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PSICANÁLISE: ENTRE INQUIETAÇÕES EST(ÉTICAS) E CLÍNICAS
Miguel Levi de Oliveira Lucas59 Maria Carolina de Andrade Freitas60
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Resumo: Andar por campos afora. Entrelaçar Psicanálise e arte, a partir das inquietações estéticas e clínicas. Vaguear pelas linguagens para, por meio das hiâncias, constituir différence. Estilizar o pensamento em obra de arte aberta e êxtima, estrangeira. Relações da Psicanálise com a estética, pensamento imanente da arte, como um presente fora de si, que acessa campos e domínios. Uma revolução molecular? Uma revolução poética, estética, político-clínica? Entrecruzamentos. Transformação. Acontecimento. Esteticidades de um inconsciente transmutado em obra de arte, inacabada, que convoca o analista-artista em mover-se eticamente em testemunho impossível. Palavras-Chave: Psicanálise, Estética, Obra de arte, Clínica.
Se seguirmos as figuras ímpares da psicanálise, como Freud e Lacan, perceberemos que eles andaram muito mais fora de seus campos do que dentro. O que a princípio se apresenta como um paradoxo, e de fato o é, é também totalmente explicável. Freud, enquanto neurologista, interessava-se por arqueologia, escultura e literatura como aponta Gay (2012). Simultaneamente se interessou por hipnose e pela histeria e assim começou a constituir o que hoje é a psicanálise. Ao mesmo tempo, em diversos textos da sua carreira se dedicava à outras temáticas que lhe interessavam, com temas mais culturais e antropológicos. Com Jacques Lacan, a mesma coisa, utilizava-se de diversos outros conhecimentos, como a linguística a princípio e a matemática, em seu fim para desenvolver seu pensamento. O próprio Lacan, como aponta Rivera (2005) no início de sua carreira como médico e pretenso analista, fora mais reconhecido nos cafés parisienses onde florescia o surrealismo, do que no próprio meio médico. Porém, apesar de lerem textos de outros campos e se dedicarem a estudá-los e entendê-los, tudo o que produziam apontava para um único lugar: a psicanálise.
Esse é um caminho proposto tanto por Freud, quanto posteriormente por Lacan, de um movimento psicanalítico que trabalhe mais fora de si do que dentro. Se a análise clínica
59 Discente do 10º Período de Psicologia da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG/ Divinópolis. Contato: miguelevol@gmail.com 60 Professora da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG/ Divinópolis. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Contato: maria.freitas@uemg.br
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acontece mais fora de sessão, em suas hiâncias, do que nos quarenta minutos tradicionais, porque a constituição da psicanálise se daria de forma diferente? Propor uma guinada para fora, para o estrangeiro, para o éxtimo, é nada mais que seguir os passos daqueles que inauguraram os discursos psicanalíticos. Não com a intenção de começar algo novo, não se tem essa pretensão, mas a de contribuir para uma prática da psicanálise que seja diferente, não-ortodoxa talvez, mas que tem em seu fundamento o espírito livre que é proposto pelos grandes psicanalistas, que não tinham intenção de serem grandes, mas sim de fazer seu próprio caminho dentro da sua terapêutica. A psicanálise é feita muito mais fora de si do que dentro. O que justificaria uma incursão por outras paragens, mesmo que não uma viagem necessariamente inédita, mas talvez com outros objetivos. Objetivamos com esse ensaio esmiuçar o que já vem sendo apontado por alguns pensadores de dentro e de fora da psicanálise, mas que enxergam nela um diálogo muito rico e válido com a estética. Assim, tentaremos entender um pouco mais das afirmações de Rancière (2009) sobre o quanto a revolução da estética possibilitou a Freud a criação do inconsciente, associando-as a outras questões que contribuem para a hipótese proposta pelo pensador francês. Bem como também pretendemos refletir sobre a clínica psicanalítica e suas relações com a estética. Enquanto um exercício do pensamento, o ensaio se mostra como um excelente instrumento. Além disso, utilizar-se de uma forma de escrita que pode ser considerada mais livre e até mesmo mais literária, condiz com o estudo da estética. Pensar que Freud foi um pensador fora de seu contexto, não nos parece correto. Muito menos considerar que sua obra rompe com tudo que havia até então. Pelo contrário, como aponta (Kon, 2014, p. 31): “a obra freudiana é única, mas dialoga com outras contribuições de sua época, e constitui, nesse diálogo, o espírito de sua época.” Ainda assim rompe com uma sucessão de acontecimentos ditos clássicos, o que denota seu caráter subversivo e seu aspecto revolucionário, ao mesmo tempo que continua uma outra série de mudanças que sucediam em sua época e região. De fato, a chamada Viena fin-de-siècle fora um polo extremamente importante para a modernidade e não é possível pensar que um momento tão efervescente não afetasse Freud, (KON, 2014). Embora haja uma certa controvérsia em torno do quanto o meio em que Freud estava inserido, essa Viena à beira da modernidade, acreditamos como fazem Rancière (2009) ao apontar as mudanças no pensamento até a inauguração do inconsciente freudiano, bem como faz Mezan (1982) apud Kon (2014) ao salientar que a psicanálise é fruto daquilo que Freud
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era. Um judeu em um mundo cada vez mais antissemita, um médico pobre em uma sociedade meio aburguesada, meio aristocrática e um cientista em um período que o que imperava era o respeito aos artistas. Por mais que Freud não se identificasse com esse mundo, e ele realmente deixa isso claro em várias de suas cartas, como também ao analisarmos suas produções sobre o seu período. Ele fala, majoritariamente, de artistas de tempos já passados, como Michelângelo, Shakespeare, Leonardo da Vinci, E.T.A. Hoffmann e quase não comenta sobre os artistas contemporâneos, inclusive dizendo em uma carta a Pfister61 que se considerava um desses “pequenos-burgueses” que não conseguia entender muito de arte. Não nos parece ser possível de separar o autor de seu contexto, onde questões sobre o eu, as mudanças da modernidade e da própria sociedade vienense eram tão pujantes. O que Jacques Rancière (2009, p. 13) propõe é que para além do contexto da época de Freud, havia também todo um desenvolvimento dentro do pensamento sobre a estética que culmina nos anos de 1900. Ou seja, além do contexto da Viena, o surgimento da Psicanálise estaria também além da clínica da histeria:
o pensamento freudiano do inconsciente só é possível com base nesse regime do pensamento da arte e da ideia do pensamento que lhe é imanente. Ou ainda, o pensamento freudiano, para além de qualquer classicismo das referências artísticas de Freud, só se torna possível com base na revolução que opera a passagem do domínio das artes do reino da poética para o da estética.
Ou seja, de que é somente com a constituição da estética enquanto um pensamento da arte – proposição que surge com Schelling, dos Irmãos Schlegel ou de Hegel, (RANCIÈRE, 2009) – que se estabelece como uma ideia paradoxal, essa do conhecimento confuso, de um pensamento presente fora de si. Assim, Rancière (2009) nos diz que a estética não é um novo nome para dizer da arte, mas que é um de seus campos, um de seus domínios. Rompe-se, de certa forma, com a lógica positivista de enxergar as produções humanas. Ora, ao que Freud estabelece que os pormenores são mais importantes que o grande enunciado, têm-se aí um achado.
A grande regra freudiana de que não existem "detalhes" desprezíveis, de que, ao contrário, são esses detalhes que nos colocam no caminho da verdade, se inscreve na continuidade direta da revolução estética (Rancière, 2009, p. 36).
61 Sigmund Freud, correspondências de amor e Outras Cartas (1982)
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É nesse ponto que se encontra a grande ruptura freudiana, a de romper com um classicismo e entrar em consonância com essa nova ideia do pensamento no não-pensamento que tanto se apresentava à época. Quando Freud utiliza-se da literatura e de outros tipos de arte para dizer do Inconsciente, ele não os utiliza como material, mas como testemunhas, como afirma Rancière (2009) de que havia algo obscuro, algo escondido na maneira de pensar do ser humano. Freud publica em 1900 a sua A Interpretação do Sonho como paradigma do Inconsciente. Ora, Kundera (1985, p.64) dirá: “Esses sonhos eram eloquentes, mas, além disso, eram belos. Esse é um aspecto que escapou a Freud na sua teoria dos sonhos. O sonho não é apenas uma comunicação (às vezes uma comunicação codificada), é também uma atividade estética”. Não pretendemos nos ater à afirmação de Kundera de que a questão estética dos sonhos escapou a Freud, talvez tenha de fato escapado, ou talvez existisse na época a necessidade de estabelecer a questão do conteúdo que o sonho trazia, para depois dizer da forma. O que nos importa nessa afirmação é justamente apontar o quão em contato estava o surgimento da psicanálise com as questões estéticas, ou seja, com atividades que tangenciam ou até mesmo se apresentam como questões da arte. Fica claro que o inconsciente estético e o inconsciente psicanalítico são, afinal, dois conceitos diferentes, mas que de toda forma possuem seus encontros e caminham juntos em certos momentos. A relação de Freud com as artes e a maneira com que opta para interpretá-la é muito diferente da subversão que há na criação do seu inconsciente. A bem da verdade, o que faz Freud ao analisar as obras de arte é entrar dentro da visão representativa da arte, justamente o tipo de pensamento que ele havia rompido, segue na ideia de que ao observar os detalhes, percebe os traços de algo que está escondido (RANCIÈRE, 2009) ao invés de enxergá-lo como algo do indizível que se expressa ali. A psicanálise começa em Freud, mas não termina nele. Como todo grande pensador, os pensamentos freudianos são abertos, polissêmicos. Esses tipos de escritos carregam consigo todos os tipos de feridas. Essas feridas abertas como propõe Birman (2019) dão a possibilidade que aquele que lê os textos psicanalíticos se aproprie deles e crie a partir e com eles outros pontos e enodamentos que contribuam para a psicanálise. Quando se fala das relações possíveis entre a Psicanálise e as artes, visto que são elas os objetos da do modo de pensamento da estética, é preciso ter em mente algumas coisas. A primeira delas é que não se trata de utilizar-se da obra de arte para fazer um diagnóstico do artista ou para validar algum conceito. Como Rancière (2009) nos lembra, as obras não são
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provas, são testemunhas. Esse reducionismo, como aponta Kon (2012) não só assassina a arte enquanto uma produtora de um tipo diferente de linguagem que produz, ao seu modo, conhecimento, como também mata a Psicanálise em sua recepção e fecundação. Mais ainda, acaba de vez com a possibilidade de haver ali uma dupla fecundação, em que esses dois campos, mesmo que diferentes, e nem sempre convergentes, possam dialogar. Em termos pessoais, a relação de Freud com a arte era bem particular. Rivera (2005) aponta que curiosamente Freud não falava tanto da arte de sua época. Suas análises se dirigiam, de fato a alguns autores de sua época, mas também se voltava mais para os clássicos do renascimento. A verdade é que Freud não gostava muito da arte que estava surgindo depois dos anos de 1900. Embora houvesse ali uma troca muito profícua para ambas as partes. A deglutição, realizada pelos artistas no geral, da Psicanálise não agradava ao velho vienense. Mas ao mesmo tempo, Freud nunca deixou de estudar, ser afetado e relacionar-se com a arte. Mostrando que por mais que não seja possível um discurso unificado, porque arte e Psicanálise produzem conhecimentos diferentes, são discursos ora dissonantes, ora consonantes, é possível que juntos causem uma estranha melodia, capaz de incomodar e agradar o ouvido ao mesmo tempo. Partindo do entendimento proposto por Kosovski (2016) de que se trata de conceber a interseção, os meios e pontos que se juntam, desses discursos, é possível tirar algo da relação Psicanálise e arte. Mesmo que seja preciso entender que por serem distintos, não é possível esperar continuidade em suas contribuições e entroncamentos. Um caminho sem saída, ainda é um caminho e dele se tira algo, mesmo que seja a noção de por onde não se é possível ir. Guatarri (1992 citado por Caiafa, 2000) aponta que a arte é como um campo criador. Um fluxo que se encadeia com outros. De acordo com Caiafa (2000, p. 69) “... o campo da arte e do pensamento se apoia e passa por singularidades de todos os tipos e procedências”. A natureza paradoxal do pensamento estético, daquele que sabe e que não sabe simultaneamente. (Ranciére, 2009), coincide não somente com o paradoxismo do inconsciente freudiano, mas também com a sociedade atual. Prensada entre o narcisismo e a multiplicidade, como apontou Laureano (2012). Essa sociedade é uma continuação da lógica que surgiu no século XX, que transcorreu na pressa das inovações, em que se seguem invenções sucessivas que vão se substituindo rapidamente (Caiafa, 2000). E a verdade é que todo processo criativo, criador demanda tempo. Existem certas histórias, certos textos que demoram para fazer efeito. Assim como o processo da criação de uma obra. Esse tempo, esse
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espaço de reflexão, é perdido quando se entra em um contexto produtivo. O que só torna mais relevante uma discussão que caminhe no sentido oposto, que aposte na criação enquanto uma força de transformação desse contexto (Caiafa, 2000). Ao pensarmos as relações possíveis entre a Psicanálise e a estética, obviamente temse a arte no meio. Retomamos novamente a proposição de Rancière (2009) de que ao se utilizar das coisas da arte através da estética é possível contribuir com a Psicanálise também. Não é uma apropriação do discurso, mas de uma navegação entre os conceitos, seus afluentes. Como nos lembra Kosvoski (2016) esses extravios que vem das incursões psicanalíticas em volta da arte e da criação acabam criando algumas distorções. Distorções estas que não apenas diminuem a Psicanálise, transformando-a em uma analisadora da obra e do artista, uma espécie de psicobiografia. Contudo, criam-se também desvios importantes que caminham em direção à práxis analítica. A possibilidade de diálogo entre Psicanálise e estética é uma aposta em um fazer psicanalítico criativo, como aponta Kon (2012) trata-se de um fazer que seja reflexivo, contrapondo aquela visão arqueológica da Psicanálise. Em que se propunha alcançar uma grande verdade sobre o ser, enterrada nas camadas e mais camadas frutos do recalcamento, que enterrava algo no fundo. Ter em mente que a Psicanálise é um dos espaços que permite criar um ambiente para um tipo de criação é importante. Como nos lembra Caiafa (2000) para além da singularidade da escritura da história de cada sujeito, existe também um tempo de processamento. Como nas obras de arte. Essa possibilidade criativa não deve ser uma imposição do analista sobre o analisante. Ainda com Caiafa (2000) é possível exercer a criação não enquanto um ato único, mas como um processo. Processo que envolve singularidades, acontecimentos. Algo muito semelhante com a análise, que não é um acontecimento, mas é também um processo. Como se sabe, o percurso é muito mais do segundo do que do primeiro. Freud mesmo advertia. Segundo (Kosovski, 2016, p. 452):
Freud recorrentemente faz aos analistas em relação a importância de se desfazer de suas aspirações para com seus pacientes. Isto porque, no afã de que seu analisando se torne mais criativo, inventivo ou fecundo, este pode reeditar na transferência o mesmo impasse que se coloca entre o sujeito e o supereu, agora encarnado nas exigências do psicanalista.
Pensar os desdobramentos que as contribuições da estética podem trazer para uma prática clínica psicanalítica que enxergue o processo do sujeito como um caminho a ser
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desenhado e não como um sítio arqueológico a ser desenterrado, por mais que haja um certo desenterrar, é permitir que a Psicanálise seja mais livre e menos taxativa nas suas definições. Logicamente não se trata de uma regra, visto que cada caso se constitui como único, mas talvez de uma certa orientação. Daí a necessidade de apresentar toda a relação da Psicanálise de Freud com o contexto estético. Se nos voltarmos para as formações do inconsciente apontados por Freud e por Lacan, poderemos perceber que temos algo relevante. Por exemplo, o sonho, por si só já é uma experiência estética, como falou Kundera (1985) em A insustentável leveza do ser, mas os outros também. Como também defende Gombrich (1984) apud Namba (2016) que ao analisar os chistes, Freud leva em conta algo extremamente importante para a arte. O chiste se dá através de dois pressupostos, o sentido e a forma. Assim, também é um fenômeno estético, porque através dele é possível pensar a coisa da arte que se manifesta ali. Embora Freud se interesse, evidentemente, pelo conteúdo, ele não descarta a forma como algo importante. Sendo bastante ousados, porque não pensar também no ato falho, dizer uma coisa quando se queria dizer outra como um fenômeno também estético, de jogo de palavras? Nos parece também possível. Partindo disso, percebemos que o Inconsciente é estético, mesmo não sendo o mesmo apontado por Rancière. A prática do analista é mergulhada nas esteticidades do inconsciente do analisante. A grande questão que se apresenta para nós no momento é de pensar a clínica psicanalítica enquanto uma prática estética, seja pelo analisante ou pelo analista. O que há ali de coisa da arte. Se levarmos em consideração os sonhos, os chistes, os atos falhos, já temos algo bastante encorpado para começarmos uma discussão. Não tentaremos abrangê-los aqui, não acreditamos que caiba. Todavia, se pensarmos em um outro conceito estabelecido por Freud (1905/1977), o humor, podemos pensar em implicações mais interessantes que nos levam para o caminho que nos endereçamos. Não pretendemos esgotar a temática do humor, muito menos aprofundá-la, mas tomála como um paradigma. Por dois motivos, é um conceito que se aproxima da experiência estética, mas também se aproxima da questão da ética, coisa importante para psicanálise, principalmente depois de Lacan em seu Seminário 7. O humor é trabalhado na obra de Freud em dois momentos. O primeiro, em 1905 no livro dos chistes. O segundo em 1927, em um pequeno texto intitulado O Humor. Como aponta Slavutzky (2014) é muito comum na sociedade ocidental se retirar o humor da gama de assuntos dignos de nota ou de estudo. Ele não é levado à sério como deveria. Freud (1927/1974) o define como rebelde. O humor é,
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como nos lembra Morais (2008), uma vitória do desejo sobre a realidade. Ao dar endereçamento ao desejo, contornando os obstáculos, o humor se estabelece como, além de uma prática estética, uma prática ética. E isso é relevante em análise. Acreditamos, assim como Slavutzky (2014) que o humor é um ótimo sinalizador dos efeitos, éticos e estéticos, de que a análise tem seus efeitos no paciente que se apresenta ali. Rir de si próprio é algo que exige tempo e paciência. Como lembra Kupermann (2003, p. 222):
A verdade de uma interpretação (ou, em sentido ampliado, de qualquer intervenção analítica) não pertence exclusivamente ao patrimônio psíquico do analista, mas é o produto de um acontecimento estético que se dá na relação transferencial e que pode ser avaliado por seus efeitos reais e concretos sobre o psiquismo do analisando.
Assim através da relação do humor com a clínica psicanalítica, podemos aproximar a estética da ética psicanalítica e nos endereçarmos para a problemática descrita anteriormente. A da prática clínica enquanto uma prática estética. Se partirmos de algumas provocações feitas por Badiou (2004) em sua por uma estética da cura analítica, encontraremos alguns pontos interessantes. A começar, de que é possível pensar o processo analítico enquanto um processo estético. Por quê? A análise se trata, como sustenta o autor, em organizar uma forma. Através do tratamento de um desaparecimento de um encontro, o trauma, que serve para encobrir o desparecimento verdadeiro, o do objeto a sai algo da análise. Não é, como afirma Badiou (2004), um resultado negativo. O que há é uma criação afirmativa. E essa criação não é algo que surja naturalmente, é preciso um labor sobre ela. E sendo artificial, podemos utilizarmo-nos da estética, já que se trata da criação de uma forma. Seria possível, então, pensar que quando se trata da clínica encontra-se sempre com uma oportunidade reencenação, de criação? Temos aí quase que em senso comum o trabalho do ator, de reviver determinadas cenas, mas acima de tudo, não apenas interpretá-las ou reproduzi-las, mas criar em cima disso. Através da lógica da repetição é possível reviver e recriar as coisas. Trata-se, sobretudo, de uma reorganização formal e artificial. Pensando assim é possível dizer que na concretização de um avanço analítico, existe algo de uma estética da criação. Badiou (2004, p. 242) dirá: “Uma análise absolutamente bem sucedida seria absolutamente uma obra de arte, uma obra de arte inteiramente subjetiva. E com isso vou deixá-los, na esperança de que vocês sejam todos grandes artistas”.
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Referências
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