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FOGO FÁTUO: UMA EXPERIÊNCIA EM TRANSVERSALIDADE POÉTICA Iasmim Santos Silva, Maria Carolina de Andrade Freitas, Miguel Levi de Oliveira Lucas, Renata Gonçalves de Melo e Thauany Duarte Diniz

Fogo-Fátuo: uma experiência em transversalidade poética

Iasmim Santos Silva Maria Carolina de Andrade Freitas Miguel Levi de Oliveira Lucas Renata Gonçalves de Melo Thauany Duarte Diniz

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Fogos-fátuos que a nossa podridão gera são ao menos luz nas nossas trevas. (Fernando Pessoa em O Livro do Desassossego)

Uma flânerie remota

Uma experiência feita por pontos. Costura ziguezagueante por condição. Arremata conexões-sementeiras aguardando o curso dos fluxos explodir acontecimentos, frente ao abismo, na abertura ao mar-horizonte. Produção de novos relances. É preciso navegar. Procura de aventura polifônica, que ressoe outras melodias, que encare a estridência da catástrofe e a contorne até onde possível, invertendo-a a direção e implodindo-a. Torcer. Feituras de avesso, torceduras, aposta (Ginzburg, 2001).

Fogo-fátuo situa uma experiência em meio a pandemia de Covid-19 de produção de saraus poéticos e diários de quarentena como uma ação do projeto de extensão: Estudos Transversais em Educação: arte, memória e criticidade, da Universidade do Estado de Minas Gerais, campus Divinópolis. A iniciativa envolve o curso de História e de Psicologia em trabalho interdisciplinar. Percorre e conclama a comunidade acadêmica e a comunidade externa para, em comunhão, implementar um fazer que extrapole o golpe político e a crise sanitária que experimentamos, a fim de enfrentar o distanciamento social imposto pela pandemia e as dificuldades de trabalho remoto encontradas diante das urgências em curso.

Potência afirmada não como a designação de uma instituição, estrutura, mas como potencial: um devir – como afirma Viveiros de Castro (2018), um elemento mágico-real do devir. Na perspectiva do dom do desejo: roubar e compor em trocas aliançadas perspectivas invisíveis que comutem dar, receber e retribuir. Ações possíveis somente em esforço de produção de gesto poético, aquele que tenta – ainda que de forma imperfeita (Vilela, 2008) –

certa imagem do mundo, a insistir em transduções e transposições insuspeitas e repletas de porvir (Agamben, 2005; 2007; 2013).

Dimensão de Fora, singularidade pura, que situada em relação e em pertencimento, invoca um limiar, uma passagem, um espaço e ponto de contato externo, vazio, por onde transmuta-se o acontecimento à porta: aquela que inclui uma soleira, caminho, acessos. (Agamben, 2013). Donde o simples fato de existência apresenta-se como possibilidade ou potência. Registro, portanto, ético e estético. Inseparáveis.

Uma experiência em feitura, assim, não se detém em patrimônio de qualquer interioridade. Não admite ser de algo ou de alguém. Antes, vincula-se a uma lacuna, a um espasmo, uma brecha, a uma falta como potência, uma ética, contanto. Preferimos o limbo profano. De não pertencer a reino definível. A criar algum tipo de pertencimento que seja apenas aquele de comungar com espaços, palavras, coisas, agentes, estéticas, mistérios, fendas. Afinal, nossos lamentos não são queixas, são incompletudes, possíveis, que nos esgarçam em todas as direções. Relançam-nos ao Fora. Metem-nos frente a frente à decidibilidade ética inesgotável e inexorável, pungente, da qual não podemos escapar.

Não arredamos pé. Ficamos em meio às forças, como testemunhas (Gagnebin, 2015; 2006; 2008; 2009; 2014; 2017). Insistimos. Arrancamos dos entre dentes da primavera as flores do mal. Como fez Baudelaire, em insubmissão e rebeldia (Benjamin, 2010).

Porque há experiência a realizar! Contentamentos a produzir. Redes quentes de conexão sensível, em fomento e ousadia (Teixeira, 2004). Recusamos cumprir tarefas. Obedecer enquadres. Exercícios de rasgar verbos e tecer oferendas de alegria e força-ofertório. Assim, conexões se criam, se desfazem, esvanecem, voltam a contornar a dor, com mirra, incenso e flor.

Ato de produzir o pensar em redes, ação e paixão. Potência de tocar. Potências de não tocar (Agamben, 2013; 2015a; 2015b). No lugar da mestria, tessituras artesanais, em forma de vaso de argila com as marcas impressas das mãos do oleiro (Benjamin, 1992; 2009; 2010; 2011; 2013a, 2013b, 2015a, 2015b). Desfazimento de lugares epicêntricos. Perseguimentos das bordas. Queremos bordas, fendas, fraturas, entre palavras nas pontas dos dedos e vozes roucas e epifânicas (Barthes, 2011;2004a;2004b).

Lugares para amores. Para sustentação de insistências teimosas, que reabram o obtuso em filetes e façam vazar os fluxos de revoluções em curso. Sustentação de revezes. Agio, um terminus technicus de poética, que designe o lugar mesmo do amor. (Agamben, 2013).

“A possibilidade da salvação começa somente nesse ponto –é salvação da profanidade do mundo (...)” (Agamben, 2013, p.83). No limiar o que se vê não está contido dentro dele. Procurar os modos, as modalidades. Não o contido. Nada é em si mesmo, irreparável. Irreparável “não é assim, mas o seu assim” (Agamben, 2013, p.85). Daqui provém nossa aposta no mundo. Esse terrível estado de coisas, não é. Está sendo. Mas o estar é modo. Podemos apostar na fabricação de outros. Configurar o mundo, ou melhor, os modos de outras formas, provisórias, sempre. Acatar o transitório. O mistério. “Então as coisas estão assim” (Agamben, 2013, p. 87).

A experiência dos saraus de poesia e modos de criação sensíveis portou germes de revoluções miúdas. Gestação do tempo em outras frequências vibratórias, outros fluxospassagens, menores, reuniões inusitadas de camaradagem. Ontologia, política e poesia. Todo pensamento é reiterada tentativa de revolução (Agamben, 2013, 2015a, 2015b). Fazer emergir um gesto de resistência, configuração do atual em outro registro contemporâneo, que faça brecar a catástrofe paralisante e totalitária, ao levantar faíscas incendiárias que demonstrem outras urgências e apostas, de produção de palavra viva, itinerante e solidária.

Com as trocas dos encontros, outros encontros, por dentro, costuravam outros pontos, saídas múltiplas, experimentações de redes minúsculas. Como entrar por dentro, sair por fora, entrar por fora, sair por dentro, drapear, entretelar, pespontar, casear, alinhavar até produzir o corte. Exercícios de delicadeza e corte. “Não se abre o amanhecer com faca” lembra-nos

Manoel de Barros (2010).

Nossas armas são palavras quentes, que como indicava-nos Belchior, são navalhas. Ou como sugere-nos Klossowski (1964), são as palavras que sangram, não as feridas. Nossa urgência é a intempestividade que nos causa em fenda com o tempo, uma fissura inconciliável, para que sejamos capazes de entrever a luz e também a sombra do firmamento que olhamos a noite. Impedir que sejamos tragados pela proximidade excessiva e estúpida da visão cega. Cindir a experiência, o tempo, a palavra. Dar lugar ao indeterminado, ao híbrido, a entretempos.

Raízes aéreas e táticas urgentes

É bom renovar o espanto da gente, diz o filósofo. (Matilde Campilho em Jóquei)

O projeto de extensão e a proposta dos saraus visam contribuir para a construção de novas linguagens sensíveis que aumentem os graus de transversalidade das experiências e acontecimentos junto à comunidade acadêmica e à comunidade externa, por meio da invenção de modos de sensibilidade, dispositivos de criação estética e intervenções artísticas e debates que articulem a educação, a arte, a memória e a crítica, como elementos de enfrentamento à situação de distanciamento social imposto pela COVID-19. Por entender a necessidade de produção de novos dispositivos semióticos, articulam à produção científica, o valor das expressões estéticas como ferramentas de aglutinação de fazeres e saberes transversais. O projeto executa-se por meio de dispositivos e plataformas gratuitas virtuais e com a participação de alunos a ele vinculados.

Os saraus reúnem, de forma virtual, alunos e docentes de graduação da Universidade proponente, professores de outras IES, Universidades Federais e a Universidade de Vila Velha, profissionais da saúde (psicólogos), alunos de institutos federais, artistas e interessados nas temáticas debatidas. Os temas dos encontros já realizados mapearam uma série de questões sociais em jogo, no acontecimento da Covid-19 e, de forma crítica, intercambiaram reflexões políticas, estéticas e éticas sobre os panoramas históricos vividos na atualidade.

A efetuação dos encontros remotos e virtuais concorrem para produção de agenciamentos semióticos que disponham – como a arte – de qualidades de ser inéditas. Aposta-se que novos agenciamentos semióticos façam eclodir acontecimentos. Acontecimentalizar. Perseguimos os afetos, o campo intensivo de uma experimentação prudente a fim de fazer da superfície do encontro, suporte para a expressão acontecimental (Deleuze, 1974). Como as palavras do filósofo que induzem a recompor a vida em forma de arte. De obra. Não a obra estancada que serve para expectadores desavisados. Mas a obra infinita do movimento de dobras. Dobrar-se, recurvar-se, desdobrar-se. Foucault (2011)propõe a construção da vida como obra de arte. Uma estética da existência:

Criar alguma coisa que aconteça entre as ideias, e ela deve ser feita de modo a tornar impossível dar-lhe um nome, cabendo então a cada instante dar-lhe uma coloração, uma forma e uma intensidade que nunca dizem o que ela é. Essa é a arte de viver. A arte de viver implica em matar a psicologia, criar consigo mesmo e com os outros individualidades, seres, relações, qualidades inominadas. Se não pudermos chegar a fazer isso na vida, ela não merece ser vivida (...) fazer de seu ser um objeto de arte, isso é o que vale a pena.” (Foucault, 2011, p. 107 – 109).

Experimentações que alargam os graus de transversalidade dos acontecimentos. Da vida. De forma a exercer simpatia. Simpatia, aqui, retoma a proposição deleuziana de agenciamento e articula-se à uma ideia de produção de cuidado pela via da criação de modos de sensibilidade. A aposta num novo trabalho. Constituído por leituras. Modos de ler e partilhar a vida e as produções de educação, cultura e saúde. Leituras que produzam diversas vozes, fazeres, saberes, montagens, desejos, uma aventura polifônica de vontade de potência! Itinerante e solidária. Intentamos romper com a produção da impotência e do medo, experimentadas frente a situação pandêmica pela Covid -19, por meio da invenção de modos de sensibilidade.

Audaciosamente, instaurar dispositivos de singularização que coincidam com o desejo, agenciando outros modos de produção semiótica (Guattari, 2005). Todos os elementos que possam abrir vistas ao movimento, à leveza e ao contentamento sensível. Nosso empreendimento é confiar na produção política de forças de enfrentamento e de criação de outros possíveis, como compromisso ético e inventivo. Nessa perspectiva, o sarau empreendese como força de enfrentamento ao que experimentamos diante das aglutinações de diferença adoecedoras, por constituir-se como um meio da sustentação do novo, do relançamento da processualidade da vida, irrompendo na invenção de outros modos e mundos. Este sentido traduz a estética proposta: a potência estética do sentir, como afirma Guattari (2008), ocupa uma posição privilegiada no seio dos agenciamentos coletivos de enunciação de nossa época. Apontar a estética não como arte institucionalizada, mas como uma dimensão de criação em estado nascente.

O exercício de compor com participantes e envolvidos, por meio de encontros de conversação, sustenta a perspectiva de que as redes de diálogo constituem em complexo processo interacional. A conversação, dada sua natureza dialógica e pelo seu caráter interventivo, destaca a dimensão inter-relacional dos encontros e de suas forças variadas. Remete aos exercícios de criação realizados à esfera de composição das diferentes vozes

agenciadas e partícipes do processo. O outro com o qual estabelecemos a conversação, não é apenas um interlocutor virtual. É agenciamento dinâmico. A língua, como nos sugere Bakhtin (1997), é concreta e viva, e não se reduz a um mero objeto linguístico. Assim, a linguagem guarda uma atividade responsiva. Constitui-se como gestos de respostas aos movimentos dos quais se efetiva (Bakhtin, 1992).

Partimos da direção de que produzir conhecimento é também produzir interesse e controvérsias que constituam questões políticas e enfatizem a reinvenção de sentidos, criação de histórias, vínculos e relações de força favoráveis à sustentação da produção de diferença e engendramento de multiplicidades (Stengers, 1990).

Nesse sentido, os saraus poéticos reúnem participantes diferentes em debate e em torno de temas e criações de modos de sensibilidade. As linhas de ações e suas ferramentas específicas possibilitam a sustentação de uma rede de conversação transversal que debata permanentemente os entrelaçamentos entre educação, memória, arte, cultura e criticidade.

Construindo um novo olhar: Possibilidades através da cartografia social

Todo ato de conhecer traz um mundo às mãos, [...] todo fazer é conhecer, todo conhecer é fazer. (Maturana e Varela em El árbol del conocimiento)

Transformar para conhecer. Pelo caminho, novas experiências. Assim é a pesquisa cartográfica. É dissolver formas impostas. É a realidade que interfere na gênese do objeto e gera novas formas. E novas realidades. Transversalização como força, não como um corte vertical. Nem sequer imposição. É preciso ampliar a comunicação, diz Guattari (1981). É preciso ampliá-la entre sujeitos, e entre grupos, na ligação entre componentes e fluxos (heterogêneos, materiais e imateriais). É preciso relações entre relações. Linguagem é a amarração da implicação e da transversalidade.

Ruptura das formas: momento de força, que diz dos apegos a quem segue sem questionar. A linguagem como vontade de ordem ou como delírio do Verbo (Barros, 2010) criam processos diferentes. Isso pode ser caótico - em situações disruptivas - visto que as formas, temporárias que são, organizam o caos. As experiências, contudo, ligam-se à

transversalidade. A transversalidade quebra classificações, hierarquizações, dicotomias - que as formas engendram em instituições. Vincula-se a um agir singular, proposto pela ética do cartógrafo que não se sustenta em organizações ditadas por formas a priori. Conhecer a realidade é delinear seu processo permanente de produção. Constata-se: os atos dos cartógrafos – parte do coletivo de forças – pode inserir e intervir nas mudanças.

Remete a uma ética de conectividade (Simondon, 1981) nos processos, numa busca de superação das lógicas comunicacionais verticalizadas ou horizontalizadas, elas próprias, individualizantes. (ESCÓSSIA; TEDESCO, 2009, p. 104).

O Fogo-Fátuo, sarau poético, abre espaço para os diários de quarentena que se manifestam através de diferentes expressões artísticas, declamação de poemas; escritos dos mais diversos gêneros: relatos, crônicas, poesias; palhaçaria; performances de cunho interpretativo e teatral que são frutos da experiência sensível de cada um de seus integrantes diante de um cenário incerto e instável instalado pela pandemia da Covid-19.

A proposta surge em âmbito acadêmico em forma de extensão, portanto, indo para além dos muros da universidade, nos traz um convite de nos lançarmos na experiência de forma conjunta se permitindo afetar e sermos afetados. Nos é ofertado a possibilidade de compreender o momento vigente sob a ótica da cartografia social:

(...) uma cartografia social faz diagramas de relações, enfrentamentos e cruzamentos entre forças, agenciamentos, jogos de verdade, enunciações, jogos de objetivação e subjetivação, produções e estetizações de si mesmo, práticas de resistência e liberdade. (PRADO & TETI, 2013, p.45)

A análise cartográfica se constituiria assim, como ferramenta para interpretação do momento presente, ensejando uma crítica ao nosso tempo e daquilo que somos.

Paisagens psicossociais também são cartografados. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos (...). Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos

possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. (ROLNIK, 1989, p.15-16).

Se opondo a metodologia tradicional, que reflete uma lógica de caráter estático, neutro e descritivo onde se instaura a posição de observador, indo para além de testar hipóteses ou propor soluções, o Fogo-fátuo propõe uma dissolução do ponto de vista do observador, superando a dicotomia sujeito/objeto e a imposição de um manual interpretativo que se faz distante da experiência e escuta. A construção de reflexões e transmissão são feitas de forma conjunta possibilitando a cooperação e interação entre saberes múltiplos. Deixa-se penetrar pela emergência e demandas manifestadas permitindo abertura, o que proporciona liberdade. Somos coproduzidos: o que se processa é genuinamente a elaboração, participação de cada integrante que nos leva a voltar a atenção à abertura, perspectivas - isso Guattari instituiu de quantum mais amplo de transversalidade.

A estratégia cartográfica permite escapar ao decalque, à cópia, à reprodução e à repetição de si mesmo, tornando possível a singularização, a produção de si mesmo a partir de novas estéticas da existência. (PRADO & TETI, 2013, p.57).

A proposta inspirada também na pedagogia freireana, de construção compartilhada do conhecimento, levanta pontos importantes que podem ser observados e serem transpostos em nossa experiência, nos fazendo entender que a construção do saber se faz com o outro, e não, para o outro, partindo do pressuposto que todos têm construções a serem compartilhadas, o que valoriza a troca de narrativas e práticas.

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. (FREIRE, 1987, p.77-85).

É estabelecido uma rede de troca, comunicação, nenhum tipo de vivência ou saber se sobrepõe ao outro. São pautados interesses coletivos. Temas que nos incomodam, mas também

movem e fazem caminhar. Fazendo surgir novas reflexões, dando fôlego para o surgimento de intervenções que ecoam, germinando sementes de transformações subjetivas.

Incendiária

O que é o fogo-fátuo, senão a maior prova da vontade e capacidade de vida? É uma chama azul que aparece em campos, pântanos e cemitérios, geralmente associado ao processo de decomposição. Seria então a morte, não? A morte é a maior comprovação da vida. Para morrer, basta estar vivo. E se se morre, seja céu ou inferno, continua-se de alguma forma. Seja em lembranças, seja através dessa chama que não se apaga. Saudade. Essa chama azulada é a persistência da vida sobre a morte. É a combustão do desejo que ri em cima da degradação, dos momentos de choro e transforma a realidade da morte em possibilidade de luz.

O homem, sem poesia nada é. Uma vela acessa que nada ilumina. Desde a sua domesticação, o fogo tem sido um dos maiores instrumentos do homem. De vida e morte. Espantava animais, aquecia os corpos esfriados pelas baixas temperaturas e ventos. Secava peles úmidas e impedia doenças. Assava carnes. Qual é, ou deveria ser, o novo fogo a ser domesticado? Não sei. O incêndio vem aí. E tudo bem. O fogo persiste, na verdade até insiste em nos lembrar da sua importância. Esquenta a pele, assa a carne. Chama. E a alma fica fria? Aí não pode. Por isso a poesia, chama da alma, pedaço de tição que em contato com as cinzas das tristezas que a vida deixa, traz luminescência e esperança.

Fogo-fátuo em tempos de fim de mundo, crise política e absurdos é um bacanal poético da conjunção de vozes múltiplas dissonantes e consoantes em coro e cor afinados. Trata de mais do que a junção da necessidade pela arte, mas da necessidade pela vida. Que apesar das mortes, infelizmente não parou. Enquanto resistência, a única atitude possível é a de viver. Viver de verdade, escapando do absurdo da sobrevivência. Sobrevivemos iluminando uns aos outros, mesmo que pela luz putrefata, mas poética de nossas aflições compartilhadas.

À guisa de (in)conclusão:

A saúde como a literatura, como a escrita, consiste em inventar um povo que falta. (Deleuze em Crítica e Clínica)

Fogo-Fátuo: sarau poético e diários de quarentena, apontam para uma política do acontecimento e do desejo, que situe a dignidade dos encontros, das trocas e dos exercícios de sustentação da memória e da palavra como fonte para uma cartografia social que intervenha na produção de modos de sensibilidade e dispositivos semióticos.

Há uma preocupação evidente manifesta neste projeto em construir, urgente e coletivamente, ações educacionais sensíveis que sejam democráticas e plurais, que afirmem o caráter público e político das ações humanas em suas montagens de redes de sustentação e transformação. A necessidade de ações transversais, que instiguem nos participantes do projeto a criação de pertencimentos, engajamento, solidariedade e modos sensíveis e inéditos de composição, concorrendo, portanto, para o enfrentamento às forças mortificadoras do estado atual de pandemia por Covid-19.

A possibilidade de conexão transdisciplinar e interinstitucional alarga a intervenção crítica para além do corpo acadêmico, alcançando a comunidade interessada e as parcerias estabelecidas. A sustentação dos saraus e compartilhamentos dos diários de quarentena, desenvolvem dispositivos semióticos e tecnologias para a produção de novas linguagens e expressões sensíveis, estéticas, artísticas e críticas. Concorrem para a criação de formas de enfrentamento à situação experimentada, frente à pandemia por Covid-19, envolve tanto a mobilização de repertório teórico, alcançada através do movimento permanente dos grupos de estudos, como pelos encontros e reuniões realizadas nas edições de Fogo-fátuo: sarau poético e diários de quarentena.

Os encontros realizados por meio de videoconferências se dedicam a criar redes de conexões e conversações temáticas que debatem temas específicos e apresentam as intervenções artísticas que alimentam a criação de novos modos de sensibilidade, uma vez que partimos do princípio de que pensar, agir e saber são ações entrelaçadas e intercambiantes, que não se separam e afirmam a dimensão política e de criação da vida.

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