Etnobotanica conceitos e metodos

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ETNOIKOS – Grupo de Estudos Transdisciplinares em Etnoecologia Universidade Federal de Viçosa

ETNOBOTÂNICA: REFLEXÕES SOBRE CONCEITOS E MÉTODOS DE PESQUISA

Reinaldo Duque-Brasil (rduquebrasil@yahoo.com.br) Departamento de Biologia Vegetal/UFV

Viçosa, Minas Gerais Janeiro de 2010


Etnobotânica: reflexões sobre conceitos e métodos de pesquisa

Reinaldo Duque-Brasil, 2010

CONTEÚDO

1. OBJETIVOS ............................................................................................................................... 2 2. CONHECIMENTO CIENTÍFICO X CONHECIMENTO POPULAR? ....................................... 2 2.1. O que é científico? ....................................................................................................... 2 2.2. Etnociências: entre o conhecimento científico e o conhecimento popular ..................... 3 3. ETNOCIÊNCIAS OU CIENTIFIZAÇÃO DE SABERES E PRÁTICAS? .................................. 4 4. NATUREZAS E CULTURAS .................................................................................................... 5 5. ETNOBOTÂNICA: CONCEITOS E CONTEXTO HISTÓRICO ............................................... 6 6. MÉTODOS E TÉCNICAS USUAIS NA PESQUISA ETNOBOTÂNICA .................................. 8 6.1. Concepções, propostas e dilemas metodológicos ......................................................... 8 6.2. Definição do espaço social de observação e abordagem inicial .................................. 10 6.3. Seleção de participantes............................................................................................. 11 6.4. Procedimentos de amostragem................................................................................... 12 6.6. Métodos e técnicas para análise de dados etnobotânicos ............................................ 17 6.6.1. Análise de dados qualitativos .............................................................................. 17 6.6.2. Análise de dados quantitativos ............................................................................ 18 7. RETRIBUIÇÃO DA PESQUISA ETNOBOTÂNICA ÀS COMUNIDADES PARCEIRAS ..... 19 8. ETNOBOTÂNICA E CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE .......................................... 20 9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................... 21

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1. OBJETIVOS  Identificar as diferenças existentes entre a construção do conhecimento científico e popular, reconhecendo a ciência como um saber social e culturalmente produzido;  Discutir o conceito de etnociências entre dois extremos de interpretação: saberes e práticas locais como são na realidade e como são traduzidos e apropriados pela linguagem e pelos métodos científicos;  Compreender e criticar a distinção meramente científica entre os conceitos natureza e cultura, procurando adotar uma concepção transdisciplinar de naturezas-culturas;  Apresentar um breve histórico sobre a construção científica do conceito de etnobotânica e outros conceitos relacionados;  Discorrer sobre métodos e técnicas usuais na pesquisa etnobotânica, procurando associar sua utilização aos objetivos que se pretende alcançar e aos tipos de resultados que se deseja obter;  Ressaltar a necessidade de retribuição dos resultados às comunidades parceiras como etapa eticamente indispensável nas pesquisas etnobotânicas;  Pensar a etnobotânica como ferramenta para solução de problemas, como por exemplo os problemas contemporâneos relacionados à educação e à conservação e uso sustentável da biodiversidade e recursos naturais em geral;  Sonhar com a adequação das etnociências ao conceito de simetria e à dimensão compreendida como terceira margem.

2. CONHECIMENTO CIENTÍFICO X CONHECIMENTO POPULAR? 2.1. O que é científico? No livro de Rubem Alves, intitulado Entre a ciência e a sapiência: o dilema da educação (1999), o autor reservou uma seção especialmente “aos que moram nos templos da ciência” na qual procura responder à pergunta: o que é científico? Científico é o que pode ser pescado no rio da realidade pelas redes fabricadas pelos pescadores-cientistas. O que essas redes não são capazes de pescar, não é real para os pescadorescientistas. As redes são muito boas. Os peixes pescados também são muito bons. “Mas há também os céus, as matas que se enchem de cantos de sabiás… Lá as redes dos cientistas ficam sempre vazias” (Alves 1999: p.86). Os cantos dos sabiás não podem ser pescados pelas redes da ciência. Mas, por acaso, isto significa que não são reais? “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá. (…)” Manoel de Barros (2006) ETNOIKOS – Grupo de Estudos Transdisciplinares em Etnoecologia – UFV

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Para entender um pouco mais do que diz o poeta Manoel de Barros, vamos seguir com a argumentação de Rubem Alves, que citou Nietzsche: “a mente é um estômago”. A partir da analogia entre o estômago e a mente, saltamos daquilo que sabemos sobre o estômago para o que não sabemos da mente (Alves 1999: p.88). O estômago processa alimentos. Alimentos são objetos exteriores que são transformados em objetos interiores, tornando-se similares à matéria corporal, sendo assim assimilados. Da mesma forma, a mente processa informações. Informações são objetos exteriores que são assimilados, tornando pensamentos estranhos em pensamentos compreendidos. Alguns seres são herbívoros, outros são carnívoros. Seus estômagos são especializados para processar determinados tipos de alimento. Outros seres são onívoros. Seus estômagos são mais versáteis pois são capazes de processar diversos tipos de alimentos. Como diz Rubem Alves (1999), “se eu oferecer a uma vaca um bife suculento, ela me olhará indiferente. Seu olhar bovino me estará dizendo „Isso não é comida‟. Para o estômago das vacas, comida é só capim. A ciência, à semelhança das vacas, tem um estômago especializado que só é capaz de digerir um tipo de comida. Se eu oferecer à ciência uma comida não apropriada, ela a recusará e dirá: „Não é comida‟. Ou, na linguagem que lhe é própria: „Isso não é científico‟. Que é a mesma coisa. Quando se diz: „Isso não é científico‟ está se dizendo que aquela comida não pode ser digerida pelo estômago da ciência”. O que falta às essas afirmações – “Isso não é comida” ou “Isso não é científico” – é um mínimo de senso crítico. Dever-se-ia dizer “Isso não é comida para o meu estômago”, pois para muitos outros estômagos aquilo é comida. Os estômagos das vacas são semelhantes aos estômagos das ciências. Primeiro, pelo fato de os dois serem capazes de digerir apenas um tipo de alimento. Segundo, pois do que é assimilado pelos estômagos das vacas e das ciências pode-se criar uma grande diversidade de produtos: carne, leite, queijo, etc., microscópios, vacinas, bombas de vácuo, etc. Em outras palavras, podemos encarar a ciência como um jogo de palavras ou uma dança de ideias. Um jogo de palavras com regras bem definidas: quando lemos um artigo científico sabemos logo que não se trata de uma poesia, pois reconhecemos padrões de formatação e linguagem distintos. Trata-se de uma dança de ideias na qual os mestres ditam o ritmo que os discípulos devem seguir. “Um cozinheiro cozinha. Um jardineiro cuida do jardim. Um barbeiro corta cabelo e barba. Um motorista guia carros. Um cientista, o que é que ele faz?” (Alves 1999: p.99). Independente de sua especialidade (seja um biólogo, astrônomo, físico, químico, etc.), “cientista” é aquele que dança conforme o ritmo da ciência, é aquele que joga o jogo da linguagem e dos métodos científicos. O risco de se dançar essa música, de se jogar esse jogo, é o risco de esquecer outras músicas, outros jogos. Só danço samba. Só jogo xadrez. Desconheço o forró e o dominó. Quando as pessoas se convencem que determinado ritmo ou jogo é o melhor, os outros se tornam piores. Alguns se tornam certos, outros errados. Segundo Rubem Alves (1999), aí é que mora o perigo, pois as inquisições se fazem com pessoas convictas do que é certo e errado, melhor ou pior. Se eu também danço samba ou jogo xadrez, estou absolvido. Senão, vou para a fogueira! Dessa maneira, a partir do momento em que o método científico se torna dogma, a ciência se torna loucura, criando pessoas intolerantes e inquisitoriais. Esse é o perigo: que a ciência se torne uma convicção religiosa, um dogma sobre a única via metodológica para conhecer a realidade.

2.2. Etnociências: entre o conhecimento científico e o conhecimento popular Os termos conhecimento científico e conhecimento popular são freqüentemente tratados como vertentes opostas na construção do saber, embora o método de investigação científica tenha sido inicialmente utilizado para testar a veracidade de fatos explicados pelo senso comum. Entretanto, a ETNOIKOS – Grupo de Estudos Transdisciplinares em Etnoecologia – UFV

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palavra ciência se refere a toda e qualquer forma de conhecimento, sistematizado e organizado metodologicamente, sobre determinado objeto (ou sujeito?!), em especial obtidos mediante observação dos fatos. Neste sentido, podemos perceber que o conhecimento popular também pode ser sistematizado metodologicamente, e é construído sobre longos períodos de observação dos processos naturais, podendo ser transmitido e aperfeiçoado de geração para geração, e também dentro de uma mesma geração. Mas, se o saber local é sistematizado e proveniente de observação, por que não é considerado conhecimento científico? Para responder a esta pergunta, devemos nos ater ao método empregado, ou seja, o “caminho percorrido” para produção do conhecimento no contexto da comunidade científica e no contexto popular em escala local. Dessa forma, segundo France Maria Gontijo Coelho (2005), podemos distinguir duas principais vias metodológicas para produção do conhecimento: o experimento, método utilizado consagrado pela comunidade científica, e a experiência, método vivenciado cotidianamente por diferentes pessoas e grupos humanos em todo o mundo (inclusive pelo grupo social denominado comunidade científica). Enquanto a ciência é fragmentada em disciplinas, de acordo com seu objeto de estudo, o conhecimento popular transcende as diversas fronteiras disciplinares no dia-a-dia. Ou seja, por meio da experiência, é preciso ser sujeito, vivenciar o contexto local para compreender a construção do conhecimento. Enquanto os cientistas controlam variáveis em seus experimentos para obter respostas objetivas, descontextualizadas dos problemas reais, populações humanas locais, indígenas, quilombolas, sertanejos, caipiras vivenciam a realidade local diariamente, fazendo observação direta dos fenômenos naturais sem a possibilidade de controlar a maioria das variáveis. Sendo assim, é nessa fronteira, entre conhecimento científico e saber local, entre os experimentos e as experiências, entre o eu (ou nós) e o(s) outro(s), que florescem as etnociências. Quando um problema científico é pensado a partir da realidade local, sua solução deve transcender as fronteiras disciplinares. Neste contexto, as etnociências são campos de conhecimento transdisciplinares, que investigam as fronteiras entre as naturezas e as culturas, aproximando os pontos de vista do pesquisador e do pesquisado. E, dessa forma, de acordo com seu objeto de estudo no contexto acadêmico, as etnociências assumiram caráter multi ou interdisciplinar e fragmentaram-se em diversas áreas, especialmente na interface entre biologia e antropologia: etnobiologia, etnoecologia, etnobotânica, etnozoologia, etnopedologia, etnofarmacologia, etc. 3. ETNOCIÊNCIAS OU CIENTIFIZAÇÃO DE SABERES E PRÁTICAS? Após discutirmos sobre o que é científico e como as etnociências proporcionam o diálogo entre as ciências e os conhecimentos populares, proponho uma reflexão sobre duas formas de interpretação distintas do conceito de etnociências, que representam dois extremos. Por um lado, temos as etnociências como os saberes e as práticas de qualquer grupo humano que compartilha determinados traços culturais, da forma como são na realidade: transcendendo fronteiras disciplinares dentro de um contexto próprio. Ou seja, neste pólo as etnociências são concebidas como as “ciências” desses grupos humanos, de maneira que as regras desses jogos são estabelecidas em determinado contexto cultural e social. Por outro lado, temos as etnociências como as disciplinas acadêmicas especializadas em estudar os saberes e práticas dentro de um grupo humano que compartilha determinados traços culturais, definido de acordo com interesses de pesquisa. Isto é, neste outro pólo as etnociências são áreas do conhecimento científico responsáveis pela tradução dos saberes e práticas locais, com suas próprias linguagens e significados, para uma rede de linguagem e significados inteligíveis para a comunidade científica. ETNOIKOS – Grupo de Estudos Transdisciplinares em Etnoecologia – UFV

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Assim, uma dúvida paira no ar: devemos tratar as etnociências tais como são, transcendentais, subjetivas e complexas, ou como uma cientifização de saberes e práticas de determinado grupo humano, buscando as luzes da objetividade acima de tudo? Nesse momento em que buscamos construir o conceito se simetria (Latour 1994) nas etnociências, devemos procurar compreender uma outra dimensão, que está entre os dois pólos estabelecidos, entre as duas margens do rio: a terceira margem do rio: o rio (Rosa 1974). 4. NATUREZAS E CULTURAS O processo de especialização e fragmentação científica levou à distinção clássica entre ciências naturais e ciências sociais/humanas. Esta separação parte da premissa que existem dois universos distintos: natureza e cultura. As ciências naturais, como a física, a química, a biologia, se especializaram em “desvendar os mistérios” dos objetos/sujeitos pertencentes ao domínio da natureza, enquanto as ciências sociais/humanas, como a antropologia, a sociologia, a psicologia, se especializaram em “desvendar os mistérios” dos sujeitos/objetos pertencentes aos domínios da sociedade e da cultura. Percebemos assim o estabelecimento de dois pólos, duas margens: de um lado a natureza, de outro a cultura. Ou seja, dentro do processo de purificação proporcionado pela afirmação “isso é científico”, temos uma purificação ainda mais refinada que diz: “isso é natural” ou “isso é social/cultural”. Entretanto, os processos de purificação não são capazes de rotular e explicar tudo o que acontece no mundo, ou seja, o que está entre os dois pólos considerados puros, as duas margens estabelecidas. A bomba de vácuo, por exemplo, é natural ou social/cultural? O Leviatã é social ou natural? O pão, o queijo e o vinho, são naturais ou sociais/culturais? E as vacinas? Os venenos? A caça? A pesca? A agricultura? O sexo e a sexualidade? Os embriões congelados? Os clones? Os pensamentos? … São ao mesmo tempo naturais e culturais/sociais. São entidades híbridas, que não podem ser tratados somente como objetos tampouco somente como sujeitos. Nosso mundo, nossa(s) sociedade(s)/cultura(s) e nossa(s) natureza(s), está repleto de híbridos que não se enquadram em nenhum dos pólos estabelecidos, pois tem raízes tanto sociais/culturais como tem raízes naturais. Assim, enquanto as ciências buscam a purificação e explicação perfeita para todos os objetos/sujeitos, os cientistas fazem “vista grossa” para os híbridos que continuam se reproduzindo bem debaixo de seus narizes e dentro de suas próprias cabeças (Latour 1994). O que quero dizer é que tudo o que existe não está nem em um pólo nem em outro, mas sim entre eles, por mais que queiramos ver distinções claras e ouvir explicações puras. Sendo assim, não podemos falar de uma natureza única tampouco de culturas isoladas. Mesmo que determinadas sociedades vivam espacialmente isoladas e não mantenham contato com outra cultura, ainda assim compartilham traços culturais. Todo grupo humano delimita suas margens, seus pólos, suas dimensões ao mesmo tempo em que purificam sujeitos/objetos de acordo com suas próprias regras, reproduzem seus próprios hídridos. Portanto, não devemos falar de natureza e cultura como pólos. Podemos falar de naturezasculturas, uma vez que existem tantas naturezas quantas culturas. Em algumas culturas, a natureza é sinônimo de “vida selvagem”, intocada, que deve ser manter intacta, afastada do contato com a sociedade. Em outras culturas, a natureza pode ser humanizada e a sociedade pode ser naturalizada, sendo a sociedade e as relações sociais parte da natureza ou vice-versa. Assim, nenhuma distinção, nenhuma explicação, nenhum objeto/sujeito puro ou híbrido faz sentido fora de seu próprio contexto.

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5. ETNOBOTÂNICA: CONCEITOS E CONTEXTO HISTÓRICO Antes de apresentar o conceito de etnobotânica, vamos adotar uma postura cientificamente hierárquica e discutir primeiro conceitos mais amplos como etnobiologia e etnoecologia. Da mesma maneira, vamos fingir que esquecemos temporariamente as discussões anteriores sobre ciências e saberes, margens e pólos, naturezas e culturas, quando forem apresentados os conceitos cientificamente reconhecidos e usualmente adotados. Segundo Clément (1998), etnobiologia pode ser definida como as ciências biológicas praticadas pelas diversas culturas humanas estudadas pela etnologia/antropologia. A etnobiologia surgiu como disciplina acadêmica no final do século XIX, quando suas subdisciplinas começaram a ser nomeadas e reconhecidas. As denominações e conceitos adotados inicialmente, como por exemplo botânica aplicada, botânica econômica, etnobotânica, etnozoologia, dentre outros, surgiram no contexto de interesse econômico das sociedades imperialistas ocidentais pela utilidade de produtos desenvolvidos a partir do conhecimento biológico tradicional de populações indígenas. Os primeiros pesquisadores na área de etnobiologia foram botânicos, zoólogos, antropólogos, etnólogos, missionários, extensionistas, aventureiros, etc. Historicamente, os primeiros etnobiólogos, independente de sua formação, trabalhavam para museus europeus. Inicialmente, eles apresentavam uma visão preconceituosa, negando e menosprezando o valor do conhecimento produzidos por populações indígenas, que eram consideradas “selvagens”. O interesse girava em torno dos produtos que poderiam ser explorados pelas sociedades imperialistas ocidentais. Atualmente, essa oração continua sendo escrita porém com outras palavras. Em geral, o discurso mudou mas práticas nem tanto. Entretanto, de alguma forma, a trajetória histórica recente da etnobiologia apresenta tendências de mudança de concepções e atitudes sobre a percepção do outro, ou seja, de culturas distintas e seus próprios sistemas de conhecimento. Clément (1998) divide a curta história da etnobiologia, de pouco mais de um século, em três períodos: pré-clássico, clássico e pós-clássico. No primeiro período, o pré-clássico (entre 1860 e 1899), a atenção inicial da etnobiologia voltava-se para o interesse econômico sobre produtos indígenas e para a definição científica de etnobiologia e delimitação de suas subáreas. O segundo período, clássico (entre 1950 e 1980‟s), é caracterizado pela forte influência dos antropólogos, que deslocaram o foco dos estudos para a representação ética e interpretação dos sistemas de conhecimento considerados tradicionais, especialmente estudos sobre percepção e etnotaxonomia. No terceiro período, o pós-clássico (de 1990‟s até hoje), começou a ser reconhecida a necessidade de cooperação e participação das comunidades em estudos voltados para o manejo e conservação de recursos naturais, surgindo assim as noções de propriedade intelectual e repartição de benefícios. Neste período mais recente, os conceitos e métodos de pesquisa na etnobiologia e suas subáreas passaram por sistematizações e reformulações. Devido a sua amplitude, a etnoecologia começou a ganhar espaço. No primeiro número da revista mexicana Etnoecologica, Victor Toledo (1992) definiu etnoecologia como “um campo de estudos interdisciplinares que estuda o modo como populações humanas se inserem culturalmente em ecossistemas, tanto através de processos cognitivos, como de reações emocionais e comportamentais, no qual interpretam-se conexões que emergem como um interpenetrar-se de sociedade e natureza, que se contradiz e se complementa.” Uma década depois, José Geraldo Marques (2002) reformulou o conceito de etnoecologia como “o campo de pesquisa (científica) transdisciplinar que estuda os pensamentos (conhecimentos e crenças), sentimentos e comportamentos que intermedeiam as interações entre as populações humanas que os possuem e os demais elementos dos ecossistemas que as incluem, bem como os impactos ambientais daí decorrentes”.

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Portanto, dependendo da abordagem adotada para estudar as pessoas e seus ambientes, a etnoecologia pode utilizar ferramentas de diversas ciências como ecologia, biologia, botânica, zoologia, antropologia, sociologia, geografia, história... Partindo de conceitos mais amplos como etnobiologia e etnoecologia, podemos discorrer melhor sobre a etnobotânica. Segundo Ulysses Paulino de Albuquerque (2005), o termo etnobotânica foi formalmente proposto por Harshberger (1986), que considerou a etnobotânica como ferramenta para elucidação da posição cultural das tribos que usam plantas para alimentação, abrigo ou vestuário, de forma que tais investigações poderiam contribuir para esclarecer a distribuição das espécies vegetais no passado. Entretanto, muito antes desse período, dados etnobotânicos já haviam sido utilizados em estudos sobre a origem e distribuição de plantas cultivadas, além de também terem sido empregados para identificação e descrição de milhares de espécies de plantas desconhecidas pelos naturalistas antes das expedições científicas nos tempos das grandes navegações. Na verdade, a etnobotânica já existia, porém, antes de tudo isso, não haviam pesquisadores. Entretanto o ser humano foi e é importante agente de mudanças nas comunidades vegetais e na evolução de diversas populações de plantas, pois sempre foi dependente do meio botânico para sua sobrevivência, manipulando-o não apenas para suprir suas necessidades mais urgentes, mas também em sua magia e medicina, uso empírico ou simbólico, nos rituais presentes em várias culturas, que muitas vezes gerenciam e mantém suas relações sociais (Albuquerque 2005). Inicialmente, no período pré-clássico (Clément 1998), a etnobotânica foi compreendida por muitos pesquisadores como o uso de plantas por povos considerados primitivos e as possibilidades de exploração econômica desses conhecimentos. Depois, no período clássico, passou a ser concebida como as interações entre os povos primitivos e as plantas, reforçando as interpretações com os componentes culturais, acrescentados pela participação cada vez maior dos antropólogos. Atualmente, Albuquerque (2005) sugere que a etnobotânica pode ser entendida como o estudo das interações entre as culturas humanas viventes, sejam elas “tradicionais” ou “modernas”, e as plantas que vivem em seu meio. De acordo com Andrade e Casali (2002) a etnobotânica estuda a relação entre pessoas e plantas no decorrer do tempo e em diferentes ambientes. Se adaptarmos o conceito de etnoecologia proposto por Marques (2002) ao conceito de etnobotânica, podemos dizer que etnobotânica é o campo de pesquisa (científica) transdisciplinar que estuda os pensamentos (conhecimentos e crenças), sentimentos e comportamentos que intermedeiam as interações entre as populações humanas que os possuem e as plantas dos ecossistemas que as incluem. Tais conceitos e definições logicamente ainda não são ideais (afinal, conceitos são como a água: escorre entre os dedos quando se tentar segurar), porém são inteligíveis e aplicáveis. Independente de conceitos e definições, a etnobotânica pode contribuir para compreender como as pessoas se relacionam com as plantas no mais diversos contextos naturais/culturais. Albuquerque (2005) nos proporciona uma reflexão: certamente muito temos a dizer sobre as plantas, mas o que as plantas tem a dizer sobre as sociedades que produziram as diversas formas de conhecimento botânico?

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6. MÉTODOS E TÉCNICAS USUAIS NA PESQUISA ETNOBOTÂNICA 6.1. Concepções, propostas e dilemas metodológicos Como pudemos perceber nas discussões anteriores, várias podem ser as formas de se conceituar etnobiologia e etnobotânica. Da mesma maneira, várias podem ser as formas de se tratar objetos e sujeitos, naturezas e culturas. Por isso, é importante ressaltar que as distinções teóricas e conceituais, bem como as concepções e propostas metodológicas adotadas pelo pesquisador devem ser abertamente assumidas para evitar a hipocrisia. Segundo Coelho (2005), todo trabalho, seja nos campos da pesquisa, educação ou extensão, realizado com comunidades locais resulta em algum tipo de intervenção. Neste contexto, o pesquisador/educador/extensionista necessariamente deve assumir sua forma de intervenção, que é reflexo direto de suas concepções teóricas e metodológicas. A autora distinguiu dois tipos fundamentais de intervenção: a concepção formal e a concepção participativa. Na primeira (concepção formal), o pesquisador/educador/extensionista é o sujeito e as comunidades são objetos de seus trabalhos. Por exemplo, em uma pesquisa etnobotânica dentro de uma concepção formal, o pesquisador acredita que detém o conhecimento científico, formula suas perguntas, escolhe seus métodos e os aplica na comunidade estudada, que será fonte de dados para o trabalho. Quem analisa e discute os resultados é o pesquisador. As comunidades, que serviram como fontes de dados, costumam ser mencionadas apenas nos agradecimentos, e, muitas vezes não recebem nenhum tipo de retribuição. Ou seja, nesta concepção formal, o pesquisador é o sujeito e a comunidade, bem como seu conhecimento, é tratada como mero objeto de estudo, fonte de dados. O pesquisador acredita que deve manter uma “distância de segurança” de seu objeto de estudo para garantir uma suposta “neutralidade” e objetividade científica, evitando se envolver de maneira subjetiva com a comunidade. Assim, o pesquisador assume uma postura de observador passivo, externo à realidade estudada. Na segunda (concepção participativa), o pesquisador/educador/extensionista é um sujeito consciente de que seu conhecimento, independente de ser considerado científico ou não, é apenas uma forma de conhecimento, nem melhor nem pior do que o conhecimento produzido em outras naturezas-culturas, diferentes em alguns aspectos, semelhante em outros. Dessa maneira, as comunidades locais também são considerados sujeitos, parceiros dos trabalhos. Por exemplo, em uma pesquisa etnobotânica dentro de uma concepção participativa, o pesquisador procura envolver as pessoas em todas as etapas do trabalho, desde a elaboração da proposta de pesquisa até a discussão e retribuição dos resultados obtidos. Procura-se construir o trabalho em processo de diálogo constante com a comunidade. Neste caso, as pessoas e seus conhecimentos não são meros objetos de estudo ou fontes de dados, são parceiros da pesquisa. Portanto, na concepção participativa, o pesquisador e os participantes são os sujeitos da pesquisa, que se desenvolve sobre um objeto de estudo que é o diálogo sobre os conhecimentos em determinados temas. O pesquisador procura se envolver com a comunidade, vivenciando sua realidade e valorizando experiências subjetivas, assumindo uma postura de observador ativo, participante. Por isso, a pesquisa participativa jamais se esquece de seus parceiros, pois a relação estabelecida entre o pesquisador e os participantes transcende a própria pesquisa, envolvendo amizade, respeito e compromisso. Sob uma perspectiva formal, Ulysses Paulino de Albuquerque e colaboradores (2008) sugerem que os procedimentos metodológicos adotados na pesquisa etnobotânica devem ser ETNOIKOS – Grupo de Estudos Transdisciplinares em Etnoecologia – UFV

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adequados à unidade de estudo e às hipóteses de trabalho para garantir a validade e confiabilidade na informação. A abordagem proposta pelos autores sugere que técnicas quantitativas podem ser úteis para avaliação da importância relativa de plantas, atualmente usuais em estudos visando conservação e uso sustentável da biodiversidade. Por outro lado, a abordagem metodológica proposta por Maria Christina de Mello Amorozo (2004) orienta que o contato direto do pesquisador com o ambiente e o grupo estudado é fundamental para a validade e a confiabilidade na informação. Para essa abordagem, a melhor forma de observar e compreender um fenômeno é no contexto em que ocorre e do qual faz parte. Logicamente não podemos esquecer que a distinção entre concepção de pesquisa formal e participativa é apenas uma representação de dois pólos extremos entre os quais se reproduzem as concepções híbridas. Da mesma maneira, José Geraldo Marques (2002) chama nossa atenção para a distinção clássica entre pesquisa quantitativa e pesquisa qualitativa. A concepção de pesquisa formal tende a valorizar a objetividade e privilegiar as vias metodológicas quantitativas enquanto a concepção participativa tende a valorizar a (inter-)subjetividade e privilegiar as vias qualitativas. O mundo acadêmico requer formalidade e objetividade, por este motivo pesquisas de natureza qualitativa, com maior teor de subjetividade, são frequentemente discriminadas pela comunidade científica. Entretanto, Marques (2002) lembra que as etnociências transcendem fronteiras disciplinares, precisam ser teoricamente e metodologicamente maleáveis. Silva (2000) apud Marques (2002) reforça a importância de se adotar uma visão transdisciplinar sobre as ciências: “Ao começar pelas emoções, a metodologia transdisciplinar propõe e assume o emocionar como recurso cognitivo legítimo para a construção de um conhecimento comprometido com o religare do homem com sua felicidade, sua humanização. A disciplina cujo nível de eficácia não consiga justificar-se por essa finalidade, perde sua transcendência, perde sua ciência.” As etnociências nasceram e evoluíram como uma ponte entre as duas margens de um mesmo rio: a margem objetiva das ciências naturais e a margem (inter-)subjetiva das ciências humanas/sociais. Por isso, sua trajetória histórica foi e continua sendo marcada por críticas provenientes das duas margens, cada qual com seu repertório crítico: de um lado o arcabouço teórico e metodológico quantitativo, de outro o qualitativo. Inicialmente, pela influência antropológica, as etnociências apresentavam-se como essencialmente descritivas e qualitativas, buscando posteriormente maior formalismo matemático, que era concebido como ferramenta analítica geradora de discussões e não como traduções numéricas dos fenômenos observados. Entretanto, recentemente tem surgido um desejo ingênuo de amadurecimento nos campos das etnociências, especialmente entre os etnobotânicos, que tem buscado cada vez mais o rigor metodológico da via quantitativa, esquecendo-se porém que a via qualitativa que a complementa e exige outro tipo de rigor. Marques in Amorozo e colaboradores (2002) alerta para o risco decorrente dessa tendência metodológica tão precisa e sedutora nos campos da etnobotânica, que leva entusiastas, exagerados e iniciantes deslumbrados a enxergarem a via quantitativa como única via (“e como via de mão única!”), esquecendo-se que trata-se apenas de uma via complementar, muitas vezes dispensável para compreensão dos fenômenos estudados. Neste contexto de discussão entre métodos quantitativos e qualitativos, Marques in Amorozo e colaboradores (2002) sugere que uma abordagem responsável e equilibrada deve reconhecer a legitimidade das duas vias buscando quando necessário sua integração, uma fornecendo respostas às perguntas que a outra não consegue dar por suas limitações intrínsecas e mútuas. Portanto, quando planejamos uma pesquisa etnobotânica devemos ter em mente o que Marques in Amorozo e colaboradores (2002) chamou de “o dilema de Saint-Exupèry”, expresso pelo seguinte trecho do livro O Pequeno Príncipe:

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“Tenho sérias razões para supor que o planeta de onde vinha o príncipe era o asteróide B-612. Esse asteróide só visto uma vez ao telescópio por um astrônomo turco. (…) Se lhes dou esses detalhes sobre o asteróide B-612 e lhes confio seu número, é por causa das pessoas grandes. As pessoas grandes adoram números. Quando a gente lhes fala de um novo amigo, elas jamais se informam do essencial. Não perguntam nunca: „Qual é o som da sua voz? Quais os brinquedos que prefere? Será que ele coleciona borboletas?‟ Mas perguntam: „Qual é a sua idade? Quantos irmãos ele tem? Quanto pesa? Quanto ganha seu pai?‟ Somente então é que elas julgam conhecê-lo. Se dizemos às pessoas grandes: „Vi uma bela casa de tijolos cor de rosa, gerânios na janela, pombas no telhado…‟ elas não conseguem, de modo nenhum, fazer uma ideia da casa. É preciso dizer-lhes: „Vi uma casa de seiscentos contos‟. Então elas exclamam: „Que beleza!‟”

Ou seja, este dilema ocorre quando definimos nossa proposta, nossos objetivos. Neste momento devemos nos atentar às perguntas que queremos responder e as respostas que podemos obter. O que será mais importante dizer: que a casa custa seiscentos contos ou que tem gerânio na janela? E, quando estivermos perante nossos resultados e discussões, Marques in Amorozo e colaboradores (2002) ainda alerta sabiamente para o que chamou de “a armadilha de Saramago”, expressa pelo seguinte trecho do livro Memorial do Convento: “Por aqui hoje passaram mais de cem, perdoe-se a imprecisão de quem não aprendeu a contar rigoroso, foram muitos, foram poucos, é como quando se fala de anos, já passei dos trinta, e Baltasar diz, Ao todo ouvi dizer que chegaram quinhentos, Tantos, espanta-se Blimunda, e nem um nem outro sabem exactamente quantos são quinhentos, sem falar que o número é de todas as coisas que há no mundo a menos exacta, diz-se quinhentos tijolos, diz-se quinhentos homens, e a diferença que há entre tijolo e homem é a diferença que se julga não haver entre quinhentos e quinhentos, quem isto não entender à primeira vez não merece que lho expliquem segunda.”

Isto é, devemos ter cautela ao usar os números para responder determinadas perguntas, pois embora 500 seja igual a 500, 500 homens não são iguais a 500 tijolos (Marques in Amorozo et al. 2002)! E ainda acrescento uma segunda armadilha de Saramago, referente às relações sujeito-objeto discutidas entre os dois extremos de concepções metodológicas apresentadas anteriormente, expressa pela seguinte frase retirada o livro Objecto quase: “Tudo são objectos. Quase.” Portanto, para realização de uma pesquisa etnobotânica (ou etnocientífica em geral) fundamentada em uma concepção metodológica responsável e equilibrada, deve-se ter sempre em mente o dilema de Saint-Exupèry e as armadilhas de Saramago.

6.2. Definição do espaço social de observação e abordagem inicial A sistematização metodológica sob o enfoque etnoecológico deve levar em conta a importância de definir uma unidade de estudo e de utilizar uma abordagem transdisciplinar sobre um sujeito/objeto bem definido (Mejía 2002), que pode se tratar de indivíduos, unidades familiares, grupos sociais, etc. Dessa forma, conforme orientado por Mejía (2002) o passo inicial para a pesquisa seria a definição da unidade de estudo, ou seja, o espaço social de observação. O contato inicial com a comunidade é de fundamental importância para o desenvolvimento da pesquisa etnobotânica. Antes de ir ao campo, o pesquisador deve buscar informações sobre a estrutura e a rede de relações sociais locais, buscando também se inteirar sobre a cultura local e ETNOIKOS – Grupo de Estudos Transdisciplinares em Etnoecologia – UFV

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padrões comportamentais, regras e preconceitos relacionados ao vestuário, linguagem verbal e não verbal, etc. Geralmente, o contato inicial com lideranças locais, como representantes de associações comunitárias, pode facilitar a apresentação do pesquisador à comunidade. Caso haja disponibilidade dos membros da comunidade, sugere-se a realização de reuniões e/ou oficinas como espaços para apresentação da proposta de pesquisa (Albuquerque et al. 2008). Numa concepção participativa, os participantes devem ter liberdade para sugerir mudanças na proposta original de forma que a mesma possa se adequar aos interesses locais. Albuquerque e colaboradores (2008) também alertam para a necessidade de cumprimento dos aspectos legais da pesquisa etnobotânica, como a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

6.3. Seleção de participantes Albuquerque e colaboradores (2008) ressaltam a importância dos procedimentos de amostragem e seleção de informantes ou entrevistados na pesquisa etnobotânica. Os autores procuram fazer uma distinção entre os termos “informante” e “entrevistado”, uma vez que, dependendo das concepções teóricas e metodológicas do pesquisador, as palavras podem assumir diferentes conotações. Sugere-se o uso do termo informante para pessoas com as quais o pesquisador estabeleceu uma relação que não se restringiu apenas ao momento de uma entrevista. Entretanto, numa concepção de pesquisa participativa a utilização destes termos não faz sentido, pois as pessoas não consideradas apenas fontes de informações. Portanto, sugerimos o uso do termo “participantes”. Informante principal ou informante chave também são termos frequentemente utilizados em estudos etnobotânicos para denominar uma pessoa, selecionada dentre todos os participantes por critérios definidos pelo pesquisador, para colaborar com maior intensidade na pesquisa (Albuquerque et al. 2008). Este deve ser a pessoa de maior contato e confiança na comunidade, conhecedora do ambiente estudado, capaz de identificar os especialistas locais e apresentar o pesquisador aos membros da comunidade. A seleção dos participantes mais ativos não deve, idealmente, se fundamentar apenas em aspectos quantitativos da pesquisa (por exemplo: número de plantas citadas), mas também nas sutilezas das informações obtidas e, porque não, na facilidade de diálogo e amizade entre o pesquisador e o participante. Albuquerque e colaboradores (2008) sugerem que o pesquisador deve levar em consideração a peculiaridade e originalidade das informações, independente do enfoque do estudo. Também é importante reconhecer informações contidas nas entrelinhas de conversas formais e informais, porém devemos ser extremamente cautelosos ao interpretá-las. Dependendo dos objetivos propostos numa pesquisa etnobotânica, o pesquisador deve restringir ou ampliar o número de participantes. Ou seja, se o enfoque da pesquisa é o conhecimento botânico de especialistas locais, deve-se procurar as pessoas reconhecidas na comunidade como grandes conhecedores das plantas (por exemplo: curandeiros, mateiros, raizeiros, etc.). No entanto, se o interesse da pesquisa é avaliar a distribuição do conhecimento botânico entre os membros de uma comunidade local, buscando generalizações, deve-se procurar o maior número de participantes possível ou selecionar uma amostra representativa da comunidade (Albuquerque et al. 2008).

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6.4. Procedimentos de amostragem Pesquisas de cunho quantitativo, que buscam generalizações, exigem um grande cuidado do pesquisador em relação à escolha dos procedimentos de amostragem. Certamente os pontos fracos das pesquisas quantitativas estão relacionados especialmente aos critérios de seleção de participantes e tamanho da amostra, levando a interpretações e generalizações equivocadas. É preciso ter sempre em mente os objetivos do estudo para delinear uma amostra o mais próximo possível da representatividade (Albuquerque et al. 2008). De maneira geral, os procedimentos de amostragem podem ser separados em: amostragem probabilística e amostragem não probabilística. Na amostragem probabilística, os participantes são escolhidos ao acaso, de forma que dentro do universo correspondente à comunidade em geral, todas as pessoas teriam a mesma chance de serem escolhidas. Este tipo de amostragem requer um certo domínio de ferramentas estatísticas, de maneira que o pesquisador deve sempre procurar reduzir o erro com o aumento do tamanho e homogeneidade amostral. Albuquerque e colaboradores (2008) listaram alguns tipos de amostragem probabilística, sobre os quais vamos falar brevemente:  Amostragem aleatória simples – Todos os elementos de determinado universo são numerados e depois se faz o sorteio dos que farão parte da amostra. Nem sempre é de fácil aplicação pois é necessário identificar todos os elementos que compõem o universo antes de numerá-los e sorteá-los.  Amostragem estratificada – Neste caso, o universo é estratificado em categorias com base em critérios estabelecidos pelo pesquisador (p. ex.: sexo, idade, ocupação, etc.), visando garantir maior representatividade da heterogeneidade existente no universo delimitado. Dentro de cada categoria, espera-se que encontrar maior homogeneidade entre os elementos que as compõem. Assim, realiza-se o mesmo procedimento descrito para amostras aleatórias simples, sendo que os elementos sorteados em cada categoria formarão a amostra final.  Amostragem por conglomerados – Quando não se tem uma lista completa de todos os elementos que compõem o universo delimitado, o pesquisador tem que lidar com categorias mais amplas (agrupamentos ou conglomerados). É preciso observar como a comunidade está organizada, se é em povoados, tribos, distritos, bairros, quarteirões, etc. Com base nesta organização, o universo é estratificado em subconjuntos denominados conglomerados. Os elementos de cada conglomerado são listados e selecionados da mesma forma que nas amostras aleatórias simples.  Amostragem por área – Este procedimento é frequentemente adotado em estudos de comunidades e/ou quando os elementos do universo delimitado são inteiramente desconhecidos. Neste caso, mapas ou fotos aéreas podem ser utilizadas para subdivisão de uma área em unidades menores. Em seguida, realiza-se um sorteio para seleção de uma ou mais áreas que serão amostradas. Posteriormente, o pesquisador pode amostrar todos os elementos da(s) área(s) sorteada(s) ou pode realizar novo sorteio para seleção dos elementos que serão amostrados, seguindo o procedimento de amostragem aleatória simples. Por outro lado, em várias circunstâncias, devido a diversas limitações, podemos optar pelo uso de procedimentos de amostragem não probabilística. De acordo com as características e objetivos da pesquisa, os participantes podem ser selecionados de maneira intencional. Por exemplo, se pretendemos estudar quais plantas medicinais comercializadas no mercado municipal de Montes Claros, podemos selecionar intencionalmente os participantes, que serão as pessoas que vendem essas plantas. Entretanto, este procedimento amostral é bastante criticado pelos

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quantitativistas pois limita a possibilidade de generalizações. Porém, em trabalhos descritivos com um grupo bem definido, as amostras intencionais podem ser muito úteis (Albuquerque et al. 2008). Uma técnica frequentemente utilizada para seleção intencional de participantes é a chamada “bola de neve” (Snow ball), proposta por Bailey (1994 apud Albuquerque et al. 2008). Este método é muito útil para identificação de especialistas locais dentro de uma comunidade. Por exemplo, se queremos estudar o conhecimento sobre as plantas utilizadas em rituais de cura numa determinada comunidade tradicional, pediremos que nos indiquem quem são as pessoas consideradas grandes conhecedoras deste assunto. Dessa maneira, o primeiro especialista é reconhecido, que, por sua vez, indica outro especialista e assim sucessivamente até envolver todos os especialistas da comunidade (Albuquerque et al. 2008). Finalmente, vale a pena ressaltar novamente que a escolha dos procedimentos amostrais “depende dos objetivos do estudo, do tipo de pesquisa e da contribuição que se pensa fazer com ela” (Sampieri et al. 2006 apud Albuquerque et al. 2008).

6.5. Métodos e técnicas para coleta de dados etnobotânicos Sendo a etnobotânica uma área do conhecimento capaz de transcender fronteiras disciplinares em sua essência, apresenta uma grande diversidade de métodos e técnicas para coleta de dados em campo, qualitativos e quantitativos, objetivos e subjetivos. Isso pois seu arcabouço teórico e metodológico tem raízes tanto nas ciências naturais quanto nas ciências humanas/sociais. Embora a essência seja transdisciplinar, a maioria das pesquisas etnobotânicas da atualidade apresentam uma prática interdisciplinar, pois geralmente são pesquisas que associam, integram métodos consagrados por duas disciplinas científicas: antropologia e botânica, cada qual com seu rigor metodológico próprio sustentando uma proposta de diálogo, por isso uma proposta interdisciplinar. Tendo em vista a natureza híbrida que caracteriza os métodos de pesquisa em etnobotânica, sendo uns mais outros menos participativos, uns mais quantitativos, outros mais qualitativos, seguiremos a proposta de Albuquerque e colaboradores (2008), apresentando apenas algumas das técnicas utilizadas com maior frequência para coleta de dados etnobotânicos. a) Entrevistas – Atualmente constituem a forma mais frequente de obtenção de dados em pesquisas etnobotânicas. Embora a entrevista aparente ser um processo simples, é envolvida por muitas sutilezas e detalhes aos quais o pesquisador deve estar atento. Sugere-se que as entrevistas sejam marcadas com antecedência, uma vez que algumas pessoas não desejam ser incomodados em determinados horários ou dias específicos. É indispensável pedir a permissão das pessoas para gravar as entrevistas, fazer anotações e tirar fotografias, respeitando sempre a privacidade das pessoas (Viertler in Amorozo et al. 2002). Uma entrevista mal planejada e/ou conduzida pode “contaminar” os dados com “tendências” devido a diversos fatores como o comportamento do pesquisador, a forma como as perguntas são elaboradas e direcionadas, a presença de outras pessoas e a interpretação errônea das respostas. Por isso, é importante ter sempre em mente duas questões: o que perguntar e como perguntar? As perguntas devem ser formuladas numa linguagem inteligível ao entrevistado, ou seja, deve-se pesquisar sobre termos usualmente adotados no contexto cultural local, procurando adotá-los. Além disso, perguntas desnecessárias devem ser evitadas, pois deve-se procurar obter respostas adequadas aos objetivos do trabalho. Vale a pena realizar entrevistas piloto, que sirvam para testar a adequabilidade das perguntas e fluência da entrevista. De acordo com seu grau de estruturação e objetividade, as entrevistas podem ser formalmente dividas em: estruturadas, não-estruturadas/informais e semi-estruturadas (Albuquerque et al. 2008). ETNOIKOS – Grupo de Estudos Transdisciplinares em Etnoecologia – UFV

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 Entrevista estruturada – Esse tipo de entrevista limita as possibilidades de resposta do entrevistado, privilegiando perguntas objetivas, que devem ser previamente elaboradas e repetidas a todos os participantes. Perguntas fechadas são úteis para se obter maior uniformidade nas respostas, que podem ser do tipo sim/não ou de múltipla escolha. Por outro lado, perguntas abertas permitem maior liberdade de resposta, mas devem ser claras e objetivas numa entrevista estruturada, como por exemplo: “Quais plantas você usa na alimentação?”. Este tipo de entrevista pode ser realizado de duas maneiras: formulários face-a-face e questionários. Os formulários são aplicados de forma que o pesquisador anuncia as perguntas e anota as respostas, preenchendo o formulário. Por outro lado, os questionários são entrevistas autoadministradas pelos participantes. Ou seja, neste caso as perguntas são respondidas na ausência do pesquisador e o questionário é preenchido pelo próprio entrevistado. As duas maneiras apresentam vantagens e desvantagens, cabendo ao pesquisador escolher a mais adequada aos objetivos de sua pesquisa (Albuquerque et al. 2008).  Entrevista não-estruturada/informal – Trata-se do extremo oposto da entrevista estruturada, de forma que as perguntas não são elaboradas previamente, podendo ser realizada em qualquer momento e qualquer local (em casa, no quintal, caminhando pela roça, etc.), transcorrendo da maneira mais aberta possível. Segundo a metodologia geradora de dados proposta por Posey (1987 apud Albuquerque et al. 2008) o pesquisador pede ao participante que lhe fale sobre determinado tema, registrando as explanações do entrevistado em campo e/ou anotando posteriormente em diário de campo. É importante que o pesquisador procure manter o foco da conversa de acordo com seus objetivos dando espaço para o entrevistado discorrer sobre o tema (Albuquerque et al. 2008). O pesquisador deve procurar desenvolver a conversa sobre o assunto, mas também deve deixá-la fluir espontaneamente.  Entrevista semi-estruturada – Conforme indicado pelo próprio nome, trata-se de um meio-termo entre a entrevista estruturada e a entrevista não-estruturada. Neste caso, as perguntas são parcialmente formuladas pelo pesquisador antes de ir ao campo, apresentando grande flexibilidade, pois permite ao pesquisador aprofundar determinados assuntos que surgem durante a entrevista. É a melhor opção quando não se terá outra chance para entrevistas alguém, pois permite a abordagem de aspectos tanto objetivos quanto subjetivos, quantitativos e qualitativos. Para este tipo de entrevista, sugere-se a elaboração de um roteiro de entrevista, que deve ser redigido com antecedência, abrangendo uma lista de perguntas e/ou tópicos que serão abordados (Albuquerque et al. 2008). b) Diário de campo – Por meio do diário de campo o pesquisador procura registrar suas observação sobre os acontecimentos ocorridos durante o dia, assim como suas percepções, sentimentos e conclusões (ainda que provisórias) (Viertler in Amorozo et al. 2002). A organização do diário de campo é escolha do pesquisador, que pode adotar uma ordem cronológica dos acontecimentos ou separar grandes temas (Albuquerque et al. 2008). É uma importante ferramenta na pesquisa etnobotânica não apenas de registro de informações, mas também constitui-se uma experiência de reflexão e auto-conhecimento por parte do pesquisador. c) Turnê guiada – É um método de pesquisa de campo frequentemente utilizado por pesquisadores que trabalham com mateiros ou participantes mais ativos na pesquisa (Albuquerque et al. 2008). Na turnê guiada, o pesquisador e o participante caminham em áreas de interesse para a pesquisa. Durante as caminhadas é frequente a realização de entrevistas informais, nas quais as plantas e seus nomes populares, bem como seus usos locais e importância cultural, podem ser registrados durante o percurso e a conversa com o mateiro. As caminhadas podem ter seu percurso ETNOIKOS – Grupo de Estudos Transdisciplinares em Etnoecologia – UFV

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definido pelo pesquisador ou pelo mateiro, dependendo dos objetivos propostos. As turnês guiadas podem ser denominadas caminhadas em transectos quando o pesquisador tem o objetivo de percorrer um transecto que represente determinado gradiente ambiental (Mejía 2002). Por exemplo, se o pesquisador quer estudar a distinção que o mateiro faz de diferentes fitofisionomias em função das variações de solos, ou as mudanças no reconhecimento de plantas utilizadas como recurso entre fitofisionomias adjacentes, pode-se optar pela caminhada em transecto. d) Observação participante – Essa metodologia permite ao pesquisador conhecer e vivenciar o cotidiano local. Ou seja, a partir da observação e vivência, permite uma análise “de dentro” da realidade social e cultural estudada (Albuquerque et al. 2008). A observação participante é muito útil para uma exploração inicial do contexto local, de maneira que o pesquisador possa se envolver espontaneamente com os costumes e práticas da comunidade, estabelecendo uma relação amistosa com as pessoas. É importante que o pesquisador tenha capacidade de memorizar conversas e lembrar de eventos observados, para que tais informações sejam registradas posteriormente no diário de campo, devido a dificuldade de registro em situações cotidianas informais. Geralmente, a observação participante é associada a outras ferramentas metodológicas mais objetivas, uma vez que privilegia a obtenção de informações (inter-)subjetivas e dados qualitativos. Entretanto, é indispensável em estudos qualitativos, descritivos e interpretativos (Amorozo 2004). e) Uso de estímulos visuais – São várias as técnicas de pesquisa etnobotânica fundamentadas no uso de estímulos para se obter informações durante entrevistas. Tais estímulos podem consistir em plantas frescas, plantas secas e prensadas, fotografias, artefatos confeccionados a partir de plantas e até mesmo plantas vivas in situ (Albuquerque et al. 2008). Durante turnês guiadas os estímulos visuais ocorrem a todo momento, quando mostramos uma planta ao mateiro e perguntamos por seu nome, uso, etc. Durante entrevistas, um álbum de fotografias com espécies da flora local pode ser apresentado ao participante para se obter diversas informações sobre as plantas, como quais são conhecidas, quais não utilizadas. f) Lista livre – É uma técnica comumente utilizada para coleta de informações nas ciências sociais, sendo considerada por alguns uma forma de entrevista estruturada (Bernard 1988 apud Albuquerque et al. 2008). Os participantes são solicitados a listar as plantas de interesse para pesquisa, partindo-se do princípio que os elementos culturalmente mais importantes aparecerão em muitas listas e em ordem de importância. Segundo Quinlan (2005 apud Albuquerque et al. 2008), as listas livres apresentam três características que merecem ser ressaltadas: 1) os participantes tendem a listar os termos por ordem de familiaridade; 2) pessoas que “sabem mais” sobre o tema tendem a citar maior número de elementos; e 3) termos citados com maior frequência e abundância indicam elementos mais “importantes” localmente. Porém, muitas vezes o participante pode se esquecer de citar alguns elementos em sua listagem. Assim, o pesquisador pode tentar incentivá-lo a lembrar, sem no entanto influenciar suas respostas e também sem se tornar um chato, utilizando algumas técnicas como a indução não-específica, releitura e sugestão semântica (ver Albuquerque et al. 2008). g) Ordenamento (ranking) – A técnica de ordenamento pode derivar diretamente de listas livres (Albuquerque et al. 2008). Neste caso, os participantes são solicitados a listar as plantas, ordenando-as de acordo com sua preferência ou importância. Dessa maneira, atribui-se um valor a cada planta de acordo com o ordenamento feito por cada participante. Os valores obtidos para cada planta são somados e divididos pelo número total de participantes. Finalmente, a partir de uma média dos valores obtidos para cada planta, é construída uma tabela que representa o ranking das espécies com maior preferência e/ou importância cultural entre os participantes. O ordenamento também pode ser realizado com fotografias. Por exemplo, se o pesquisador deseja saber quais são as unidades de paisagem (quintais, roças, matas, pastagens, serras, etc.) preferenciais para a coleta de recursos vegetais em uma comunidade rural, pode ser realizado um ordenamento com fotografias. ETNOIKOS – Grupo de Estudos Transdisciplinares em Etnoecologia – UFV

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h) Últimas 24 horas – Esta técnica consiste em estimular o participante a listar os elementos (plantas, remédios, artefatos, ferramentas, refeições, etc.) com os quais entraram em contato durante sua rotina nas últimas 24 horas. Trata-se de uma variação das listas livres, adaptada ao estudo da rotina diária dos participantes. Também pode ser associada à técnica de ordenamento quando se deseja avaliar a importância relativa ou preferências locais sobre determinados elementos cotidianos (Albuquerque et al. 2008). i) Mapeamento comunitário – Costuma ser utilizado para reunir informações acerca a percepção dos participantes sobre o uso dos recursos naturais no contexto geográfico local (Mejía 2002). Solicita-se aos participantes que ilustrem, por exemplo, a paisagem local, incluindo um mapeamento das zonas de obtenção de recursos, distribuição desses recursos e das formações vegetacionais nativas. Esta metodologia é constituída pelas seguintes etapas: 1) cada participante desenha um mapa com as informações solicitadas (caso os participantes tenham dificuldades nesta etapa, o pesquisador deve explicar detalhadamente o que deseja com este método e encorajar sua criatividade, respeitando suas individualidades); 2) os participantes são solicitados a nomear e identificar todos os elementos representados no mapa (o pesquisador deve respeitar as denominações locais); 3) realização de turnês guiadas com os participantes para reconhecimento dos elementos representados nos desenhos, visando refinar e rever os mapas; 4) elaboração de um mapa consensual a partir da avaliação e crítica dos participantes; e 5) finalmente, o pesquisador pode utilizar símbolos e cores para representar os elementos na produção do mapa final (Albuquerque et al. 2008). j) História de vida – É um método muito utilizado por antropólogos e sociólogos em entrevistas, buscando captar o processo de memória e reflexão crítica dos participantes sobre suas vivências. A história de vida permite que o pesquisador entre em contato com valores, ideais de vida, ponderações, frustrações, sofrimentos e esperanças que permeiam a vida dos participantes em seu contexto ecológico, social e cultural (Viertler in Amorozo et al. 2002). Evidentemente, a fala, a linguagem, os termos utilizados pelos participantes devem ser respeitados e transcrevidos da forma como foram proferidos. O pesquisador deve tomar cuidado para não traduzir ou codificar o que disse o participante segundo seus próprios preceitos éticos (Viertler in Amorozo et al. 2002). Na pesquisa etnobotânica, Albuquerque e colaboradores (2008) acreditam que a história de vida limita as possibilidades de generalizações por assumirem o caráter autobiográfico, mas podem contribuir para compreensão da construção do conhecimento botânico das pessoas com base em suas experiências de vida. k) Linha do tempo – É um método participativo que pode ser utilizado em reuniões e/ou oficinas com o intuito de identificar e analisar tendências históricas e mudanças significativas no passado da comunidade que podem contribuir para um melhor entendimento do presente. Por exemplo, pode ser utilizada para se conhecer tendências históricas e mudanças referentes a exploração de determinados tipos de vegetação e/ou agroecossistemas, além do histórico de uso de recursos vegetais específicos. Os participantes são solicitados a relembrarem fatos relacionados ao assunto de interesse e quando ocorreram. Os fatos e as datas são citados pelos participantes e vão sendo registrados em uma linha de tempo (Albuquerque et al. 2008). l) Etnografia visual – Inspirado por autores clássicos da antropologia como Malinowski, Bateson e Mead, o biólogo André Alves (2004) lançou mão da fotografia como meio de comunicação humana importante no fornecimento de dados descritivos visuais provocativos em seu estudo etnográfico realizado com os caranguejeiros nos manguezais de Vitória (ES). A proposta de Alves (2004) oferece uma experiência de reflexão e compreensão da realidade local de acordo com a imaginação e a emoção do leitor. Para utilizar esta metodologia, é preciso que o pesquisador se insira na realidade local, estabelecendo uma relação de extrema confiança com os participantes, de modo que a comunidade abrace a proposta mantendo seu dia-a-dia e convivendo harmoniosamente com um paparazzi que não para de fotografar. ETNOIKOS – Grupo de Estudos Transdisciplinares em Etnoecologia – UFV

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m) Métodos botânicos – Logicamente a pesquisa etnobotânica não poderia se esquecer dos métodos botânicos usuais, como coleta, processamento e identificação de plantas. A coleta de plantas pode ser aleatória durante turnês guiadas ou caminhadas em transectos, como pode ser realizada sistematicamente seguindo métodos fitossociológicos, como levantamento em parcelas. É preciso ser cuidadoso em relação aos nomes populares dados às plantas. Sugere-se consultar vários participantes para o reconhecimento das plantas por seus nomes populares locais. Uma espécie pode apresentar mais de um nome popular entre as pessoas de uma mesma comunidade, da mesma maneira que um mesmo nome popular pode ser utilizado para designar várias espécies distintas. Deve-se procurar coletar material botânico fértil (ou seja, com flores ou frutos) para facilitar o processo de identificação científica das espécies. Caso não seja possível, deve-se coletar material vegetativo (ramos com folhas) e anotar características marcantes da planta (p. ex.: características do caule e tronco, presença de látex, resina, etc.) que podem auxiliar na identificação. Sugere-se que sejam realizadas coletas periódicas durante um ou dois anos, a fim de acompanhar o ciclo fenológico das espécies no local estudado, o que pode contribuir para a coleta de material fértil e identificação mais confiável das plantas. Além disso, deve-se conferir cuidadosamente a nomenclatura e grafia correta dos nomes científicos. Finalmente, é imprescindível que o pesquisador prepare exsicatas com as espécies coletadas e as registre no herbário de sua instituição (Albuquerque et al. 2008).

6.6. Métodos e técnicas para análise de dados etnobotânicos A escolha dos métodos de análise de dados depende dos objetivos do estudo e também da própria natureza dos dados obtidos na pesquisa etnobotânica. Segundo Amorozo (2004), a etnobotânica procura captar as diferentes dimensões da relação entre as pessoas e as plantas, envolvendo aspectos objetivos, considerados mensuráveis, relacionados a quantidades (valores de abundância, intensidade, frequência, etc.), e também aspectos subjetivos, relacionados aos significados e percepções. Sendo assim, uma distinção já feita anteriormente volta à discussão: as quantidades e as qualidades, que nos levam a distinguir métodos para análise de dados quantitativos e dados qualitativos. 6.6.1. Análise de dados qualitativos Na abordagem qualitativa, a análise de dados não é a última etapa do processo, sendo concomitante à coleta de dados ou cíclica. Os processos de coleta e análise de dados devem estar intimamente integrados. O pesquisador deve estar em contato íntimo e constante com os dados, lendo, relendo, manuseando-os constantemente. Trata-se de uma atividade eclética e reflexiva. A análise dos dados tem o objetivo de discernir temas e padrões de interesse, bem como testar (sem estatística) idéias e hipóteses acerca de padrões (Amorozo 2004). A primeira etapa do tratamento dos dados numa abordagem qualitativa segue os seguintes passos: 1) coleta de dados; 2) codificação, na qual o pesquisador atribui códigos às informações coletadas a fim de facilitar seu entendimento e organização pessoal; 3) condensação e organização da informação, que consiste na elaboração de tabelas, diagramas, fluxogramas, matrizes com texto, etc.; 4) visão geral dos dados; 5) reflexão sobre seus significados. Numa segunda etapa, o pesquisador deve retornar ao campo para verificar a validade e a confiabilidade das informações sintetizadas e interpretadas, buscando sempre contrastes, comparações. Posteriormente, de acordo com o que foi visto e revisto, o pesquisador pode: formar categorias e estabelecer seus limites; designar segmentos de dados às categorias; sumarizar o conteúdo das categorias; encontrar evidências negativas, etc (Amorozo 2004). ETNOIKOS – Grupo de Estudos Transdisciplinares em Etnoecologia – UFV

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Seguindo este procedimento de análise cíclica, o pesquisador pode enfim discernir com maior segurança determinadas similaridades e dissimilaridades conceituais, refinando o poder discriminatório das categorias e reconhecendo padrões. Ao fim deste processo é produzida uma síntese dos resultados (Amorozo 2004). Ainda é preciso ressaltar que a síntese final dos resultados não se trata de uma descrição da realidade estudada tal como é, mas trata-se apenas de um conjunto de informações interpretado dentro de uma lógica e traduzido para uma linguagem científica. 6.6.2. Análise de dados quantitativos De acordo com Albuquerque e colaboradores (2008), o uso de técnicas quantitativas tem se tornado cada vez mais popular na pesquisa etnobotânica. No entanto, os autores alertam que essa popularidade não acompanhou a reflexão necessária sobre os limites e as fragilidades dos procedimentos quantitativos. Primeiramente, o pesquisador deve estar atento a seus pressupostos, perguntas e objetivos para saber exatamente por que decidiu usar esta via metodológica, que não deve ser adotada em vão, apenas por uma suposta elegância estatística. Além disso, o pesquisador deve estar ciente que em momento algum está “medindo” ou “testando” o conhecimento das pessoas. Ou seja, não pode ser iludido pelos modelos matemáticos, índices e probabilidades, tão sedutores. Não pode sustentar “verdades” ou “mentiras” com testes estatísticos. Em uma revisão sobre técnicas para análise de dados etnobotânicos, Albuquerque e colaboradores (2008) dividiram-nas em três tipos principais de acordo com seu grau de subjetividade: 1) técnicas fundamentadas no consenso entre informantes/participantes; 2) técnicas de alocação subjetiva; e 3) técnicas de totalização de usos. a) Consenso entre informantes/participantes – São técnicas que fundamentadas na concordância entre as respostas das pessoas, coletadas em entrevistas individuais. Um alto consenso entre os informantes indica que uma planta é bem conhecida dentro da comunidade. Algumas técnicas utilizadas com maior frequência em pesquisas etnobotânicas serão apresentadas a seguir:  Nível de fidelidade: NF=NUP/NUT*100%, onde: NF=nível de fidelidade para determinado uso de planta; NUP=número de informantes que sugerem o uso de uma dada espécie para um uso principal; NUT=número total de informantes que citaram a espécie para qualquer finalidade de uso.  Popularidade relativa: PR=NI/NT, onde: PR=popularidade relativa de determinada espécie; NI=número de informantes que citaram uma dada espécie; NT=número de informantes que citaram a espécie mais citada.  Prioridade de ordenamento: OP=NF*PR, onde: OP=ordenamento por prioridade de determinada espécie; NF= nível de fidelidade; PR= popularidade relativa.  Valor de uso segundo Phillips e Gentry (1993): Primeiro deve-se calcular o valor de uso de determinada espécie para cada informante pela fórmula: VUis=ΣNUis/NEis, onde: NUis=número de usos mencionados para a espécie s em cada evento (entrevista, turnê guiada, etc.) com o informante i; NEis=número de eventos realizados com o informante i em que a espécie s foi mencionada. Em seguida, pode-se calcular o valor de uso total de determinada espécie pela fórmula: VUs=ΣVUis/NIs, onde: VUis=valor de uso da espécie s para o informante i; NIs=número de informantes entrevistados que citaram a espécie s.  Valor de uso segundo Rossato et al. (1999): VUs=ΣNUis/Nis, onde: VUs=valor de uso de determinada espécie; NUi=número de usos citados pelo informante i sobre a espécie s; Ni=número total de informantes que citaram a espécie s. ETNOIKOS – Grupo de Estudos Transdisciplinares em Etnoecologia – UFV

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b) Alocação subjetiva – Nas técnicas fundamentadas na alocação subjetiva, os parâmetros que representam a importância relativa de cada espécie são definidos pelo pesquisador. Ou seja, estas técnicas agregam valores determinados por parâmetros preestabelecidos às espécies de acordo, principalmente, com suas categorias de uso, o que as torna subjetivas.  Valor de uso segundo Prance et al. (1987): Nessa técnica, o valor de uso de uma planta é resultado de uma pontuação atribuída pelo pesquisador. Dessa maneira, de acordo com observações de campo ou dados provenientes de entrevistas, as plantas utilizadas para determinada finalidade de uso são divididas em: plantas utilizadas com menor frequência ou importância, que recebem valor 0,5, e plantas utilizadas com maior frequência ou importância, que recebem valor 1,0. Assim, o valor de uso total de uma espécie seria determinado pelo somatório dos valores que a planta recebeu para cada um dos usos citados pelos participantes.  Índice de significado cultural (ISC): Esta técnica foi amplamente criticada por preestabelecer valores às espécies de acordo com a categoria de uso a que pertenciam. Entretanto, o ISC pode ser modificado adequando-se às variáveis consideradas mais importantes para os objetivos da pesquisa. Recentemente, foi proposto por Turner (1988), porém foi modificado por Silva e colaboradores (2006) e pode ser expresso pela fórmula: ISC=Σ(M*P*F)*FC, onde: ISC=índice de significado cultural de determinada espécie; M=manejo da espécie (recebem valor 2 espécies manejadas, cultivadas e protegidas; recebem valor 1 espécies que não recebem nenhum tipo de manejo ou cuidado); P=preferência de uso (recebem valor 2 espécies preferencialmente utilizadas para determinada finalidade de uso; recebem valor 1 espécies utilizadas para determinado fim que não sejam as preferidas); F=frequência de uso (recebem valor 2 plantas frequentemente utilizadas e citadas; recebem valor 1 plantas pouco ou raramente utilziadas e citadas); FC=fator de correção (considera o consenso entre os informantes, sendo definido pela razão entre o número de citações recebidas por uma espécie e o número de citações recebidas pela espécie mais citada). c) Totalização de usos – São técnicas que consistem simplesmente na totalização das categorias de usos estabelecidas pelo pesquisador, sendo frequentemente utilizadas pelo fato de serem rápidas e práticas. Segundo Phillips (1996 apud Albuquerque et al. 2008), são muito úteis em fase inicial ou exploratória da análise de dados. Vale a pena ressaltar que todas as técnicas apresentadas possuem vantagens e desvantagens discutidas por Albuquerque e colaboradores (2008). Além disso, existem outras várias técnicas de análises de dados quantitativos. Com criatividade, senso crítico e uma boa fundamentação teórica e estatística, tais modelos podem ser modificados com o intuito de adequá-los a diferentes situações.

7. RETRIBUIÇÃO DA PESQUISA ETNOBOTÂNICA ÀS COMUNIDADES PARCEIRAS Diante de uma proposta metodológica de diálogo entre o pesquisador e os participantes da pesquisa, e levando em consideração a estrutura institucional sobre a qual a ciência se faz, Rodrigues e Coelho in Rodrigues et al. (2002) sugerem que “a prática científica pode tornar-se uma prática privilegiada de registro, guarda e valoração do saber popular e cotidiano” (p.18). Além disso, poucos são os trabalhos etnobotânicos que definem o destino da pesquisa, assim como a retribuição das informações à comunidade estudada (Andrade & Casali in Rodrigues et al. 2002). Dessa forma, o pesquisador deve preocupar-se com a apropriação privada dos conhecimentos e benefícios gerados pela pesquisa (Rodrigues & Coelho in Rodrigues et al. 2002). ETNOIKOS – Grupo de Estudos Transdisciplinares em Etnoecologia – UFV

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O “retorno” da pesquisa etnobotânica às comunidades envolvidas trata-se de um “pacto” ético e moral do qual os pesquisadores não podem se esquecer. A princípio pode parecer fácil, porém muitas vezes este pacto não é cumprido por muitos pesquisadores, que não retribuem os resultados de seus trabalhos às comunidades parceiras por diversos motivos, seja por falta de interesse, por sua própria concepção e postura política ou simplesmente por não saber como o “retorno” pode ser feito (Albuquerque et al. 2008). Segundo Albuquerque e colaboradores (2008), as iniciativas de “retorno” podem ser dividas em dois grupos: 1) ações que dependem da iniciativa e trabalho individual ou coletivo dos pesquisadores; e 2) ações que dependem de órgãos e/ou instituições para serem realizadas. As formas de retribuição da pesquisa etnobotânica podem ser variadas dependendo desde a abordagem metedológica utilizada e suas limitações até as demandas e anseios da comunidade e a possibilidade efetiva de contribuição. Independentemente da iniciativa de “retorno” proposta pelo pesquisador, é preciso procurar: 1) conhecer alguns problemas e dificuldades das comunidades; 2) conhecer interesses coletivos locais; e 3) ter consciência que a retribuição, além de obrigação ética e moral, pode ser de importância imensurável para a comunidade, possibilitando uma oportunidade de transformação da realidade local segundo suas próprias demandas, sua própria dinâmica histórica e identidade cultural (Albuquerque et al. 2008).

8. ETNOBOTÂNICA E CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE “O que é claro é que a visão de „mundo natural‟ dos conservacionistas ocidentais é uma construção cultural não necessariamente partilhada por outros povos e civilizações que têm visões muito diferentes de sua relação com o que chamamos de natureza.” Marcus Colchester (1997) apud Diegues (2000)

Não é difícil perceber a conexão entre as ciências naturais e as ciências humanas através da relação mútua entre pessoas e paisagens: grupos sociais não apenas influenciam as paisagens, mas são também influenciados pelas mesmas (Scoones 1999, Ab‟Sáber 2003). Por isso, se digo que vivemos num “mundo em retalhos”, é por que vejo a paisagem e penso imediatamente numa colcha, tecida por muitas mãos, retalhada por tantas máquinas, ou seja, não há como ver a floresta vazia pois já a conhecemos em pedaços: o poema é imperfeito, como dissera Fernandez (2004). Assim sendo, já é chegada a hora de duvidar do mito moderno da natureza intocada, que orienta os atuais projetos e ações conservacionistas (Diegues 2000), até mesmo por que talvez jamais tenhamos sido modernos (Latour 1994). A construção do conceito de paisagem inevitavelmente assume o significado de herança, não apenas de processos ecológicos e geográficos, mas também de patrimônio histórico e cultural das populações humanas locais (Ab‟Sáber 2003). O termo paisagem pode ser entendido como uma forma de organização espacial resultante da interação entre processos naturais e atividades humanas (Diegues 2000). Mais do que simples espaços territoriais comunitários, a paisagem está associada à idéia de uso e, mais além, de apropriação dos recursos pelas pessoas (Ab‟Sáber 2003). Portanto, mudanças dos modos de produção, ocasionadas por fatores históricos, políticos, culturais e sócioeconômicos, modificam as formas de uso do solo e, conseqüentemente, alteram o arranjo dos (agro) ecossistemas e a fisionomia da vegetação (Rao & Pant 1999, Begossi et al. 2002, PinedoVasquez et al. 2002).

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A partir desta perspectiva, vários autores sugerem que o modelo de conservação fundamentado no estabelecimento de áreas protegidas é virtual: só existe no papel, ou seja, constitui-se uma abstração, muitas vezes completamente fora da realidade local, desvinculada do contexto político, cultural e sócioeconômico (Diegues 2000, Schwartzman et al. 2000, West & Brockington 2006). Segundo Chan e colaboradores (2007), o estabelecimento de áreas protegidas tende a criar situações de conflito entre grupos sociais com interesses distintos (governantes, cientistas, populações locais) uma vez que os projetos conservacionistas não são construídos junto às comunidades locais, costumam ser imposições. Por isso, os autores sustentam a noção de que bem-estar humano e conservação da biodiversidade são incompatíveis, sem, no entanto, considerar que o próprio significado de “bem-estar” varia entre diferentes culturas (Chan et al. 2007). Ou seja, nem todos os grupos sociais, especialmente alguns mais isolados, compartilham a noção de bemestar produzida na “sociedade do ter” (Fernandez 2004), em que a razão prática é orientada pela cultura do pensamento burguês ocidental (Sahlins 1976). Dessa maneira, Diegues (2000) defende que este modelo de conservação (modelo dominante) é inadequado para a realidade tropical, uma vez que é fundamentado em uma concepção exótica de natureza associada à idéia de “vida selvagem”. Ou seja, tendo em vista a grande diversidade biológica e cultural encontrada nos trópicos, e sendo tantas as concepções de natureza quantas as culturas existentes, Diegues (2000) propõe a etnoconservação como um modelo alternativo para a conservação da natureza, fundamentado em idéias da escola conservacionista indiana, denominada ecologia social pela comunidade científica norte-americana. A partir de uma perspectiva etnoconservacionista, a participação das populações humanas locais é indispensável para o sucesso de qualquer projeto conservacionista, ou seja, já que em nosso poema imperfeito conhecemos a floresta vazia, devemos trabalhar juntos aos que habitam a floresta, pois são imprescindíveis para conservá-la (Diegues 2000, Schwartzman et al. 2000). Torna-se necessário ressaltar, portanto, que o conhecimento científico que fundamenta os projetos conservacionistas atuais se encontra em pedaços, assim como as florestas que pretendem conservar. Nesse sentido, torna-se cada vez mais evidente a demanda por iniciativas de pesquisas interdisciplinares, integrando ciências naturais e humanas (Scoones 1999), em conjunto com o conhecimento ecológico local (Diegues 2000, Begossi et al. 2002, Moller et al. 2004, Drew & Henne 2006) visando melhor compreender o contexto no qual se originam nossos atuais problemas ecológicos para buscar soluções adequadas às mais diversas realidades locais. Desta maneira, a etnobotânica pode ser considerada uma ciência promissora no fornecimento de subsídios para analisar a sustentabilidade no uso e manejo dos recursos vegetais por diferentes grupos humanos (Albuquerque et al. 2008).

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AB‟SÁBER, A. Os domínios da natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. 159 p. ALBUQUERQUE, U. P. Introdução à etnobotânica. Rio de Janeiro: Interciência, 2005. ALBUQUERQUE, U. P.; LUCENA, R. F. P. & CUNHA, L. V. F. C (Orgs.). Métodos e técnicas na pesquisa etnobotânica. 2ª Ed. Recife: COMUNIGRAF, 2008. ALVES, A. Os argonautas do mangue. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. ALVES, R. Entre a ciência e a sapiência: o dilema da educação. São Paulo: Loyola, 1999.

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