dédalo #3

Page 46

A matéria torna-se carregamento de símbolo para o homem, que a transforma e lhe dá sentido, e ela reflecte-se nos sentidos de cada um, instalando-se e não havendo nunca sobre ela uma verdade abstracta e absoluta. Dos ditos sobre o belo é dito que “quando se é escravo/ até as flores podem pesar”. O teu tempo fascina e lembra-me a casa... Já tudo mudou na casa, o tempo das pessoas foi algum, o teu tempo, matéria, foi insignificante: tempos tão diferentes esses, estás lá, e mesmo não sabendo o que és, sinto-te resistente. Recordo que reflectias cheiro abafado e seco das pedras quentes de granito quando o sol te brindava, reflectias cores, no duro peitoril arcavas com queima do leite (creme). Retumbam foguetes num longínquo domingo, as pessoas pisam-te e tu reflectes sons de madeira e de cimento. Uma casa na quietude genuína de uma aldeia, e todo um rito que mudou e hoje, a casa embora transformada encontra-se intacta face às vidas. Continuas a reflectir o cheiro das pedras implacáveis, és irónica. A matéria que outrora foi palco da vida é cenário. Cenário do imaginário, é este o seu poder. Posso especular sobre ela, agora, tendo. E de que matéria é feita a casa? De granito? De granito

explodido da montanha, dividido em fracções, montado em alvenaria, rematando com outras o espaço dos vãos e facilitando uma soleira para a entrada. Não quero ser melancólico. É tudo, sem ela não somos nada, não significamos, é o tactear com os 5 sentidos, e significar. Não quero ser materialista mas não consigo ser de outra forma. O meu imaginário é cheio de toda a matéria que já experimentei, e é apenas aí que a desmaterializo e consigo alcançar um corpo na sua totalidade. Organizo, completo e sintetizo o leque do que é a memória dessa matéria, e é no imaginário que o mais rígido dos materiais circula não palpavel e simultaneamente com textura; cor; ruído; aroma e sabor. E consigo sentir a fricção da pedra lá fora com o olhar, enquanto oriento o percurso do quarto à sala com o tacto.

Referências Bibliográficas: CALVINO, Italo.1972. Le città invisibili [As cidades invisíveis. Lisboa: Teorema, 1993] ; ARNHEIM, Rudolf, The Dinamics of Architectural Form, 1ª edição: Lisboa 1988, Editorial Presença ; FERNANDES, Gomes, Crónicas do Porto, 1ª edição: Novembro de 1991, Asa editores ; ANTOLOGIA 1981-2004, Jornal arquitectos, Janeiro a Junho de 2005


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.