, etc. A família tradicional já se quebrou com o divórcio, com o falecimento dos entes e com avós criando seus netos. Família todos temos, o que muda é a formação de cada uma. A família margarina ainda é a mais desejada por ser a tradicional, aparentemente a mais organizada. Mas cada um pode criar sua própria família margarina moderna”.

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DadaĂ­smo

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Dadaísmo

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iante de uma Europa assolada pela Primeira Guerra Mundial, um grupo de artistas reunidos no Cabaré Voltaire, em Zurique, decidiu expressar a indignação pelo conflito e, assim, surgiu o Dadaísmo. Eles assinalavam a ausência de perspectiva diante do mundo em guerra, posicionavam-se contra as formulações da lógica e pregavam o niilismo. Nega-se tudo que seja arte, moral, política ou religião. A revolta dos dadaístas era calcada em uma crítica mordaz da sociedade capitalista e burguesa, responsável pela guerra. Porém, eles dependiam da sociedade que condenavam e a destruição de tudo significaria o extermínio deles próprios. Afinal, ser dadá é ser antidadá. Nas palavras de Hans Arp: o Dadá visou destruir as razoáveis ilusões do homem e recuperar a ordem natural e absurda. Quis substituir o contra-senso lógico pelo ilogicamente desprovido de sentido e proclamar a virtude da nãorazão. Para dar vazão a essa fúria satírica, uma entrevista de teor pessimista, um poema feito ao acaso e guerra, o ópio da humanidade.

Roda de bicicleta Marcel Duchamp

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Dadaísmo

Era uma vez o homem Os retrocessos da humanidade ao longo de sua paradoxal evolução social por paula rodrigues IMAGENS aline naoe

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stamos vivendo tempos calcados em um modelo de civilidade de pouca qualidade”, pondera o arquiteto e ambientalista Fredmar Corrêa. Pode-se dizer que as raízes desse modelo estão fincadas no limiar do século XVI, marco da consagração de um sistema eurocêntrico de dominação das terras e dos povos do planeta. A vontade europeia sobrepunha-se diante dos povos “bárbaros” considerados inferiores em termos de civilização. “Cada qual chama de barbárie aquilo que não é de costume; como verdadeiramente parece que não temos outro ponto de vista sobre a verdade e a razão a não ser o exemplo e o modelo das opiniões e os usos do país em que estamos”, assinala o ensaísta francês Michel de Montaigne. Assim, foi imposto o padrão conceitual de dominação global da vontade europeia de desenvolvimento. Desde então, a civilização, em termos dos progressos da humanidade no processo de evolução social, viu-se condenada a um alargamento contínuo


das ambições humanas de poder e de desfrute que culminou em um torturado século XX. Os avanços sociais e tecnológicos do esperançado século anterior foram insuficientes para assegurar a paz e a política de boa vizinhança entre as nações. As noções de civilização ficaram confinadas aos estudos acadêmicos, relegadas ao vento nuclear. O mundo entra em colapso. Duas grandes guerras mundiais contabilizaram 64 milhões de mortos e ninguém, além do próprio homem, tem culpa. E não consideremos culpados apenas aqueles que riscaram o fósforo no pavio sejam quais foram as justificativas econômicas, políticas, religiosas ou xenófobas, mas também aqueles que se omitem e se acostumam à selvajaria. “Talvez 10 milhões de mortos parecessem um número mais brutal para os que jamais haviam esperado tal sacrifício (os partícipes da Primeira Guerra Mundial) do que os 54 milhões para os que já haviam experimentado a guerra com um massacre antes”, pondera o historiador Eric Hobsbawn no livro Era dos Extremos – O breve século XX (1914-1991). Os olhos viciaram-se em episódios de catástrofe, miséria e opressão. Foi assim que mais de 40 guerras deflagraram ao longo do Século Sangrento sem que houvesse compaixão pelo outro. O homem, enquanto ser social, afirma-se mediante a concepção de alteridade que, muitas vezes, não respeita, não admira, não ama. Assim, como acreditavam os dadaístas, a experiência humana não poderia resultar em outra coisa senão em guerra. Ao ambicionar ser mais, ter mais e saber mais, o homem trava uma guerra contra o outro, contra o meio em que vive e contra si mesmo. Talvez a civilização humana esteja condenada se não se perguntar, assim como na canção, quantas guerras terá que vencer por um pouco de paz.

Ao ambicionar ser mais, ter mais e saber mais, o homem trava uma guerra contra o outro, contra o meio em que vive e contra si mesmo

Um levantamento das Organizações das Nações Unidas revelou que, em 2050, bem na metade do século XXI, a população mundial já terá ultrapassado os nove bilhões de habitantes. O mundo fica pequeno. O mundo entra em colapso. Se não formos tomados por um cataclismo humano e social, o ápice de nossa evolução social se resumirá a nove bilhões de estranhos, vegetativos intelectuais cegos pelo instinto de ambição autodestrutiva, vivendo no Planeta dos Macacos.

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Extra

Duas Etc. por paula rodrigues arte aline naoe

Antropofagia chuva suicídios. Regularmente assalto crimes escândalos. Letargia. Capitais. Incêndios as amor como notícias... extraordinários, misteriosos. Sonambulismo fenômenos jornais. Ventre quinto diferentes inundações. Execuções rubrica andar dentes. Hediondos mais de mundo com pequenos. Cabeças mula raptos mão que caso, etc. Arte!

Para fazer um poema dadaísta por Tristan Tzara

Pegue um jornal. Pegue a tesoura. Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema. Recorte o artigo. Recorte em seguida, com atenção, algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco. Agite suavemente. Tire em seguida cada pedaço, um após o outro. Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco. O poema se parecerá com você. E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido 42

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do público.


Ensaio

a arte está pronta

Ready-made

Por Paula Rodrigues

desde que os tubos de tinta usados por um artista são produtos manufaturados e préfabricados (“ready-made”), devemos concluir que todas as pinturas do mundo são “ready-mades” e também obras de colagem marcel duchamp

Roda de música

Asas de ferro

Balança

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Entrevista

Olgária Matos Em entrevista para Mosaico, a filósofa Olgária Chain Feres Matos, professora da USP e da UNIFESP, nos oferece uma decodificação pessimista sobre a atualidade Em um mundo desprovido de valores. Sem saber mencionar alternativas, apesar de dizer que elas existem, Olgária fala sobre valores éticos, religião, educação e ciência. por Karen terossi Fotos érica nering arte aline naoe

Religião

O que as pessoas escolhem não é por um ato de liberdade, porque já foi escolhido antes pela ­indústria cultural, pela oferta de comportamentos. Pense no mercado religioso: você tem uma proliferação de ­religiões. E por que as pessoas mudam tão rápido de ­religião? As pessoas não têm mais fé, elas têm crenças, que é algo mais superficial, no sentido de resolver um problema afetivo. Se essa religião resolver, ótimo! Se não resolver, vou procurar outra. É um mercado ­religioso. 44

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Educação

A indústria do entretenimento está invadindo a educação e está criando padrões de educação que a imitam. Por isso a educação está em crise. A educação não é fácil não! É chato! A criança tem que aprender a ficar sentada quando ela quer brincar. O espírito de reflexão, de autonomia com relação à sociedade, de estar nela, mas estar distante para poder justamente mudar e aperfeiçoar os comportamentos e criar novos valores, esse distanciamento é difícil hoje porque não há mais diferenciação entre entretenimento e educação. O que se diz no Brasil? A educação está em crise porque ela tem que se adaptar à sociedade. Não! Ela tem que erguer a sociedade a valores universais e não se adaptar à pobreza moral, intelectual e material da sociedade. Então, onde vão ser gestados esses valores? Também não sei te dizer!

Ciência

A ciência tem essa duplicidade: por um lado é desejo de conhecimento, e esse é seu lado especulativo; e por outro ela tem uma adaptação tal qual o mundo é, ou seja, quanto mais agressiva é uma força da natureza, mais agressiva é a ciência para tentar vencer essa ameaça. Então a ideia de uma neutralidade científica não existe. A ciência é uma construção que foi produzida ideologicamente para forjar a ideologia da racionalidade tecnológica, segundo a qual todas as decisões políticas são decisões técnicas. Na sua função de dominação violenta da natureza, acaba desencadeando processos naturais que a ultrapassam. Se a gente pensar na energia nuclear, tanto civil quanto militar, a ciência diz que é uma energia limpa. Energia limpa nada! É a energia mais tóxica que o homem já produziu! Precisa de milhões de anos para o lixo atômico parar de produzir radiação. É extremamente letal. É um genocídio chamado progresso. Mas o que está incluído na racionalidade científica? Dado que existe um fetiche da ideia de pro-

Olgária Matos, no Café Filosófico gresso, o progresso vai pra onde ele tem que ir e as vítimas do progresso são acidentes de percurso. Então você não toma conta das vítimas porque a ideia de progresso dissimula a violência do princípio e da execução da racionalidade científica. A ciência, ao desenvolver a ideia de vencer processos que ela não controla, acaba desencadeando processos que ela também não controla. Existe um potencial de risco permanente criado pela ciência.

Valores?

Nós temos um volume saturante de informações, mas nosso tempo carece de valores. O único valor que domina e que organiza a sociedade é o valor de troca, de mercadoria. É um período histórico incapaz de criar e reconhecer valores éticos. Um exemplo: o que era até pouco tempo uma parábola, uma fábula, um provérbio ou uma máxima moral? Quem eram aquelas figuras notáveis, que serviam de exemplo de vida? Pense em Sócrates, um homem muito pobre, que andava sempre com uma túnica de algodão, descalço no verão e no inverno, e se tornou patrono da Filosofia e da Humanidade. Conta-se que ele era um homem muito pobre, mas que todo dia ia à praça do mercado. Os seus discípulos teriam perguntado por que ele ia todo dia para lá, se não tinha dinheiro para comprar nada. E ele teria respondido que era pra ver as coisas de que ele não precisava para viver. Você tem nessa afirmação uma espécie de orientação para a vida e para o pensamento. Aquelas personagens eram admiradas porque correspondiam a valores éticos. Hoje o que significa você se espelhar numa celebridade? Ela te ensina o quê? Não há valores propriamente! Mosaico

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Surrealismo

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Three Ages Salvador Dalí

entimento. Instinto. Amarras libertas, pensamentos soltos. Desprender. Libertar. O automatismo reina no ambiente surreal: tudo provindo de porões psicológicos de artistas prontos ao experimento absoluto. Salvador Dalí e René Magritte são os principais, aqueles que vestiram a camisa (de força?) surrealista. “Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio a bandeira da imaginação”, manifesta André Breton em 1924 ao construir as ideias que cerceariam os expoentes do movimento essencialmente francês. A esquizofrenia, conhecida como uma doença da loucura, chega ao subconsciente e leva o doente à arte. Os sonhos, a expressão do nosso psicológico, como diria Freud. Tudo motivos para a arte. Mas, por que, afinal, tantos porquês? Tantas justificativas para o que se desenha, se escreve? As obras surrealistas não se justificam, assim como, acreditam, deveria ser o mundo. A realidade vem do subconsciente, incompreensível às lógicas comuns, tendo como única razão o não-racional. “Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares.”, diziam. Não perdoe, não pense, não justifique. Liberte-se. Bem-vindo ao surreal mundo onde nada é errado, a não ser que se sinta.

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Alucinações de Realidade Viajar com os pés no chão e a cabeça nas nuvens: a esquizofrenia é uma doença bastante real, que leva quem a tem para mundos nunca antes visitados por Érica Nering IMAGENS karen ferraz e thessa ferraz arte maralise lopes

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rvores de tangerina, céu de marmelada, flores de celofane amarelas e verdes. Procure a menina com o sol em seus olhos! Segue até a ponte perto da fonte onde pessoas com cavalo de pau comem marshmalow. Todos sorriem enquanto você boia passando as flores que crescem tão inacreditavelmente altas. Reconhece esses versos traduzidos de um disco famoso dos Beatles? É a Lucy, no céu, com diamantes. É o cenário de estranhamento descrito pela banda britânica mais famosa de todos os tempos. A música cria um panorama psicodélico. Uma viagem louca. Uma verdadeira alucinação. “E as alucinações, quer sejam visuais, auditivas, táteis ou de outra modalidade, estão presentes em algumas fases ou tipos de esquizofrenia”, explica Lígia Sena, doutora em farmacologia, pesquisadora da esquizofrenia, fã ­inveterada dos Beatles.

A música, desde o seu lançamento em 1967, passou por uma grande polêmica. “Lucy in the Sky with Diamonds” seria a maneira encontrada para fazer alusão à droga LSD? “Um dia eu resolvi ler o diário dela e descobri que ela, alguns vizinhos e até seus primos usavam drogas. Eu tentei controlar, desconfiava de tudo”, explica Daisy Antonello, mãe de Lílian, a garota de classe média que se viu internada por dependência de drogas. O que para alguns jovens é uma brincadeira, uma forma de “sair da real”, desencadeou em Lílian uma viagem que agora só termina à base de remédios. Daqueles com a faixa preta na caixinha. “Ela se sentia perseguida pelas pessoas na faculdade. - Mãe, eu Mosaico

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Surrealismo

não estou conseguindo encostar o carro na frente de casa porque tem alguém me perseguindo. A Lílian me dizia isso, eu saía na porta e não tinha ninguém. Não tinha nada. Só o carro dela dando voltas”. O diagnóstico demorou a aparecer, mas a menina tinha esquizofrenia. Drogas como o LSD possuem um composto que diminui a liberação de serotonina em algumas regiões cerebrais. “O uso de LSD induz um estado muito semelhante aos surtos psicóticos observados em pacientes esquizofrênicos, o que levou à hipótese de que a serotonina estivesse envolvida na gênese ou manifestação da esquizofrenia”, explica Lígia. Delírios, incoerências, isolamento, passividade, negativismo, ansiedade, comportamento violento, estupidez, rigidez... Os sintomas da doença podem ser os mais diversos, o que dificulta ainda mais o seu diagnóstico.

Ficar preso à própria mente, mas ­abrir-se para ideias abstratas. Libertar-se das convenções

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Dizem por aí... Esquizofrenia significa, etimologicamente, “divisão da mente”. “Ela indica uma quebra entre as funções do pensamento, da afetividade e do comportamento”, segundo a pesquisadora. A doença caracteriza-se por um tipo de psicose. A pessoa perde a noção do que acontece à sua volta. “Psicose é quando o indivíduo perde a noção da realidade, perde a capacidade de interpretar adequadamente a realidade”, explica a professora. A última novela das 21h, na rede Globo, mostrou a história de Tarso Cadore, um garoto rico que passa a desenvolver a doença. “Nós não podíamos ligar a televisão em casa porque o aparelho falava dela”, explica Daisy. A mãe de Lílian explica que foi começando a ficar difícil para toda a família lidar com a doença. Os surtos passam a ficar mais intensos. Em certo momento, ela dizia sentir dores de cabeça muito fortes e suas mãos adormecidas. “Meus outros filhos diziam que a culpa era minha, que eu tinha mimado demais. Mas


a gente só acaba dando um pouco mais de atenção para aquele que precisa, que preocupa”. Ainda não se sabe ao certo o que causa essa doença. “o que sabemos até o momento é que as causas da dizem respeito a uma interação entre fatores ambientais, sociais ou genéticos”, diz Lígia. O que ela explica é que isso tudo pode potencializar uma predisposição do paciente a desenvolver a doença, mas que, assim como seus sintomas variam de pessoa para pessoa, suas causas também são variáveis. Apesar de tudo, a esquizofrenia é uma doença com a qual é possível conviver bem. “Atualmente temos uma ampla gama de medicamentos voltados a controlar os sintomas mais prejudiciais à vida do paciente, bem como um grande número de técnicas psicoterapêuticas e de terapias ocupacionais que são tão eficazes quanto o próprio tratamento medicamentoso”, como Lígia diz. “Agora ela arrumou um namorado legal, que sabe de todos os seus problemas. Ele já esteve aqui em uma das suas crises. A Lílian não aceita ainda a doença, mas ela sabe que vai tomar medicação pelo resto da vida”, fala a mãe.

A arte

Árvore de tangerina Moldar o mundo como quem brinca de massinha

Alguns estudos apontam a arte como um dos sintomas da esquizofrenia. “O lugar comum não satisfaz, eles precisam de algo mais”, explica Daisy falando das tendências artísticas de sua filha, que já estudou Educação Artística e agora estuda Moda. Para ela, essa característica faz de Lílian uma pessoa mais criativa, que busca alcançar concretamente, por meio da arte, o que ela vivencia em sua mente.

O lugar comum não satisfaz, eles precisam de algo mais

Embora o paciente de esquizofrenia ainda viva sob certo estigma, muitos profissionais da saúde mental lutam para que essa situação mude. E a capacidade artística tem sido usada com este objetivo. No Brasil, a iniciativa reconhecida internacionalmente é a da médica psiquiátrica alagoana Nise da Silveira. “Ela lutou contra

o confinamento manicomial e o tratamento à base de choque e estimulou o tratamento da esquizofrenia feito à base do desenvolvimento das potencialidades artísticas dos pacientes, em um trabalho louvável e humano”, explica Lígia sobre o trabalho da alagoana. O trabalho de Nise deu origem ao Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, que faz exposições com os trabalhos desses artistas que alucinam as mais belas realidades. Mosaico

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Viagens de um surrealista contemporâneo

Ensaio

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A subjetividade, o mundo dos sonhos, da loucura consciente, do irreal paupável: o artista Andrey Rossi usa influências surrealistas para provocar sensações. ensaio de Andrey Rossi, 22 anos, estudante de “Educação Artística” da Unesp

Coisas 60 x 80 cm


Ensaio

Experimento I 140 x 145 cm, em lona

Aborto em segundo grau 100 x 80 cm

Tenho influência da estética surrealista, mas o “aborto” tem traços do expressionismo também

Gosto de deixar a expectativa para o leitor: sua interpretação fica em aberto, você pode fazer de acordo com o título

Aborto 100 x 70 cm Mosaico

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Ensaio

Experimento 60 x 36 cm, em metal

Não sofro influência de nenhum artista em específico, dentro do movimento surrealista, mas mais dentro do cinema e do trabalho surrealista contemporâneo

Reflexo 50 x 80 cm, em madeira

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Extra

do alto vejo o meu surrealismo por cesare rodrigues ILUSTRAÇÃO KENJI KIHARA ARTE ALINE NAOE

Do alto vejo um louco nu e furioso esbravejar seus versos tolos pela causa da imaginação. Do alto vejo a revoada de sonhos, o desvario da noite e as flores de ar. Ouço o sotaque andaluz dum cão que ladra impaciente, ouço os tique-taques de relógios persistentes na memória e a humanidade lamentar a derrocada do fantástico e do maravilhoso. “Isso não existe!”, uma voz estridente e bela me repreende. “E o que é que existe?”, despautero cá do alto, donde vejo um louco nu e furioso esbravejar seus versos indolentes e românticos exaltando o belo e o maravilhoso. Sem resposta. “Antes há a iluminação, então o inferno e por fim o silêncio”, provoca sóbria e consciente a razão. Mas o meu surrealismo esbraveja que antes vem o inferno e então a iluminação. Rimbaud não se calou por conhecer o inferno ou o fim da poesia. Calou-se por seu surrealismo ser a vida e não a obra. Calou-se por depois de iluminar não ver mais que o silêncio. O mesmo silêncio que ecoa nos meus sonhos e me confunde a inconsciência. “Ora, caro poeta, e por que te confunde o silêncio?”, questiona uma voz impositiva e grave. “Não apenas o silêncio, mas me confunde a razão”, respondo e silencio. E só me encontro nos surrealismos de Baudelaire e de Poe e de Jarry. Só me encontro em Lautréamont. Reflito linha a linha com Breton e seus eternos manifestos enquanto do alto vejo um louco nu e furioso mutilar o próprio romantismo obcecado pela beleza. Exalto cada verso de Éluard e Desnos e Aragon. Exalto a denúncia do exótico de um Man Ray ou de um Dalí, o desespero de Artaud ou da personagem perdida entre o maravilhoso e a imaginação, desencontrada entre o inconsciente e os sonhos. Mergulho no sono e exalto o teu, como o deles, como o meu surrealismo! “E por que exaltas esse surrealismo se sequer podes tocá-lo, tê-lo?”, me recrimina uma voz tão consciente que me faz crer estar desperto. “E quem é que toca ou tem os sonhos?”, respondo do alto do meu voo, do alto do meu surrealismo, donde vejo a mim mesmo – louco, nu e furioso – esbravejando os versos eufóricos dos quais gloriosamente me elevo e que entoam altaneiros os meus sonhos, os meus desejos, os meus amores! Mosaico

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Conversa de edredom Mesmo que sejam, enfim, somente um mecanismo para jogar no lixo as informaçþes inúteis que acumulamos durante o dia, os sonhos fascinam e parecem querer dizer algo por ALINE NAOE imagem clarice diamantino arte maralise lopes

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ma vez que a gente dê importância aos próprios sonhos, eles passam a responder ao nosso interesse e se deixam reter pela memória com uma facilidade que antes não havia”. É o que diz o sonhador, escritor e jornalista Eustáquio Gomes. Embora tudo se passe em uma dimensão que muitas vezes nem lembramos de ter passado, o mundo dos sonhos serve de alerta, esconderijo e inspiração para muita gente. Lendo o que Carl Jung e Sigmund Freud falavam sobre os sonhos, Gomes adotou o hábito de anotá-los e deles saem crônicas, diários e livros. Em “Viagem ao centro do dia”, um livro-diário, ele conta que as narrativas noturnas podem mesmo se tornar uma segunda vida – e que dar importância a elas tem o potencial de atenuar aquela sensação de brevidade impregnada em nossa existência. Outro que costumava anotar os sonhos era Franz Kafka - aquele que escreveu a experiência pós-sonho mais bizarra de todas: um homem que depois de uma noite de sonhos intranquilos, acorda metamorfoseado num inseto bem parecido com uma barata. O autor anotava sonhos e pesadelos pela manhã e muitos deles foram parar em suas obras. Será então que sonhar pode caracterizar um surto de criatividade? Freud explica. “Todo material que compõe o conteúdo de um sonho é derivado, de algum modo, da experiência, ou seja, foi reproduzido ou lembrado no sonho – ao menos isso podemos considerar como fato indiscutível”, é o que o doutor diz em “A interpretação dos sonhos”. Assim, todas as coisas loucas, criativas, mórbidas e sem sentido que você sonha vêm de um só lugar: você. E se você se animou para guardar seus sonhos, segure-os com força, pois eles podem fugir. “De 2001 a 2005 anotei 420 sonhos, mas perdi-os num colapso do computador - desgraçadamente não tinha feito back-up. Continuo a registrá-los, mas com menor ­frequência; como retaliação, eles se tornaram esquivos e não se deixam reter com tanta facilidade”, lamenta Eustáquio.

sonho do Eustáquio Uma vez sonhei com meu pai que já estava morto há 21 anos. No sonho, ele me entregou uma caixa de papelão com alguns objetos de minha infância, entre os quais um caderno com uma espécie de diário que eu iniciei quando menino. Mais tarde tive outros sonhos com diários – cadernos maravilhosos e trágicos que eu abria como se fossem livros sagrados – e me pareceu que o inconsciente queria me dizer alguma coisa por meio daquelas narrativas recorrentes. Eu de fato mantenho diários desde os 12 anos de idade, de modo que, em 2005, aos 53 anos, constatei que havia acumulado 2.500 páginas de apontamentos íntimos. Há muito desejava fazer uma seleção delas e publicar um livro autenticamente meu, que ninguém mais poderia ter escrito, mas o pudor não deixava. Interpretei aqueles sonhos recorrentes sobre diários como vozes de encorajamento ou de advertência para que publicasse sim aquele livro, pois ele teria um papel importante para mim como escritor e pessoa. Por isso, eles se constelaram daquela maneira. Obedeci aos sonhos, fiz a compilação e o diário foi publicado. A última notícia que tive dele é que estava sendo estudado num curso de pós-graduação em literatura na UERJ, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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opular, Momentânea, Consumível, Barata, Produzida em Massa, Jovem, Espirituosa, Sexy, Trapaceira, Glamourosa, e um Ótimo Negócio. Essa é a definição de Richard Hamilton para o movimento que nasceu em Londres, na década de 50, mas ganhou proporções em território norte-americano. Era a exaltação de uma arte feita a partir de elementos da cultura popular e dos meios de comunicação de massa, externos aos temas de museus e galerias. Armada de ironia, consistia em uma relação paradoxal de denúncia e glória da sociedade do consumo. “O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?”, nome da obra inaugural da Pop Art, também é o título do artigo que responde à questão. O imaginário urbano, típico da vanguarda, vem representado pelo colorido grafite das metrópoles. O fascínio pelo mundo sensual das celebridades e a busca pelos minutos de fama. A perversa lógica do consumo promovido pela indústria cultural e a reprodução em série das Sopas Campbell da atualidade. Deseje e consuma!

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Questões sobre a reciclagem da cultura erudita pela indústria cultural por aline naoe

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omingo. A platéia ansiosa aguarda em pé o apresentador chamar a “atração internacional” ao palco. “Só ele consegue fazer a integração da música clássica com a popular. Vem aí André Rieu e seu violino mágico”. Deve mesmo haver algo de mágico no instrumento de quatro cordas do holandês (imagem acima). Algo que impede o público de estranhar que, ao fundo do palco, haja uma dezena de mocinhas de top e saia dançando ao ritmo do violino. E que a música clássica pareça, enfim, tão fácil de gostar e assobiar. Ao contrário do que o movimento pop dos anos 60 fazia com a cultura popular, transformando-a em ma-

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téria prima para a produção artística “de museu”, hoje, a indústria da cultura tira os quadros da parede e os oferece em versões mal acabadas para o público. Há quem enxergue esse fenômeno como a popularização da cultura erudita. E há também quem veja nele somente mais uma forma de exclusão social por meio da cultura. “Se a música, mesmo sob pequenos novos ‘enfeites’ é a mesma em todos os hits, ela é facilmente identificável pelo ouvinte, por isso sua audição é facilitada, já que é de fácil reconhecimento,


não requerendo esforço ou atenção concentrada no seu processo de escuta”, escrevem o professor do Departamento de Psicologia da Unesp, Ari Fernando Maia, e sua orientanda, Deborah Cristina Antunes. Por meio de uma pesquisa empírica, Ari e Deborah estudaram as relações entre as pessoas – músicos ou não – com a música, verificando que ela acaba adquirindo a função de “cimento social”, ou seja, torna-se mais um elemento para a perpetuação da ideologia dominante. A música e a alegria de André Rieu, assim, não seriam inofensivas – sob o verniz do “Domingão do Faustão’’, as pessoas parecem apreciar uma cultura “de qualidade”, quando na verdade não há nenhum tipo de experiência ou reflexão, um comportamento que caracteriza as mais profundas raízes do preconceito, ou seja, a ação de maneira fixa e irrefletida. “O emancipador da nona sinfonia está intrínseco à leitura que se faz dela. Produtos como ‘Mozarth para crianças’ ou ‘Kant em 90 minutos’ tiram completamente o caráter das obras originais e, por conseguinte, a apreciação que se poderia extrair delas”, defende

A música acaba adquirindo a função de “cimento social”, ou seja, torna-se mais um elemento para a perpetuação da ideologia dominante

Ari, estudioso da Teoria Crítica, que trata do processo de conversão da cultura em mercadoria. O público, no entanto, parece não concordar. “A música clássica é bela. E artistas como o André Rieu prestam não só uma grande homenagem, mas um grande favor, ao conferir vivacidade a elas. O grande problema é que tem gente que acha que música clássica só é apreciável se você estiver num salão de ópera em Berlim de fraque e super sério. Mas não é assim. O que é belo tem que ser difundido, e se for difundido com alegria, tanto melhor”, diz o estudante de Direito Matheus Rodrigues, de 19 anos. Assim como muitas pessoas entrevistadas, Matheus considera as críticas não só à música “erudita-popular”, como a certas literaturas e crenças, como uma reação elitista de quem não quer compartilhar cultura com o povo e que despreza suas manifestações e interesses. A literatura de auto-ajuda, por exemplo, está constantemente no topo das listas dos livros mais vendidos, fenômeno que para os otimistas representa o crescimento do interesse dos brasileiros pela leitura, mas que, assim como ocorre com a música erudita popularizada, pode ser questionada como uma falsa cultura, facilitada e conveniente a certos interesses. “O discurso de autoajuda é favorável à manutenção do sistema capitalista. Com a idéia de que cada um constrói seu próprio destino, na condição de o único responsável pela própria felicidade ou tristeza, pelo que há de bom ou ruim em sua vida, o discurso de autoajuda leva as pessoas a acreditarem que elas são a origem dos seus problemas, como se eles não tivessem qualquer ligação com outros fatores, por exemplo, as condições em que as pessoas vivem”, diz a professora da Unesp, doutora em Lingüística, Anna Flora Brunelli. A questão atinge todas as matizes da produção em cultura e parece difícil de chegar a um fim. Mas é fato que enquanto se discute o valor das obras da indústria cultural, ela mesma não está nem aí – e está faturando muito.

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Subversão em cores A poética do grafite em meio ao caos urbano por Karen ferraz Fotos boleta, zezao e Érica nering arte maralise lopes

O Grafite de Boleta, uma revoada de pássaros e cores pelos muros

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trajeto é interrompido momentaneamente pelo semáforo, que logo inicia a contagem regressiva para a próxima largada no trânsito. As ruas se parecem todas iguais - uma massa homogênea de asfalto, paredes e muros sem cor, compondo um infinito de concreto cortado por carros nervosos e letreiros frenéticos. Os olhos, acostumados com as propagandas e com a quantidade exorbitante de cartazes e outdoors espalhados por metro quadrado, mal se espantam com as nuvens sempre cinzas. Tampouco com alguma cama improvisada com papelões num canto qualquer. Até que o carro entra subitamente em um viaduto e, durante segundos, a superfície se revela em cores e desenhos. O que era matéria concreta e geométrica torna-se imagem e subjetividade e, assim, coberta por grafites, a cidade subverte a racionalidade de seus planos e ganha um novo sentido, o poético.


“O grafite desperta o olhar e a crítica porque está nas ruas. Ele usa o ataque surpresa: você acorda, abre a janela e alguém mudou o cenário com um protesto. E o grafite não é só para embelezar e deixar a cidade mais bonita. Por estar na rua, ele acaba somando-se ao caos”, afirma Zezao, um dos grandes nomes que estampa os muros da cidade de São Paulo e que já levou o grafite brasileiro para exposições na França, Estados Unidos e Inglaterra. De raízes marginais e transgressoras, o grafite começou a tomar conta das ruas na década de 80, quando jovens das classes baixas, influenciados pela cultura hip-hop de Nova York e pelo break dance, começaram a utilizar os muros da cidade como meio para se expressarem. A partir de 2005, com o suporte e a divulgação da mídia, principalmente da internet, o cenário sofre uma reviravolta e essa manifestação artística genuinamente urbana invade as galerias, museus e exposições de arte, além de passar a ditar tendências e estilos na publicidade, no design e na moda. No Brasil, a primeira geração de grafiteiros nascia em 1970 com Alex Vallauri, que já desenhava seus famosos e intrigantes protestos políticos nos bairros de classe média paulistanos, como a “bota” e a “Rainha do Frango Assado”. Em 1980, o grupo TupiNãoDá organizava intervenções coletivas no espaço urbano da metrópole com a plasticidade de seus stencils. Hoje, o grafite é comercializado e sua estética é reconhecida na rua e também na galeria. A partir de 1999, a internet, junto com os fotologs, deu oportunidade dos próprios grafiteiros se conhecerem e publicarem seus trabalhos, como explica Zezao, que juntamente com artistas como osgemeos, Titi Freak, Nunca e Boleta, representam a terceira geração do grafite brasileiro, reconhecida mundialmente. O grafite apresenta fortes influências e resquícios da cultura dos cartoons iniciada pela Pop Art. Nos anos 50, essa vanguarda artística ironizava e criticava a ­sociedade, extraindo seus elementos iconográficos do estilo de vida essencialmente consumista preconizado nos mass media. Daí as 200 latas de sopa Campbell’s e as caixas de sabão em pó, de Warhol, e as imagens gigantes de história em quadrinhos que Roy Linchtenstein retirava dos desenhos animados e do cinema. Era a arte se alimentando do próprio mundo e reproduzindo em série, e de maneira tão efêmera, o cotidiano bombardeado pelo consumo.

Do mesmo modo, o grafite lança seu olhar para a cidade e apropria-se de seu próprio contexto caótico e do imaginário de seus cidadãos. Num ambiente dominado pelas imagens, o grafite capta a dimensão perceptiva do espaço urbano: quando essa arte feita com sprays de tinta materializa-se em uma superfície construída exclusivamente para separar, remarcar e definir, ela desloca e inverte a função da arquitetura e de seus planos geométricos. Assim, a pintura e os desenhos multicoloridos ressignificam a cidade e, ao mesmo tempo em que fazem referência à desordem presente em seu entorno, compõem com seus muros, viadutos e fachadas uma poesia urbana de efeito visual arrebatador. “O fato de o grafite estar nas ruas o torna a manifestação artística mais contemporânea e próxima das pessoas. Ele consegue chamar a atenção através de suas cores e formas que contrastam com a paisagem urbana”, explica o grafiteiro Daniel Medeiros, o “Boleta”, que já foi membro da Vício, uma das mais antigas gangues de pichadores de São

Urban Hearts Em azul, as formas abstratas de Zezao

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Paulo. Atualmente, tem seus grafites desenhados em marcas famosas de camisetas e embalagens de perfumes, além de assinar paredes do Museu de Arte Contemporânea da USP. Recentemente, lançou um livro sobre pichações. Os grafiteiros, esses artistas urbanos, tomam como inspiração o aspecto desorganizado e sujo da cidade. Um exemplo disso é o trabalho que Zezao realiza na “Cracolândia” e no subterrâneo, neste pintando as paredes das galerias de esgoto de São Paulo, que depois é divulgado em seu fotolog. “Em vez de olhar um lugar feio, quero que essas pessoas que moram nesses ­lugares possam ver uma arte bela. E quando vou pintar no subterrâneo, eu quero mostrar um lugar da cidade que está lá e existe”. Pela lei, é crime ambiental grafitar em local público sem permissão. Os ­artistas se desdobram para se esquivar da polícia e fazer seus trabalhos e, ­muitas vezes, até usam como argumento o ­desprezo dos governos para com a cidade. No grafite, o fugaz, o imediato e o efêmero estão irremediavelmente atrelados à sua concepção e materialidade. Deve ser produzido rapidamente para evitar complicações e dura instantes na mente de quem vê. Ele existe, e ­nunca se sabe se no dia seguinte vai estar ali ou será apagado. Se é arte ou não, cumpre sua missão em meio ao caos, que é justamente a de fazer quem está passando estranhar, questionar. Olhar.

Muro grafitado na Barra Funda, em São Paulo

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Emi Lucy e Fê Presley em

Romance de sanduíche

Uma história de amor que começa romântica, mas termina completamente pop FOTOS KAREN FERRAZ e érica nering

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Luzes efテェmeras de A busca de anテエnimos pela fama assinala a crenテァa de que as celebridades tテ確 tudo para ser feliz: beleza e dinheiro por Paula rodrigues imagens leandro gazignato arte maralise lopes

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inquietos holofotes

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m dia, todos terão direito a quinze minutos de fama”, diz a profecia do visionário e famoso Andy Warhol. Pois esse dia chegou e já passou! Devido à velocidade das tecnologias multimídias de comunicação, os vislumbrados por cliques de paparazzi devem contentar-se em receber somente quinze segundos de atenção da mídia. Afinal, a fila anda e tem muitos candidatos absolutos logo atrás. A massificação dos blogs e os sites de vídeos favorecem a elevação de anônimos a celebridades instantâneas, a ponto de beliscarem alguns segundos em programas vespertinos de auditório ou até telejornais que, eventualmente, repercutem a última febre de acessos e comentários na rede. Porém, para a imponente maioria, esse é o máximo alcance de uma fama passageira que logo direciona suas luzes ao próximo aspirante. Pergunta-se agora: por que as pessoas, principalmente adolescentes, querem tanto ser famosas? Para Rinaldo Correr, doutor em Psicologia Social e psicoterapeuta, o fascínio pela popularidade e pela fama está enraizado na crença de que as celebridades possuem de fato todos os atributos necessários para completar o que lhes falta: beleza e riqueza.

Desejo irreprimível Ela, nos seus irremediáveis dezesseis anos, folheia os inúmeros títulos de revistas femininas dedicadas a assuntos como dieta, fitness, moda e beleza. Com o extremismo de quem passa frio, mas deixa o vestido à mostra, segue como pode (e como o dinheiro permite) todas as dicas, escritas por mulheres descrentes de suas próprias palavras e semelhantes à sua mãe, a quem nunca dá ouvidos. Já ele não perde um só programa futebolístico e, como todo garoto de sua idade, quer viajar o mundo jogando bola por um salário ímpar, que talvez nunca consiga, mesmo com diploma após cursar cinco anos de faculdade. A lógica é simples: trabalho no que gosto e ganho bem (!!!) por isso. Não se pode culpá-los por desejarem a beleza e o dinheiro, afinal parecem ser os requisitos básicos para alcançar o status de celebridade. “O culto promovido pela mídia e sociedade contemporâneas justificam, em parte, a busca pela fama que, associada à riqueza e poder, exibidos até a exaustão, molda ambições e preenche uma existência desprovida de sentido”, analisa Correr. Muitas vezes, esse desejo irreprimível de ser famoso pode ser creditado ao sonho de se tornar uma pessoa talhada aos modelos impostos de produtividade e consumo. E isso, no território onírico, estaria ligado à garantia de felicidade.

BRAD PITT como Aquiles DE Tróia Definitivamente, a fama não bateu na porta do ator que largou a faculdade de jornalismo, mudou-se para a Califórnia e, enquanto tentava o estrelato, trabalhou como motorista, entregador e mascote de uma rede de fast food, vestido de galinha. Hoje, é ícone máximo de beleza, riqueza e felicidade hollywoodiana.

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Projeções desfocadas

Scarlett Johansson Parece que a polivalente atriz, modelo e cantora já nasceu para desfilar no tapete vermelho. O seu nome é uma homenagem a Scarlett O’Hara, personagem principal do clássico E o vento levou. Linda, loira e curvilínea, não demorou muito para a imprensa norte-americana compará-la a Marilyn Monroe, celebridade retratada em pôsteres por Andy Warhol.

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Às vezes, o fascínio pela fama e pela vida das celebridades é tanto que as pessoas passam a seguir o comportamento e os hábitos do ídolo que admira. “O processo de identificação funciona como uma aproximação mágica entre o “eu real” e o “eu ideal”. Ao me vestir, falar, me comportar como o ídolo, de certa forma me transformo nele”, explica Correr. Andy Warhol soube explorar esse lado desejável e consumível da fama nos quadros que pintou de Elvis Presley, Marlon Brando e Marilyn Monroe, ícones máximos da cultura popular das décadas de 50 e 60. Eles retratavam a paixão evidente pela celebridade e por tudo o que usavam, assim, alguns objetos tornaram-se emblemáticos e apetecíveis como o perfume Chanel nº5, favorito de Marilyn Monroe e a jaqueta de couro e motocicleta do rebelde Brando, no filme O selvagem. É baseando-se em exemplos como estes que não duvidamos da conclusão do pesquisador Henry Jenkins, diretor do Programa de Estudos Comparativos de Mídias do Massachusetts Institute of Technology (MIT): nenhum estudioso jamais vai saber metade do que os fãs sabem sobre cultura pop. É justamente por conhecer tão bem o berço das celebridades que as pessoas desejam o mesmo para si, com a fixação de serem mais, melhor e, óbvio, reconhecidos e aclamados por isso. A psicologia diz que quem se envolve com projetos pessoais é menos ­vulnerável a essa chuva torrencial de reality show e exploração do universo particular das celebridades. A fama ignora o aviso e seduz com suas luzes volúveis os que esperam pelos seus ­segundos de flashes.


Extra

O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes? Os slogans das marcas de eletrodomésticos resumem o que esperar de uma casa sintonizada com os padrões atuais de modernidade. Os lares de hoje e as casas do futuro tendem a potencializar a atmosfera consumível e espirituosa retratada por Richard Hamilton na colagem de 1956 (foto). Hoje, ao listar os itens responsáveis pela atratividade de um lar temos a liderança da televisão de siglas (LCD, HDTV, WXGA), faculdade das massas, disposta na parede principal da sala de estar para ser contemplada, assim como uma obra de arte, por toda a família, por horas a fio, especialmente no nobre horário das refeições. O epicentro do lar moderno é seguido de uma infinidade de móveis e aparelhos tão essenciais quanto os canais de TV a cabo. E, em casa que se preze não pode faltar uma boa poltrona anatômica, um micro system com comandos sensíveis ao toque, um sedã na garagem e um refrigerador duplex digital de mil funcionalidades, inclusive (pasmem!) congelar. Dentro dele, todos os tipos imagináveis de comida congelada, artigos de luxo assim como o presunto enlatado sobre a mesa de centro de Hamilton. A infinidade de avanços tecnológicos e a primazia do design, sem dúvida, deixam os lares de hoje cada vez mais práticos e atraentes, reafirmando a ­exaltação de invenções que contribuem para a melhoria do globalizado american way of life ou estilo de vida americano. Para habitar esse cenário que é o sonho de ­consumo de qualquer pessoa minimamente sã e antenada às possibilidades de consumo, um jovem empresário bem-sucedido casado com uma modelo/atriz/apresentadora e um casal de filhos, quer dizer, filhotes de Lhasa Apso. Pensando bem, o que há de tão diferente do lar cobiçado e ideal de quatro décadas atrás...

Um show de imagem em som digital. Tecnologia de última geração e conectividade aliadas ao design contemporâneo. Inovação rápida e descomplicada. Eficiência para se comunicar. Você no comando da programação por PAULA RODRIGUES

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IPods reproduzidos em sĂŠrie, inspirados nas Sopas Campbell de Andy Warhol (por Larissa Naoe)


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