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AS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ADVINDAS DAS INTERSECÇÕES 1 ENTRE RPG E TEATRO: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA Rafael Teixeira Ciríaco de Souza
sociedade como, por exemplo, uso de drogas, gravidez na adolescência, saúde bocal, entre
outros.
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Diante dessa demanda, houve a necessidade de se obter pessoas qualificadas para a execução das atividades teatrais. O PSE e o setor de Arte e Cultura conseguiram os primeiros estagiários de Artes Cênicas da SEMED, também alunos da Universidade Vila Velha. Atualmente, essas vagas são constantemente preenchidas por outros estudantes e os temas sociais não são mais prioridade. A forma de administrar o projeto “Teatro vai à escola” fica sob autonomia dos estagiários.
Quando passei a estagiar na SEMED, em 2018, o grupo era formado por três estagiários estudantes de Artes Cênicas na UVV e uma estudante de outra instituição. Assim que iniciamos o trabalho no setor de Arte e Cultura, começamos o processo de criação do espetáculo “Os Saltimbancos”.
Todos nós dávamos ideias para a construção das cenas e trama, que ocorre de forma lúdica, envolvendo a participação das crianças. Estas por sua vez, expressavam suas opiniões e ajudavam na continuação do espetáculo. Os personagens são bem humorados e cada um com uma personalidade própria: jumento, cachorro, galinha e gata. É um musical com músicas do Chico Buarque que retrata a história de cada animal, adaptado com referências musicais da atualidade, como “Dançando com o Txutxucão” da Xuxa e “A Galinha Magricela” da Fazenda do Zenon. As referências foram utilizadas para criar maior envolvimento das crianças com os personagens. Muitas vezes elas conheciam a coreografia e as músicas e, assim, dançavam e participavam da história.
A estreia do espetáculo “Os saltimbancos” foi à primeira experiência dos atores com esse projeto para público infantil das escolas. No decorrer das apresentações, a peça foi se modificando, até finalmente amadurecer. Com a vivência nesse projeto, percebi que mesmo que ensaiarmos como se estivéssemos em frente ao público, é notória a diferença que sua presença trás para o espetáculo.
Percebi a necessidade das crianças de fazer parte da história e interagir com os personagens. Mesmo sabendo que se trata de uma peça teatral, elas encaram como real. Assim, fazemos perguntas e lançamos proposições para elas, deixando-as escolher o rumo da história.
Durante a trama, os animais estão fugindo da fazenda à procura da idealizada cidade grande, e para isso questionam diversas vezes para as crianças onde fica a cidade. Cada uma aponta uma direção diferente. Assim, termina o espetáculo sem os animais encontrarem o caminho da cidade grande. Em algumas apresentações, mesmo depois de ter acabado, elas insistem em ajudar os animais a chegarem à cidade.4
Cada momento como esse é único. O projeto se tornou conhecido nas escolas municipais de Vila Velha, com uma demanda cada vez maior. Mais de quarenta apresentações foram realizadas em um ano e meio. De acordo com a “Base Nacional Comum Curricular”
(BNCC), as crianças devem ser protagonistas do próprio aprendizado; e ter cada vez mais voz e participação nesse processo. Acredito que este projeto é uma forma de dar voz a estas crianças e contribuir para que tenham uma participação ativa no seu processo de aprendizado. Em uma apresentação feita na UMEI Basilio Costalonga, a professora após a ter assistido o espetáculo, comentou sobre o comportamento das crianças da seguinte forma:
O que me chamou atenção foi que vocês não exigiram o silêncio das crianças, que muitas vezes quando tem atividade artística na escola, as pessoas pedem o tempo todo para elas não conversarem e ainda assim elas ficam de conversa paralela. Já com vocês, o que me impressionou que o tempo inteiro interagem com elas e pedem opinião, deixam elas falarem e elas ficaram vidradas em vocês, todas as crianças, até as mais hiperativas e sem precisar pedir, fizeram silêncio no momento certo e quando conversavam, foi para interagir com vocês.²
Aprendemos que, quanto maior o exagero ao narrar à história, utilizando recursos corporais e vocais, mais prendemos a atenção delas. Trata-se de um momento de troca com as crianças. Esta troca ocorre desde o momento que entramos no palco.
Acontece grande produção de energia e a expansão corporal é conquistada através do experimento com o público. É visível a diferença da expansão de energia quando entra em jogo a inserção desse corpo energético.
Certo dia, nós estávamos na escola e tínhamos duas apresentações, pela manhã e pela tarde, sendo a primeira no turno matutino e a segunda no turno vespertino. Pela manhã, tivemos dificuldades com o som, estávamos cansados e resolvendo problemas em cena, o que limitou
4 Comentário feito pela professora no dia 12 de Novembro na UMEI Basília Costalonga.
os movimentos corporais. Houveram também falhas no microfone e as crianças ficaram dispersas. Mas algo ainda as encantou e muitas nos procuraram para abraçar e fazer elogios. Já na segunda apresentação, com outro público, decidimos utilizar maior energia, principalmente corporal. Após o termino, uma professora, nos falou “Quanta diferença da outra apresentação. A do turno vespertino foi bem melhor. Parecia que estavam mais alegres e as crianças se comportaram muito bem. Essa apresentação foi ainda melhor que a primeira”.
O corpo tem um papel fundamental no processo de decifração de sensações, de criação e de comunicação com o público. O corpo é suporte, cenário, linguagem –gestos, movimento, ritmos, pausas (espaço e tempo). E é na relação com outros que ele se faz. (FERLA.A; ÁVILA. M. 2015, p.738)
Como a demanda do projeto é muito grande, tentamos contemplar o máximo de escolas possíveis, indo pelo menos uma vez por semana em cada uma. A diretora da “UMEI Pedro Pandolfi” nos convida diversas vezes e somos sempre bem recebidos, com presentes e conforto. Uma dessas vezes, ela nos falou:
Sempre tento recebê-los da melhor forma possível, na esperança de voltarem mais vezes. Muitas dessas crianças nunca foram no cinema, muito menos no teatro. Para a maioria, o espetáculo de vocês é o primeiro contato delas com o universo teatral e entendemos que agrega na vida delas. É um dia diferente na escola como um dia de festa e voltam pra aula, desenhando o rosto de vocês e alvoroçados para contar para os pais dessa experiência e não deixa de ser um momento educativo também. 5
Já fizemos muitos espetáculos e cada um é único. Os públicos são sempre diferentes, assim como o local e até nós mesmos, nos modificamos constantemente. Muitas vezes fomos apresentar cansados, com problemas pessoais e sentimentos negativos. Mas, ao entrar em cena, o público torna toda a energia positiva.
Trabalhar e estudar o corpo sempre foi uma prática prazerosa no meu cotidiano. Desde o momento em que notei a potência de afeto existente entre o ator-personagem e a criançaplateia, passei a utilizar o dispositivo corporal para potencializar essa relação.
Cada corpo é afetado de maneiras múltiplas, isto é, nenhum corpo é afetado da mesma forma que outro corpo, pois o que toca e leva um indivíduo a pensar sempre se
5 Conversa feita com a diretora no dia 11 de Abril na UMEI Pedro Pandolfi
expressa de maneira singular e não genérica, embora as ideias possam ser compreendidas e compartilhadas entre muitos corpos-mentes. (NOVIKOFF.C; CALVALCANTI. M, 2015, p. 91)
Inspirada nas teorias de Spinoza pude notar a relação afetiva entre os corpos durante oespetáculo. Vale ressaltar, que cada um reage de forma única. Assim como cada ator é a
afetado de maneiras diferentes, isso também ocorre entre as crianças. Ao analisar o público em geral, notei que, em algumas regiões, existe uma maior carência afetiva. Em certos momentos, mais de cem crianças queriam me abraçar ao mesmo tempo, algumas não queriam me soltar de maneira alguma. Foi preciso que eu fosse puxada pelo professor ou funcionário da instituição. Assim como também tiveram escolas onde não fui abraçada, apenas recebi alguns sorrisos e cumprimentos de despedida.
Se o corpo do ator é, já em si mesmo, território cênico, onde o movimento dos gestos e dos olhares e as máscaras naturais do rosto são dança de afetos e jogo de emoções na lúdica construção da personagem, o espaço do palco é um prolongamento do corpo do ator e se o corpo do ator é um corpo vivo e dinâmico também o espaço do palco em que esse corpo se movimenta é um espaço vivo e dinâmico, habitado por tensões, forças, conflitos, com múltiplos centros correspondentes ao corpo dos atores. (FERLA.A; ÁVILA. M, 2015, p.736)
Filipe Sousa, integrante do espetáculo, contribui para a reflexão, com o seguinte relato.
Vejo a criança como uma impulsionadora do meu monólogo inicial e da peça inteira, esse monólogo só dá certo quando a criança reage e utilizo gestos bem exagerados nesse momento, chega a parecer esquisito, mas faz toda diferença, muitas vezes nós chegamos à escola desanimados, mas a energia delas quando entramos em cena contagia. Em cada escola apresentamos em um local diferente, com públicos diferentes, entretanto por mais cansados que estejamos, a criança nos impulsiona através da energia positiva independente do local e do dia. 4
Fig 1.: EMEF São José, Cariacica, 2019
Fig. 2: EMEF São José, Cariacica, 2019

Fig. 3: UMEF Antônio Bezerra Farias, 2019

“Circulação Peter Pan: Encontre Seu Caminho”
O início da minha trajetória com o Teatro para Crianças foi com “Peter Pan: Encontre Seu Caminho”. Com direção da Profa. Dra. Rejane Arruda, o espetáculo foi montado em 2017, no 2º período do Curso de Artes Cênicas, com o objetivo de utilizar os aprendizados das matérias de Jogos Teatrais, Corpo e Interpretação Teatral. O meu personagem foi Firula, um dos meninos perdidos. Com a junção dos aprendizados teóricos e experimentos práticos ao longo do semestre, o resultado foi um corpo ágil, muito agitado, a dilatação das ações físicas.
Vale destacar o jogo “Exagero”, de Augusto Boal (1982), realizado durante reuniões de orientaçãode Estágio.
Os atores exageram todas as emoções, movimentos, conflitos, etc., sempre dentro do rumo certo, mas ultrapassando o limite aceitável. Não se trata de substituir uma coisa por outra, mas apenas de exagerar: quando se odeia exagera-se o ódio, quando se ama exagera-se o amor, quando se grita, exagera-se o grito, etc. (BOAL, 1982, p. 117).
Diante da montagem dessa peça, percebi que o diretor pode encontrar dificuldades em fazer com que os atores cheguem a um resultado desejado e para isso, é preciso buscar soluções. Em relação a este processo criativo, deparamo-nos com uma ausência de dilatação corporal em alguns atores. A utilização de Jogos Teatrais nas reuniões de orientação de Estagio abria espaço para os alunos experimentarem dinâmicas corporais. Algumas dentre estas eram utilizadas para as cenas de “Peter Pan” e, também. O jogo “Exagero” de Boal foi utilizado. A regra era clara: exagerar todas as emoções e movimentos. Alguns gestos que foram produzidos durante o exercício, enraizaram nos personagens e se tornaram marcação corporal.
O processo de criação de um espetáculo implica modificações até seu amadurecimento, o que acontece após apresentações com diferentes públicos. No entanto, o período anterior à estreia consiste em um jogo de experimentações e proposições, para selecionar materiais que funcionam, colocá-los em cena (e retirar aqueles que necessitam ser cortados).
Na estreia de “Peter Pan”, o espetáculo ainda estava fragilizado, atores inseguros e o público de grande maioria jovens e adultos. Começamos então a nos apresentar para crianças,
levando o espetáculo para as cidades de Vila Velha. Com o apoio da UVV, em 2018, iniciamos oprojeto “Circulação Peter Pan: Encontre o Seu Caminho”.
Com objetivo formativo, estas apresentações foram realizadas em dias de semana, para facilitar o acesso dos estudantes e professores. Durante esse período, notei a forma como os personagens afetam as crianças e como esse efeito reverbera na vida delas. Após o espetáculo, essa afecção se torna presente, de modo que não esquecem com facilidade, pois deixamos marcas. Vale destacar o relato de uma criança de três anos feito dias após ter assistido a “Peter Pan”.
Mãe: Você lembra qual era o barulho do Jacaré? Menino: Sim, era “tic tac, tic, tac, tic tac” Mãe: E na peça, você ficou com medo? Menino: Não, eu só fiquei muito feliz Mãe: E você gostou dos piratas? Menino: Sim e eles corriam muito e muito rápido.6
Fig. 4: “Circulação Peter Pan: Encontre Seu Caminho”, 2018, São Roque do Canaã

6 Filho de uma das integrantes do coletivo “Elas Tramam”, o relato foi passado através do Whatsapp da diretora Rejane Arruda e postado na página da peça no facebook e instagram.
É notório observar na fala da criança a forma como ficaram vivos na memória dele os momentos de correria em cena, ou seja, a ampla movimentação corporal, e o sentimento positivo marcante durante o espetáculo.

Fig. 5: “Circulação Peter Pan: Encontre Seu Caminho”, 2018, São Roque do Canaã

Fig. 6: “Circulação Peter Pan: Encontre Seu Caminho”, 2018, Vitória
Projeto de Arte e Cultura
Em 2017, recebi o convite dos estagiários do setor Arte e Cultura da SEMED para interpretar a personagem Dorothy na peça teatral “O mágico de Oz” que estava sendo montada para o “Arte na Vila”. O projeto “Arte na Vila” consiste em uma semana com atividades educativas e culturais para as escolas. Peterson de Castro, coordenador do setor conceitua o projeto da seguinte forma:
É a possibilidade de contemplar diversas manifestações artísticas e culturais desenvolvidas nas escolas, com a participação de alunos e profissionais das 98 unidades da rede municipal de ensino de Vila Velha (UMEF’s e UMEI’s) convidadas para participar da mostra. 7
Iniciei a construção de minha personagem. A movimentação corporal era toda marcada, cada gesto, além da inserção de elementos infantis da atualidade, como a música de abertura do desenho animado “Incrivel Mundo de Bobby” e uma sátira, muito popular nas redes sociais, em cima da música “Turn Down for Whats”.
As ações dos personagens tinham sempre uma intencionalidade. Diante disso, vale ressaltar o conceito de ação física e como os externos tem uma intenção baseada no interior da personagem: “(...) o ponto principal das ações físicas não está nelas mesmas, enquanto tais, e sim no que elas evocam: condições, circunstâncias propostas, sentimentos. (STANISLÁVSKY, 1997, p. 3, apud BOTELHO, 2013, p. 4).
Outra problemática encontrada na construção das cenas foi a expressão corporal. Apesar de todas as marcações dos movimentos estarem prontas, faltava energia. A solução encontrada pelo diretor Marthis Machado foi fazer um ensaio mais conhecido como “FF” 8 . Esse procedimento foi incialmente proposto pela professora Rejane Arruda nas aulas de
7 Em entrevista concedida ao jornalista Jô Amado e divulgada no site da Prefeitura Municipal de Vila Velha, em Outubro de 2017. 8 A Sigla “FF” significa Fast Forward, ou seja, avanço rápido, utilizado para avançar uma gravação de áudio ou de vídeo em velocidade mais rápida. Essa função teve origem nos antigos aparelhos de som que rodavam fitas cassetes, ou em aparelhos de vídeo com as fitas VHS. Como haviam pouco espaço nos controles para a escrita, eles precisavam abreviar os textos e como o padrão era inglês, surgiu a sigla “FF”.
Interpretação Teatral no curso de Artes Cênicas e utilizado na montagem de Peter Pan. Ele implica em dar velocidade às cenas, como se faz com um filme quando se coloca a função FF no controle remoto. O procedimento tornou-se essencial para a minha construção corporal, a hiperatividade deu a energia que faltava e enraizou na minha personagem, de modo que pude encontrar o estilo de movimento da Dorothy.
No ano de 2018, o mesmo grupo foi convidado para mais uma apresentação teatral. Eu participei novamente como voluntária, mas com a proposta de futuramente ser contratada para trabalhar na SEMED. A sugestão da peça teatral foi definida por Peterson de Castro, inicialmente chamada de “O casamento de Maria Feia” que teve que ser adaptada para “O casamento de Maria Flor”, por questões pedagógicas. A peça é uma comédia nordestina: o típico pai bravo que procura um pretendente para a filha. Quando encontra Zé das Baratas, tenta realizar o casamento mesmo que seja sem o consentimento dele (a recusa é devido à falta de beleza em Maria). De modo que a trama traz um foco na aparência da personagem.
Não foi o suficiente colocar roupas feias e desenhar uma monocelha. A construção corporal foi essencial para enfatizar a comicidade da aparência de Maria Flor. Esta construção corporal foi difícil de encontrar. Passei por um processo de experimentação constante, até certo ensaio, quando estávamos conversando e eu fiz uma brincadeira com um corpo estranho. O diretor Marthins Machado pediu para experimentar para a personagem e fui aprimorando cada vez mais. A sua movimentação era com as pernas tortas, coluna curvada e expressão facial com várias caretas. Ou seja, utilizei todo o meu corpo, dos pés à cabeça, para transmitir o contrário do que é “belo”.
Fig. 7: “Arte na Vila”, 2018, Vila Velha.

Fig. 8: “Arte na Vila, 2018, Vila Velha.

O impacto da personagem é o corpo estranho e, no final do espetáculo, quando ela se torna “bonita”, a sua movimentação é totalmente o oposto: a postura ereta, sem os trejeitos antigos. Quando a personagem passa “de feia para bonita”, as únicas coisas que aparentemente
modifico são: a remoção da maquiagem borrada e a troca de roupa. Mas na verdade é a mudança na postura que dá o contraste entre as duas caracterizações.
Em 2019, já trabalhando no “Arte na Vila” como estagiária, fui abordada por uma criança acompanhada da mãe, que me falou dessa personagem. Sua filha se chama Maria Flor e diz ser minha fã, por ter se divertido muito na peça. Diante desse relato, cabe reforçar a forma como o teatro afeta as crianças e esse efeito reverbera na vida delas. Mesmo depois de um
tempo.
Corpo-Arte
O que é um corpo dilatado afinal? Por que é tão importante para o teatro? Como o próprio nome diz, dilatação significa largo, extenso, aumentado. No livro “A Arte Secreta do Ator”, Eugenio Barba conceitua a dilatação corporal da seguinte forma: “As partículas que compõem o comportamento cotidiano foram excitadas e produzem mais energia, sofreram um incremento de movimento, separam-se mais, atraem-se e opõem-se com mais força, num espaço mais amplo ou reduzido.” (BARBA, 1995, p. 55).
É essa energia produzida que tende a extravasar sentimentos, expressá-los a ponto de hipnotizar o espectador. Apesar do foco da pesquisa ser a expansão do corpo, isso não quer dizer que a mente não influencia nos movimentos, pois a forma de agir é um reflexo dos pensamentos e o trabalho do ator com o personagem é a união da dilatação corporal e mental.
Como detalhei nos personagens que criei, desenvolvia o corpo baseado em suas características internas, diante das criações. Primeiro, penso nas características pessoais e experimento o movimento próprio para a personagem que, só depois de um tempo, consigo definir.
Os exercícios físicos de treinamento permitem desenvolver um novo comportamento, um novo modo de se movimentar, de atuar e reagir: assim se adquire uma habilidade específica. Mas esta habilidade se estagna e se torna unidimensional se não aprofunda, se não consegue chegar ao fundo da pessoa, constituída do seu processo mental, de sua esfera psíquica, seu sistema nervoso. A ponte entre o físico e o mental
provoca uma ligeira mudança de consciência, que permite vencer a inércia, a monotonia da repetição. (BARBA, 1995, p.59)
Os bons encontros (Spinosa, 2009) proporcionam um estado de alegria. A mente fica mais alerta, tendo maior número de ideias; o corpo fica mais ativo e disposto a fazer coisas. Esse estado auxilia na potência de agir (Spinoza, 2009), pois os indivíduos passam a ter mais possibilidades de afetar e serem afetados, portanto adquirem novas relações com o mundo do qual fazem parte.
Em todos os espetáculos descritos acima, havia momentos onde os atores se relacionavam diretamente com o público. Possivelmente esse estímulo ativa emoções alegres, logo a potência de agir é aumentada.
(Artaud, 1999) chama de “órgãos” todas as maneiras particulares do nosso corpo ter acesso ao mundo. No entanto, o problema, segundo ele, é que existe um sistema pré estabelecido, fora do corpo, que determina uma hierarquia: certo e errado e outros padrões sobre como devemos agir, comportarmo-nos e a forma como nos movimentamos.
Deleuze e Guattari diante dessa premissa elaboram um conceito chamado “corpo sem órgãos”, ou seja, não a organização, não estes padrões que determinam a forma que o corpo deve seguir. Este termo é uma crítica e uma proposição para se tentar destruir a organização corporal diante desses moldes. “O corpo sem órgãos está a caminho desde que se cansou dos órgãos” (DELEUZE & GUARARRI, 2008, p. 10).
A dilatação corporal é o contrário do corpo cotidiano; é fazer um gesto, só que de forma grande, o que o torna extracotidiano. Sendo assim, é possível fugir dos padrões impostos no ambiente artístico e caracterizá-lo como corpo-arte.
“Pelbart diz que não sabemos o quanto podemos afetar e ser afetados. É necessário experimentar. Aprender a selecionar o que convém e o que não convém ao corpo, o que amplia ou reduz a sua força de existir, selecionar encontros.” (FERLA.A; ÁVILA. M. 2015. P.744).
Conclusão
No caminhar da pesquisa, o meu olhar como pesquisadora das minhas próprias experiências com o Teatro para Crianças encontrei, através do dispositivo corporal, uma forma
de promover os bons encontros, buscando proporcionar sentimentos bons para potencializar as trocas de afeto.
Uma vez que educadores busquem tornar acessível à cultura teatral nas escolas, passam a ter mais potência de agir e pensar. Incentivar os encontros alegres, visto que a prática de ir ao teatro é pouco comum na sociedade moderna. Anatol Rosenfeld, filósofo alemão refugiado no Brasil, em 1970, já abordava a falta de público nos espetáculos cênicos e chamava isso de crise do teatro nacional.
Seis em cada dez brasileiros nunca assistiram uma peça teatral, segundo levantamento feito pelo Sesc e pela Fundação Perseu Abramo. Na minha trajetória com espetáculos cênicos, notei além da necessidade de disponibilizar acesso gratuito, é tornar o espectador parte do fazer teatral.
Como um livro que só existe quando alguém abre, o teatro não existe sem a presença desse outro com o qual ele dialoga sobre o mundo e sobre si. Sem espectadores interessados nesse debate, o teatro perde conexão com a realidade que se propõe refletir e sem a desse outro, seu discurso se torna ensimesmado, desencontrado, estéril. Não há evolução ou do teatro que se dê sem a efetiva participação dos espectadores. (DESGRANGES, 2003, p.27)
Nota-se no decorrer da minha trajetória com o teatro para crianças, a espontaneidade delas durante o espetáculo, essa potência de agir e pensar reverbera na vida delas. Com a valorização do espectador e forma de fazê-lo parte do movimento artístico, pode gerar um gosto por teatro que fará parte da vida delas. É possível que essas crianças sejam o público do futuro e assim diminuir o número de cadeiras vazias nos teatros.
Referências bibliográficas
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BARBA, E. A canoa de papel: Tratado de Antropologia Teatral. São Paulo: Hunitec, 1994.
BOAL, Augusto. 200 exercícios e jogos para o ator e o não-ator com vontade de dizer algo através do teatro. 4. ed. Rio de Janeiro: civilização brasileira, 1982.
BOAL, A. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
DELEUZE, G. Espinosa Filosofia prática. São Paulo: Escuta ltda, 2002.
DESGRANDES, F. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2003.
BOTELHO, N. Stanislávski e as ações físicas: das partituras corporais até a dramaturdia do ator: a dramaturgia e as complexidades do personagem. Atuar produções, 2013. Disponível em: http://www.atuarproducoes.com.br/jornada2013/includes/artigos/Stanisl%E1vski%20e%20as %20a%E7%F5es%20f%EDsicas/Nayara%20Lopes%20BotelhoIFTO.pdf. Acesso em: 16. out. 2019.
FERLA, A; ÁVILA, M. O que pode o corpo? Corpografias de resistência. Scielo, 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v21n62/1807-5762-icse-21-62-0731.pdf. Acesso em: 17. out. 2019.
NOVIKOFF, C; CAVALCANTI, M. Pensar a potência dos afetos na e para educação. Conjectura: filos. Educ. Caxias do Sul, v. 20, n. 3, p. 88-107, set/dez. 2015.
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SAVARESE, N; BARBA, E. A arte secreta do ator: um dicionário de antropologia teatral. São Paulo-Campinas: Hunitec; unicamp, 1995.
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